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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.7 no.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Contribuições da psicologia evolutiva e da analíse do comportamento acerca do ciúme1

 

Contributions of evolutionary psychology and behavior analysis about jealousy

 

 

Nazaré Costa2

Universidade Federal do Maranhão

 

 


RESUMO

Estudos sobre o ciúme apresentam muitas controvérsias, incluindo a própria definição do fenômeno. Deste modo, por se tratar de uma problemática atual e freqüente no contexto clínico, torna-se necessário discutir sobre aspectos importantes que devem nortear a atuação do profissional quando se encontrar diante da queixa de ciúme. Este é o objetivo central deste artigo que partirá das proposições da Psicologia Evolucionista e da Análise do Comportamento. Enquanto a primeira compreende o ciúme como uma resposta adaptativa cuja função seria preservar uma relação diante da ameaça de traição sexual, conseqüentemente necessário às relações, para a segunda, o ciúme tanto pode ser visto como uma emoção negativa adaptativa, uma vez que todo comportamento possui um valor de sobrevivência; porém não é considerado necessário às relações, mesmo que seja um padrão esperado e reforçado culturalmente. As diferenças entre estas teorias trazem implicações para a intervenção clínica que merecem ser alvo de discussão.

Palavras-chave: Ciúme, Psicologia evolucionista, Análise do comportamento, Terapia.


ABSTRACT

Studies about jealousy present several controversies, including the very definition of the phenomenon. Thus, being a present-day and frequent question in the clinical context, it is necessary to discuss about important aspects that should guide the professional's performance when dealing with the complaint of jealousy. This is the central aim of this paper and it will be based on the propositions of Evolutionary Psychology and Behavior Analysis. While the former understands the jealousy as an adaptative response whose function would be preserving a relationship threatened by sexual treachery and consequently necessary to the relationships, the latter proposes that the jealousy could be seen as a negative emotion or, since every behavior has a survival value, as an adaptative one, but it is not considered necessary to the relationships even if it is an expected and culturally reinforced pattern. The differences between these theories have implications to the clinical intervention and they deserve a discussion.

Keywords: Jealousy, Evolutionary psychology, Behavior analysis, Therapy.


 

 

O ciúme é considerado um fenômeno universal (Buss, 2000; Leite, 2000; Pines & Aronson, 1983), sendo que tal proposição parece ser consensual entre os estudiosos do assunto. Nas palavras de Buss (2000), “Culturas em paraísos tropicais inteiramente livres de ciúme só existem nas mentes românticas de antropólogos otimistas e, na realidade, jamais foram encontradas” (p. 45).

Apesar do consenso quanto à presença do ciúme em todas as culturas, muitas controvérsias são identificadas na literatura sobre o assunto. Dentre as quais apontam-se os problemas envolvendo a distinção entre ciúme normal e patológico, o papel de fatores filogenéticos e culturais (Marazziti, Di Nasso, Masala, Baroni, Abelli, Mengali, Mungai e Rucci, 2003; Mullen & Martin, 1994) e a diferença entre os sexos (Grice & Seely, 2000), que constitui a base da teoria evolucionista do ciúme.

Estudos sobre o ciúme, então, são necessários em função de tais controvérsias e também de fatores como: a) consistir em um tema comum na terapia de casal (Leite, 2000; Pines, 1992) e até na individual quando há queixa de dificuldade no relacionamento; b) constituir um motivo de violência e homicídio (Buss, 2000; Leite, 2000; Sheets, Fredendall & Claypool, 1997), havendo dados de que cerca de 20% de homicídios são “movidos” pelo ciúme (Leite, 2000); c) serem deficientes em termos de pesquisas, sobretudo no âmbito nacional, pelo fato de ser considerado algo comum e óbvio, logo, desnecessário tornar-se alvo de estudos (Leite, 2000). Possivelmente, como reflexo deste último fator, a Análise do Comportamento tem tido uma produção de conhecimento insuficiente sobre o assunto, o que pode inclusive dificultar o trabalho do clínico (Menezes & Castro, 2001).

Partindo desses dados, é que se pretende, com o artigo, minimizar a escassez de trabalhos sobre o tema no país e, especialmente, apresentar contribuições, a partir dos referenciais teóricos evolucionista e analíticocomportamental, que possam subsidiar a intervenção clínica que tem como base o último referencial.

Mas, o que se entende por ciúme?

