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Revista de Etologia

versão impressa ISSN 1517-2805

Rev. etol. vol.9 no.1 São Paulo jan. 2010

 

Artigos

 

Fenótipos amplificáveis em pequenas cognições

 

Amplifiable phenotypes within small cognitive systems

 

 

Hilton Ferreira Japyassú

Universidade Federal da Bahia


Endereço para correspondência

 


RESUMO

Tem prevalecido na literatura a hipótese de que a cognição animal não é uma ferramenta única e ajustável, mas sim múltiplas ferramentas especializadas, que os psicólogos evolucionistas denominam módulos. Implícita no modelo da psicologia evolucionista estão as idéias de que (1) a cada aumento evolutivo de plasticidade comportamental corresponde um aumento no número de módulos cognitivos, o que implica em novas redes neurais e (2) uma maior plasticidade no desempenho requer mais informação embutida nos sistemas de controle. Mostramos aqui que a idéia de aumento de cognição via aumento de redes neurais não parece adequada no caso de animais com pequenos cérebros e grande desempenho cognitivo, como as aranhas construtoras de teias. À evolução de maior plasticidade no sistema de construção da teia, corresponde uma simplificação no sistema de controle da construção da teia, ou seja, uma redução no número de módulos envolvidos. Mostramos também que o comportamento de animais com pequenos cérebros parece não se conformar à segunda colocação do modelo, e que está de acordo com uma hipótese segundo a qual a informação não reside dentro dos animais mas está distribuída no ambiente, e se instaura no momento da interação entre o animal e o ambiente. O aumento do número de módulos cognitivos não parece ser a única via evolutiva para o aumento da cognição animal. Discutimos as implicações deste novo modelo para a relação entre psicologia e biologia, sugerindo que as idéias interacionistas da psicologia do desenvolvimento são necessárias à biologia para a construção de uma nova teoria evolutiva.

Palavras-chave: Psicologia evolucionista. Cognição. Fenótipos. Aranhas.


ABSTRACT

The hypothesis that animal cognition is not a single general problem solving mechanism but consists of multiple specific mechanisms referred to by evolutionary psychologists as cognitive modules is prevailing in the literature. Implicit in model of evolutionary psychology are the ideas that (1) to each evolutionary increment in the problem solving ability of animals, there is a correlated increment in the neural network that underlies performance and that (2) more plasticity is correlated to more information within the cognitive system. In this paper we show that the idea of an increase in cognition through an increase in neural modules is not sustainable in the case of small brained animals that show high behavioral plasticity, such as spiders. Spiders that evolved high web building plasticity also evolved a reduced number of modules controlling their performance. We also show that the second idea is not supported by results obtained with small brained animals. The evolution of prey capture in web building spiders is best explained by a model that conceives information as emerging in the interaction of the animal and its environment, and not as something within animal brains. The increase in neural modules does not seem to be the only evolutionary route to the enhancement of behavioral plasticity. We discuss the implications of this new model to the relationship between psychology and biology, and we suggest that the interactionist ideas of developmental psychology should help biologists in the construction of a new theory of evolution.

Keywords: Evolutionary psychology. Cognition. Phenotypes. Spiders.



 

 

A psicologia evolucionista, uma ecologia comportamental evolutivamente orientada, e que se aplica especialmente ao ser humano, tem chegado a um relativo consenso acerca da organização modularizada da cognição (Buss 1999; Cosmides & Tooby 1997; Pinker, 1997). Nossa percepção, decisão e ação estariam formatadas em sistemas de processamento de informação relativamente autoreferentes, que funcionam em concerto, é claro, mas cujos maquinismos internos seriam em grande medida independentes dos maquinismos internos de outros módulos cognitivos. Tais módulos seriam fruto de nossa história, tendo sido úteis no nosso paleolítico ambiente de adaptação evolutiva, quando vagávamos pelo mundo em bandos de poucos primatas. Foi este ambiente arcaico que moldou nossa percepção do mundo e que selecionou nossos módulos cognitivos os quais garantem, por exemplo, que sejamos bebês especialmente atentos ao rosto e ao sorriso humanos, ou seja, garantem que tenhamos em nosso cérebro uma área que lide especialmente com a decodificação da face, um módulo da face (Otta, 1994). A psicologia evolucionista sugere que temos centenas de módulos, os quais lidam, cada um deles, com um aspecto particular de nosso ambiente: detecção de contornos, de cantos, de movimento, detecção de sexo e idade e estado de ânimo no tom da voz, isolamento de sílabas e palavras no meio de um fluxo sonoro, categorização afetiva de humanos e efetiva de objetos, enfim, centenas de módulos neurais que organizam nossa percepção do ambiente e nossas ações (para vozes discordantes, v. Buller, 2006).

