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Revista de Etologia

Print version ISSN 1517-2805On-line version ISSN 2175-3636

Rev. etol. vol.6 no.2 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Considerações básicas a respeito da psicopatologia evolucionista*

 

Evolutionary psychopathology: basic considerations

 

 

Fabíola LuzI **; Martin BrüneII ***; Vera Silvia Raad BussabI****

I Universidade de São Paulo
II Ruhr-University of Bochum, Germany

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo examina a idéia geral de patologia sob o ponto de vista da biologia evolucionista. Focaliza os instrumentos analíticos conceituais da psicologia evolucionista a partir das idéias de causa próxima e causa última, com vistas a uma nova compreensão dos distúrbios psiquiátricos, em particular dos apresentados por adictos. Indica como o exame da função adaptativa dos sintomas conduz à identificação do sistema funcional subjacente e orienta a investigação. O exercício de um percurso analítico de mão-dupla, das causas últimas para as próximas e vice-versa, é aplicado à compreensão de distúrbios como autismo e esquizofrenia, que têm a ver com o "cérebro social" e a "teoria da mente"; e à análise das características de 19 casos de pacientes adictos portadores de jogo patológico, compra compulsiva, sexo compulsivo e dependência de drogas.

Descritores: Psicopatologia evolucionista, Distúrbios psiquiátricos, Adictos.


ABSTRACT

This article presents a general overview of psychopathology from an evolutionary biology point of view. The conceptual analytical tools of evolutionary psychology are examined, using as a basis the distinction between proximate and ultimate causes, aiming at a new understanding of psychiatric disturbances, more specifically disturbances present in addictions. Taking into account the adaptive function of symptoms leads to the identification of underlying functional systems and guides investigation. A two-way analytical path from ultimate causes to proximate and vice-versa, is applied to the understanding of disturbances such as autism and schizophrenia which are related to the "social brain" and to the "theory of mind", and also applied to the analysis of cases of addict patients, suffering from pathological gambling, compulsive shopping, compulsive sex and drug addiction.

Index terms: Evolutionary psychopathology, Psychiatric disorders, Addiction.


 

 

As relações estabelecidas entre a psicologia evolucionista e os distúrbios psiquiátricos criam um campo fértil de onde provêm conceitos paradigmáticos que podem ser aplicados a síndromes clínicas específicas. A partir do desenvolvimento tecnológico e científico, o diagnóstico psicopatológico tem-se beneficiado de múltiplas maneiras. Como nos lembra Brüne (2001), a possibilidade, antes inimaginável, de `olhar o cérebro pensando' expandiu a compreensão dos distúrbios psíquicos no nível fisiológico. Para além do limite da mera busca de marcadores (genéticos/bioquímicos) mais ou menos específicos ou distúrbios dos neurotransmissores, essa nova circunstância das relações entre psicologia evolucionista e distúrbios psiquiátricos gera duas dimensões a partir das quais podemos pensar ou no nível da causalidade imediata do fenômeno que se estuda (causa próxima) ou no nível de suas causas últimas, que remete ao valor adaptativo e à evolução do processo psicológico em questão, efetivamente determinantes de todo o percurso do fenômeno. Coloca-se aí, provavelmente, a grande contribuição da abordagem evolucionista para a compreensão da psicopatologia, como também o grande paradoxo: como é possível a doença em geral - a doença mental em particular - fazer parte do arsenal selecionado para a perpetuação da espécie?

Por que aqueles traços não foram eliminados, tendo em vista que muitos deles vão, aparentemente, na contra-mão dos processos vitais, como a depressão e a anorexia nervosa, por exemplo? (Nesse, 1997).

O conceito de nível último comporta as delimitações onde se enraíza o curso orientado pela aptidão abrangente. O conceito genérico de aptidão refere-se à contribuição genética do indivíduo para a próxima geração, ao passo que o conceito de aptidão abrangente refere-se ao conceito genérico estendido à sobrevivência e procriação da prole e engloba também a aptidão indireta que se refere à capacidade de contribuir com a sobrevivência de parte dos próprios genes no cuidado de parentes não- descendentes diretos (Alcock, 2001).

Essa espécie de percurso acidentado depurativo em que se constitui a evolução, em algum momento teve uma determinação originária que, como sabemos, sempre se pautou pelas melhores condições de adaptabilidade em benefício da transmissão de genes. A explicação evolucionista do comportamento se mostra como a decodificação do conceito de nível último (Nesse, 1999). O nível último refere-se às condições biológicas, sociais e do meio ambiente físico que, em escala de tempo evolucionista (a rigor deveríamos considerar algo da ordem de 2 milhões de anos atrás, tendo em mente a evolução do gênero Homo), resultaram em traços adaptativos e não adaptativos. (Crawford & Krebs, 1998). Embora pareça evidente, é difícil transpor a circunstância de uma época tão remota para os dias atuais. Isso explica, em parte, o desencontro entre o que se passa e as questões que colocamos sobre esse passado remoto. É o caso daqueles traços não adaptativos ainda persistirem. A contradição, nesse caso, está, provavelmente, no tipo de pensamento condicionado pelo nosso tempo e não na persistência daquelas características. É nessa esfera de apreensão dos fenômenos (nível último) que encontramos o que Bowlby (2002) chamou de "sistemas comportamentais", ao ampliar e atualizar a compreensão do termo comportamento instintivo. Tais sistemas, também chamados de "sistemas motivacionais", "sistemas funcionais", fazem referência a comportamentos que foram moldados pela seleção natural, presentes numa determinada espécie, e de cuja eficácia depende a sobrevivência.

