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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

Print version ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.12 no.1-2 São Paulo June 2010

 

ARTIGOS

 

Avaliação da depressão em pacientes com lesão medular

 

Evaluation of depression in patients with spinal cord injury

 

 

Maria Inês Gandolfo Conceição1; Juliana Cal Auad1; Lísian Vasconcelos1; Antonia Macêdo1; Renata Bressanelli1

Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

Estudos contradizem a crença de que toda pessoa com lesão medular sofre de depressão. Para dimensionar o problema e subsidiar intervenções clínicas em contextos de reabilitação, investigouse o nível de depressão por meio do "Inventário Beck de Depressão" em 125 pacientes lesados medulares internados em hospitais de reabilitação; com idade entre 17 e 63 anos. Destes, 36,8% apresentaram depressão moderada a grave e 35,2%, leve a moderada. Não houve diferenças significativas quanto ao nível de depressão, tempo e tipo de lesão. Além da depressão, constataramse diversas reações emocionais em diferentes pacientes com sequelas semelhantes. Sugere-se investigar a co-morbidade da depressão com outras doenças e desenvolver instrumentos de avaliação que retirem itens com baixo poder discriminativo entre depressão e lesão medular do inventário Beck.

Palavras-chave: Depressão; Traumatismo raquimedular; Reabilitação; Transtornos de adaptação.


ABSTRACT

Studies contradict the belief that everyone that has spinal cord injury (SCI) suffers from depression. This study aims to investigate the level of depression in patients with SCI using the Beck Inventory of Depression with the aim of assessing the scale of the problem and providing clinical intervention in the context of rehabilitation. The inventory was applied to 125 SCI inpatients, between 17 and 63 yearsold, being treated in a rehabilitation hospital. Of these, 36.8% suffered moderate to severe depression and 35.2% experienced mild to moderate depression. There was no significant difference in terms of the level of depression, the type of lesion and the duration. In addition to depression, a variety of emotional reactions were observed in different patients with similar sequelae. Research should be conducted to investigate the comorbidity of depression with other illnesses and develop instruments to evaluate depression that eliminate items with low discriminative ability between depression and SCI in the Beck inventory.

Keywords: Depression; Spinal cord injury; Rehabilitation; Adjustment disorders.


 

 

Nas últimas décadas, em nosso país, vem se delineando um triste quadro de incremento da violência urbana, que tem como principais vítimas, a população jovem de sexo masculino. De acordo com dados do IV Mapa da Violência da Unesco (Waiselfisz, 2004), acidentes relacionados a transportes são responsáveis por 15,6% dos óbitos juvenis e os suicídios, por 3,4%. Juntando aos homicídios, estas três causas são responsáveis por mais da metade (59%) das mortes dos jovens brasileiros. Além destas vítimas fatais da violência, outra grande porcentagem de jovens passa a ter sua existência definitivamente marcada pelos mais diversos tipos de sequelas resultantes de lesões neurológicas, dentre as quais, lesão medular e traumatismo crânio-encefálico.

A lesão das estruturas medulares pode ocorrer em consequência de um trauma - acidentes automobilísticos, mergulho, agressão com arma de fogo ou queda, por exemplo. Ou pode ter origem não traumática, em doenças como hemorragias, tumores e infecções por vírus. A gravidade da lesão depende da extensão da interrupção e da localização que, por sua vez, determinarão quais as funções do corpo ficaram comprometidas. Dependendo do nível da lesão, esta pode resultar em paraplegia ou tetraplegia. A gradação do comprometimento da lesão pode ser avaliada por meio da escala ASIA (American Spinal Injuries Association, 1992), que classifica a lesão medular de acordo com padrões internacionais.

