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Revista de Etologia

versão impressa ISSN 1517-2805versão On-line ISSN 2175-3636

Rev. etol. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

CARTA AO EDITOR

 

Walter Hugo de Andrade Cunha*

Instituto de Psicologia, USP

 

 

Caríssimo César:

Atendendo a seus (insistentes) pedidos, envio-lhe, com esta, cópias de: (1) original enviado a "Insectes Sociaux" através do Dr. Charles D. Michener em julho de 1974 e não aceito para publicação... (2) Carta explicativa a Michener; (3) carta do editor com cópias de pareceres de dois consultores; (4) carta escrita ao editor, mas não enviada.

No tocante a esta última carta, lembro-me de haver contado com sua ajuda, César, tanto para os argumentos como para vertê-la para o inglês. Não foi enviada porque resolvi que melhor seria fazer dois artigos preliminares, demonstrando os efeitos da experiência individual anterior e seu papel em modular o efeito de companheiras esmagadas (e dos prováveis feromônios de alarme liberados pelo esmagamento) em provocar comportamento de alarme, antes de tornar a apresentar o artigo rejeitado, depois de devidamente modificado (...) A oportunidade passou. No entanto, meu protesto, não enviado, me parece ainda hoje na maior parte pertinente por denunciar certos vieses objetivistas, ati-teóricos e anti-psicológicos nos periódicos com enfoque biológicos acerca do comportamento animal.

Relendo o artigo, concordo que ele é, na maior parte, técnicamente inadequado, a começar pelo título, que deveria indicar tratar-se de um trabalho sobre a possível determinação do "comportamento de alarme" em formigas por fatores de experiência ou, pelo menos, do comportamento e situação prévios dos insetos (a expressão "panic reactions", com que... procurei tanto inovar como ser mais preciso, era, certamente, objetável, em 1974. Talvez hoje já não o fosse: curiosamente, Höll-dobler e Wilson, no livro "Ants", de 1999, cunharam - claro, sem nenhuma alusão a "Cunha" - essa mesma expressão para especificar uma das duas modalidades em que clssificavam o comportamento de alarme, sendo a outra constituída pelas reações de ameaça).

Voltando ao artigo: trata-se de um adaptação de um texto destinado a ser um dos capítulos de um livro que Elisaldo Carlini propusera publicar com as conferências pronunciadas no 1 Congresso Latino-americano de Psicobiologia, mas que, depois, deixou de lado, alegando não ter recebido vários originais. O número de páginas reservado para o trabalho era exíguo e obrigou-me a perpetrar várias imprecisões e omissões (por exemplo, a respeito de outras relações tratadas em minha palestra, como acerca da tendência de formigas com uma dada categoria de modificação de comportamento a exibirem ou não as demais categorias e a respeito de uma comparação das diversas categorias quanto à incidência, entre as formigas que nelas figuravam, de fenômenos representados por outras categorias).

Aproveitar o capítulo para artigo de um periódico, então, não devia nem ter sido cogitado, mas, depois da proeza de conseguir completá-lo, a tentação de fazê-lo era grande e, como se diz, o diabo é tendeiro, e não me permitiu evitá-la.

Um importante erro que cometi tanto no escrito como na carta foi ter afirmado que o feromônio não é nem suficiente nem necessário para explicar o comportamento de alarme, pois não trabalhei diretamente com feromônios (no entanto, parece que o fiz indiretamente, a julgar pelo que diz um dos assessores da revista.). Uma questão que reputo interessante, e sobre a qual tenho muita curiosidade, é a seguinte: que aconteceria se, numa trilha já bem consolidada, se esmagasse uma formiga cujas glândulas admitidamente produtoras ou armazenadoras de feromônios de alarme tivessem sido removidas, e com elas, qualquer vestígio de seus produtos no corpo da formiga? Duvido de que não houvesse perturbações do comportamento das formigas vivas diante dessa intromissão na trilha, ou seja, duvido de que a ruptura de um pré-ajustamento à situação repetidamente encontrada não bastasse para provocar um alerta. Se o fizesse, as várias partes dessa alteração não deveriam também ser consideradas substâncias de alarme, e não deveriam sê-lo, igualmente, objetos exógenos como palitos de fósforo, folhas de papel, vestígios do friccionamento de um dedo ou de produtos químicos colocados sobre a trilha, etc. ?).