No nível próximo, por outro lado, cada indivíduo produz um conjunto de fenômenos que se prestam ao juízo de serem satisfatoriamente adaptados ou não. Isto é, estamos aqui no âmbito em que doença e sanidade são categorias úteis na definição dos elementos a serem avaliados pelos critérios evolucionistas, a partir dos quais encontraremos explicações, esclarecimentos e, em última análise, soluções. Bem entendido, o que estamos insinuando é antes a preeminência deste nível como sendo uma espécie de ponto de partida conceitual a partir do qual a matéria tratada se converte em foco de análise cujo objetivo é encontrar, no nível último, um sistema funcional que lhe esclareça a ocorrência. Portanto, o nível último e próximo só funcionam no interior de um sistema explicativo evolucionista, nunca em separado. Sendo essencialmente complementares, demandam uma abordagem de tipo integrativo no sentido de propiciarem uma adequada e produtiva compreensão dos processos psicopatológicos. Os aspectos essencialmente clínicos que serão aqui abordados pela ótica da psicologia evolucionista estarão fundamentados e complementados por essa perspectiva heurística.

Isso posto, o que temos é o que poderíamos chamar de ferramentas conceituais que redimensionam a apreensão do que muitas vezes se toma como banal. Tomemos o sintoma da febre como situação de referência. O raciocínio parece natural: prescreve-se o antitérmico e ponto. Há, sem dúvida, uma sabedoria nisso. Mas sob outra ótica, pode-se perguntar: qual a função da febre? A pergunta pela função é a pista principal a desobstruir o caminho para uma reflexão ampla e que se pauta pelas condições de sobrevivência. A partir disso, tomamos a circunstância como tendo passado pelo nível próximo sob a orientação da noção de aptidão. Conforme raciocínio desenvolvido por Nesse e Williams (1997) vamos imaginar dois grupos (A e B), o primeiro formado por indivíduos febris que passaram pela prescrição do antitérmico; o segundo, composto por indivíduos igualmente febris e, no entanto, livres da prescrição. Acompanhamos o quadro clínico durante um período e notamos que o tempo de remissão definitiva do sintoma do grupo A foi maior, ou seja, o grupo permaneceu doente por mais tempo. O grupo B, livre da interferência do fármaco, precisou contar com recursos naturais, cujo núcleo deve conter a explicação que nos interessa, ou seja, a função da febre. Tendo sido observado que foi esse o grupo em que as pessoas ficaram menos tempo doentes, podemos supor que, apesar de sintoma, a febre se comportou como um anti-séptico natural, o que está longe de ser pouco. Ora, numa época em que os antitérmicos e antibióticos eram impensáveis, por exemplo, no caso de nossos ancestrais remotos, a natureza os dotou de um eficiente sistema de manutenção da vida, selecionando o sintoma como satisfatoriamente adaptado. "Mesmo que muitos estudos estabeleçam que a febre normalmente é importante para combater a infecção, isso não justificaria uma política inflexível de estimular a febre ou até deixá-la rotineiramente subir até seu nível natural. Uma perspectiva evolutiva chama a atenção para os custos e benefícios de uma adaptação como a febre. Se não houvesse desvantagem compensatória em ter o corpo humano funcionando a 40 graus, ele deveria permanecer nessa temperatura o tempo todo, a fim de prevenir o aparecimento de infecções". (Nesse & Williams, 1997, p. 27). O percurso analítico de mão dupla, do nível próximo para o último e vice-versa, parece garantir a operacionalidade da busca da pergunta original, com isso ampliando nossa compreensão sobre o fenômeno tanto na superficialidade quanto na profundidade, ademais de modular nossa ação clínico-terapêutica.

Na esteira do exemplo da febre, é possível salientar a função de diversos sintomas protetores, às vezes confundidos com a própria doença: a função adaptativa da tosse pode ser entendida como sendo a de eliminar secreções ou fatores irritativos das vias aéreas superiores; do mesmo modo, cada um dos quatro sinais clássicos associados às inflamações _ rubor, calor, tumor e dor - podem ser compreendidos como igualmente voltados para o combate dos elementos causadores do problema. Doenças psíquicas cuja expressão equivale a um sintoma como fobias, erotomania, também podem ser mais facilmente compreendidas sob a ótica evolucionista, que esclarece as funções desses sintomas e as condições causais típicas de seus mecanismos subjacentes.

