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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versión impresa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.3 no.2 São Paulo dic. 2001

 

ARTIGOS

 

Behaviorismo: reflexões acerca da sua epistemologia

 

Behaviorism: reflections on its epistemology

 

 

Marla Viega; Luc Vandenberghe1

Universidade Católica de Goiás

 

 


RESUMO

Nesta tentativa de definir o behaviorismo como uma proposta científica, é priorizada a descrição dos seus valores fundamentais, sua visão do homem e do universo, sua definição do conhecimento, suas estratégias semânticas e sua atitude frente à noção de verdade científica. Os pressupostos da abordagem são esboçados de forma a possibilitar a comparação com outras abordagens científicas dentro da psicologia. Sua história é traçada em termos de continuidade e descontinuidade paradigmáticas. Sem apegar-nos a dicotomias didaticamente convenientes como a oposição entre as variedades radical e metodológica, exploramos as contradições inerentes ao movimento e as implicações potenciais destas para sua identidade como abordagem e para suas direções futuras.

Palavras-chave: Behaviorismo, Epistemologia, Paradigma.


ABSTRACT

In this tentative to define behaviorism as a scientific project, priority is given to descriptions of its fundamental values, its vision of man and the universe, its definition of knowledge, its semantic strategies and its attitude in relation to the notion of scientific truth. The assumptions of the approach are sketched in a way that makes possible the comparison with other scientific methods within psychology. Its history is traced in terms of paradigmatic continuity and discontinuity. Without sticking to didactically convenient dichotomies like the opposition between the radical and methodological varieties, we explore the movement's inherent contradictions and their potential implications for its identity as an approach and for its future directions.

Keywords: Behaviorism, Epistemology, Paradigm.


 

 

1. Definir o behaviorismo

Neste artigo pretendemos abordar a proposta do behaviorismo sem querer representá-lo como um sistema teórico coerente e acabado, mas sim como uma das numerosas tentativas de entender o ser humano. Como todo movimento intelectual, o behaviorismo carrega em si os efeitos da história que o moldou. Falar desta história implica considerar suas raízes, o impacto que causou na época de sua criação e as modificações que sofreu para se tornar o que é hoje.

É importante ressaltar que o behaviorismo é uma das grandes tradições que deram direção ao que conhecemos hoje como a psicologia científica. Trouxe idéias inovadoras a respeito da natureza do homem e de como estudá-lo. Seus preceitos básicos foram alvo de crítica indignada e entusiasmo sectário.

Apesar desta semelhança de família, a distância entre duas teorias integrantes da tradição behaviorista é, às vezes, notável. Ao tratar das bases epistêmicas do behaviorismo moderno, e da questão de como este se defronta com os temas complexos da Psicologia contemporânea, é impossível ignorar esta pluralidade. Logo, é preciso concordar com Eysenck (1972) que qualquer característica que seria avançada para definir o movimento como um todo, é necessariamente questionável. Moderatto e Ziino (1994), salientam que o Behaviorismo deve ser entendido como uma família de posições teóricas, que entre elas são contrastantes e diversas, mas que possuem uma certa semelhança ("family resemblance" para usar o conceito de Wittgenstein) entre elas.

A abordagem hipotético-dedutiva de Hull, trazida por Eysenck para a terapia comportamental, é diametralmente oposta à estratégia indutiva de Skinner. A primeira faz ciência testando hipóteses e privilegiando métodos estatísticos para processar dados colhidos em amostras representativas (Hull, 1953; Eysenck, 1959/1994), enquanto a segunda constrói conhecimento de maneira indutiva, a partir de regularidades observadas em estudos onde o sujeito único é seu próprio controle (Skinner, 1938). O behaviorismo radical trabalha com eventos privados, mas`?T`?? exclui noções mentais (Skinner, 1945) enquanto o behaviorismo teleológico de Rachlin (1994) e o operacionalismo de Tolman (1932) usam conceitos de tendência mentalista, mas excluem o que a pessoa sente dentro de si como dado a ser considerado.

