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Revista de Etologia

versão impressa ISSN 1517-2805versão On-line ISSN 2175-3636

Rev. etol. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

DOCUMENTOS

 

Um primeiro documento

 

 

César Ades

 

Com o artigo "On the panic reactions of ants to a crushed nestmate: a contribution to a psychoethology of fear", de Walter Hugo de Andrade Cunha, professor aposentado do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, a Revista de Etologia inaugura uma secção destinada à publicação de textos raros ou de difícil acesso, relevantes para a compreensão do desenvolvimento do estudo do comportamento animal em nosso meio. O artigo reproduz (com as modificações nos resumos requeridas pelas normas editoriais da Revista de Etologia) um manuscrito enviado por Cunha à revista Insectes Sociaux, por intermédio de Charles D. Michener, da Universidade de Kansas, em julho de 1974. Esse manuscrito, que recebeu um parecer positivo e outro negativo dos assessores da revista, não foi aceito para publicação. Julgo, contudo, que merece plena atenção, pela sua análise original e instigante do comportamento de formigas diante de aspectos novos do ambiente e pela proposta teórica de um processo (hoje, não hesitaríamos em concebê-lo como cognitivo) através do qual a situação presente é avaliada e configurada a partir do passado que ela própria recupera. O artigo, além disso, aponta para caminhos de análise comparativa e filogenética das "reações de pânico" em diversas espécies de formigas, um tema lorenziano que não perdeu sua relevância (ao contrário !) na etologia de hoje.

O trabalho aqui reproduzido foi apresentado durante o I Congresso Latinoamericano de Psicobiologia, realizado em São Paulo, em 1973, sob a coordenação geral de Elisaldo Carlini, da Escola Paulista de Medicina. Baseia-se em pesquisas de Cunha sobre o comportamento de formigas diante de alterações efetuadas sobre a sua trilha que deram origem ao livro Explorações no mundo psicológico das formigas (Ática, São Paulo, 1980). O ponto de partida está na observação da trilha de obreiras de Paratrechina fulva, numa parede vertical, em que as formigas se deslocam de forma homogênea, tocando-se com as antenas no momento dos encontros. "Suponha-se, agora, que se esmaguem, com o dedo ou com um objeto qualquer, algumas formigas num ponto da trilha. Alterações espantosas se verificam, então, nas formigas remanescentes, ao atingirem as proximidades desse ponto. Assim, os insetos, em sua maioria, subitamente estacam a alguns centímetros do ponto de esmagamento, com um ou mais violentos repelões, e retornam, literalmente correndo, numa trajetória ondulante, quer por sobre a trilha, quer desviando-se dela. Algumas, com modificações aparentes na marcha e na postura, passam, num desvio, ao lado do ponto alterado. A maioria exibe marcha bastante irregular, geralmente com empinamento do abdome, e, se a parede é apreciavelmente lisa, algumas chegam mesmo a despencar ao solo. Quando a parede é rugosa, freqüentemente ocorre que algumas formigas, depois de alteradas, correm para o interior de alguma cavidade ou depressão, onde, por alguns segundos, permanecem relativamente imóveis". E Cunha prossegue: "Porque, observando-os com atitude ingênua, tais fatos me apareciam, subjetivamente, como uma exteriorização de medo ou pânico, julguei-os modificações de comportamento com um caráter emocional" (Cunha, 1980, p. 16).

A atenção de Cunha, que poderia ter sido chamada, na explicação da desorganização do carreiro de formigas, pelo exame dos feromônios ou substâncias de alarme liberados pelo esmagamento, dirigiu-se para os processos pelos quais as formigas registram as características ambientais relevantes e usam a experiência passada em suas interações com o ambiente presente. Os fatores químicos e de experiência não são excludentes e podem ambos, no caso do esmagamento de um inseto no carreiro, participar da eliciação da reação de alarme. Mas era crucial, e é isso que pretende o artigo de Cunha, mostrar que os repelões, os retornos, a correria, a busca de refúgio e outras mudanças comportamentais mais ou menos precipitadas, têm determinantes comportamentais próprios.

Reações de alarme em P. fulva não dependem necessariamente do esmagamento de uma companheira. Cunha mostrou que são desencadeadas pelo simples passar do dedo na trilha, pela colocação de um objeto novo perto desta, pela projeção de um ponto de luz, por um sopro de ar e até pela ausência de um estímulo ao qual as formigas tinham se acostumado. Há habituação, mesmo aos estímulos produzidos pelo esmagamento de uma formiga, se for no mesmo lugar da trilha, e o contexto de alarme pode virar contexto discriminativo. Em suma, características "inesperadas" do ambiente estão na base da causação psicológica da reação de alarme das formigas. Creio que tenha passado despercebida aos pareceristas esta importante contribuição do artigo de Cunha à compreensão de processos "psicológicos" em formigas.

Junto, ao artigo de Cunha, a carta que me endereçou, na qual procede a uma reflexão, típica de sua postura exigente e rigorosa, a respeito das idéias do artigo e das condições nas quais, guiado pelo passado, o comportamento se torna conduta.

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