Segundo uma pesquisa realizada pela rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006), entre fevereiro de 1999 e janeiro de 2000, a população de lesados medulares atendidos nessa rede nacional de hospitais de reabilitação caracterizouse por ser composta, em sua maioria, de adultos jovens, do sexo masculino (75,9%), solteiros (51,0%), com escolaridade até o ensino fundamental (54,3%) e residentes em área urbana (90,7%). As principais vítimas foram adolescentes e adultos jovens, concentrandose entre 15 e 39 anos de idade (68,0%). A idade média da população investigada foi de 28,9 anos (desvio padrão de 15,7 anos). Os acidentes de trânsito (38,5% dos casos) foram a primeira causa de internação, seguida de quedas (15,6%) e em terceiro lugar, as agressões por arma de fogo (13,2%) e os acidentes em prática de esporte (11,9%).

As consequências de uma lesão medular não se limitam à esfera motora. Seus efeitos estendemse sobre praticamente a todas as funções vitais do indivíduo. A lesão medular traz inúmeras consequências para a pessoa, sua família, amigos e para a sociedade como um todo. Existem custos emocionais incomensuráveis como consequência de uma lesão na medula. De uma hora para outra, a pessoa que era ativa, independente e autosuficiente nos seus cuidados, tornase imobilizada, sem controle de suas funções corporais e dependente dos outros para satisfazer suas necessidades básicas (Hammell, 1995). Durante o período inicial após a lesão medular, o indivíduo experimenta uma mudança drástica em quase todos os aspectos de sua vida. As respostas esperadas nesse período são as reações de uma pessoa frente a uma crise, que podem incluir: breve período de ausência da realidade e anestesia, distúrbios do sono, do apetite, da digestão, tensão muscular, dores, ansiedade e depressão, problemas de raciocínio, julgamento e concentração, evitação do problema, preocupação, raiva, vergonha e culpa. Essas respostas podem ficar exacerbadas com as intervenções médicas e ambientais que são realizadas durante o manejo da crise, como no caso de pacientes que precisam ficar imobilizados com uma tração cervical ou traqueostomizados e, portanto, com dificuldade de fala. Os sentimentos de desamparo e medo são exacerbados por causa de uma série de desconhecimentos sobre seu ambiente imediato. A dor, a fadiga, o isolamento e as medicações podem comprometer e sobrecarregar suas habilidades de enfrentamento. No esforço de administrar o stress, o paciente pode regredir temporariamente ou tentar se reestruturar para recuperar o controle da situação, por meio de atitudes como resistência à medicação ou às recomendações fisioterápicas. A instabilidade emocional, as inseguranças, os comportamentos de raiva, a regressão e a negação também podem se manifestar durante esse estágio (Hammell, 1995).

A depressão, segundo o DSMIV, é caracterizada essencialmente por um período de humor deprimido ou perda de interesse ou prazer por quase todas as atividades. O indivíduo também pode experimentar pelo menos quatro dos sintomas adicionais: alterações no apetite ou peso, sono e atividade psicomotora; diminuição da energia; sentimentos de desvalia ou culpa; dificuldades para pensar, concentrarse ou tomar decisões, pensamentos recorrentes sobre morte ou ideação suicida, planos ou tentativas de suicídio. O episódio é acompanhado por sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou outras áreas importantes da vida do indivíduo. O número e a gravidade dos sintomas permitem determinar três graus de um episódio depressivo: leve, moderado e grave. No primeiro deles, o paciente usualmente sofre com a presença dos sintomas, mas provavelmente será capaz de desempenhar a maior parte das atividades. No grau moderado, o paciente aparentemente tem muita dificuldade para continuar a desempenhar as atividades de rotina. Já na depressão grave, vários dos sintomas são marcantes e angustiantes - tipicamente a perda da autoestima e ideias de desvalia ou culpa, as ideias e os atos suicidas são comuns e observa-se, em geral, uma série de sintomas somáticos. Essa última pode, ainda, ser acompanhada de sintomas psicóticos (Dornelles, 2002).