Como podemos então entender o que é o Behaviorismo? Moderato e Ziino (1994) enfatizam que o Behaviorismo como quadro referencial foi articulado desde o início em diferentes níveis. Primeiro, foi concebido como uma ciência que estuda eventos e processos sob condições específicas, como acontece nas outras ciências que estudam o comportamento de planetas, células ou partículas atômicas. Segundo, é uma filosofia da ciência porque define quais tipos de perguntas são legítimas na pesquisa e o método a partir do qual deve-se respondê-las. Em terceiro lugar, é uma filosofia da mente porque formula pressupostos sobre a natureza humana. Finalmente, representa um conjunto de valores que devem ser considerados como uma ideologia dentro da Psicologia.

Buscando entender o behaviorismo, precisamos prestar atenção ao entrelaçamento destes diferentes níveis. Precisamos, para começar, localizar o behaviorismo no meio da diversidade de posições paradigmáticas que propõem estudar o ser humano.

 

2. As epistemologias da psicologia moderna

Segundo a meta-epistemologia de Pepper (1942), posições teóricas nas ciências humanas são diferenciadas pelo seu paradigma básico. Todas as epistemologias científicas possuem as suas maneiras de conceber um evento. Elas não só se diferenciam nos tipos de conhecimento que oferecem, mas também na sua definição do que é verdade e como alcançar conhecimento válido.

Na raiz de cada paradigma epistemológico, uma metáfora implícita pode ser reconhecida. Desta metáfora, os pressupostos filosóficos do paradigma são derivados. É a metáfora-raiz, que irá delinear o universo dos fatos a serem estudados, os tipos de perguntas a serem feitas, as estratégias a serem usadas para respondê-las e os critérios de verdade, através dos quais avaliar as respostas obtidas.

Existe um grande número de linhas teóricas que definem os eventos estudados a partir de suas qualidades ou especificidades, o que permite conhecê-los diretamente. Pepper chama esta atitude frente ao conhecimento de "formismo". Fenômenos são reduzidos à essência, dependendo da abordagem, representada por idéias puras, universais ou protótipos. O critério de verdade é a correspondência entre o fenômeno complexo estudado e o universal ou a forma essencial capturada pelo estudioso.

No entanto, já existem outras abordagens que vêem o conhecimento válido como algo construído através de inferências, adequando-se ao que existe por trás dos fenômenos, onde o seu critério de verdade é a coerência da explicação. O conceito seria que, quando as inferências explicam de maneira elegante as observações, são válidas. Aqui, Pepper fala de "organicismo" porque a metáfora implícita é o ser vivo e o discurso lembra aquele da medicina, onde também se infere processos subjacentes para explicar os sinais observáveis. A mente é tratada como se fosse um organismo com a sua própria vida interior. O clínico que assume esta atitude epistemológica deve atuar nas estruturas ou dinamismos inferidos porque os fenômenos observáveis são apenas sintomas decorrentes destes.

O "mecanicismo" é uma atitude frente ao conhecimento que propõe estabelecer uma estreita correspondência entre os fatos e a teoria, testando predições deduzidas desta última. Para entender um fenômeno deve-se destrinchar as cadeias causais envolvidas. A pergunta legítima do cientista é sempre alguma variante de "como funciona?". Mensuração exata e estatística são amplamente usadas dentro desta abordagem. Conhecimento é considerado válido quando foi objetivamente estabelecido. Diferentes observadores devem perceber a mesma coisa independentemente, isto implica em delineamentos experimentais e replicabilidade das pesquisas.

Em contraste, o "contextualismo" considera que o evento só pode ser conhecido dentro do contexto do qual é função. A metáfora-raiz é o ato como evento histórico. Para a psicologia, isto implica que os fenômenos estudados são sempre imersos em dinâmicas temporais, materiais, sociais, culturais, familiares e outros. Tipicamente são investigadas interações bidirecionais em detrimento de mecanismos de causa e efeito lineares. Observam-se regularidades nas relações entre variáveis e, a partir disto, induzem-se princípios que regam esta interação. O critério de verdade é a pragmática, isto é: quando o conhecimento permite ação, ele é válido.