Nesta abordagem, aumentos na capacidade cognitiva são obtidos via multiplicação de módulos especializados para o desempenho de tarefas de sobrevivência e reprodução. Isto sugere, mesmo que indiretamente, que animais simples, pequenos invertebrados como formigas, aranhas ou caramujos, seriam pouco interessantes como objeto de estudo para as ciências cognitivas já que, no mínimo, não haveria espaço físico em seus diminutos sistemas nervosos para a presença das centenas de módulos especializados que nos tornam tão plásticos, ajustáveis, adaptáveis a condições das mais variadas1. Isto não impede que, no nível que compete a estes pequenos animais, tenham surgido seus “pequenos gênios”, como as abelhas e seu sistema comunicativo complexo, os polvos e sua reconhecida cognição espacial, ou mesmo algumas ainda pouco conhecidas aranhas papa-moscas, também com habilidades cognitivas surpreendentes (v. abaixo). Tais habilidades extraordinárias de seus representantes máximos não passariam de curiosidades para o psicólogo evolucionista já que, de qualquer forma, seriam incomparavelmente inferiores aos feitos cognitivos humanos. Além disso, tais animais seriam apenas as exceções que confirmam a regra, aqueles que teriam logrado evoluir alguns poucos módulos especializados apesar das evidentes limitações na capacidade de processamento de informação. Meu objetivo neste trabalho é mostrar que talvez não seja este o caso, que talvez haja outras formas para o aumento da cognição, rotas evolutivas alternativas que poderiam ser exploradas, e que estes pequenos seres talvez tenham importantes contribuições para as ciências cognitivas como um todo.

 

Informação e comportamento

Uma questão que atravessa este discurso da psicologia evolucionista diz respeito à informação para a percepção/ação. Nos comportamos de tais formas em tais circunstâncias porque nosso sistema nervoso tem informações prévias acerca do que discernir nas circunstâncias e de como agir quando tal discernimento se produz. Estas informações seriam relativamente encapsuladas nos módulos, e a cognição evoluiria pelo aumento do domínio ou do número destes módulos.

Habitualmente a cognição não é associada à idéia de instinto, mas sim à idéia de plasticidade, de ajustes não automáticos ao ambiente. Apesar disso, sempre esteve claro que o agrupamento de unidades simples funcionando em conjunto pode produzir grande complexidade, via fenômenos auto-organizativos. Mas o que seriam estas unidades simples, o que seria um instinto se ele existisse em estado puro? Seria uma resposta automática a um estímulo específico que, depois de iniciada, continua sem interrupção até o final, até a realização de sua função adaptativa. O instinto seria então um módulo no organismo que envolve a percepção especializada para aspectos particulares de um objeto em um contexto relevante, um processamento especializado desta informação, e a efetuação de uma resposta típica da espécie.

Então, o que seria um comportamento plástico, ajustável ao contexto? Nem sempre os estímulos são claros e simples. Situações mais complexas podem requerer respostas também mais complexas. Partindo do instinto simples, de uma associação (não)perigo/(não)fuga (se perigo, então fuga; se não-perigo, então não-fuga), podemos imaginar agora um contínuo crescente de perigo, com um limiar para fuga; isto já envolve uma avaliação, no lado perceptual e associativo, dos elementos vários que compõem a cena de perigo. Há mais cognição embutida nesta avaliação do risco, embora a resposta após o limiar seja sempre a mesma: fuga.

