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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.6 no.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Transtorno de ansiedade obsessivo-compulsivo (TOC) e transtorno da personalidade obsessivo-compulsivo (TPOC): um “diagnóstico” analítico-comportamental

 

Obsessive-compulsive disorders (OCD) and the obsessive-compulsive personality disorders (OCPD): a behavior-analytic “diagnosis”

 

 

Paulo Roberto AbreuI, 1, 2 ; Cynthia Granja PradaI, II, 3

I Universidade Federal do Paraná
II Universidade Federal de São Carlos

 

 


RESUMO

O Transtorno de Ansiedade Obsessivo-Compulsivo (TOC) e o Transtorno da Personalidade Obsessivo-Compulsiva (TPOC) mostram congruências conceituais que historicamente têm confundido o diagnóstico de muitos pesquisadores e clínicos. Em parte, as ambigüidades provavelmente ocorrem devido aos equívocos muitas vezes apresentados pelos instrumentos diagnósticos e também pelo despreparo profissional. A outra fração de erros certamente acontece devido à grande semelhança entre os fenômenos comportamentais. Pela pertinência clínica que o questionamento traz, faz-se mister um aprofundamento teórico. O objetivo deste ensaio foi analisar, sob os pressupostos do behaviorismo radical, o caso de uma cliente atendida durante o estágio clínico. A partir da análise, lançou-se a hipótese sobre a existência de uma semelhança entre as variáveis operantes nos comportamentos obsessivo-compulsivos de ambos os transtornos. Concluiu-se que a semelhança fenomenológica ocorre não pelas topografias comportamentais vigentes, mas pela similaridade existente entre as variáveis de controle.

Palavras-chave: Transtorno de ansiedade obsessivo-compulsivo, Transtorno da personalidade obsessivo-compulsivo, Análise do comportamento, Fenômeno comportamental.


ABSTRACT

The obsessive-compulsive disorders (OCD) and the obsessive-compulsive personality disorders (OCPD) have shown, along the history, conceptual similarities that have confused therapists and scientists' diagnosis. In part, the ambiguity probably appears as a result of poor use of the methods in the diagnostic process and due to the insufficient professional training. Mistakes also happen due to the existence of a considerable similarity between the behavioral phenomena. As this is a very serious issue, a deeper conceptual analysis is warranted. The goal established in this paper was to analyze the case of a client attended during the academic training. From the analysis of the case, a hypothesis was raised about the similarities between the operant variables of both disorders. It was concluded that phenomenological similarity occurs due to the similarity in the controlling variables and not because of the behavioral topographies.

Keywords: Obsessive-compulsive disorders, Obsessive-compulsive personality disorders, Behavior analysis, Behavioral phenomenon.


 

 

O transtorno da personalidade obsessivocompulsiva (TPOC) e o transtorno de ansiedade obsessivo-compulsivo (TOC) caracterizam-se por uma similaridade sintoma-tológica que historicamente levou os clínicos e pesquisadores a encontrarem índices significativos de comorbidade entre os transtornos. Uma revisão de sete estudos conduzida por Black (1974) mostrou que traços da personalidade obsessivo-compulsiva foram encontrados em 31% da amostra, traços moderados em 40%, e ausência de traços pré-mórbidos em 29% de 254 pacientes com o TOC. Segundo Rangé, Asbahr, Moritz e Ito (2001), os elevados índices encontrados nestes estudos provavelmente estariam relacionados a uma confusão na diferenciação sintomatológica entre os transtornos. Embora alguns estudos recentes apresentem resultados contrários aos de seus predecessores históricos (Shea, Stout, Yen, Pagano, Skodol, Morey, Gunderson, McGlashan,Grilo, Sanislow, Bender e Zanarini, 2004; Torres e Del Porto, 1995), continuam a ser publicadas pesquisas que corroboram a sobreposição diagnóstica (Bejerot, Ekselius e Von Knorring, 1998; Samuels, Nestadt, Gerald, Bienvenu, Costa, Riddle, Liang, Hoehn-Saric, Grados e Cullen, 2000). Este fato parece ser contraprodutivo, na medida em que dificulta a sustentação de argumentos que vão tanto a favor como contra da/a autonomia sintomatológica.