O behaviorismo é conhecido pela sua luta contra as abordagens aqui chamadas de formista e organicista. Rejeitou o último por usar um nível teórico (o inferido) para explicar um outro (o observado) e o primeiro por seu subjetivismo declarado. Em muitos momentos na sua história (Watson, 1913/1928; Tolman, 1932; Skinner, 1945; Kantor, 1959; Staats, 1963) parece que seu alvo mais importante era o de oferecer à psicologia uma visão livre de todo vestígio destes dois paradigmas.

Além de optar por uma certa atitude frente ao saber, abordagens psicológicas propunham uma meta-linguagem unificadora para poder ir além dos dados observados. Esta constitui a identidade da abordagem, aventando a possibilidade de coerência teórica. Conhecemos a meta-linguagem do inconsciente, do transcendental, do processamento de informação e muitas outras. Como vamos observar na discussão a seguir, o behaviorismo não adotou tal forma de falar, do que está por trás das outras linguagens. Esta ausência nos reenvia com mais insistência ainda para a questão da identidade paradigmática do behaviorismo.

 

3. A epistemologia behaviorista

O movimento nasceu nos Estados Unidos frente a duas posições culturais: o estruturalismo (importado da Europa) que estudava fenômenos estáticos e o funcionalismo (mais coerente com a mentalidade do novo mundo) que dava ênfase a fluxos de mudança. O Behaviorismo tem as suas raízes nesse segundo movimento, mas constituiu-se num corte na história da Psicologia com seu projeto de estudar o comportamento, enfocando entidades privadas de dimensões espaço-temporais, libertando a psicologia das suas amarras idealistas (Watson, 1913).

A escolha de definir como objeto de pesquisa o comportamento e nada mais do que o comportamento, isto é, a relação entre um aspecto da atividade do indivíduo (a resposta) e um aspecto da atividade do ambiente (os chamados estímulos) - insistem Moderato e Ziino (1994) - obrigava a ciência jovem a percorrer de maneira acelerada todo um caminho trilhado nos séculos anteriores pelos cientistas naturais e contribuiu de maneira fundamental para a definição científica da disciplina.

O percurso de Watson foi influenciado pelo pressuposto de Loeb de que a organização do comportamento segue uma ordem necessária. A partir de associações múltiplas entre as relações de estímulo e resposta, poderia se entender comportamentos mais complexos. Assim, uma das cosmovisões que contribuíram para o behaviorismo foi o mecanicismo, que ao fazer implicitamente uma analogia do comportamento à máquina, propunha que, através de combinações de relações causais simples, o funcionamento da pessoa poderia ser estabelecido.

A relação de causa e efeito, o esquema "se ... então ..." constituiu-se na base fundamental deste paradigma. Até o pensamento é considerado como sendo uma organização hierárquica de cadeias de estímulo-resposta. Os elementos que constituem o raciocínio mais elevado são semelhantes àqueles presentes no balbuciar de uma criança, assim como as rodinhas numa máquina muito complexa podem ser iguais às de um brinquedo simplíssimo e o funcionamento de ambos pode ser compreendido a partir da interação entre as funções das suas partes.

Assuntos tão subjetivos corno as emoções (Watson, 1928), e a construção do sentido da própria vida (Watson, 1932, citado em Cohen, 1979) se tornaram, então, assuntos para pesquisa objetiva. O estudo científico da personalidade como conjunto de padrões de hábitos compostos de respostas submetidas às leis da aprendizagem (Watson, 1928) foi iniciado, para ser levado à maturidade, dentro desta mesma visão, décadas depois, por Eysenck (1982).

Durante a vida do fundador, o behaviorismo já se diversificou. Depois do enraizamento da escola, uma vertente metodológica se desenvolveu nos meios acadêmicos. Esta se apegava às análises dos comportamentos objetivamente acessíveis, enquanto outros insistiam em que todos os processos psicológicos eram acessíveis à análise comportamental. Os primeiros excluíram, por motivos de rigor experimental, os processos psíquicos, enquanto os segundos buscavam ser uma ciência psicológica inteira e totalmente comportamental.