Tornando ainda mais complexo o comportamento, poderíamos incluir respostas intermediárias que acompanhassem a gradação do risco, tais como aumentar o nível de atenção, aumentar o tônus muscular, aproximar-se de um refúgio, emitir sinais de alerta, entrar no refúgio, fechar o refúgio. Neste caso, já temos um acréscimo de informação não apenas no lado perceptual do “instinto”, mas também no lado motor: para cada nova possibilidade de ação, teríamos que ter um novo módulo neural para a organização rápida e eficiente do novo desempenho. Podemos acrescentar ainda outros eixos de perceção-ação, como por exemplo, a concomitante presença de fêmeas ativando em acréscimo uma conexão (não)fêmea/(não)cortejamento. Nesta situação mais complexa, o animal pode agora decidir permanecer no local mesmo em situação de risco, visando cortejar uma fêmea. Neste caso o elemento decisório ficou mais complexo, conectado a um maior leque de respostas possíveis, as quais podem também constituir um gradiente crescente de respostas alternativas. Maior complexidade na percepção, na decisão, e na resposta, implica maior cognição embutida no sistema, seja via aumento do número de módulos, seja via aumento na complexidade dos módulos existentes e da conectividade entre os módulos que coordenam a ação adaptativa.

Apesar do crescente de complexidade, nestes exemplos as opções de percepção/ação ainda estão todas na mesa, dadas a priori na organização interna do animal. Como uma última cartada em nosso jogo de evolução da cognição, poderíamos pensar em uma situação para a qual o animal não possui de antemão as opções de percepção/ação: ele precisa aprender a reconhecer o perigo, aprender a resposta adequada. Nestes casos, o que a psicologia evolucionista tem demonstrado é que, para cada nova capacidade de aprendizagem, mais informação tem que ser previamente embutida no sistema. Exemplificando este ponto, temos o comportamento de caça em aranhas papa-moscas do gênero Portia (Cross & Jackson, 2006). Tais aranhas são araneófagas, e formam imagens de busca que aceleram a localização e o reconhecimento das várias espécies de aranhas-presas das quais se alimentam. Elas aprendem táticas de captura espécie-específicas para cada uma de suas aranhas-presas. Por exemplo, para invadir a teia de uma aranha-presa, ela testa vários sinais vibratórios na periferia da teia, até encontrar um que cause quietude na aranha-presa. O aprendizado deste “mantra”, no entanto, não se dá por tentativa e erro cega: as primeiras tentativas de Portia já estão dentro de um espectro de freqüências e intensidades próximas ao do padrão final e eficiente aprendido, o que sugere que a aranha já possuía informações relevantes acerca dos sinais minimamente adequados para a tarefa em questão (Jackson & Pollard, 1996).

Para que possamos aprender eficientemente, temos que ter uma maquinaria neural organizada especificamente para este aprendizado, ou seja, temos que ter um sistema nervoso formatado para aprender acerca daquele tipo particular de fenômeno, para se focar neste tipo de percepto, para extrair regularidades de causa e efeito deste tipo de situação. Então, novamente, quanto mais eu sou capaz de aprender, mais eu tenho que ter informações prévias acerca do mundo, das coisas às quais eu tenho que atentar, da gama de respostas admissíveis para aquele contexto particular.

O que vou tentar fazer a seguir é questionar esta idéia geral de que a cada aumento na plasticidade da resposta corresponde um aumento da informação prévia embutida no sistema. Questionar tal idéia é importante. Vejamos ao que ela está associada, para sabermos o que significa destroná-la. Esta idéia é a de que temos uma representação interna do mundo, uma espécie de mapa mental interno que guia as ações; de que quanto mais complexa é esta representação, quanto mais ela mapeia de forma precisa os contornos do mundo, maior nossa capacidade de navegação nele. A isto também está associada a idéia de que mundo e representação são incomensuráveis, de que a representação (a mente) é um teatro cartesiano, de que mente e matéria, ou informação e matéria, são dimensões diferentes do universo. Este é o alicerce que está em questão. Um respeitável alicerce.

 

Evoluções da cognição

Talvez não seja sempre assim. Talvez possam haver formas alternativas de aumento de cognição. Talvez a evolução, através de sua constante bricolagem, chegue por caminhos imprevistos a um aumento de cognição. Para buscar tais caminhos, vamos nos centrar em modelos simples.

É sempre bom podermos lidar com modelos simplificados de nosso objeto de estudo (a cognição) e, diferentemente de alguns modelos matemáticos hiper-simplificados que deformam a realidade a ponto de torná-la irreconhecível, as aranhas são um modelo simplificado que existe, que não pode deformar a realidade, e ao qual se aplica adequadamente o conceito básico de cognição como aparato que organiza a percepção/ação em meios complexos. Assim, ao invés de simular sistemas cognitivos simplificados em ambientes virtuais, vamos trabalhar com organismos cognitivos simplificados em ambientes reais: aranhas, em suas teias, caçando insetos.

