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Revista de Etologia

Print version ISSN 1517-2805

Rev. etol. vol.9 no.1 São Paulo Jan. 2010

 

Artigos

 

Complexidade coletiva e simplicidade individual

 

Collective complexity and individual simplicity

 

 

Pedro Leite Ribeiro *


Universidade de São Paulo - SP


Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este texto faz uma breve discussão sobre as possibilidades de entendimento teórico acerca do comportamento coletivo. Até que ponto este é fruto de características emergentes que por sua vez são o resultado de processos auto-organizados ou é dependente de modulações do comportamento individual, é o ponto central da discussão. Não é excluída nenhuma possibilidade de interpretação, mas é proposto que nenhuma delas (individual ou auto-organizada) seja exclusiva.

Palavras-chave: Comportamento coletivo. Comportamento individual. Formigas.


ABSTRACT

This text does a brief discussion about the possibilities of theoretical understanding about collective behavior. To what extent the emergent characteristics are unique result of self-organizing processes or are dependent on modulation of individual behavior, is the central point of the discussion. Is not precluded any possibility of interpretation, but it is proposed that none of them (individual or self-organized) is unique. inglês.

Keywords: Collective behavior. Individual behavior. Ants.


 

“As coisas devem ser feitas o mais simples possível, mas não qualquer simples”

Albert Einstein

Talvez o gargalo teórico mais importante nas teorias de auto-organização, e nas modelagens matemáticas propostas sobre o funcionamento de sistemas biológicos, seja o entendimento de até que ponto as partes que compõem o sistema coletivo são unidades que seguem algumas poucas regras de forma sempre igual, sem nenhuma modulação individual importante. Quanto maior a complexidade de cada um dos membros do sistema, e, portanto, sua capacidade de modulação, maior será a distância entre o modelo de auto-organização proposto e o entendimento completo de como o sistema funciona. A complexidade individual de cada membro da comunidade social é, certamente, menos visível que as regras de interação; isto por si só, torna o seu entendimento mais difícil. No entanto, apesar de muitas vezes estar escondida, ela pode ter um papel relevante no funcionamento do sistema.

A teoria sobre sistemas biológicos auto-organizados pode ser definida da seguinte forma: auto-organização é um processo no qual o padrão no nível global do sistema emerge exclusivamente das numerosas interações entre os componentes básicos que o compõem. Por conseqüência, as regras que especificam as interações entre os componentes do sistema são executadas com base exclusiva nas informações locais, sem uma referência ao padrão global (Camazine et al., 2003). A óbvia impossibilidade de um só indivíduo isolado realizar as tarefas feitas por uma colônia de insetos sociais faz com que acreditemos que regras de interação social sejam o que faz com que o sistema se auto-organize, e as coisas que observamos possam ser feitas. Assim, a formiga ao seguir por uma trilha pode ter apenas o conhecimento da concentração local de feromônios sem nenhum outro conhecimento da trilha.

Não é difícil extrapolar o alcance destas idéias a outros sistemas biológicos, inclusive humanos. Se observarmos, por exemplo, o trânsito de qualquer cidade do mundo, não teremos dificuldade em criar uma explicação a respeito de seu funcionamento que se baseie em idéias de auto-organização. Afinal, os carros fluem pelas ruas e avenidas seguindo algumas poucas regras, as leis de trânsito, de forma que basta que cada motorista as obedeça para que o trânsito flua, sem, em momento algum, existir a necessidade do entendimento completo, por parte de cada motorista, de como funciona todo o sistema de tráfego, com todas as suas ruas e particularidades. Uma vez construído o modelo teórico será possível prever o que deve acontecer com o sistema caso modificações sejam feitas, como, por exemplo, um aumento do número de carros, uma mudança dos tempos dos sinais de trânsito, uma alteração da velocidade máxima permitida, etc. Este modelo será, portanto, capaz de nos ajudar a entender o funcionamento de tráfego de uma cidade, mas nos dará poucas informações sobre os seus indivíduos (os motoristas) e suas particularidades, capacidades, pensamentos, etc (Sumpter, 2006).

Um proveito que se acredita que possa decorrer da noção de sistemas auto-organizados é que o resultado da auto-organização traga revelações surpreendentes, difíceis de prever com a análise simples de seus componentes. O fato de trilhas de formigas serem, na maioria das vezes, o caminho mais curto, ou muito próximo disso, entre o ninho e a fonte de alimento, é considerado um interessante exemplo de como soluções para problemas sofisticados (encontrar o caminho mais curto) podem ser encontradas através de algumas poucas regras (Beckers, Deneubourg, & Goss, 1992). Acredita-se que formigas de espécies que fazem marcação química de trilhas depositem feromônios tanto na ida quanto na volta, em suas viagens entre o ninho e a fonte de alimento (Carthy, 1950, 1951; Wilson, 1962, 1971). Sabe-se também que os feromônios são voláteis, e que sob condições ambientais similares (vento e temperatura) têm taxas de evaporação parecidas. Nesse sentido, portanto, o caminho que tiver uma quantidade maior de formigas por unidade de tempo e espaço terá uma concentração maior de feromônios (Holldobler & Wilson, 1990). Concentrações de feromônios maiores exercem um poder maior de atração de formigas do que concentrações menores. Assim, numa determinada situação na qual existam dois caminhos, um longo e outro curto, o caminho curto tenderá a ter uma concentração maior de feromônios; por conseqüência, será o caminho escolhido pela maioria das formigas. Afinal, se de início (antes que as trilhas sejam marcadas) cada formiga tiver a mesma chance de seguir pelo caminho curto ou pelo caminho longo, o caminho curto será mais marcado simplesmente pelo fato de ser mais curto, pois, supondo que as formigas andem sempre na mesma velocidade, as que escolherem o caminho curto vão percorrer e marcar o percurso inteiro num intervalo de tempo menor da que aquelas que escolherem o caminho longo. Isso acarretará uma concentração maior de feromônios no caminho curto (Beckers, Deneubourg, & Goss, 1993).