Essas posições evoluíram a uma fase mais operacional, onde se encontram os pesquisadores com uma visão molecular, procurando resolver perguntas complexas através da análise de comportamentos simples e os behavioristas molares, interessados na ação do organismo integral. À margem das iniciativas robustas, a primeira ligada ao nome de Hull e a segunda ao nome de Tolman, apareceram o intercomportamentalismo de Kantor e a análise do comportamento de Skinner. Representam um passo em que a afinidade com o empirismo de Mach veio eclipsar o rigor mecanicista de Loeb, que ameaçou se tornar uma camisa de força para a abordagem.

Quem lê Kantor ou Skinner reencontra as respostas emitidas pelo organismo transformadas. Agora não são mais resultados de um algoritmo causal, como era o caso nos trabalhos de Hull e de Tolman, mas são emergentes de uma sucessão de interações. As funções destas interações são determinadas pelos contextos que são, por sua vez, determinados pelos comportamentos. As ações só são influenciadas pelo ambiente, porque têm efeitos sobre este último. E são os efeitos do próprio comportamento sobre o meio que determinam a influência que o ambiente terá.

O esquema "Se ... então..." agora tem um outro sentido. Na contingência tríplice, o "Se faço Y na presença de X, então a probabilidade de Z aumenta", a força do comportamento Y é função de Z e Z é definido funcionalmente em termos da probabilidade de Y. Os conceitos se tornam circulares: não é mais possível definir um em função do outro, sem definir o último em função do primeiro. Como posso reforçar Y? O reforçador Z que é contingente à emissão de Y na situação X aumenta a freqüência do comportamento. Como posso saber se Z é um reforçador? Porque quando aparece contingente à emissão de Y, a freqüência do comportamento aumenta.

Assim, um ponto de vista que já era implícito na visão do ‘homem produto do seu meio' de Watson e cujas raízes distavam ao funcionalismo, vinha em primeiro plano no behaviorismo moderno. Apesar de ter surgido paralelamente com as grandes tendências comportamentalistas, ele só chegou a dominar o movimento quando a influência do behaviorismo sobre a psicologia experimental norte-americana entrou em declínio. Entretanto, o pensamento Skinneriano chegou a influenciar profundamente a pesquisa experimental no Brasil, enquanto a corrente Kantoriana, que teve um impacto importante nos meios behavioristas mexicanos, recentemente ressurgiu nos Estados Unidos.

Autores como Micheletto (1999) e Delprado (1995) ressaltam que o homem é produtor das contingências que o determinam. Assim seu comportamento é produto de sua própria ação. Essa determinação ocorre por uma conjunção de múltiplas dimensões em que comportamento e ambiente se transformam a partir de um processo de interações recíprocas das contingências da biologia, do reforçamento direto e da vivência social. O behaviorismo psicológico ou paradigmático de Staats (1995; Eifert, 1978) e o teleológico de Rachlin (1994) se destacaram do behaviorismo radical, mas mostram a mesma visão interativista.

É interessante observar que nesta visão a dicotomia entre os esforços de Tolman e de Hull é superada. A unidade de análise se torna extremamente flexível porque tanto elementos moleculares quanto sistemas complexos podem ser estudados como evoluindo numa interação dinâmica com o ambiente. Assim, não precisa mais recorrer à análise de elementos simples para examinar os processos complexos, nem precisa manter metodologias separadas para processos superiores.

Micheletto e Serio (1993) salientam que o sujeito Skinneriano, não é algo que existe por si mesmo. ’Sujeito' deve ser visto como ’interação'. Na relação entre homem e mundo, há uma transformação recíproca, onde não existe autonomia nem de um nem de outro. Nesta relação de troca contínua acontece o comportamento, que produz conseqüências sobre o ambiente as quais modificam o comportamento. Assim, o homem e o seu ambiente são intrinsecamente entrelaçados. É através dessa reciprocidade que cada pessoa, ao agir, desenvolve uma maneira de ser que lhe é única.