As aranhas que escolhemos são as viúvas (viúva negra, viúva amarela ou flamenguinha, da família Theridiidae), aranhas derivadas das orbitelas, mas que trocaram a construção da teia orbicular pela construção de um lençol irregular de fios, do qual partem fios secos isolados (fios âncora) que aderem ao substrato por uma sapata adesiva, na qual ficam aderidas suas presas, em geral insetos cursoriais. Estudando a evolução das táticas de captura (de presas) nestes animais verificamos que, mesmo tendo mudado o padrão de teia, eles ainda preservam de seus ancestrais um repertório de caça extremamente reduzido, com apenas uma ou duas táticas diferenciadas de abordagem a qualquer dos variadíssimos tipos de presa com os quais se defrontam, o que sugere então que eles apresentam poucos módulos organizando a percepção/ação neste momento inicial de abordagem à presa. Já no que se refere à teia que tais aranhas elaboram, vemos que há uma grande diversidade (inter e intraespecífica) de padrões diferenciados, ou seja, um grande repertório de percepção/ação para a construção de suas armadilhas.

Neste caso, dentro do paradigma da psicologia evolucionista, diríamos que teria havido um aumento no número de módulos organizando este aspecto do comportamento. No entanto, o que houve foi justamente o contrário (Japyassú & Caires, 2008). Estudos comparativos da construção de teia nestes animais mostram que a organização interna deste comportamento é verdadeiramente simplificada (Benjamin & Zschokke, 2002, 2003, 2004). Assim, contrariando o paradigma da psicologia evolucionista, parece que estes animais evoluíram um repertório amplificado de percepção/ação não via acréscimo, mas sim via redução no número de módulos que organizam a construção de sua teia.

Para entender melhor o que acontece neste exemplo de maior plasticidade comportamental associada a maior simplicidade da organização modular subjacente, vamos recorrer a um outro estudo com este mesmo grupo de aranhas. Estando sob o lençol de sua teia, tocando um dos fios âncora, as viúvas têm uma tática exclusiva de ataque a suas presas, chamada pesca2. Para que este comportamento possa ser realizado, a extremidade terminal do fio âncora de suas teias deve ser destacável do substrato; assim, quando as aranhas puxam o fio âncora, ele se rompe nesta extremidade distal para que elas em seguida alçem para si a presa nele aderida. A teia orbicular (tipo de teia do ancestral das viúvas) não apresenta nenhuma estrutura semelhante ao fio âncora, nenhum fio de captura que seja destacável, que pudesse assim ser “pescado” pela aranha, de modo que elas simplesmente não “pescam”. Com o intuito de investigar comparativamente este módulo comportamental (pesca), produzimos artificialmente fios âncora em teias orbiculares. Para tanto, cortamos um fio radial (raio de seda seca, não adesiva e pouco elástica) próximo à sua extremidade distal, na periferia da orbe. O raio assim cortado permanecia fixo ao centro da teia, mantendo-se suspenso pelos vários e elásticos fios (das espiras adesivas) que atravessa em seu trajeto à periferia da orbe; a este raio modificado denominaremos pseudoâncora. Na extremidade livre da pseudoâncora oferecemos uma presa viva, simulando assim, em uma teia orbicular, o contexto de caça usual nas teias irregulares das viúvas (Theridiidae). Como as orbitelas não possuem fios âncora em condições naturais, esperávamos que, com a pseudoâncora, elas realizassem comportamentos de caça diferentes do de pesca, de modo que pudéssemos assim identificar os possíveis ancestrais da pesca. Para nossa surpresa, no entanto, todas as espécies estudadas realizaram a pesca para a captura da presa aderida à pseudoâncora (Penna-Gonçalves, Garcia, & Japyassú, 2008). O que isto pode significar?