Cumpre observar, no entanto, que tal raciocínio não se estende a uma proposição absoluta na qual todo distúrbio, síndrome ou sintoma tenha sempre uma espécie de valor adaptativo oculto. Há que se considerar também o mais evidente, o caso em que as doenças revelam os limites de reação dos organismos e a ausência ou insuficiência dos processos de defesa. Refletem, nessas situações, os mecanismos evolutivos em ação eliminando variações menos adaptadas e selecionando as variações mais resistentes ao conjunto de circunstâncias provocadoras das doenças em questão.

Mas temos de levar em conta que, nas patologias, muitas adaptações comportam-se como compromissos ou permutas de traços adaptativos não raro divergentes. Tomemos como ilustração a situação de pessoas que têm alelo sanguíneo para a anemia falciforme; como é sabido, tais pessoas são mais bem protegidas contra as infecções causadas pela malária. Essa espécie de permuta da natureza condiciona por um lado um tipo de fluxo sanguíneo anormal e, para o caráter homozigoto, a morte. Por outro, na hipótese de contaminação pela malária, estará garantida certa sobrevida; daí o caráter dos compromissos e permutas acima referidos. Numa primeira abordagem poderíamos chegar a uma contradição insolúvel na manutenção desse traço não-adaptativo (anemia falciforme), porém a circunstância atenuante da defesa `extraordinária' em relação às conseqüências da malária funciona como o fundamento para a compreensão da sua conservação no processo da seleção natural (Nesse e Williams, 1997).

Em âmbito psicológico, analogamente, distúrbios condicionados por determinados grupos genéticos como aqueles que predispõem, por exemplo, à depressão, podem levar à manifestação do sintoma como um fator adaptativo. Dito de outro modo, nas formas mais brandas, a depressão acarretaria a adoção inconsciente de uma "estratégia de perda de status" por parte do doente, caracterizada por uma identificação com o fracasso; o expediente reduz a carga da chamada competição social, proporcionando profilaticamente um alívio das tensões e um redimensionamento das condições de vida no caso de perda do status social (Price, Soloman, Gardner, Gilbert, & Rohde, 1994). No entanto, aumentada a proporção de gravidade do quadro depressivo, o modelo explicativo parece perder validade, uma vez que não há aqui propriamente fatores identificáveis de promoção de ajustamento individual.

 

Correlações aplicadas

Vamos explorar um pouco mais a utilidade dessa nova ferramenta para elucidar a perspectiva evolucionista aplicada na compreensão das patologias mentais, disciplina que tem sido designada, a partir da segunda metade do século 20, como psicopatologia evolucionista. Voltando à idéia de um percurso analítico de mão dupla, entre a causa última e a causa próxima, a interrogação sobre a função do sintoma conduz à busca dos sistemas comportamentais que lhe possam dar ancoragem em uma explicação de tipo evolucionista. A identificação do sistema e a constatação de sua funcionalidade conduzem, por sua vez, a pesquisas orientadas sobre os fatores determinantes no nível próximo, em termos de ontogêrnese e de causação imediata, assim como orientam investigações a respeito do ambiente contemporâneo em contraste com o ambiente de adaptabilidade evolutiva. Cria-se um roteiro organizador da pesquisa; na imagem de Tooby e Cosmides (1992), é como oferecer um mapa aéreo a um andarilho perdido em floresta densa.

É fácil notar que, a partir da variedade de sintomas, poderíamos chegar a uma proporcional variedade de sistemas no nível último. A psicologia evolucionista tem definido alguns desses sistemas funcionais, como os relacionados ao Altruísmo recíproco, ao Investimento dos pais, à Seleção Sexual e ao Conflito pais-prole (Trivers, 1971, 1972, 1974); à Teoria da Mente (Tomasello, 2001) e ao Apego (Bowlby, 2002). Poucos estudos foram desenvolvidos, até o momento, no sentido de mapear toda a variedade e alcance dos sistemas comportamentais na explicação evolucionista dos fenômenos psicopatológicos detectados no nível próximo: distúrbios de ansiedade, depressão, anorexia nervosa, o caso dos adictos, para citar alguns.

Nessa perspectiva, pode se revelar produtivo estender as idéias acima a uma patologia psíquica específica em que o quadro clínico equivale a um sintoma, como no caso da erotomania - a convicção delirante de ser amado por determinada pessoa. O campo de reflexão sobre o fenômeno alarga-se ao limite da mesma busca que aplicamos ao caso da febre, ou seja, qual a função do sintoma - erotomania - detectado no nível próximo? A partir disso, e entre as vias explicativas evolucionistas que surgem, aparece aquela talvez mais conveniente que seria a de ser vista como uma variação patológica da estratégia de seleção de parceiros e de reprodução. No nível próximo observamos que a patologia é mais comum em mulheres solteiras que se encontram, com freqüência, em período tardio de sua fase reprodutiva e que elegem, como objeto de amor, homens socialmente bem posicionados (freqüentemente médicos, padres, políticos, celebridades). Esses dados sugerem que estamos lidando com variantes nos mecanismos subjacentes às causas últimas das estratégias de reprodução humana. Conforme análise do delírio amoroso feita por Brüne (2002) "... trata-se de um excesso numa determinada estratégia da escolha de parceiro, que aponta para uma preferência de parceiros potenciais com alto status social." (...) "porque nessa estratégia trata-se de assegurar recursos para si e para potenciais descendentes; as mulheres que adoeceram não têm, em geral, um relacionamento fixo e muitas vezes tentam forçar o contato com seus objetos de amor" (Brüne, 2002, p. 130). Isso significa que no delírio existe um exagero na tentativa de assegurar o parceiro competente para si própria e para a possível prole.