O momento após a lesão medular costuma incluir muitos sintomas parecidos aos da depressão. A lesão pode impedir a pessoa de se engajar em muitas atividades antes tidas como comuns e pode tornar o trabalho ou a conclusão de algumas atividades mais difíceis. Problemas para dormir, alterações no apetite e na mobilidade, perda de peso, disfunção sexual e autoimagem negativa podem ser decorrentes da lesão (Elliot, 2003; Radnitz & cols., 1997). A lesão medular crônica leva o indivíduo a ter que lidar diariamente com as barreiras impostas por uma sociedade despreparada para a inclusão de pessoas com necessidades especiais. Além disso, esse indivíduo experimenta constantes frustrações e desprazeres associados aos problemas físicos resultantes da lesão medular (Craig, Hancock & Dickson, 1994).

Embora a depressão entre aqueles que sofreram uma lesão medular seja a variável psicológica mais estudada, discutida e relatada pela literatura (Elliot, 2003; Tate, Forchheimer, Maynard & Dijkers, 1994), muitos abusos vêm sendo cometidos em função de se atribuir indiscriminadamente tal quadro a todos aqueles que se encontram nessa situação. Dessa forma, não se permite que uma série de outras reações emocionais, adaptativas ou não, possam se manifestar durante o processo de reabilitação.

A literatura que trata sobre as consequências psicológicas de uma lesão medular, indica que não há um consenso entre os resultados de pesquisas. Alguns estudos concluem que a morbidade psicológica é uma consequência inevitável da lesão medular. Outros afirmam que não há concordância entre as impressões clínicas e as pesquisas empíricas (Dijkers & Cushman, 1990; Hancock, Craig, Dickson, Chang & Martin, 1993) e criticam a inadequação metodológica de tais pesquisas e de suas conclusões tênues. Outra crítica que tais estudos vêm recebendo diz respeito às dificuldades metodológicas que não permitem uma diferenciação entre sintomas depressivos e a depressão (Judd, Brown & Burrows, 1991).

Nesse sentido, resultados de estudos indicam que pacientes com lesão medular são semelhantes à população em geral, quanto ao humor depressivo (Cushman & Dijkers, 1990; Tate & cols, 1994), inclusive há estudos sobre o humor de pessoas com lesão medular aguda que mostram que a depressão é menor entre estes, do que em relação os visitantes do hospital (Hammell, 1995). Uma pesquisa realizada com pacientes que investigou a depressão entre lesados medulares de centros de reabilitação em Michigan, aponta que os principais escores não sugeriram depressão e as correlações entre classificação neurológica da lesão e depressão/stress foram insignificantes (Tate & cols, 1994). Estudos indicam que a prevalência de episódios de depressão maior entre pessoas com lesão medular recente varia ente 10 a 30% (Hammell, 1995). No entanto, alguns membros da equipe de reabilitação frequentemente aderem à ideia de que os distúrbios psicológicos são maiores em lesões mais altas, do que entre pessoas com paraplegia ou lesões incompletas, mesmo quando as pesquisas apontam que não há relação entre o nível de lesão e de dependência física e a depressão (Hammell, 1995). Outros estudos sugerem que os membros staffs tipicamente superestimam os níveis de humor depressivo entre os pacientes (Cushman & Dijkers, 1990). Por outro lado, a acurácia em estimar o humor de pacientes não aumenta com a exposição do profissional ao paciente (Dijkers & Cushman, 1990), nem com os anos de experiência em reabilitação (Cushman & Dijkers, 1990; Dijkers & Cushman, 1990).

Ainda que seja polêmica a questão sobre a inexorável ocorrência de depressão após a lesão medular, parece haver um consenso entre os estudiosos, quanto à força preditiva de algumas variáveis na depressão. Histórico de depressão prévia à ocorrência da lesão (Dryden & cols., 2005) e co-morbidade principais fatores de risco para a depressão. Já os fatores de proteção encontrados pelos estudos são suporte social (Boekamp, Overholser & Schubert, 1994; Fuhrer, Rintala, Hart, Clearman & Young, 1993), integração social e ocupação (Fuhrer & cols., 1993).