O ponto que este resultado problematiza é justamente o da informação modularizada para a realização de um comportamento especializado (pesca). Está claro que a pesca é adaptativa, definindo inclusive um clado imenso com mais de 4000 espécies de aranhas (as viúvas, da família Theridiidae): não faz sentido supor que este comportamento tivesse sido mantido em um grupo tão expressivo de espécies, se não fosse adaptativo. Além disso, a teia irregular das viúvas apresenta uma estrutura especializada para ser rompida durante a pesca (o fio âncora, com sua sapata adesiva), o que é mais um indício claro de que a pesca deve ter sido selecionada positivamente, o que implica que deveria haver no sistema nervoso destas aranhas uma organização que facilite a execução ordenada dos movimentos que compõem a pesca. Já os sucessivos ancestrais dos theridídeos sempre construíram teias orbiculares, e portanto nunca tiveram a possibilidade de executar a pesca, visto que suas teias orbiculares simplesmente não permitiriam sua execução (em estado natural); daí resulta que tais ancestrais não deveriam ter em seu sistema nervoso uma organização especializada para a execução da pesca. Não parece correto dizer que as aranhas orbitelas guardam hoje em seu sistema nervoso módulos neurais prontos para o desempenho de um comportamento que não só elas nunca desempenharam, como nunca desempenharão, já que a teia orbicular nem mesmo permite esse desempenho3.

Concluímos assim que as orbitelas não têm um módulo especializado para o comportamento de pesca. Dado que elas são as representantes atuais das ancestrais das viúvas, concluímos também que estes ancestrais não pescavam. O que ocorreu com os ancestrais das viúvas para que eles passassem a pescar? O que mudou em seu ambiente de adaptação evolutiva que poderia estar associado à pesca?

O que certamente evoluiu nestes ancestrais foi a teia irregular. Em algum momento de sua evolução surgiram os fios âncora, que são naturalmente destacáveis, e que permitem o comportamento de pesca. Isto indica que o comportamento de pesca não evolui lentamente por seleção gradual de coordenações motoras parciais que respondem a estímulos específicos; ele surge de modo instantâneo, fruto da conjunção favorável entre uma organização interna não especializada, e uma ordenação externa nova e imprevista (pseudoâncora e presa nela aderida). Neste caso, a organização interna é inespecífica; ela não se refere à externa, não a prevê de forma alguma. Se há causação da ordenação externa sobre a organização interna, esta causação não foi selecionada ao longo de gerações sucessivas; ela é da ordem do instantâneo. Mais que isso, é apenas na conjunção de tais ordenações que se pode falar na presença de algum tipo de informação. Assim, para sermos honestos, teríamos que dizer que o que evoluiu foi um sistema de acoplamento aranha/ambiente, e que a informação para o desempenho está neste conjunto acoplado.

O mesmo raciocínio de evolução da cognição via acoplamento organismo/ambiente permitiria entender o aparente paradoxo do exemplo anterior, qual seja, o do aumento no repertório de percepção/ação apesar da diminuição no número de módulos organizando o desempenho, no caso, a construção da teia. Ao descartarem fases inteiras do algoritmo ancestral de construção de teia orbicular, ou seja, ao reduzirem sua organização interna deflagrando o surgimento das teias irregulares tridimensionais, o novo algoritmo, mais simples, passa a estar menos isolado do ambiente externo: enquanto as aranhas orbitelas produzem teias orbiculares em qualquer ambiente adequado que se lhes apresente, os theridídeos ajustam cada nova teia às novas circunstâncias presentes, a cada reconstrução; suas teias apresentam uma variabilidade individual e interespecífica muito maior que a das orbitelas (Eberhard, Agnarsson, & Levi, 2008). Assim, a simplificação da organização modular orbicular ancestral resultou em uma maior dependência do contexto de construção, em um maior acoplamento entre a organização interna reduzida e a organização do ambiente externo. Seria justamente esta maior conectividade com o ambiente, este menor isolamento em relação a este ambiente, que seria responsável pela ampliação fenotípica que observamos. A ampliação do fenótipo, quer dizer, o acréscimo de ordem no sistema, seria o resultado de uma redução de ordenação interna acoplada a um aumento de ordenação externa. O novo sistema passaria a incluir mais aspectos do ambiente como parte de sua expressão.