Tal postulado está plenamente de acordo com a chamada Teoria da Estratégia Sexual (Buss & Schmitt, 1993). Por meio do critério analítico da causa última surgem hipóteses sobre sistemas funcionais que foram selecionados e que, portanto, passaram a fazer parte da estrutura biológica dos indivíduos de uma espécie. Neste caso - a erotomania - o sistema comportamental privilegiado para compreender sua função é o da Seleção Sexual (Brüne, 2001).

O resultado, para além dessa conclusão, é o de promover uma integração daquilo que poderia ser considerado como explicações estanques (da psicofarmacologia, da genética, da psicanálise e da psiquiatria) das potências explicativas baseadas nos corpus de conhecimento e tradição de cada uma dessas áreas. Assim, a interpretação evolucionista pode ser vista como integrativa, na medida em que "apresenta um instrumento heurístico que abrange dados individuais, interpessoais e biológicos". (Brüne, 2002, p. 55). Além disso, a dimensão cultural também pode ser aí incluída, uma vez que não se contrapõe à vertente biológica, pois essa leitura compreende que os mecanismos culturais são baseados em mecanismos psicologicamente evoluídos. (Buss, 1995; Tooby & Cosmides, 1992).

O que se revela aqui é a tônica principal desse artigo, ou seja, para sermos pragmáticos, a utilidade do âmbito destas causas últimas como fator decisivo de explicação e reunificação do conhecimento dos mais variados sintomas ligados ao comportamento humano em relação direta com os seus sistemas comportamentais.

De um modo geral, podemos redimensionar a idéia dos distúrbios psiquiátricos reposicionando-os no campo dos chamados distúrbios do "cérebro social" (Brüne, 2003). Os cérebros dos primatas, humanos inclusive, possuem mecanismos adaptativos emocionais, cognitivos e de comportamento que evoluíram para interagir com o meio ambiente social. A notável importância da questão social para a sobrevivência do indivíduo e para o sucesso reprodutivo fez com que os pesquisadores sugerissem que, a princípio, os humanos desenvolveram "cérebros sociais" capazes de processar toda a informação que culmina na percepção correta e na forma de ser dos seres da mesma espécie (Brothers, 1990). Há evidências empíricas comfirmando esse ponto de vista. Por exemplo, os humanos entendem mais facilmente as regras se estas estiverem em um contexto social em vez de em contexto de raciocínio abstrato (Cosmides, 1989). Além disso, os primatas humanos (e, talvez, até certo ponto os primatas não-humanos) desenvolveram a capacidade única de inferir estados mentais de outros indivíduos, que equivale ao sistema comportamental chamado Teoria da Mente. Assim, nesta espécie de área fundamental, a do "cérebro social", ocorrem soluções adaptativas em função de situações evolucionariamente determinantes e relacionadas a problemas do meio ambiente social, tais como: questões de status social, sucesso no acasalamento, demanda e concessão de cuidados (Gilbert, 1998).

Vamos ilustrar agora o alcance explicativo do sistema funcional específico citado, a Teoria da Mente, que tem sido relacionada a algumas psicopatologias.

 

Teoria da mente

A expressão teoria da mente (ToM) refere-se à capacidade cognitiva de assumir a perspectiva mental do outro, à capacidade de representar os estados mentais próprios e de outra pessoa, em termos de pensamentos, crenças e intenções. Considera-se que a Teoria da Mente emergiu na evolução hominida como adaptação a um ambiente social de complexidade crescente (Brothers, 1990), embora o conceito tenha sido inspirado por estudos do comportamento social de chimpanzés (Premack & Woodruff, 1978). Acumulam-se demonstrações da origem primata dessa capacidade, ao mesmo tempo em que os dados comparativos corroboram a idéia de que no homem a ToM alcança patamares únicos de complexidade (Tomasello, 2003). Há evidências de que o sistema neural subjacente à ToM tenha evoluído a partir da capacidade de monitorar movimentos de outro ser vivo - com sede no sulco temporal superior, no córtex pré-frontal medial e no giro cingulado anterior (Siegal & Varley, 2002), e também a partir de estruturas neurais associadas ao comportamento imitativo, os chamados neurônios-espelho (Gallese & Goldman, 1998). Tudo indica que o monitoramento do comportamento de coespecíficos deve ter formado a base para a evolução do monitoramento da mente dos outros.