No passado, a literatura psicológica era dominada pela 'teoria de estágios', que compara as reações emocionais de uma pessoa frente a uma nova deficiência, com aquelas de pessoas diante da morte, inspirada na teoria de KublerRoss (1994). A teoria dos estágios de ajustamento fez parte dos dogmas de reabilitação durante duas décadas. Nos anos recentes, a literatura desafiou esta teoria de estágios enfatizando a tremenda variedade de respostas emocionais de uma pessoa diante de uma lesão medular. Parece ser um pouco temeroso atribuir emoções a outras pessoas sem uma avaliação adequada e se partindo do pressuposto de que as pessoas que tiveram uma lesão medular pertencem a um grupo homogêneo. É preciso lembrar que a população de pessoas portadoras de lesão medular é heterogênea e possui grande variedade de características psicológicas, sociais e demográficas, que já diferiam, mesmo antes de sofrerem a lesão medular (North, 1999).

Alguns autores chegavam a afirmar que, se uma pessoa com lesão medular recente não parece deprimida, então, o que está realmente acontecendo é que ela está negando a perda funcional e as implicações sociais da perda (Hammell, 1995). Ou seja, a implicação inerente a esta afirmativa é que todas as pessoas com lesão medular aguda devem estar irremediavelmente deprimidas ou em um estado de negação. Essa categorização de todos os pacientes em dois grupos de distúrbios psicológicos, não permite que uma grande diversidade de reações emocionais sejam experimentadas por um grupo diferente de pacientes, com diferentes contextos sócioeconômicos e culturais (Conceição, 2000).

Entretanto, uma compreensão geral das variáveis de ajustamento pode aumentar a sensibilidade dos profissionais de reabilitação, para alguns assuntos subjacentes que o paciente está confrontando após a lesão medular e as possíveis manifestações comportamentais. Uma pessoa pode oscilar entre sentimentos de desamparo e pânico, desapego e pensamentos construtivos. No seu esforço de se adaptar, ele deve procurar o significado do que aconteceu em sua vida e tentar recuperar a condução sobre sua vida. Por outro lado, a tristeza e a aflição são respostas normais a eventos dolorosos, tais como, ameaças de vida e incapacitação, mas devem ser diferenciados de síndromes de depressão clínica (Judd & cols., 1991). Alguns estudos concluíram que pessoas, que manifestaram menos afetos depressivos durante a reabilitação, tiveram resultados mais bemsucedidos, ou seja, pessoas que exibiram sinais mínimos de depressão depois da lesão, tenderam a funcionar melhor durante a reabilitação e após a alta. Outros estudos também sustentam que a ausência de depressão, logo após a lesão, não prediz um ajustamento pobre frente à deficiência. De fato, a depressão clínica verdadeira ocorre somente em uma pequena porcentagem de pacientes (Hammell, 1995).

Faz-se necessário, portanto, um efetivo dimensionamento do problema entre as pessoas com lesão medular, com o intuito de melhor subsidiar as equipes de programas de reabilitação. O objetivo da presente pesquisa foi avaliar os níveis de depressão de pacientes portadores de lesão medular internados em hospital de reabilitação com diferentes níveis, classificações e tempos de lesão por meio de um dos instrumentos mais utilizados na clínica e pesquisa, ou seja, o "Inventário Beck de Depressão".

 

Material e Método

Participantes

Participaram do estudo 125 participantes portadores de lesão medular, internados em um programa de reabilitação de um hospital da rede pública do Distrito Federal que atende pacientes de todos os estados do Brasil. Todos os pacientes portadores de lesão medular internados naquele programa de reabilitação, no período de coleta de dados, foram convidados a participar do estudo. Aproximadamente 3% dos pacientes abordados não participaram da pesquisa, alguns porque se recusaram a participar, outros por não se encontrarem em condições ou de compreender as instruções da escala.

A amostra foi composta de 89 homens e 36 mulheres. A média de idade dos participantes foi de 29,70 anos (idades entre 16 e 63 anos) e desviopadrão de 10,24 anos. A maioria dos participantes (70,4%) havia sofrido a lesão a menos de 12 meses; 12,8% entre 13 e 24 meses, 9,6% entre 25 e 56 meses; e 7,2% a mais de 100 meses. A Figura 1 permite visualizar a distribuição do tempo de lesão entre os participantes deste estudo.