Voltando ao escrito, penso que Michener estava certo em sua carta sobre a necessidade de se falar, no artigo, sobre como os pesquisadores apontam os feromônios de alarme como os fatores responsáveis pelo comportamento de alarme em formigas e sobre como meu trabalho tencionava chamar a atenção para outros possíveis determinantes do comportamento de alarme não tratados pelos estudiosos dos feromônios, determinantes esses trazidos pelo comportamento e experiência anteriores dos insetos. Eu deveria mencionar também que, como meu estudo versava sobre possíveis efeitos, sobre o comportamento de alarme, de fatores de pré-exposição, não se justificava empregar, nele, diretamente, feromônios sintetizados, e tão somente eles, no lugar do corpo das companheiras, pois estas e não aqueles é que seriam naturalmente encontradas numa exposição normal (como seria o caso, por exemplo, quando um animal de grande porte pisoteasse a trilha).

Quanto à assimilação que fiz de meus achados à hipótese de Hebb, parece-me, hoje, provavelmente forçada e desnecessária. A formiga, ao que acredito, não teria uma complexidade nervosa suficiente para exibir um "conflito perceptual" como o que seria experimentado por primatas. Mas, também, não posso de todo, com meus dados, excluir essa possibilidade. Hoje penso que o comportamento de alarme que observei nas formigas expressava apenas, e diretamente, a natureza das mudanças provocadas num ambiente de pré-exposição cujo registro e representação, certamente determinados por um programa inato, em cada formiga, tinha as seguintes funções: servir como sonda do estado atual do ambiente, no sentido de verificar se este se encontrava alterado ou não com respeito à condição em que figurava num estado de registro e pré-ajustamento; no caso afirmativo, despertar nas formigas um estado de alerta e de prontidão para ações alternativas, algumas das quais, presumivelmente, influídas pela experiência individual prévia (por exemplo, pela posse de um "mapa cognitivo" mais ou menos diferenciado); no caso negativo, isto é, no caso em que o ambiente encontrado não discrepasse do registrado, prosseguir com a modalidade de intercâmbio com o meio que vinha sendo efetuada. Haveria, segundo penso, duas dessas modalidades: uma, que classifico como de encaminhamento do organismo para um alvo demandado (o comportamento apetitivo ou o aversivo, de Wallace Craig), e outra, que classifico como de atingimento (as ações consumatórias de Wallace Craig). A primeira dessas modalidades costuma ser, freqüentemente, psicologicamente mediada, isto é, exercida com a intermediação da experiência individual passada. No caso das formigas, na hipótese de estarem apropriadamente motivadas, a situação presente de estímulos, ao ser assimilada à situação de pré-ajustamento, adquiria não só a condição de teste do estado alterado ou inalterado do novo ambiente com relação ao ambiente de ajustamento como também duas novas funções. A primeira dessas novas funções seria dotar cada aspecto do ambiente presente que reproduz um aspecto correspondente da situação prévia de ajustamento da função de disparar ou desencadear um lançar-se do organismo para o próximo aspecto do meio associativamente reintegrado anda antes que esse aspecto fosse sensorialmente verificado; e a segunda, seria dotar cada resultado sensorial, obtido nesse lançar-se do organismo, da função de verificar, ao reproduzir ou não o efeito da parte correspondente da situação de pré-ajustamento, se o passado encontrado integra ou não a rota que leva ao alvo final demandado, e se, de acordo com isso, pré-lança o organismo para o próximo passo ou, ao contrário, interrompe o processo de concretização de demanda em andamento, As duas funções estão envolvidas, portanto, na libertação do comportamento do organismo da ação meramente eliciadora dos estímulos, permitindo a esse comportamento tornar-se conduta , ou seja, ação guiada pelo passado, pela qual o organismo é portado até um alvo demandado que parece futuro mas que, na verdade, é retrazido associativamente do passado. Complicado, não? Espero mostrar esse mecanismo de ação psicologicamente mediada, quem sabe com mais felicidade e clareza, num livro que comecei a escrever e não tenho previsão de quando terminar (...).

Um grande abraço - meu e de Bertha !

 

 

* Carta do Prof. Walter Hugo de Andrade Cunha ao Editor da Revista de Etologia, em 10 de fevereiro de 2005, encaminhando o artigo "On the Panic Reactions of Ants to a Crushed Conspecific: a Contribution to a Psychoethology of Fear".

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