Distúrbios da capacidade de leitura da mente têm sido descritos em várias desordens neuropsiquiátricas, como nas síndromes autísticas (Baron-Cohen, 1995). Há evidências de prejuízos da ToM na esquizofrenia. Alguns sintomas como delírios persecutórios, desorganização do pensamento e da linguagem ficam mais bem entendidos à luz das dificuldades desses pacientes em relacionar as próprias intenções aos comportamentos correspondentes (Spence et al., 1997). A maioria dos estudos sugere que a capacidade de ToM sofre deterioração na esquizofrenia em decorrência de um processo neuropatológico desconhecido que se manifesta depois da puberdade. Ao que tudo indica, a degeneração se instala na ordem inversa da aquisição ontogenética de complexidade: a compreensão da ironia, por exemplo, pode ser afetada antes da compreensão de metáforas (Brüne, 2003), por exemplo.

Descreveremos agora os passos e considerações feitos na trajetória que percorremos no estudo de uma patologia ainda pouco pesquisada sob a ótica evolucionista - o caso dos adictos - com a finalidade de explorar uma possível instrumentalização dessa teoria.

 

Perspectivas para o caso dos adictos

Buss (1999) retoma e explica o esquema que denominamos de mão dupla, isto é, quando uma análise pode ocorrer tanto num sentido (top-down) quanto no oposto (bottom-up). Esses termos são a expressão acabada dos níveis último e próximo, sendo que no primeiro caso o tipo de análise se pauta pela necessidade de responder o porquê determinado traço evoluiu daquele modo. Aplicado ao exemplo acima tratado - o da febre -, a indagação seria: por que o sistema imune manteve esse mecanismo para defesa do organismo? Por outro lado, o segundo tipo de análise coloca a indagação a respeito de como o traço (tomado aqui, por exemplo, o patológico) confere sentido e fundamento ao conjunto de fundo dos alicerces da evolução. Para o caso da febre, a indagação se mostra evidente: sendo algo que a princípio se mostra contrário à orientação da aptidão darwiniana, como sobreviveu ao refinamento evolutivo?

A análise de tipo top-down se mostra conveniente nos casos de estudo dos fenômenos ditos normais. Para a bottom-up pensamos nos casos patológicos, o que também é evidente, visto que, a princípio, nenhuma patologia poderia ter justificativas em termos evolutivos (Brüne, 2002). Entretanto, importa ressaltar que aquilo que nosso vocabulário clínico circunscreve na idéia de patologia pode bem equivaler a adaptações nas condições ancestrais, mecanismos de defesa contra riscos evolutivamente significativos (Gilbert, 1998). Ressaltamos também que, para os fins a que se dedica este estudo o que chamamos de patológico refere-se à conceituação clássica, ou seja, patologia é a disfunção de uma ou mais capacidades que leva a um quadro de insuficiência do organismo na manutenção da vida, é distorção do andamento tido como normal ou fisiológico. Em determinadas circunstâncias pode trazer sofrimento e a partir de um grau crítico peculiar a cada organismo pode acarretar a morte.

Retomando agora os limites dos sistemas comportamentais disponíveis (Altruísmo recíproco, Investimento de pais-seleção sexual, Conflito pais-prole, Teoria da Mente, Apego), buscamos explicação para a problemática dos adictos. Que tipo de sistema funcional daria conta disso? Como ele se organiza? Quais outros traços comportariam os fundamentos? Por outra via, que sistema funcional vinculado às patologias psíquicas não estaria, por assim dizer, operando convenientemente? E qual seria a função comprometida no caso do comportamento adicto?

Refazendo o caminho analítico, ao nos dirigirmos ao nível próximo, aproveitamos as categorias propostas por Buss (1999) como fontes de dados para testar hipóteses evolucionistas: registros arqueológicos; dados das sociedades de caçadores-coletores; observações; auto-relatos; dados de história de vida e registros públicos; produtos humanos.

Dentre esses itens, o do auto-relato é tão decisivo quanto delicado para a pesquisa psiquiátrica. Decisivo porque dá acesso privilegiado à patologia, delicado porque dependente de uma série de variáveis de difícil controle, como a falsificação, a dissimulação, o disfarce, a omissão das respostas, a verdadeira inconsciência da real resposta. Para evitar isso seria o caso, talvez, de construir questionários que pudessem contornar e evitar tais inconvenientes, como a aplicação de mais de um questionário em cada pesquisa, buscando a ratificação ou não dos dados coletados, por exemplo.

Mesmo assim e tendo em vista essas categorias, usamos informações provenientes de auto-relato para uma exploração inicial de questões na investigação com adictos. Foram consultados 19 adictos em tratamento medicamentoso e psicoterápico, dos quais 2 se enquadram na categoria jogo patológico, 3 em compra compulsiva, 4 em sexo compulsivo e 10 em dependência de drogas.