 

 

Quanto ao nível da lesão, 72,8% dos participantes eram paraplégicos; 22,4%, tetraplégicos. Dos participantes, 67,2% tinham lesão classificada como completa, 26,4%, incompleta e 6,4% tinham lesão não-traumática.

Em relação às causas de lesão traumática, o acidente automobilístico foi a mais frequente (45,6%), seguido de projétil de arma de fogo (28%), queda (13,6%) e mergulho em águas rasas (6,4%). A Figura 2 apresenta as causas de lesão desta amostra.

 

 

Instrumento

Para avaliar o índice de depressão dos participantes utilizouse o "Inventário Beck de Depressão", composto de 21 itens. Os itens do inventário referemse à tristeza, pessimismo, sensação de fracasso, falta de satisfação, sentimento de culpa, sensação de punição, autodepreciação, autoacusação, ideias suicidas, crises de choro, irritabilidade, retração social, indecisão, distorção da imagem corporal, inibição para o trabalho, distúrbio do sono, fadiga, perda do apetite, perda de peso, preocupação somática e diminuição da libido. Os itens eram respondidos de acordo como a pessoa vinha se sentindo em um período recente, utilizando uma escala de quatro pontos (0 a 3), sendo que os significados (âncoras) desses pontos eram diferentes para cada pergunta (Beck, Ward, Mendelson, Mock & Erbaugh, 1961).

O manual do "Inventário Beck de Depressão" indica quatro possíveis diagnósticos, definidos a partir da soma total da resposta dos participantes a todos os itens do questionário. Os dados obtidos foram interpretados segundo a gravidade da depressão, utilizandose os pontos de corte: menos de 11 pontos: sem depressão ou depressão mínima; entre 12 e 19 pontos: depressão leve a moderada; entre 20 e 35 pontos: depressão moderada a grave; entre 36 e 63 pontos: depressão grave (Beck, Steer & Garbin, 1988).

 

Procedimentos

Os dados demográficos e aqueles relacionados à patologia dos participantes da pesquisa foram extraídos de seus respectivos prontuários. Os dados foram coletados entre janeiro e outubro de 1999.

O inventário foi aplicado pela psicóloga que acompanhava os pacientes internados em programa de reabilitação. A aplicação foi realizada individualmente. Utilizaramse dois inventários: um ficava com o participante e o outro, com a aplicadora. A pesquisadora lia o inventário e assinalava as respostas do participante. Quando o participante não compreendia a questão, a mesma era relida. Persistindo a dúvida, deixavase a questão em branco e se passava para a questão seguinte. Depois da aplicação do questionário, todos os participantes receberam acompanhamento psicológico e o instrumento ofereceu subsídios para intervenções futuras.

O convite a responder o inventário era feito ao final de uma entrevista psicológica e, após o consentimento, a aplicação do inventário era agendada. À época em que o estudo foi realizado, não passou por comitê de ética, mas obteve-se o consentimento livre e esclarecido de cada paciente (Resolução 196/96 do CNS/MS, 1996).

 

Análise de Dados

A análise dos dados foi feita utilizandose o aplicativo Statistical Package for the Social Science (SPSS) versão 12.0. Para descrever as respostas dos pacientes foram realizadas análises de frequência, análises de medida central e análises de dispersão. Utilizouse crosstabs para relacionar os escores de depressão obtidos no inventário com variáveis sócio-demográficas e informações sobre o quadro clínico do paciente.

Foi realizado 'Teste T independente', com o objetivo de avaliar possíveis diferenças nos níveis de depressão, dependendo do nível de lesão do paciente (tetraplegia e paraplegia). Não foi possível realizar análise de variância - ANOVA, pois a amostra não atendia um importante pressuposto deste teste: número de casos por grupo. Algumas características da amostra desse estudo não têm muitos representantes, por exemplo, apenas oito participantes apresentaram como etiologia, mergulho em águas rasas.