O problema da falta de consenso entre os resultados aparece junto de outro empecilho que dificulta ainda mais o estabelecimento de uma diferenciação fenomenológica: as metodologias que embasam os inventários e as entrevistas semi-estruturadas normalmente empregados nas pesquisas se baseiam na sintomatologia dos manuais diagnósticos, os quais, segundo alguns médicos, não contemplam adequadamente todas as particularidades e amplitude clínica das psicopatologias estudadas (Widiger e Frances, 1992; Shedler e Westen, 2004).

Mas estaríamos falando somente de problemas acerca da diferenciação sintomatológica, ou de fato os fenômenos comportamentais são muito similares a ponto de existir tamanha convergência de fatos?

Conforme descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-IV-TR (American Psychiatric Association APA, 2003), o TPOC caracteriza-se por

“uma preocupação com a organização, perfeccionismo e controle mental e interpessoal, às custas da flexibilidade e eficiência. (...) os indivíduos com TPOC tentam manter um sentimento de controle através de uma atenção extenuante a regras, detalhes triviais, procedimentos, listas, horários ou formalidades, chegando a perder o ponto mais importante da atividade. Eles são excessivamente cuidadosos e propensos à repetição, dando extraordinária atenção a detalhes e verificando repetidamente, em busca de possíveis erros. Estas pessoas não percebem que os outros tendem a ficar muito aborrecidos com os atrasos e inconvenientes que resultam de seu comportamento ”. (p. 677)

De acordo com Widiger e Frances (1992), os indivíduos com transtornos da personalidade obsessivo-compulsiva se caracterizam por apresentar aquele padrão permanente de comportamentos ao longo de toda sua vida. Por sua vez, o TOC se caracteriza por ser um estado crônico e homogêneo em que ocorrem pensamentos encobertos súbitos e recorrentes (obsessões) seguidos por comportamentos estereotipados que o indivíduo se sente compelido a emitir (compulsões). As obsessões são compreendidas como pensamentos, idéias, imagens (visuais ou auditivas), recorrentes e persistentes, que são experimentadas como intrusivas, inadequadas, e por isso causam acentuada ansiedade ou sofrimento (APA, 2003). A pessoa tenta ignorar ou suprimir as obsessões, ou neutralizá-las com algum outro pensamento ou ação e, quando obtêm sucesso, este é apenas transitório (APA, 2003). Compulsões são comportamentos ou pensamentos repetitivos, que a pessoa se sente compelida a executar em resposta a uma obsessão (APA, 2003). Após o ato compulsivo, o paciente experimenta, em geral, alívio temporário da ansiedade.

O diagnóstico diferencial entre ambos os transtornos é justificado, sobretudo, pela ocorrência das obsessões e compulsões no TOC e a não ocorrência no TPOC (APA, 2003). Aparentemente esta especificação seria adequada e suficiente, mas o que se observa na prática clínica psiquiátrica é uma grande dificuldade em se diferenciar ambos. Kaplan, Sadock e Greeb (2003) ilustram a questão ao falar de algumas experiências na diferenciação entre os pacientes ambulatoriais obsessivo-compulsivos dos pacientes com o TPOC. Dizem os autores que normalmente o diagnóstico do TOC é reservado aos pacientes com sérios comprometimentos em seu desempenho ocupacional e profissional.

Poder-se-ia hipotetizar, então, que os comportamentos “perfeccionistas” no TPOC teriam sido selecionados em sua maior parte por reforçamento positivo. Isso aconteceria pelo fato de estes pacientes aparentemente não apresentarem respondentes ansiosos tão intensos e comprometedores como o são os respondentes eliciados no TOC. Sendo assim, no início do condicionamento operante, os comportamentos “virtuosos” de alguém com TPOC poderiam ter tido conseqüências positivamente reforçadoras, mas dada a ansiedade apresentada pelos indivíduos com este diagnóstico (Widiger e Frances, 1992; Shedler e Westen, 2004), parece pouco provável que a seleção de seus comportamentos tenha ocorrido sob reforçamento positivo. Existe uma história de condicionamentos em ambos os transtornos que denuncia certa similaridade de fenômenos.