Recordemos de que maneira a psiquiatria distingue cada uma dessas patologias. O jogo patológico se caracteriza por um comportamento de jogo inadequado, persistente e recorrente, indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes quesitos: preocupação com o jogo (por exemplo, o paciente revive experiências de jogo passadas, avalia possibilidades, planeja a próxima parada ou pensa em modos de obter dinheiro para jogar); necessidade de apostar quantias de dinheiro cada vez maiores, a fim de obter a excitação desejada; presença de esforços repetidos e fracassados no sentido de parar de jogar, controlar ou reduzir a freqüência do jogo; inquietude ou irritabilidade ao tentar parar de jogar, ou reduzir a freqüência do jogo; uso do jogo como forma de fugir de problemas ou de aliviar um humor disfórico (por exemplo, sentimentos de impotência, culpa, ansiedade, depressão); retorno ao local do jogo após perda de dinheiro para ficar quite ("recuperar o prejuízo"); uso de mentiras para familiares, o terapeuta ou outras pessoas no sentido de encobrir a extensão do envolvimento com o jogo; uso de atos ilícitos, tais como falsificação, fraude, furto ou estelionato, para financiar o jogo; submeter a risco, ou mesmo a perda, um relacionamento significativo, o emprego ou uma oportunidade educacional ou profissional em razão do jogo; busca de terceiros com o fim de obter dinheiro para aliviar uma situação financeira desesperadora causada pelo jogo (DSM-IV-TR, 2003).

A compra compulsiva se define como um distúrbio no ato de comprar e apresenta peculiaridades: preocupação freqüente em adquirir objetos; o impulso costuma se tornar irresistível, intrusivo e sem sentido; a compra costuma ultrapassar a capacidade financeira do doente; ítens desnecessários são adquiridos e despende-se mais tempo nessa atividade do que o pretendido. (Lejoyeux et al., 1996). Alguns estudos defendem a hipótese de que a compra compulsiva pode ser considerada um tipo de dependência não-química. (Lejoyeux, 1997). A manifestação do transtorno costuma apresentar a seqüência: ansiedade ou depressão seguidos pela compulsão da compra; efetivação do ato seguida por euforia ou excitação; por fim aparece a culpa que leva à depressão - e o ciclo se reinicia. (McElroy et al., 1995).

O sexo compulsivo é, a rigor, subdividido em três tipos: obsessões sexuais; impulsões sexuais, ou as chamadas sexual addiction - o assunto estudado aqui - e as parafilias). "As impulsões sexuais constituem atos impulsivos geradores de prazer, embora muitas vezes associados a sentimentos de vergonha e culpa, de caráter repetitivo. Tais condições incluem a masturbação compulsiva e comportamentos sexuais promíscuos repetitivos, que podem ser considerados uma forma de dependência não-química". (Del Porto, 1996).

A dependência de drogas, por sua vez, define-se como um padrão inadequado do uso de substâncias, levando a comprometimento ou sofrimento clinicamente significativo, manifestado por três (ou mais) dos seguintes critérios: tolerância (definida pela necessidade de quantidades progressivamente maiores da substância, para obter a intoxicação ou o efeito desejados, ou pela acentuada redução do efeito com o uso continuado da mesma quantidade de substância); abstinência (manifestada por síndrome de abstinência característica da substância; ou a mesma substância é consumida para aliviar ou evitar sintomas de abstinência); consumo freqüente da substãncia em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido; existência de um desejo persistente ou de esforços mal-sucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso da substância; gasto de tempo alto em atividades necessárias para a obtenção da substância, na utilização da substância ou na recuperação de seus efeitos; abandono ou redução de importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas em virtude do uso da substância; manutenção do uso da substância apesar da consciência da existência de um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.(DSM-IV-TR, 2003).

Diante das perguntas (aqui estamos no nível próximo): "Por quê você usa drogas?", "Por que você faz compras ou joga compulsivamente?", "Por que você faz sexo de maneira obstinada?", as respostas foram unânimes - busca-se o prazer. Talvez possamos supor que o sistema funcional procurado relaciona-se, de algum modo, com essa busca. Continuamos no nível próximo e procuramos, na neurociência, o mapa do prazer no cérebro. Ali encontramos as vias do prazer e da recompensa no sistema límbico, descritas por Olds (1969). O ponto recortado deste nível sugere que tipo de ligação, de vínculo, de enraizamento poderia haver no nível último.