E a quê isto tudo leva? O que nos dizem então as aranhas desde o lado de fora do teatro cartesiano? Elas nos dizem que há um caminho que a evolução pode seguir em que não há, dentro do indivíduo, acréscimo de informação sobre o mundo, acréscimo da informação que enviesa nossas concepções sobre o mundo, enfim, que nos dá pré-conceitos sobre o mundo; que esta informação interna ou interiorizada (com a qual a psicologia evolucionista trabalha) não é a única informação que evolui darwinianamente; que há uma informação que só se constitui enquanto informação no instante preciso da interação organismo/ambiente, e que tal informação sistêmica, embora de natureza diversa da primeira, evolui do mesmo modo.

Assim, parece que nosso estudo de micro-cognições em modelos biológicos simples nos leva a conclusões curiosas. Há uma informação que evolui nos sistemas vivos que não está presente neles, mas sim na conexão entre o ser vivo e o mundo. Estamos muito habituados com a idéia de que guardamos dentro de nós informação sobre o mundo (genes, memórias), mas o que estamos tentando mostrar aqui é que existe ainda um outro tipo de informação que não está dentro de nós, que não se refere ao mundo, que não representa o mundo, posto que ela só se configura no momento exato da interação com o mundo. E o que parece mais estranho às concepções científicas dominantes é que tal informação conectiva também evolui darwinianamente.

 

Evoluindo no escuro

Estes resultados nos levam a concluir que a informação não precisa estar dentro de nós para que evolua. Se a informação do mundo externo é duradoura e confiável, melhor que internalizá-la, melhor que construir uma réplica interna desse mundo regular, melhor que fazer uma representação neural do mundo, é se apoiar no próprio mundo. Nossa visão é um exemplo disso. Não precisamos manter uma representação das coisas dentro de nós enquanto escaneamos a paisagem. A paisagem está lá, basta olhar; não enxergamos em cores na periferia da retina e no entanto nossa visão periférica é sempre colorida, porque atualizamos regularmente a informação sobre a cor da periferia da paisagem com movimentos sacádicos dos olhos, que ativamente colocam na fóvea, ou em regiões da retina mais ricas em cones, as cores que antes incidiam sobre a periferia da retina. Não é necessário manter uma representação completa da paisagem no cérebro, simplesmente porque a paisagem está lá, e seria um desperdício ter que replicá-la internamente (Noé, 2004).

Assim, a idéia de que somos uma representação biológica do mundo pode ser muitas vezes equivocada, e partir deste princípio, imaginar que, até prova em contrário, temos dentro de nós informações sobre o mundo, parece um procedimento pouco parcimonioso. Hipotetizar um mundo e, ao mesmo tempo, uma cópia, uma representação deste mesmo mundo, constitui talvez um ponto de partida com um excesso de hipóteses. A solução cartesiana de que há um mundo, e há uma mente, talvez seja pouco parcimoniosa. Soluções posteriores, como a de Schopenhauer, de que o mundo é uma representação, levam a um relativismo insuperável, e nos impedem de lidar com o mundo em si, ou de considerar sua existência para além da nossa. Precisamos encontrar uma solução intermediária, uma solução onde o mundo nem esteja duplicado em nós, e nem consista apenas em nossas encenações e divagações; nem dois mundos, nem um só, necessitamos de uma solução intermediária.

Já temos claro que há várias heranças envolvidas em nossa atividade cognitiva: ao menos quatro: genética, epigenética, comportamental e simbólica (Jablonka & Lamb, 2010). Mas temos também clareza de que muito de nosso fenótipo não está especificado nas heranças, e sim consiste em uma saída robusta de um sistema multideterminado, no qual alguns elementos são mais ligados a uma herança genética, outros mais claramente epigenéticos, alguns são propriedades comportamentais, e outros ainda fruto da cultura. Porém, e este é um grande “porém”, muitos destes elementos que constituem o sistema não estão especificados em nenhuma herança, sendo apenas elementos ou funcionamentos estáveis do mundo, sobre os quais não precisamos ter correlatos internos, elementos que simplesmente utilizamos em nossa construção robusta por estarem confiavelmente lá, geração após geração, elementos sobre os quais não construímos nenhuma representação endógena. Não há porque internalizar no sistema vivo um elemento que é fixo na paisagem. Este elemento simplesmente passa a constituir o ser vivo, sem necessidade de que a informação para a sua construção seja replicada por algum dos sistemas de herança. Agora, o interessante é que estas partes não planejadas do sistema, confiáveis por natureza, e que se acoplam às heranças produzindo saídas robustas de um sistema fora do equilíbrio, estes elementos não herdáveis podem vez por outra se modificar e, ao fazer isso, podem por vezes provocar uma alteração fenotípica estável, resultar em uma saída também robusta, construindo assim instantaneamente uma nova variante sobre a qual a seleção natural pode atuar. É bom deixar claro que não estamos aqui falando de variantes endogenamente determinadas, mas de uma saída fenotípica robusta fruto de um sistema no qual um dos elementos foi modificado, e este elemento modificado não é, necessariamente, herdável.