O experimento conduzido por Laudoucer, Rhéaume e Aublet (1997) oferece algumas perspectivas explanatórias. Os autores estudaram duas variáveis, relativas ao comportamento de tomada de decisão em homens. A primeira seria a discriminação da “influência pessoal” e a segunda seria a discriminação das “conseqüências negativas pessoais”. Nesse estudo foram manipuladas ambas as variáveis numa população não clínica orientada a separar pílulas de diferentes cores. Cada grupo recebeu informações diferentes acerca dos objetivos da tarefa. Ao final do experimento, provocaram-se hesitações apenas aumentando a idéia das “conseqüências negativas” de algum erro, mas verificações só ocorreram quando se associaram informações sobre a “influência pessoal” de cada indivíduo. O estudo é promissor por oferecer uma perspectiva explicativa sobre algumas variáveis em curso no condicionamento dos comportamentos (operante e respondente) relacionados ao tipo clínico do TOC representado pelos pacientes com dúvidas obsessivas e rituais de checagem (Wielenska, Araújo, Bernik, 1998; Rangé et al., 2001). Estas variáveis de controle provavelmente podem também estar implicadas em outros tipos clínicos do transtorno, a exemplo dos pacientes com obsessão de contaminação e rituais de limpeza (lavadores). Na análise aqui empregada, interessam particularmente as auto-regras de influência pessoal. A variável relacionada à regra que dita “influência pessoal” tem uma correlação direta com as nossas práticas culturais. Estas regras seriam conseqüência das contingências de controle aversivo que operam/operaram em práticas culturais coercitivas (Sidman, 1989/2001). Conforme coloca Skinner (1989/2002),

“o eu de que uma pessoa gosta parece ser produto das práticas positivamente reforçadoras do ambiente social, mas as culturas em geral controlam seus membros através de estímulos aversivos, quer como reforçadores negativos que fortalecem o comportamento desejado, quer como punições que suprimem o comportamento indesejado” (p. 87).

Conclui-se do exposto acima, e assim o fizeram também Guilhardi e Queiroz (2001), que através do controle aversivo, as culturas conseguem assegurar que seus membros se sintam “responsáveis” pelos seus atos. Os comportamentos “perfeccionistas” no TPOC, como o reasseguramento constante através da checagem do desempenho e o seguimento extenuante das regras, parecem similares aos comportamentos observados nas contingências montadas no experimento de Laudoucer et al. (1997). Riggs e Foa (1999) afirmam que as compulsões têm o objetivo não somente de evitar a ansiedade relacionada às obsessões ou aos estímulos desencadeantes, mas também evitar ou reduzir o sofrimento ou evitar alguma situação temida. Porque então não considerar os comportamentos recorrentes no TPOC também como sendo compulsões, já que sua função, sobretudo, está voltada para a esquiva dos estímulos aversivos com o conseqüente alívio da ansiedade? A função das esquivas encontradas na classe de respostas relacionada às sugeridas “compulsões no TPOC” se mostra semelhante à função das esquivas compulsivas encontradas no TOC.

Existe outro fato que poderia diferenciar ambos os transtornos. Poder-se-ia argumentar ainda que, diferentemente do TOC, não há obsessões no TPOC. Existiria então uma diferença fenomenológica expressiva?