 

Definições de Ciúme

Iniciando pelos evolucionistas Daly, Wilson & Weghorst (1982, citados por Buss, 2000), o ciúme consiste em “um estado que é despertado por uma ameaça percebida para uma relação ou posição valorizada e motiva comportamento apontado para se contrapor à ameaça” (p. 32). Para Pines (1992), representante da Psicologia Social, o “Ciúme é uma reação a uma ameaça percebida - real ou imaginária - a uma relação valorizada ou de sua qualidade” (p. 51). Mais recentemente, De Silva (1997), que faz uso do referencial comportamental, definiu o ciúme como uma “Expectativa, apreensão de perder o parceiro, ou perder o seu lugar de afeição por parte do parceiro” (p. 974).

As definições destacadas apresentam alguns elementos comuns. No caso, trata-se de uma emoção (desprazer, estado, apreensão) que é desencadeada por uma situação de ameaça, seja ela real ou não, de perder uma relação ou posição em um relacionamento afetivo, sendo importante ainda destacar que tal emoção tende a “motivar” comportamentos que possam lidar com a ameaça, como apontam Daly, Wilson & Weghorst (1982, citados por Buss, 2000). Tal caracterização do ciúme, porém, não estabelece nenhuma diferença entre ciúme “normal” e “patológico”3. Então em que consiste esta diferença?

O ciúme “normal” é aquele baseado em fatos, enquanto o “patológico” procura fatos e/ou sofre influência de delírios (Leite, 2000), ou como argumenta Pines (1992), enquanto o ciúme “normal” ocorre em função de uma ameaça real, o ciúme “patológico” “persiste a despeito da ausência de qualquer ameaça real ou provável” (p. 51).

 

A interpretação do Ciúme pela Psicologia Evolutiva

De forma semelhante a essas definições, psi-cólogos evolucionistas (que serão largamente representados por Buss e seu grupo) conce-bem o ciúme como uma reação a possível per-da de uma relação. Acrescentam, porém, que esta reação é uma resposta adaptativa da espécie, tendo evoluído para solucionar “um problema recorrente de sobrevivência ou reprodução” (Buss, 2000, p.17): a ameaça real de traição4 .

Uma adaptação diz respeito a “mecanismos de enfrentamento passados adiante por milênios porque funcionaram” (Buss, 2000, p.17-18), no sentido de que contribuíram para que ancestrais humanos pudessem reproduzir e sobreviver ao longo da história filogenética (Buss, 2000).

Partindo de tal compreensão, os evolucionistas defendem que a presença do ciúme é necessária às relações, marcando a existência de compromisso entre os parceiros. Há problemas então quando o ciúme está ausente ou é excessivo; no último caso, porque tende a ser destrutivo à relação e, no primeiro, na medida em que a presença do ciúme é interpretada como sinal de amor, e sua ausência como falta de amor (Buss, 2000).

 

 

Dentre os benefícios que o ciúme pode trazer à relação pode ser citado que: “ensina as pessoas a não menosprezar os parceiros, torna o relacionamento mais duradouro, indica o amor pelo parceiro, torna os relacionamentos mais excitantes, possibilita a avaliação do próprio relacionamento, faz o parceiro sentirse mais desejável...” (Pines & Aronson, 1983, p. 124). Provavelmente, devido a tais aspectos, o ciúme seja considerado útil para eliminar a ameaça de perda, conforme Buss (2000).

Buss (2000) distingue os efeitos positivos do ciúme entre homens e mulheres. De acordo com o autor, para o homem, o ciúme é útil uma vez que o protege contra os riscos de perder o tempo que investiu na corte de uma mulher, de dedicar-se aos filhos que não são seus e de danificar sua reputação. Para as mulheres, a utilidade do ciúme estaria relacionada ao fato de afastar a possibilidade de uma rival retirar a segurança emocional para com ela e filhos. Nas palavras de Fisher (1995), “O ciúme ajudou a restringir a prevaricação nas mulheres e o abandono por parte dos homens” (p. 197).

Com base nessas diferenças, os teóricos evolucionistas acreditam que embora homens e mulheres apresentem ciúme, os motivos que produzem tal emoção são distintos - o homem é mais afetado pela ameaça de um envolvimento sexual, enquanto a mulher pela ameaça de um envolvimento emocional (Buss, 2000; Fisher, 1995). Porém, é importante ressaltar que as diferenças entre os sexos podem desaparecer quando a ameaça de infidelidade envolve uma relação homossexual, já que a reprodução torna-se impossível (Sagarin, Becker, Guadagno, Nicastle & Millevoi, 2003).