Assim, a herança não é uma necessidade absoluta, ao menos não no sentido de que há sempre necessariamente uma informação herdável específica para a construção de uma parte funcional do sistema. Se lidamos com sistemas auto-organizados selecionados pela robustez de seus produtos, a herança é apenas uma das formas de se garantir a robustez. Mais que isso, há que se entender melhor o que é esta herança, ou estas heranças; há que se entender o que é esta informação que passa transgeneracionalmente, visto que o fundamental não é transmissão entre as gerações de matéria genômica (DNA), epigenômica (sítios de cromatina marcados), comportamental (leite materno ou aprendizagens socialmente mediadas) ou cultural (instrumentos, ferramentas da cultura material). De nada vale a um marciano achar um machado paleolítico. Não está no machado a informação acerca de sua machadidade, pois esta informação está no uso que fazemos do machado. Informação é uso da matéria, é interação padronizada entre corpos materiais, e só podemos prever estas interações quando conhecemos na intimidade a matéria em questão, e o sistema do qual ela faz parte.

Quero aqui deixar uma afirmação final forte. A informação pode não estar no DNA nem nos módulos neurais; a informação pode ser a relação confiável entre os elementos do sistema célula que se interpretam uns aos outros de forma consistente; a informação pode ser a relação confiável entre a estrutura externa da teia e a organização neural da aranha, ou a relação confiável entre a estimulação social do ser humano e seus elementos neurais. O que evolui é este encaixe entre partes do sistema, é essa ação previsível entre os elementos que compõem um sistema. Quanto mais previsível a relação, quanto mais encaixado o sistema em suas ações recíprocas, maior sua repetibilidade transgeneracional e, portanto, maior sua capacidade de acumular soluções adaptativas, maior a função de memória embutida no sistema (uma memória sistêmica, que inclui o indivíduo). Quanto mais ruído nesta interação entre os elementos do sistema, quanto mais facilmente novos elementos são acoplados, ou quanto piores os encaixes recíprocos entre os elementos, maiores as chances desse sistema gerar soluções novas, ou seja, maiores as chances do sistema sobreviver, evolutivamente, a situações de crise ou estresse ambiental.

Quero deixar também uma mensagem mais específica para a psicologia evolucionista. As psicologias se caracterizam fortemente por uma análise do agora baseada no passado dos indivíduos. Elas são históricas até o ponto da história de vida dos indivíduos (ou até mesmo grupos sociais), mas não até o ponto da história das espécies. Dessa forma, ao buscar incorporar o passado evolutivo entre as causas do agora, a psicologia evolucionista está promovendo um ganho qualitativo para as ciências humanas, um ganho que deve ser preservado. No entanto, me parece que este ganho tem se dado às custas de se perder boa parte do pensamento produzido na psicologia do desenvolvimento. O desenvolvimento, quando entra na psicologia evolucionista, o faz praticamente na forma de um programa maturacional, no qual as etapas da maturação cognitiva são adaptações ontogenéticas ao modo de vida estruturado dos bandos humanos do pleistoceno. Toda a riqueza de teorias e informações que a psicologia congrega acerca do desenvolvimento humano não poderia e não deveria ser capturada pela idéia da maturação.