Zamignani (2001) propõe um esquema para o TOC de orientação analítico-comportamental que pode explicar também a ausência das obsessões verificada em alguns tipos do transtorno. Conforme já exposto, as respostas de esquiva no TOC (compulsões) têm a função de evitar a ocorrência das obsessões incômodas ou de evitar um evento/estímulo(s) de conotação ameaçadora. As variáveis que exercem controle operante sobre a emissão dessas respostas são os estímulos pré-aversivos (ex. um ambiente no qual as obsessões normalmente ocorram), às quais as conseqüências punitivas tenham sido pareadas, e também algumas operações estabelecedoras, (ex. ambiente rico em estimulação aversiva) por serem estas responsáveis pelo aumento do valor do reforçamento negativo contingente às esquivas bem-sucedidas (Catania, 1999). Coloca o autor, então, que na vigência de um ambiente com pouca estimulação aversiva, outras conseqüências poderiam exercer o controle operante da cadeia comportamental, a exemplo das conseqüências positivamente reforçadoras. Poder-se-iam citar, como exemplos de reforçamento positivo, o reforço social normalmente apresentado pela família do paciente com TOC que o vê como alguém fragilizado ou as recompensas organizacionais ministradas pelas empresas mediante a constatação de um ótimo desempenho profissional. Durante o período de reforçamento positivo, as respostas compulsivas não viriam acompanhadas da ansiedade e das obsessões. Inversamente, na vigência de grande estimulação aversiva, o ambiente possibilitaria o surgimento da ansiedade e obsessões, o que teria como conseqüência, o estabelecimento dos comportamentos compulsivos de esquiva característicos do transtorno. Portanto, de acordo com a formulação dada (Zamignani, 2001), as obsessões estariam sujeitas às variá-veis de controle em curso. Aparentemente, falar dos comportamentos no TOC é diferente do que falar dos comportamentos no TPOC. Esta diferença ocorreria devido à topografia comportamental atual dos dois transtornos, fato em que a nosologia psiquiátrica nos leva a acreditar. Mas de acordo com o raciocínio seguido até agora, o que se mostra bastante similar em ambos os fenômenos é a dinâmica das variáveis de controle dos comportamentos obsessivos e compulsivos. Em face disso, hipotetiza-se que, se ocorresse um aumento substancial dos eventos estressores na vida de alguém diagnosticado com o TPOC, estar-se-ia, provavelmente, facilitando o surgimento das obsessões.

O estudo de caso abaixo ilustra a questão levantada.

 

Estudo de Caso

O estudo de caso se fez através dos atendimentos clínicos realizados no período de 27/01/03 a 12/12/03, ao longo de 25 atendimentos. As sessões aconteceram semanalmente nas instalações da clínica-escola da Universidade Federal do Paraná, sendo acompanhadas através do espelho unidirecional por outro integrante da equipe.

A cliente atendida, que aqui será chamada de “O.”, é uma senhora casada e mãe de três filhas (também casadas). O. é dona de casa, mas também vende bombons. No início do tratamento, sua filha mais nova ainda residia com a cliente por ser a única filha ainda solteira. Posteriormente se casou, mudando-se para outra residência.

 

Queixas

Problemas com o Cônjuge: O cônjuge - que será aqui chamado de A. - está aposentado há oito meses e por isso passa quase que todo o seu tempo em casa. A. é descrito pela esposa como sendo alguém que não tem iniciativa alguma. O. conta que o parceiro não arruma as coisas dentro de casa, deixando-a toda bagunçada. Quando tenta fazer algum serviço doméstico, passa horas intermináveis trabalhando, finalizando em um serviço muito “mal” feito. Mais do que isso, suja toda a casa tentando fazê-lo. Traz também que evita ficar na presença do marido o tanto quanto pode. No 5º atendimento, foi proposto à cliente que preenchesse uma lista com as suas atividades semanais. Durante a análise conjunta, foi concluído que a maior parte de seu tempo ao longo da semana era gasta com os serviços domésticos e com a venda de bombons, guardando somente quatro horas semanais para estar com o marido.

Problemas com os genros: Expressa seu descontentamento com os genros. O marido de sua filha mais velha é descrito como alguém que não tem raízes, uma pessoa que não possui uma “boa” ligação com a sua família de origem. Segundo a cliente, o genro não consegue emprego estável e ainda omitiu para a esposa o fato de que já tinha tido um filho com outra mulher. Por sua vez, a filha do meio casou-se com alguém com problemas semelhantes - além de não ter raízes e emprego estável, este genro não cuida adequadamente da sua esposa enferma. Destas constatações, O. tenta direcionar as decisões das filhas em detrimento dos genros, chegando a empregar grande esforço para convencer uma das filhas a pedir a separação.