 

Resultados

De forma geral, as médias das respostas aos itens do instrumento foram baixas, variaram entre 0,23 e 1,38. As menores médias foram para os itens sobre interesse nas outras pessoas, ideações suicidas, perspectivas em relação ao futuro e fracasso. As maiores médias foram obtidas nos itens referentes à irritabilidade, preocupação com a saúde e perda de peso. É importante destacar que nesse instrumento, quanto maior a média, maior a gravidade da depressão.

A maioria dos desviospadrão encontrados foi elevada, acima de 0,75. Esse dado nos levou a realizar análise da moda e da mediana, para avaliar os itens com maiores dispersões. A maior parte dos itens teve moda igual a zero, com exceção dos itens sobre dificuldade de trabalhar, cansaço e preocupação com a saúde, para os quais a moda foi igual a um. A análise da mediana indicou que a maioria das medianas foi igual a zero, com exceção dos itens relacionados à satisfação, choro, irritabilidade, dificuldade de trabalhar, hábitos de sono, cansaço, perda de peso e preocupação com a saúde, que foram iguais a um. Os baixos índices encontrados nas respostas aos itens indicam que a amostra não apresenta depressão. Na Figura 3, apresentamse os dados encontrados na amostra estudada.

 

 

 

 

Em relação ao nível de lesão, observa-se uma distribuição semelhante entre os lesados medulares com tetraplegia e paraplegia. Nos dois casos, a maioria dos diagnósticos enquadra-se como depressão leve a moderada, 39,29% e 36,26%, respectivamente. Os lesados nãotraumáticos tiveram, em sua maioria, depressão moderada a grave (66,67%). A Figura 5 ilustra os dados apresentados.

 

 

A análise do 'Teste T independente', comparando o nível de depressão entre tetraplégicos e paraplégicos, atribuiu um nível de significância maior que 0,05, para todos os itens do inventário e para o escore total. Esse resultado indica que não há diferença estatisticamente significativa entre tetraplégicos e paraplégicos, ou seja, não foi observada relação direta entre o nível de depressão e o nível da lesão.

 

Discussão e Conclusão

A partir da análise de cada item e do total de pontos verificados em cada questionário, observouse que a maioria da amostra apresentou depressão moderada a grave, contrariando os achados de pesquisa (Dryden & cols., 2005; Hammell, 1995; Tate & cols., 1994), em que os resultados não indicaram depressão entre os participantes. Corroborando o senso comum, os resultados indicam que a maioria dos participantes apresenta depressão moderada a grave. Entretanto, esses resultados não permitem concluir que a depressão entre esses pacientes deva ser vista como um acontecimento inevitável, pois é necessário que mais estudos sejam desenvolvidos para corroborar esses dados.

Não foram notadas diferenças estatisticamente significativas, quando se comparou o tempo de lesão com o nível de depressão. Esse é mais um indicador da necessidade de futuros estudos, pois outros fatores podem estar afetando os níveis de depressão, como as dificuldades enfrentadas para a reinserção na sociedade, tendo em vista que o tempo de lesão na amostra foi muito heterogêneo.

Também não foram observadas diferenças estatisticamente significativas em relação ao tipo de lesão. Dessa forma, mesmo que a tetraplegia implique em mais limitações físicas para o indivíduo, isso não implica em diferenças nos níveis de depressão do lesado medular. Isto, por sua vez, atesta que nem sempre o sofrimento psíquico está diretamente associado à extensão do dano físico. Por outro lado, cabe hipotetizar que a lesão em si, independente do tipo, é uma provável causa de depressão ou, ainda, que a característica aguda da amostra, ou seja, o tempo de lesão pode ser uma das variáveis que iguala o nível de expectativa, em ambos os casos.