Similarmente, Kantor (1924-1926) descreveu a resposta e o estímulo como interdependentes. Um define o outro em função do contexto no qual interagem. Ele incorporou os três preceitos do funcionalismo, adaptação, função e contexto, na sua psicologia. Excluiu a idéia de adaptação e a noção teleológica nela implícita e modificou o conceito de função para descrever a interação entre o organismo e outros eventos sem, no entanto, aceitar a idéia funcionalista de mediação mental. Assim o kantoriano estuda o universo como uma unidade dinâmica (Hayes, 1997).

A adaptação do indivíduo é, tanto para Kantor (1958), Skinner (1969), Rachlin (1994) ou Staats (1995), uma interação contínua. As funções psicológicas dependem da história do indivíduo que gera uma teia densa de relações com o ambiente, que por sua vez influencia o responder a qualquer estímulo. Os behavioristas estudam comportamento no seu "acontecer", onde os diferentes termos da contingência só podem ser definidos em relação aos outros. Não pensam mais em termos de associações diretas da resposta ao estímulo nem em termos de relações necessárias, mas em termos de contínuos probabilísticos. Comportamento é um constante vir a ser, adaptação dinâmica a uma realidade que muda a todo instante como resultado da própria adaptação.

Devido à exigência da observação objetiva, o behaviorismo metodológico abriu espaço para o princípio de verdade por concordância, conformando-se assim ao paradigma mecanicista. Este princípio foi explicitamente rejeitado por Skinner (1963) ao afirmar que, quando duas pessoas observam o mesmo fato, ambos podem estar sujeitos ao mesmo erro. Assim, o que é somente acessível a um observador tornou-se de novo matéria legítima para a investigação científica. A tarefa de tratar os eventos privados numa perspectiva não-mentalista é trazida de volta e a introspecção é resgatada para o behaviorismo (de Rose, 1982; Tourinho, 1997) ampliando as possibilidades de atuação clinica (Guilhardi, 1995; Banaco, 1993).

Para o behaviorista moderno (Tourinho, 1997; de Rose, 1982; Eifert, 1978) e, de novo podemos acrescentar aqui, também para o próprio Watson (1924/1928), sentir e agir assim como pensar e imaginar são igualmente produtos da história de interações entre o indivíduo e os seus contextos materiais, verbais e sociais. Isto significa que o ato de sentir deve ser estudado como um comportamento e não como um estado. Não explica por si mesmo os comportamentos públicos. O que é sentido internamente é um outro evento e é efeito de comportamento, não causa.

Se comportamento é uma relação interdependente num campo multifuncional (Kantor, 1958), a distinção entre a pessoa e seu ambiente é arbitrária, já que o que acontece fora e dentro do organismo é sempre interligado por uma rede densa de relações funcionais. Os eventos encobertos (Skinner, 1942) também chamados de comportamentos sutis (Kantor, 1956) são igualmente inseridos num tecido de contingências. São eventos que participam - com os mesmos direitos quanto estímulos e respostas públicas - nesta rede de relações que permeia e conecta. Numa tal complexidade de interações surge a imagem do ser humano inteiro, floração de interações contínuas dentro de uma multiplicidade de contextos (Kantor, 1956; Staats,1995; Hayes, Strosahl and Wilson, 1999).

O papel fundamental da linguagem na compreensão de processos tradicionalmente considerados "superiores" foi uma das grandes contribuições de Watson (1920) e foi elaborado em trabalhos pelos seguidores de Kantor (Ribes-Mestra, 1992), Skinner (Hayes, Strosahl e Wilson, 1999) e Staats (Eifert, 1987), que sempre procuraram entender estes processos lingüísticos como interações com o ambiente, e os abordaram assim necessariamente como produto social. O ato de conhecer é entendido na mesma relação. Falar sobre um objeto de conhecimento é agir sobre uma rede social e gera em cada sub-cultura e em cada caso individual, efeitos diferentes sobre os repertórios verbais relevantes. Estes efeitos determinam o comportamento, assim a ação é sempre produto de uma história de interação. Conseqüentemente, o conhecimento como ato verbal é tanto criador da cultura, quanto produto da mesma.