Embora defendam que ciúme traz benefícios à relação, os evolucionistas também identificam prejuízos que o ciúme acarreta, podendo ser divididos os efeitos negativos em três categorias principais: efeitos negativos sobre o indivíduo ciumento, efeitos negativos sobre o parceiro que é alvo do ciúme e efeitos negativos sobre a própria relação. Uma tabela é útil para explicitar tais efeitos.

A tabela torna evidente que o ciúme pode ser altamente prejudicial aos indivíduos e às relações, contrariamente ao que é defendido pelos próprios evolucionistas. E, fazendo uso do referencial comportamental, permite visualizar ainda que os efeitos sobre o indivíduo que sente ciúme estão relacionados a eventos privados, embora seja importante ressaltar que tais eventos tendem a fazer parte da contingência quando passam a controlar comportamentos públicos como forma de eliminar ou diminuir a ameaça de perda, o que será retomado adiante - e que, sobre aquele que é alvo do ciúme, os efeitos podem ocorrer tanto sobre eventos públicos quanto privados.

Em síntese, numa perspectiva evolucionista, o ciúme é uma emoção filogeneticamente determinada, tendo evoluído e se mantido porque foi e continua sendo uma estratégia útil para enfrentar ameaças à relação. Deste modo, ele sempre estará presente em relações que são valorizadas ou nas quais exista o amor verdadeiro 5 (Buss, 2000), o que se mostra com-patível com a concepção de nossa cultura que acredita que “amor sem ciúme não é amor”. Mas o que pensam os analistas do compor-tamento sobre o ciúme?

 

A interpretação do Ciúme pela Análise do Comportamento

Retomando os componentes comuns encontrados nas definições de ciúme, pode-se compreender o ciúme, genericamente, segundo a Análise do Comportamento, como um evento privado capaz de controlar comportamentos públicos.

Como em evento privado, do tipo sentimen-to6, o ciúme é produto tanto de condicio-namento reflexo como operante (Skinner, 1989/1991). O condicionamento reflexo expli-caria as reações fisiológicas que são sentidas quando um indivíduo descreve estar com ciúme, por exemplo, um aperto no peito, sensação de nó na garganta ou sensação de perda de controle. Já o condicionamento ope-rante permite entender como se estabelece a relação entre o que ocorre fisiologicamente com o indivíduo e o que ele faz quando está diante dessa sensação, assim como por que faz o que faz.

Segundo Tourinho (1997), um evento privado pode controlar um comportamento público, passando então a fazer parte da contingência. Uma contingência refere-se a uma relação de dependência entre eventos (Barros, 1996) que pode se estabelecer a partir da história daquele indivíduo com situações que lhe são específicas. Então, acerca do papel do condicionamento operante na compreensão do ciúme, supõe-se que o indivíduo denominado ciumento aprendeu a sentir tal sensação e a emitir determinados comportamentos públicos, sob controle de tal sensação, como telefonar diversas vezes para a(o) parceira(o), fazer perguntas para checar o lugar e com quem a(o) parceira(o) estava e até mesmo seguir a(o) parceira(o), em função de uma história de reforçamento positivo ou negativo. Vale ressaltar que conforme Menezes & Castro (2001), o ciúme é reforçado em esquema intermitente; logo, a extinção do mesmo leva tempo para ocorrer.

Uma contingência de reforçamento positivo ocorreria quando um indivíduo, ao demonstrar ciúme da(o) parceira(o), essa(e) lhe dissesse, por exemplo, que o(a) ama, que não precisa se preocupar pois jamais o(a) trocaria por ninguém, apontando todas suas qualidades e, ao final, ainda lhe desse um beijo ou alguma outra prova de amor - presente, viagem, etc. Pines & Aronson (1983) enumeram outros possíveis reforçadores, conforme foram citados alguns benefícios da manifestação do ciúme.

No caso de uma contingência de reforçamento negativo, esta atuaria numa situação na qual o indivíduo, por exemplo, que apresenta um padrão de ciúme ao interrogar a(o) parceira(o), todas as vezes que ela(e) sai só e esta(e) por sua vez passa a evitar sair com qualquer pessoa sem a presença do(a) parceiro(a). Menezes & Castro (2001) complementam que o ciúme seria reforçado negativamente não apenas quando remove ou evita a possibilidade de perda de um relacionamento, mas também na medida em que ao demonstrar ciúme, o indivíduo estaria se esquivando de situações sociais aversivas por não apresentar o padrão esperado. Isto é confirmado pelos dados de Pines & Aronson (1983) que demonstraram que indivíduos que relatam ter menos ciúme são discriminados ou punidos.