Enquanto a psicologia evolucionista surgia e crescia, amarrando evolutivamente o pensamento fortemente construtivista das psicologias, na biologia se fazia o movimento contrário. O pensamento evolucionista, predominante na biologia após a síntese neodarwiniana, sofreu um ataque permanente das teorias sobre o desenvolvimento; ficou claro na biologia que o neodarwinismo colocou o desenvolvimento em uma caixa preta, excluindo-o de seu instrumental teórico. Ficou claro também que esta situação não era mais admissível, que o desenvolvimento afeta e por vezes dirige a evolução e que, portanto, não há síntese evolutiva sem desenvolvimento (Pigliucci & Muller, 2010). Ora, o pensamento evolucionista que tem sido aplicado à psicologia é justamente o neodarwinismo. Agora, como aplicar à psicologia, essa ciência que se fez a partir do entendimento da história dos indivíduos, como aplicar a uma ciência fortemente desenvolvimentista um pensamento que não tem nada a dizer acerca do desenvolvimento?, um pensamento cujas teorias sobre o desenvolvimento são no máximo uma caixa-preta que conecta uma rede gênica ao fenótipo adulto? Parece aqui que há uma assimetria de conhecimento. Enquanto a psicologia tem muito a dizer acerca do desenvolvimento, a biologia tem muito a ouvir a este respeito (e a dizer sobre uma evolução). Sendo assim, acho que uma adequada síntese entre evolução e desenvolvimento deve se dar pelo que há de melhor em cada uma destas áreas de teorização. Mas acho também que esta síntese não deve ser uma bricolagem, um jogo de colar teorias umas nas outras, porque ao andarem juntas uma afeta a outra em sua essência. É desta contaminação que pode nascer uma nova síntese que ultrapasse o neodarwinismo ou, como preferem alguns, o ultradarwinismo. Concluo dizendo que a psicologia deve se aliar à biologia, e não ser tomada de assalto por ela. Que ela tem tanto a contribuir, para uma nova síntese evolutiva, quanto a própria biologia. Que ela tem justamente aquilo que falta à biologia: um lastro de pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo, e que ela deve fazer uso deste lastro para fundar uma nova síntese que não seja tão caolha, pois se o desenvolvimento evolui, a evolução, claramente, requer muito desenvolvimento.

 

Referências

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Recebido em: 10/01/2009
Aceito em: 2/05/2010

 

 

Endereço para correspondência

Hilton Ferreira Japyassú, Universidade Federal da Bahia, e Programa de pós-graduação em Neurociências e Comportamento no IPUSP/São Paulo-SP; japyassu@ufba.br


1 Aumentos da capacidade cognitiva costumam inclusive ser associados especificamente a aumentos no neocórtex, sendo a razão neocortical (o quociente entre o volume do neocórtex e o do cérebro) uma medida usual em questões relativas à cognição. Ora, o neocórtex surge evolutivamente com os mamíferos, de modo que, se entendemos que outros animais (além dos mamíferos) têm cognição, devemos também ter claro que há origens independentes deste fenômeno, ou ao menos que há, em meio à diversidade animal, instanciações muito diferentes daquilo que chamamos cognição.


2 Na tática mais comum, a aranha, a partir do lençol superior, toca no fio âncora (cuja extremidade oposta tem aderida uma presa) e o puxa, descolando a sapata adesiva do substrato, e assim trazendo para si a presa. Ela realiza isto através de movimentos alternados das pernas I e II, enquanto as pernas III recolhem o fio que está sendo puxado, formando com ele uma bolota de seda. A este conjunto de ações denominamos “pesca”. A aranha então volta seu abdômen à presa para nela lançar em seqüência muitos fios de seda adesiva, através de movimentos alternados de suas pernas IV.


3 Por exemplo, nas teias de aranhas orbitelas cribeladas (sem fio viscoso), não há como se formar um fio âncora de forma natural, pela ação de insetos caindo sobre a teia. O fio cribelado é muito resistente e pouco elástico, de modo que para a produção de um fio âncora artificial em condições de laboratório, tivemos praticamente que realizar microcirurgias na teia, cortando seletivamente fios dentro de uma trama de fios muito próximos uns dos outros, utilizando para isso um pirógrafo de precisão. Não vemos possibilidade de que isso ocorra na natureza, e nunca registramos, em nenhuma das teias que visitamos em campo, a ocorrência de pseudoâncoras na natureza, nem mesmo de condições intermediárias. Os fios de teia que se rompem pela passagem de insetos formam rombos que em nada lembram nossas microcirurgias, e os rombos produzidos pela captura de presas são cerzidos pela aranha, a fim de evitar maiores danos à armadilha, de modo que não apresentam raios soltos que pudessem ser encarados como fios âncora.


 

 

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