O auto-conhecimento é abordado da mesma forma. Autores como De Rose (1982) e Haydu (2001) descrevem como a interação com a comunidade verbal gera a maneira da pessoa explicar a si mesma e aos outros. Comportamento verbal auto-descritivo em diferentes sub-culturas e em diferentes casos individuais levara à emergência de qualidades diferentes de auto-consciência. Isto não só mostra o caminho para uma nova compreensão científica do ser humano, mas também para uma aplicação clínica onde o psicoterapeuta e o cliente constituem uma nova comunidade verbal que permite que novas contingências sejam discriminadas e uma nova compreensão de si mesmo surja.

Todo "saber" é função da ação particular do indivíduo em relação a eventos particulares em contextos particulares (Kantor, 1958). Conceituar o saber desta forma, como o comportamento do indivíduo e assim, logicamente, como produto da sua história de interações, tem implicações epistemológicas importantes. Afasta o ideal da verdade objetiva. Contudo, não há na visão Kantoriana, objetos a serem conhecidos, exceto as nossas próprias ações em relação a estes, o que necessariamente os redefine em termos de funções nas interações (Hayes, 1997). O que sobra, abandonando este ideal, é que o saber tem o seu valor pragmático dentro do campo de interações do qual é função.

Conhecimento científico, então, é sempre uma construção verbal e não tem outras garantias além das contingências que regem o comportamento verbal do cientista. Até a insistência do behaviorismo metodológico na objetividade rigorosa não é outra coisa senão uma tentativa de colocar o comportamento descritivo do cientista sob controle discriminativo dos dados, através do método hipotético-dedutivo com os seus delineamentos com grupos de controle e testes de significância estatística. A garantia da replicabilidade por outros pesquisadores, que se torna possível através deste rigor metodológico, introduz o papel da comunidade científica. A própria exigência de concordância entre observadores se resume à atuação de uma comunidade verbal.

Mesmo assim, a oposição profunda entre o método indutivo e o hipotético-dedutivo continua sendo uma dicotomia óbvia dentro do movimento. São duas maneiras muito diferentes de se fazer ciência. O salto do mecanicismo tácito dos behaviorismos ditos metodológicos para uma visão interacional não é tão grande quando consideramos que as garantias da objetividade científica podem ser traduzidas em termos de um treino discriminativo como sugerido acima. Isto se torna mais claro ainda quando observamos que Eysenck (1972) abraça explicitamente a pragmática como critério de conhecimento científico válido. Uma análise cuidadosa (Vandenberghe e Reis, 2001) das formulações deste autor revela ainda que a sua visão referente à pesquisa sobre a eficácia clínica evoluiu de um raciocínio claramente linear (Eysenck, 1959) para um muito mais contextualista (Eysenck, 1994), apesar de manter firme a sua escolha para o método hipotético-dedutivo.

Com Moderato e Ziino (1994) podemos acreditar que o contextualismo é uma evolução normal numa ciência que chegou a um nível de controle e predição suficientemente adequado, como aconteceu na Física e Biologia modernas. Seria exatamente o sucesso do projeto experimental rigoroso que possibilitou este salto de qualidade no pensamento científico.

É possível que a pesquisa empírica na área clínica seja um dos fatores que facilitam esta transformação. Embora nascidas no laboratório, foi no campo da psicoterapia que tanto a visão Kantoriana (Delprado, 1995) quanto a Skinneriana (Hayes, Strosahl e Wilson, 1999; Kohlenberg e Tsai, 1991/2001) mostraram plenamente os seus potenciais como abordagens contextualistas. Paradoxalmente, a face mais mecanicista do behaviorismo se mostra hoje nas linhas mais avançadas da pesquisa experimental, onde o método hipotético-dedutivo demonstra ser mais adequado à tarefa de afinar áreas de conhecimento cujos processos básicos já estão bem estabelecidos (Foxall, 1998).