Como as formigas sempre depositam feromônios ao ir e vir entre o ninho e a fonte de alimento, e essas substâncias as atraem para as trilhas, temos um clássico exemplo de retro-alimentação positiva. No entanto, vale ressaltar que pelo menos cinco premissas são necessárias para que esse processo funcione conforme o proposto. 1- As formigas depositam feromônios quando viajando nos dois sentidos; do ninho para a fonte de alimento e no sentido oposto, da fonte de alimento até o ninho. 2- As formigas se comportam exatamente da mesma maneira em caminhos curtos ou longos; elas não teriam, portanto, o conhecimento da distância percorrida. 3- A escolha do caminho a seguir é baseada exclusivamente na concentração de feromônios nas trilhas, de forma que as formigas não têm nenhum tipo de memória a respeito do caminho feito. 4- Uma vez que uma formiga escolhe um caminho, ela o percorre por completo e escolhe o mesmo caminho para voltar para o ninho. 5- A taxa de evaporação do feromônio é constante quando mantidas as condição ambientais (Camazine et al., 2003).

A necessidade dessas cinco premissas certamente é um ponto a ser considerado antes de aceitar a teoria proposta; afinal é preciso demonstrar que as formigas se comportam exatamente da forma necessária para que o modelo seja bom. Testes experimentais nos quais dois caminhos de diferentes extensões são oferecidos às formigas como únicas opções de trânsito entre o ninho e a fonte de alimento mostraram que elas quase invariavelmente escolhem o caminho mais curto (Beckers et al., 1992). Alguém poderia, então, argumentar que a teoria estaria comprovada de forma definitiva.

No entanto, a distância entre a situação experimental proposta e a situação real de forrageamento às quais as formigas estão submetidas, deve ser um fator a ser considerado (Sumpter, 2006). Afinal, formigas acham o caminho mais curto em situações mais sofisticadas do que a apresentada no teste empírico. Ainda não foram estudadas experimentalmente situações em que haja mais do que duas opções, sem que as opções estejam “sugeridas” pela montagem experimental e, portanto, tenham que ser construídas a partir do zero pelas formigas. O simples fato de as formigas seguirem os padrões gerados pelo modelo teórico numa situação experimental simplificada não serve como validação irrefutável do modelo proposto.

Então, se voltarmos ao exemplo da otimização da distância de forrageamento por formigas, não será difícil encontrar exemplos nos quais a formiga teórica pode ser incapaz de desempenhar a tarefa feita pela formiga real. Para tanto, basta imaginar uma situação na qual a trilha curta seja oferecida para a colônia apenas depois que a atividade de forrageamento já esteja estabelecida na trilha longa. Nesta situação a colônia composta por formigas teóricas não estabeleceria a trilha curta como preferencial, pois a concentração de feromônios na trilha longa sempre será maior. O fluxo de formigas previamente estabelecido na trilha longa seria responsável pela manutenção de altas concentrações de feromônios nela. Se nessa situação, colônias de formigas reais estabelecerem como trilha preferencial a trilha curta o modelo teórico terá que ser abandonado, revisto ou deverá incorporar novas regras de interação.

As trilhas químicas de forrageamento de várias espécies de formigas constituem o exemplo predileto dos teóricos da auto-organização. A intensidade do controle exercido pelos feromônios sobre o comportamento das obreiras forrageadoras foi a inspiração da idéia de simplicidade individual, transferindo para as regras de interação a capacidade da ação coletiva conseguir resultados funcionais (Dussutour, Nicolis, Deneubourg, & Fourcassié, 2006; Jackson, Holcombe, & Ratnieks, 2004; Jackson & Ratnieks, 2006; Ratnieks, 2005; Robinson, Jackson, Holcombe, & Ratnieks, 2005; Wehner, 2003). No entanto, são poucos os estudos nos quais as formigas tenham de enfrentar situações que imponham obstáculos ao funcionamento normal das trilhas, embora tais situações sejam a melhor maneira de examinar o alcance  e os limites dos modelos. Os modelos de auto-organização têm o mérito da parcimônia, porém  a simplificação excessiva pode distanciar a formiga teórica da formiga real.

 

Referências

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Camazine, S., Deneubourg, J.-L., Franks, N. R., Sneyd, J., Theraulaz, G., & Bonabeau, E. (2003). Self-organization in biological systems. Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]

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Recebido em: 10/01/2009
Aceito em: 2/05/2010

 

 

Endereço para correspondência

Pedro Leite Ribeiro, Universidade de São Paulo, Instituto de Biociências, Departamento de Fisiologia, e-mail: pedrolribeiro@gmail.com


* Agradecimentos: Agradeço ao Professor César Ades pelas valiosas conversas que tornaram esse texto possível.


 

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