No que se refere à instalação do sentimento de ciúme, Menezes & Castro (2001) apontam além de reforçamento positivo e negativo, generalização e imitação. Acrescenta-se a tais contingências o controle do comportamento por regras, uma vez que a cultura prega que “o ciúme é o tempero do amor”, logo, “tenho que demonstrar ciúme, senão ele(a) vai pensar que não a(o) amo(a)”.

Diante de tais considerações concorda-se com a definição de Menezes & Castro (2001) de que o ciúme, para a Análise do Comportamento pode ser considerado

como um sentimento que emerge em uma situação sinalizadora de possível perda de um estímulo reforçador para outro indivíduo, podendo envolver a emissão de respostas coercitivas que visam evitar esta perda e a produção de conseqüências reforçadoras e/ou punitivas para o comportamento dos indivíduos envolvidos em uma manifestação de ciúme (p. 20).

Apesar da concordância, a definição das autoras restringe o controle do ciúme à ameaça de perda e, como foi visto, o controle também pode se originar de outras contingências sociais, sendo necessário esclarecer que existe diferença entre sentir e demonstrar ciúme. Enquanto o primeiro pode ficar sob controle da possibilidade de perda de um relacionamento considerado reforçador e os comportamentos públicos emitidos visam à eliminação dessa ameaça, o segundo pode ser controlado também por regras, tendo os comportamentos emitidos a função de esquiva da pressão social.Resta ainda uma questão: até que ponto é aceitável a formulação de que o ciúme é filogeneticamente determinado e que ainda hoje possui valor de sobrevivência para a espécie?Para a Análise do Comportamento, não há nada contra tal formulação, uma vez que o comportamento, público ou privado, é concebido como um fenômeno determinado por contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais (Skinner, 1990). E neste sentido, todo e qualquer comportamento possui um valor de sobrevivência e por isso se mantém, esteja ele ligado à sobrevivência da espécie, do indivíduo ou do grupo social (Matos, 1999). Considerando que, como todo comportamento, o ciúme foi selecionado por ter sido útil à sobrevivência da espécie, é possível um analista do comportamento aceitar que ele também se mantém devido tão somente ao valor de sobrevivência da espécie, como defendem os evolucionistas? A resposta agora é negativa, uma vez que Skinner (1945) argumenta que os sentimentos só passam a existir como tais quando um indivíduo interage com uma comunidade verbal; assim, os eventos subjetivos ou privados emergem do terceiro nível de determinação - a cultura. Como deixa claro Tourinho (1997), “O privado, enquanto fenômeno psicológico, tem sua existência determinada e limitada pelas práticas culturais” (p.180).

Coerentemente com as proposições da Análise do Comportamento, cabe apoiar as argumentações de Pines & Aronson (1983) que defendem a presença do componente social no ciúme e ainda de Mullen & Martin (1994) de que é um padrão desenvolvido filogeneticamente e culturalmente. E também está ligado, evidentemente, à história de cada um.

 

Comparação entre as Concepções Evolucionista e Analítico-comportamental e Implicações Clínicas

Evolucionistas e analistas do comportamento compartilham a concepção segundo a qual o ciúme consiste numa emoção filogeneticamente determinada que possui valor de sobrevivência e pode ser tanto benéfica como prejudicial ao indivíduo e/ou a outros. Porém, é partindo desta concepção genérica que podem ser identificadas diferenças entre as duas proposições.

Em primeiro lugar, enquanto os evolucionistas acreditam que o ciúme foi instalado e se mantém devido à sua utilidade para a espécie, os analistas do comportamento não admitem tratar um fenômeno subjetivo excluindo variáveis da história do indivíduo e do contexto social. Logo, o ciúme só existe como tal em função de uma cultura que reforça esse padrão, estando o valor de sobrevivência ligado a esse nível e não necessariamente ao filogenético.

Se o ciúme é útil para a sobrevivência da espécie, ele é necessário às relações. Do contrário, elas fracassam e colocam em risco a sobrevivência, de acordo com os evolucionistas. Por outro lado, para a interpretação da Análise do Comportamento, o ciúme não é necessário às relações mesmo sendo um padrão esperado e reforçado culturalmente. As relações podem ser mantidas sem a presença do ciúme.