Problemas com o estado de saúde da filha enferma: O. apresenta preocupação crescente com uma das filhas. A família prontamente desaprova a intensidade de suas preocupações. Embora tenha uma doença crônica (deficiência de imunoglobina), a filha vem honrando todos os seus deveres. Trabalha de dia em período integral e cursa faculdade à noite. A cliente afirma que a doença logo irá consumir a vitalidade da filha, pontuando que esta é também a percepção do médico especialista. Quando é questionada sobre o parecer do médico a respeito do curso e prognóstico da doença, responde que este nada lhe disse a respeito. O profissional apenas se limitou a afirmar que o problema era sério.

Ataques de Pânico: A cliente relata ter ataques de pânico recorrentes. Os ataques ocorriam no momento em que despertava do sono e embora estivessem circunscritos a este contexto, não ocorriam invariavelmente em todas as situações. O curso dos ataques teve seu crescimento gradativamente interrompido com o progresso da terapia. Apenas no 4º atendimento relatou ter tido outro ataque, logo após uma piora no estado de saúde da filha.

Problemas com o trabalho: Na época em que começaram os atendimentos, foi confeccionada uma lista de suas atividades diárias. Durante sua análise, foi verificado que, subtraído o limitado tempo que reservava para si, todo o restante da semana era destinado ao serviço. O. trabalhava desde o momento em que acordava até a hora de dormir. Relata no 5º atendimento que por mais que gostasse de novelas, só se sentava na frente da televisão duas vezes por semana e logo saía, porque tinha que costurar para as filhas.

No 20º atendimento, expressa que deseja mudar seu cotidiano, mas que não consegue porque se sente mais calma quando trabalha. Nesta sessão, fala ainda que sempre que termina um serviço, já começa a pensar em possíveis outros trabalhos para fazer, como rebocar uma parede, arrumar um portão, varrer a casa, etc.

Obsessões: Mais tarde, no 24º atendimento, relatou que no auge de sua ansiedade era acometida por pensamentos que lhe “diziam” que algo ruim estaria para acontecer com sua família e/ou que teria um derrame ou um ataque do coração. Segundo a cliente, os pensamentos pareciam “avisos”. Ocorriam-lhe ao menos cinco “avisos” por dia.

 

Discussão

Ao longo das avaliações e intervenções, foi verificado que a cliente estava tendo respondentes ansiosos intensos e que para se esquivar das situações eliciadoras, punha-se a trabalhar compulsivamente desde a hora em que acordava até a hora em que se retirava para dormir. A ansiedade era eliciada pelos fatores de estresse que estava vivenciando em sua vida, como os problemas conjugais, as preocupações com as filhas, os problemas com os genros, o medo da incidência de mais um ataque de pânico, o montante de trabalho e as obsessões. Ao final das avaliações, concluiuse que os comportamentos apresentados pela cliente eram condizentes com os comportamentos pertinentes ao TOC com ataques de pânico associados. Os “sintomas” preenchiam os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR (APA, 2003) e da Classificação Internacional de Doenças - CID 10 (Organização Mundial de Saúde, 2000). O caso se tornou interessante por se constatar que as compulsões da cliente apontavam para um tipo singular do transtorno diferente dos tipos descritos pela literatura (Chacon, Brotto, Bravo, Campos e Filho, 2002; Miguel, Rauch e Jenike, 1998).

A cliente estava exposta às contingências de controle aversivo e se comportava da forma como aprendera em sua história: trabalhava tenazmente para esquivar/escapar das preocupações.

Conquanto tivesse sido instruída a respeito do modelo do TOC, até o 23º atendimento, não relatou ser acometida pelas obsessões, fato que, acrescido do “perfeccionismo” encontrado principalmente no devotamento excessivo ao trabalho, na relutância em delegar tarefas ao marido, nas preocupações extensas com a ordem da casa e no controle da vida das filhas casadas, apontaria para um provável diagnóstico de TPOC.