A busca do prazer, de modo amplo, pode ser vista como um traço que, revelando-se útil, acabou moldado pela seleção natural. Alexander Bain e Herbert Spencer, contemporâneos de Darwin, atribuem ao prazer um papel chave na adaptação, em face da seleção natural. (Vincent, 1986). Descargas espontâneas de energia nervosa provocam atividades musculares difusas: os movimentos acompanhados de prazer são seletivamente reforçados, e os que provocam desprazer enfraquecem e desaparecem. Essa escolha favorece a adaptação da espécie: um estímulo agradável descarrega uma forte quantidade de energia nos músculos que se encontram em ação tornando as vias motoras mais permeáveis, ao passo que os estímulos desagradáveis fecham as vias motoras correspondentes. (Vincent, 1986). Mesmo a escola behaviorista mais preocupada com a aprendizagem do que com a evolução, vai na mesma direção quando, pela lei do efeito, estabelece que uma resposta comportamental só é conservada se for seguida de uma recompensa que, por sua vez, implica o prazer que daí resulta. Se, em vez da resposta comportamental, considerarmos unicamente as associações de estímulo no quadro dos reflexos condicionados clássicos, é igualmente verdade que um estímulo só adquire valor ativador se estiver associado a uma situação perceptiva indutora de prazer. Pode-se dizer que o prazer é uma essência dinâmica que permite exprimir a plasticidade do sistema nervoso. (Vincent, 1986).

Mas o que parece evidente é que apenas o prazer ou a busca dele não garantiria a constituição do que chamamos a cultura humana, ainda que evidentes e vigorosos elementos de prazer sejam constitutivos da idéia geral de cultura. No compartilhamento do conhecimento das múltiplas sociedades, nas inúmeras trocas grupais, cujo eixo se caracteriza pela transmissão de informações de geração a geração, pelo uso da linguagem e de outras representações simbólicas (Bussab & Ribeiro, 1997), é conveniente que se esclareça, há também prazer em vários aspectos. Porém, igualmente tem se revelado como um dos traços fundamentais da cultura o autocontrole, o equilíbrio - numa palavra, contenção. Para que a construção aconteça é necessária, muitas vezes, a supressão do prazer ou o retardamento dele.

A partir dos trabalhos que sustentam e indicam que o núcleo do freio do prazer está no giro cingulado anterior (Allman et al., 2001), estabelecemos o outro polo disto que poderíamos chamar de via de prazer/recompensa - retardamento do prazer. Vislumbramos então, um possível caminho neurológico que dará suporte a importantes processos de manutenção da vida, da reprodução e da construção da cultura humana. Uma via arquitetada no nível próximo, a sugerir funções, no nível último, que justificariam a sua permanência, para as quais foi selecionada na espécie. Buscaremos delinear tais funções, agora, no comportamento dos adictos.

Tomemos de início o caso do jogador patológico. O quadro clínico que comumente o caracteriza indica uma patologia mais comum em homens que se engajam numa estratégia de alto risco. A compulsão pelo jogo começa, muitas vezes, em um momento aparentemente pacífico na vida do jogador. Ele pode relatar que a vida em família estabelecida se mostra monótona demais, algo o leva a procurar outros desafios _ quem sabe conquistar vantagens em relação a outros homens -, ainda que somente na fantasia: muitas vezes o jogo é solitário. Cabe a ressalva de que, a rigor, cada jogador é, obviamente, um ser único, do mesmo modo como concebemos por extensão, cada esquizofrênico, cada fóbico, cada farmacodependente, e assim por diante; a classificação se fundamenta apenas em questões estatísticas que apontam traços comuns aos chamados jogadores patológicos aqui estudados. O jogador, permanecendo na experiência de risco sente-se mais poderoso, mais capaz para futuros hipotéticos desafios, inclusive outros acasalamentos que nem chegam a se concretizar, mas impõem-lhe o risco de perder o conquistado.

A compradora-compulsiva, em geral mulher (Christenson et al., 1994), não costuma ter a vida em ordem no momento em que se iniciam os sintomas. A situação familiar não apresenta tipicidade, a baixa auto-estima é notória e, ao adquirir objetos, ela relata uma sensação de prazer, um aumento de autovalorização que se esvai na seqüência do ato. O alvo das compras são, principalmente, itens de beleza (Christenson et al., 1994), sugerindo uma função de acréscimo do poder de acasalamento; some-se a isso a freqüente aquisição de outros objetos ou provisões para que a identifiquemos como uma coletora em shoppings modernos a evocar nosso passado ancestral de caçadores-coletores. No entanto, ao invés de angariar recursos, que estariam aumentando seu prestígio, está ela, de fato, despendendo-os, uma vez que os objetos adquiridos não contribuem efetivamente para uma satisfação duradoura.