As diferenças teóricas supracitadas trazem implicações para a intervenção clínica, uma vez que adotando uma ou outra proposição, a intervenção será diferenciada.

Considerando que, para os psicólogos evolucionistas, o ciúme constitui um problema quando ocorre em excesso ou está ausente (Buss, 2000), a decisão de intervir ocorreria em um desses dois casos. Desse modo, supõe-se que se uma cliente, no consultório, afirma que ama seu parceiro e que sua relação é muito importante, mas não sente ciúme, o primeiro passo do profissional será investigar se de fato existe amor e valorização da relação.

Para um terapeuta analítico-comportamental, o ciúme só seria alvo de intervenção se estivesse trazendo prejuízos para o indivíduo e/ou para outros, como qualquer comportamento-problema (Costa, 2002). Neste caso, se um cliente trouxesse como queixa o sofrimento relacionado ao ciúme, mesmo que moderado, e desejasse diminuí-lo ou não mais apresentá-lo, o terapeuta trabalharia nesta direção, ainda que estivesse fazendo algo que potencialmente seria punido por alguns membros da comunidade verbal. Este ponto merece ser explorado - afinal, como um profissional de Psicologia pode trabalhar indo contra o que é considerado certo pelo grupo social do qual seu cliente faz parte? Seria essa uma conduta ética?

O primeiro argumento para responder ao questionamento acima vem do próprio Skinner (1978) quando afirma que nem todo comportamento selecionado é benéfico para o indivíduo, para o grupo ou para a espécie. Assim, uma das funções do analista do comportamento seria a de alterar padrões de comportamento quando eles se mostram maléficos ao indivíduo, ao grupo ou à espécie (Skinner, 1978). É obvio, entretanto, que na prática clínica, alterar esses padrões torna-se um grande desafio na medida em que o terapeuta irá propor a instalação e/ou a extinção de comportamentos que tendem a ser, pelo menos em curto prazo, punidos.

E a segunda parte do questionamento? É ético extinguir e instalar comportamentos considerados certo e errado, respectivamente, pelo grupo social? Trabalhar nesta direção não seria produzir mais sofrimento ao indivíduo que já está sofrendo? A partir de um caso clínico baseado em atendimento conduzido pela autora, esses questiona-mentos serão abordados.

Fernanda e Marcus namoram durante três anos, e um dos conflitos vivenciados na relação é que Fernanda afirma amar Marcus, mas ele desconfia de tal sentimento, pois Fernanda além de gostar do namorado, gosta de sair com os amigos e de fazer outros programas, mesmo que ele não vá ou desaprove. Fernanda descreve Marcus como uma pessoa extremamente ciumenta e afirma ter convicção de que não precisa demonstrar ciúme para evidenciar seu sentimento por ele, e que não deve mais ceder às pressões como sempre fez. Contudo, sofre com as reclamações dele e ainda de familiares e amigos que se posicionam a favor de Marcus e cobram dela que só faça programas com ele ou se ele permitir. Fernanda então passa a sair escondida de Marcus, esquivar-se de falar com amigos e familiares sobre o que pensa e faz no que se refere ao seu namoro. Em uma sessão, Fernanda chegou verbalizando que Marcus, mais uma vez, lhe disse que não entendia o seu amor e que ainda havia ameaçado terminar o namoro, caso ela continuasse a sair com os amigos. Fernanda, nessa ocasião, referindo sentimento de culpa pelas mentiras e omissões de suas saídas, questionou a terapeuta se de fato estava agindo certo, uma vez que todos lhe diziam que estava errada.

Diante desse caso, como um terapeuta analítico-comportamental, realizaria a intervenção? Ficaria a favor da cultura que tende a instalar os comportamentos de “grudar” no parceiro e a reagir diante do comportamento dele de reivindicar mais atenção e dedicação para si e para o que lhe é reforçador? Ou faria uma análise da cultura e questionaria se, realmente, esses comporta-mentos são saudáveis para o indivíduo e para a relação?