Tardiamente, no penúltimo atendimento, relatou a existência das obsessões nos períodos de maior ansiedade. É conveniente notar que a ansiedade foi diminuindo na medida em que a terapia progrediu. Acredita-se que as análises funcionais feitas ao longo das sessões possibilitaram a cliente discriminar as variáveis que estavam controlando seus comportamentos relativos às brigas familiares. Começou a agir diferente com o marido e com as filhas, o que lhe foi colocando em contato com outras contingências, agora de reforçamento positivo. Banaco (1997) e Zamignani (2002) chamam a atenção para o escasso repertório social que normalmente apresentam os indivíduos com TOC pelo fato de passarem a maior parte de seu tempo empenhados nos rituais compulsivos. Com o objetivo de também aumentar o repertório social da cliente, foi proposto que participasse de um grupo interativo, ao estilo dos grupos de terceira idade, onde pudesse desenvolver novas classes de respostas que viessem a concorrer com as respostas compulsivas. Com a diminuição do ambiente aversivo, verificou-se uma diminuição concomitante na freqüência dos ataques de pânico e também das obsessões. Este fato vem corroborar o esquema proposto por Zamignani (2001), dado que a diminuição das operações estabelecedoras em curso possibilitou que outras conseqüências positivamente reforçadoras passassem gradativamente a controlar a cadeia comportamental do TOC. A cliente começou a apresentar satisfação ao costurar para as filhas, o que antes fazia para aliviar a ansiedade. Passou a limpar/organizar com menos freqüência e sem a urgência de outrora, o que parece ter-lhe trazido certo prazer em fazê-lo. Por fim, também, começou a apreciar a conversa dos clientes durante a venda dos bombons, pois no passado se limitava a falar o mínimo possível, com o objetivo de conseguir atender a um maior número de pessoas (O. não tinha necessidade financeira da venda, mas como afirmara em sessão, uma boa produção no dia lhe aliviava muito a ansiedade).

O esquema analítico-comportamental adotado mostra uma possível semelhança nas variáveis de manutenção dos comportamentos característicos tanto ao TPOC quanto ao TOC. Trata-se, então, de uma mesma “psicopatologia”? Para responder a esta pergunta, será necessário discutir ainda uma outra questão.

A psiquiatria traz uma diferenciação entre os transtornos da personalidade e os transtornos do Eixo I do DSM-IV-TR (APA, 2003) pautada na nosologia psicanalítica. Os transtornos da personalidade são caracterizados por uma alteração permanente do “self” que o indivíduo passa a aceitar como parte de si. Pessoas com o TPOC podem achar que seu perfeccionismo e devoção ao trabalho são indicadores de fortes virtudes e superioridade moral (Widiger e Frances, 1992). Embora a comunidade se esforce em apontar seus problemas de comportamento, suas autocríticas normalmente se apresentam prejudicadas. Estes indivíduos experimentariam seus sintomas como sendo aceitáveis ao ego, ou seja, como sendo sintomas ego-sintônicos (Kaplan et al., 2003). Os problemas que passam na vida são freqüentemente por eles atribuídos a fatores externos. Neste sentido, o processo de adaptação dos indivíduos com TPOC ocorreria pela alteração de seus ambientes externos, o que caracterizaria os sintomas aloplásticos (Kaplan et al., 2003). Contrariamente ao TPOC, o TOC apresenta sintomas autoplásticos, em que o processo de adaptação ocorre pela mudança do indivíduo, e ego-distônicos, pois são experimentados como inaceitáveis ao ego (Kaplan et al., 2003). Indivíduos com TOC normalmente acham seus sintomas desagradáveis e compreendem que o seu sofrimento é reflexo de seus próprios comportamentos. A despeito do caráter mentalista trazido nestes conceitos e pela pertinência dos fatos por eles descritos, a presente terminologia requer uma análise mais cuidadosa do atual contexto em que ocorrem os comportamentos.