Sabe-se que, em última análise, a natureza privilegia, em termos de processo de evolução natural, a reprodução em detrimento da sobrevivência, nos casos em que a primeira independe da segunda. Não é difícil atinar com a importância funcional do sistema reprodutivo e nem com a força da pressão seletiva exercida sobre esse sistema na evolução das espécies em geral (Alcock, 2001). O mesmo ocorre no comportamento humano normal e a psicopatologia pode se beneficiar das considerações sobre as características da evolução e do desenvolvimento de nosso padrão reprodutivo. O quadro do sexo compulsivo ilustra esse fenômeno, na medida em que a busca indiscriminada do parceiro, muitas vezes, coloca em risco a vida dos envolvidos. As afecções sexualmente transmissíveis, em particular a Aids, constituem o risco maior a que se expoem esses indivíduos, nos dias de hoje. Assim, o sexo compulsivo pode ser compreendido, em termos de causa última, como um exagero na estratégia reprodutiva de busca de parceiros. Evidentemente, todas as considerações sobre valor adaptativo, ajustamento, normalidade e patologia devem ser colocadas em contexto, em função dos aspectos limitantes trazidos pelo distúrbio que compromete o bem estar e as necessidades essenciais do indivíduo, a integração social no grupo de referência e assim por diante. Desse modo, apesar de encontrarmos as chances de reprodução aumentadas em função do grande número de intercursos sexuais tidos por esses doentes, recordemos que o quadro muito se distancia dos românticos dom-juans encontrados na literatura (Luz, 2005), pois, nos casos aqui estudados, a experiência sexual é buscada sem liberdade - por se tratar de uma compulsão -, e concluída, na maioria das vezes, com sentimentos de culpa e vergonha, conforme relatamos anteriormente na descrição do quadro clínico.

A análise da dependência de drogas, por outro lado, apresenta outras peculiaridades. A ela parece-nos mais difícil, por enquanto, atribuir um vínculo determinante no nível último. Sabemos, no entanto, que o paciente fragilizado em seu poder de ação busca o prazer para tentar um aumento imediato da auto-estima, o que estabelece a ilusão de possuir condições para qualquer desempenho posterior, seja reprodução, competição ou alguma atividade social. Em termos estritos isso significa um aumento da aptidão a partir da dinamização do funcionamento neuroquímico, trazida pela droga, com a conseqüente potencialização das emoções positivas e bloqueio das negativas (Nesse & Berridge, 1997). Assim descrito, o comportamento passa a ser problemático na ocorrência de uma oferta da droga em níveis excessivos. O aspecto cultural relevante que aqui se apresenta é o de que o problema do abuso de substâncias e dependência tem se tornado pronunciado desde o começo da produção industrial de álcool e outras drogas (Nesse & Berridge, 1997). É de se supor que essa oferta excessiva leve à farmacodependência aqueles indivíduos portadores de poucos receptores cerebrais para a dada substância, que são, efetivamente, os candidatos mais prováveis ao vício, conforme hipóteses neuroquímicas recentes (Stahl, 2000). Essas hipóteses, embora não pretendam explicar a complexidade da patologia, oferecem mais uma contribuição para elucidação do problema. E, além disso, podemos imaginar que humanos modernos não tiveram ainda a chance de desenvolver adaptações à oferta em larga escala de substâncias psicoativas.

Ora, tanto o caso da compradora compulsiva quanto o do compulsivo sexual ligam-se, pelo visto, a suas causas últimas da Seleção Sexual pelas vias do prazer, função que também se pode atribuir aos jogadores patológicos, embora com menor ênfase. No entanto, o dependente de drogas, apesar de percorrer a mesma via, parece não exibir, em seu quadro clínico, os sistemas comportamentais aqui descritos como função última, a partir desse trilhar comum. O prazer é um mecanismo que, de modo geral, movimenta o indivíduo para aumentar a aptidão no nível último - essa é provavelmente a função para a qual esse mecanismo foi selecionado. Mas na essência desse recurso pode haver um perigo latente, o da estação intermediária acabar por se tornar um fim, quando deveria ser um meio.

A rigor, podemos imaginar que os processos que conduzem ao aumento da aptidão sejam formados por partes mais ou menos independentes, que interagem para resolver problemas significativos do ponto de vista adaptativo, à semelhança dos modelos que explicam a organização modular da mente (Fodor, 1983). Nas patologias psíquicas, de modo geral, podemos supor que o caminho é interrompido ou uma das etapas não se cumpriu, o que é facilmente compreensível no caso dos adictos, ainda mais evidente no dependente de drogas, tendo em vista que a estação intermediária é o prazer, ou a busca dele. Se essa distorção ocorre porque o passo em questão é prazeroso, se se deve à falha no freio do prazer, ao excesso de oferta de drogas na sociedade moderna, ao pequeno número de receptores para determinada substância, não sabemos com certeza. Provavelmente, o fenômeno se deve a todos esses fatores conjuntamente, e mais outros tantos, ainda desconhecidos, e que provavelmente serão revelados em investigações futuras.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fabíola Luz
Rua Joaquim Antunes 767/61
05415-012, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil
E-mail: fabiluz@attglobal.net

Recebido em 5 de fevereiro de 2004
Revisão recebida em 15 de dezembro de 2004
Aceito em 2 de maio de 2005

 

 

* A idéia desse artigo surgiu quando uma das autoras (Fabiola Luz) resolveu buscar e desenvolver instrumentos conceituais da Psicologia Evolucionista, dentro do programa de Mestrado em Psicologia Experimental, sob a orientação da terceira autora. É nesse percurso que teve a oportunidade de entrar em contato com o professor Martin Brüne.
** Médica psiquiatra, doutoranda do Instiuto de Psicologia, USP, SP.
*** Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Ruhr-University de Bochum.
**** Instituto de Psicologia USP, São Paulo.

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