O que fiz e tenho feito é adotar a segunda opção. Trabalhando nessa direção, inicial-mente deixo o cliente confuso por estar questionando valores culturais propagados como certos. Fernanda, por exemplo, em várias sessões chegou a verbalizar o quanto era difícil se comportar de maneira diferente do seu grupo, porém, a estratégia de questionar algumas regras da cultura envolve a consideração do seu sofrimento, a valorização dos seus comportamentos adequados7 e, sobretudo, busca sua felicidade, uma vez que esta ocorre quando o comportamento é reforçado positivamente. Fernanda estava sob controle aversivo, o que explica seus comportamentos de mentir e sair sem que o namorado soubesse. Então, a conduta estaria sendo ética sim, uma vez que não haverá danos em longo prazo nem para a cliente, nem para seu parceiro. Além disso, enquanto indivíduos, dentre os direitos hu-manos básicos que possuímos está “O direito de fazer qualquer coisa enquanto não viole os direitos de outra pessoa” (Caballo, 1996, p. 371).

Na condução de casos como o descrito, é fundamental deixar claro para o cliente as conseqüências sobre o parceiro e à relação, uma vez que o parceiro pode continuar punindo os comportamentos adequados do cliente e até mesmo finalizar a relação. No caso de Marcus e Fernanda, este foi o desfecho, embora os conflitos envolvendo o ciúme dele e a ausência de ciúme dela não fossem as únicas dificuldades enfrentadas pelo casal.

 

Considerações Finais

Este artigo evidenciou que, enquanto os psicólogos evolucionistas centralizam sua interpretação no valor de sobrevivência para a espécie, analistas do comportamento incluem os papéis desempenhados pela ontogênese e cultura na instalação e manutenção do ciúme, não excluindo o valor de sobrevivência que o mesmo pode ter tido para os ancestrais humanos.

O estudo sobre o ciúme não é relevante apenas pelas diferenças e controvérsias teóricas envolvidas, mas também porque constitui uma problemática atual e freqüente no contexto clínico, sendo necessário examinar aspectos importantes que devem nortear a atuação do terapeuta analítico-comportamental quando estiver diante de uma queixa de ciúme trazida por seu cliente. Nesse sentido, diferentemente dos evolucionistas que sustentam que o ciúme se torna um problema se estiver ausente ou ocorrer em excesso, os analistas do comportamento precisam avaliar quando o ciúme está trazendo ou pode vir a trazer conseqüências prejudiciais ao indivíduo, partindo sempre de uma análise das possíveis conseqüências.

A cultura parece ser um aspecto central para construção de uma teorização e intervenção clínica consistentes acerca do ciúme, cabendo ao analista do comportamento assumir uma avaliação crítica diante de padrões estabelecidos culturalmente, mas que nem sempre têm se mostrado benéficos para seus membros.

As argumentações feitas pelos psicólogos evolucionistas são difíceis de serem testadas empiricamente, assim como muitas argumentações feitas neste artigo também carecem de sustentação empírica não passando de um exercício de interpretação. Exercício que consistiu no passo inicial para uma pesquisa futura, uma vez que existem poucos estudos verificando se o ciúme fortalece ou enfraquece a relação, havendo “pouca evidência de que o ciúme é benéfico” (Sheets, Fredendall & Claypool, 1997, p. 395).

 

 

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Recebido em: 13/09/04
Primeira decisão editorial em: 27/12/04
Versão final em: 06/02/05
Aceito em: 10/02/05

 

 

1 Trabalho apresentado durante o XIII Encontro Brasileiro de Psicoterapia e Medicina Comportamental e II Congresso Internacional da Association Behavior Analysis, em agosto de 2004.
2 Mestre em Psicologia: Teoria e Pesquisa do Comportamento - A autora agradece ao prof. Ms Tony Nelson pela disponibilidade em redigir o abstract. e-mail: naza@ufma.br e naza.pc@ibest.com.br
3 As aspas nas palavras normal e patológico servem para lembrar ao leitor que a discussão sobre o tema ainda está em aberto na Psicologia (Bock, Furtado & Teixeira, 1999) e, no que diz respeito à Análise do Comportamento, um comportamento nunca é concebido como patológico, uma vez que tem uma função para o indivíduo (Matos, 1999).
4 Até o momento, não foram encontradas divergências entre teóricos evolucionistas no que se refere à compreensão do ciúme.
5 Amor verdadeiro, segundo Buss (2000), sugere que seja aquele no qual existe compromisso e investimento na relação.
6 A análise proposta por Skinner para os eventos privados inclui tanto os sentimentos, como as emoções; por este motivo, eles são tratados neste artigo como sinônimos.
7 Os termos comportamentos adequados e comportamentos saudáveis estão sendo usados como sinônimos com base na definição de Costa (2002) que os compreende como comportamentos que produzem conseqüências reforçadoras para o indivíduo e/ou para outros em longo prazo.