Em se tratando de condicionamento de controle aversivo, em ambos os transtornos, estar-se-á inevitavelmente falando também de respondentes ansiosos e possivelmente do relato verbal a respeito do sofrimento característico. Desta constatação, hipotetizase que poderão existir períodos ao longo do curso do TPOC em que a pessoa discrimine todos seus “esforços” comportamentais (a intensidade e a freqüência das respostas compulsivas) como sendo a causa de seu sofrimento. Isto mudaria o panorama: de aloplástico e ego-sintônico, o transtorno poderia ganhar um novo status, passando a autoplástico e ego-distônico, como o são os sintomas do TOC. Acredita-se que esta discriminação esteja em grande parte dependente da adequação dos comportamentos-problema ao seu ambiente; em outras palavras, se o meio prover reforçamento, é pouco provável que a pessoa venha a discriminar uma inadequação. Do contrário, se houver muitas punições contingentes, aumentar-se-ão consideravelmente as probabilidades de ocorrer esta discriminação. Uma dona de casa “virtuosa” que cresceu em uma comunidade verbal em que as mulheres são valorizadas por esta sua função, dificilmente atribuirá os problemas que vivencia aos seus comportamentos laborais. O exemplo listado é o próprio caso trazido neste estudo. Anteriormente às discriminações que ocorreram durante as sessões, a cliente localizava nos familiares, a causa de todos os seus problemas.

 

Considerações Finais

Poder-se-ia realmente falar de traços de personalidade? O behaviorismo radical não concebe o conceito de personalidade conforme ele vem sendo aceito pela psicologia mentalista. Sobre o tópico, Skinner (1974/2002) expõe que

“um eu ou uma personalidade é, na melhor das hipóteses, um repertório de comportamento partilhado por um conjunto organizado de contingências. O comportamento que um jovem adquire no seio de sua família compõe um eu; o comportamento que adquire, digamos, no serviço militar compõe outro. Os dois eus podem coexistir na mesma pele sem conflito até as contingências conflitarem o que pode ocorrer, por exemplo, quando amigos da vida militar o visitam em sua casa.” (P.130)

Não há possibilidade de se conceber uma propriedade comum e imutável aos comportamentos de um ser humano. Na melhor das hipóteses, poderíamos falar apenas de traçossubstantivos, que seriam a forma como usualmente respondemos a uma mesma contingência (Skinner, 1953/1998). Mesmo esta estará sujeita a mudanças ao longo da vida do indivíduo.

O behaviorismo radical confere uma visão diferente do ser humano à psicologia. Nele os comportamentos aprendidos do homem não seriam controlados por traços ou estruturas formadas e sim pelas conseqüências que se seguiram da interação destes comportamentos com o meio, e também pelos estímulos presentes no momento em que tais conseqüências ocorreram (Sério, Andery, Gioia e Micheletto, 2004). Lundin (1969/1977) enfatiza que, para a compreensão da personalidade, é imprescindível observarmos como e em que condições o comportamento é aprendido. Portanto, para o behaviorismo radical, o papel do meio será de suma importância na compreensão de como alguém organiza seu repertório comportamental. Afirma ainda o autor que “o tipo singular de padrão de comportamento adquirido durante o longo período de desenvolvimento de um indivíduo constituirá sua personalidade”. (p. 7)

Não obstante, os princípios que regem os comportamentos ditos “normais” são os mesmos que regem os comportamentos ditos “anormais” (Ferster, 1966/1972; Ullmann e Krasner, 1975). A terminologia psiquiátrica “transtorno da personalidade” muito pouco acrescenta à sua compreensão. Particularmen-te, ao analista do comportamento interessa mapear as variáveis das quais o comportamento é função, sejam as que atuaram no seu condicionamento ou sejam as que hoje atuam para a sua manutenção.

Os transtornos da personalidade e de ansiedade obsessivo-compulsivos podem ser regidos por variáveis de controle bastante semelhantes. Parece que a linha que separa ambos os transtornos é muito tênue, o que, a despeito das reflexões aqui registradas, mereceria a atenção das futuras pesquisas.

 

 

Referências

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Recebido em: 29/10/04
Primeira decisão editorial em: 24/11/04
Versão final em: 04/12/04
Aceito em: 06/12/04

 

 

1 Aluno de graduação do curso de psicologia. Endereço para correspondência: pauloabreu_ufpr@yahoo.com.br
2 Agradeço aos psicólogos Bruno Angelo Strapasson e Renata Rolim Sakiyama pela revisão cuidadosa do texto.
3 Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos e Professora do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: cgprada@estadao.com.br