 

4. Conclusão

A nossa discussão deve deixar claro que a pretensão do behaviorismo de se posicionar entre as ciências naturais, de forma alguma o identifica com o positivismo, sendo que estas ciências abandonaram e também não procuram se adequar a este ideal. A afirmação Watsoniana de que a pessoa poderia ser analisada como função de uma história de adaptação a uma sucessão de ambientes, continua sendo essencial no behaviorismo moderno. O abandono do modelo de causação linear, a favor de um ponto de vista radicalmente interacional, aconteceu gradualmente através de uma maturação do behaviorismo histórico e mostrou as suas vantagens de forma mais clara na área clínica.

As idéias do próprio Watson contiveram as sementes do contextualismo em seu conceito de comportamento como matéria de pesquisa. Raramente o behaviorismo histórico foi coerentemente mecanicista. Questões do tipo "como funciona" são encontradas desde o início da história do movimento ao lado de "qual é a função disto dentro deste contexto?" Assim, os diferentes behaviorismos se encontram em posições divergentes, no contínuo entre mecanicismo e contextualismo, com Kantor representando o último extremo e Hull, o primeiro.

A nossa análise das atitudes dos behavioristas frente ao conhecimento expôs valores científicos divergentes. Nas versões Skinneriana e Kantoriana, a própria noção de "verdade" é colocada entre parênteses, enquanto outras versões do behaviorismo insistem em objetividade formal. Mas justamente com a sua ênfase sobre exatidão, todo behaviorista é um puro pragmatista, para quem conhecimento não poderia ser outra coisa do que comportamento, definido pelo seu relacionamento com o ambiente.

Desde Watson, o caráter revolucionário do behaviorismo está na sua rejeição de uma meta-linguagem, na qual todas as outras linguagens poderiam ser traduzidas e avaliadas. Para o behaviorista, cada fenômeno precisa ser relacionado com o seu ambiente único. Cada colocação teórica deve ser estudada no contexto no qual emerge. Assim o behaviorismo muitas vezes dá a impressão falsa de ser uma abordagem sem teoria, enquanto é, de fato, uma teoria auto-referente que se reinicia a cada indagação.

A ausência de tal meta-linguagem leva a uma fragmentação conceitual. Podemos citar a oposição entre o paradigma operante e respondente, ou entre as afirmações que pensamento é comportamento verbal e que comportamento verbal não tem função de representação. Que o behaviorismo pode sustentar tal fragmentação tem tudo a ver com seu critério de verdade pragmática. Muito mais do que ameaçar a epistemologia behaviorista, a recusa de uma formulação unificadora que poderia tornar o saber sobre o comportamento uma totalidade coerente e fechada traz consigo uma flexibilidade e abertura para o crescimento.

A ênfase na descrição objetiva está em contradição aparente com esta filosofia relativista, mas a própria definição de conhecimento como comportamento verbal exige que este esteja sob controle dos dados com os quais o estudioso interage. Esta definição torna incontornável a percepção de que a objetividade científica não pode existir além do controle discriminativo dos dados sobre repertórios descritivos e resultado da história de interação do cientista com o seu mundo. Sem essa percepção, a ênfase sobre a objetividade se tornaria insustentável porque daria abertura para a loucura do saber onipotente, inadmissível dentro do behaviorismo pois o próprio conhecimento científico é objeto da mesma análise funcional como qualquer outro comportamento.

Assim, os paradoxos de uma ciência exata que se estende à própria subjetividade do cientista, a uma visão do homem como resultado do seu ambiente e criador do mesmo, a uma abordagem que exige objetividade rigorosa e ao mesmo tempo relaciona o saber ao pragmatismo, constituem tensões dialéticas. Elas configuram a chave da sobrevivência do behaviorismo como proposta científica e excluem o perigo de que se torne um sistema dogmático e necessariamente estéril.

 

Referências

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1 Endereço para correspondência: R. J-51 Q 136 L 31, Setor Jáo - Goiânia / GO, CEP 74674 170, Tel (62)2077639, e-mail: bergneve@zaz.com.br