É importante destacar que, quando se utiliza o inventário Beck de depressão em pacientes com problemas médicos, a validade dessa medida pode ser questionada, uma vez que alguns dos itens dos aspectos somáticos da desordem podem ser decorrentes da doença, e não de depressão (Judd & cols., 1992; Radnitz & cols., 1997). No caso de lesão medular, os itens que investigam perda de peso, mudança de imagem corporal, dificuldade de trabalhar e preocupação com a saúde são apontados como pouco discriminativos. Ou seja, não se sabe se esses itens apresentam altos escores por causa da depressão ou por causa da lesão. No corrente estudo, os itens preocupação com a saúde e perda de peso apresentaram médias mais altas, os itens dificuldade de trabalhar e preocupação com a saúde apresentaram a moda mais alta e as questões sobre dificuldade de trabalhar, perda de peso e preocupação com a saúde apresentaram as maiores medianas. Esses resultados devem ser, então, relativizados, pois os escores podem ser decorrentes da lesão medular e não de provável depressão.

Essas considerações sobre a limitação da utilização do inventário em pacientes hospitalizados relativiza os níveis de depressão encontrados, pois os índices podem ter sido altos devido aos itens destacados anteriormente. Sugere-se que novos estudos utilizem outros métodos para avaliar depressão em lesados medulares. Seria oportuna uma adaptação da escala Beck para pacientes hospitalizados, em que sejam consideradas as especificidades dessa população.

Uma escala que tem sido referida na literatura como capaz de eliminar a interferência de algumas dessas variáveis é a "Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (HADS)". O ponto, que distingue a HDAS das demais escalas, é a exclusão de todos os sintomas de ansiedade ou de depressão relacionados com doenças físicas. Nessa escala não figuram itens como perda de peso, anorexia, insônia, fadiga, pessimismo sobre o futuro, dor de cabeça e tontura, etc., que poderiam também ser sintomas de doenças físicas (Marcolino & cols., 2007). Por outro lado, seria importante testar a escala em uma ampla amostra de pessoas com lesão medular, a fim de validála. Uma apreciação rápida e superficial do instrumento sugere uma delicada revisão de questões, tais como a questão A7: 'Consigo ficar sentado à vontade e me sentir relaxado', tendo em vista que, entre a referida população, a opção de estar sentado nem sempre é uma questão de escolha.

Entre as limitações encontradas nesse estudo, ressaltase que na amostra houve poucas pessoas com mais de 24 meses de lesão, o que impossibilitou uma análise inferencial válida da relação entre o tempo de lesão e o nível de depressão. Por sua vez, a pesquisadora que coletou os dados era a psicóloga que realizava o acompanhamento psicológico dos participantes. Portanto, o vínculo estabelecido anteriormente pode ter influenciado as respostas dos pacientes. Nesse sentido, optouse por um compromisso ético de prestar uma maior assistência psicológica àqueles pacientes que apresentaram altos níveis de depressão, em detrimento de incorrer em possível viés metodológico.

Sugere-se que pesquisas futuras investiguem a co-morbidade da depressão com outras doenças em lesados medulares e que sejam desenvolvidos instrumentos de avaliação de depressão, que retirem itens com baixo poder discriminativo entre depressão e lesão medular. Essas sugestões visam a um diagnóstico mais preciso de depressão entre essa população. Propõese ainda, que seja analisada a relação entre modos de enfrentamento e níveis de depressão para investigar se existe relação entre essas duas variáveis.

Não obstante os resultados tenham indicado um alto nível de depressão entre os pacientes, recomendase que se abandonem velhos paradigmas e que se reflita melhor sobre a postura de determinados profissionais e familiares que se apóiam em teorias que apregoam que a vivência de um trauma como esse, leva sua vítima a reagir à mesma por meio de estágios, nos quais, a depressão é invariavelmente um deles e sua ausência, uma negação. Pensamentos, a priori por parte dos membros da equipe, conduzem a interpretações sobre o comportamento do paciente, de acordo com a ideologia que prevalece entre os profissionais. Neste caso concreto, reflete a teoria de que a depressão é uma fase necessária à adaptação de uma lesão medular e, perversamente, o otimismo entre estes pacientes não é muito bem aceito pela equipe. As pessoas com lesão medular aguda e que estão se adaptando às mudanças circunstanciais estão muito mais atentas e influenciadas pelas atitudes dos profissionais de saúde. As atitudes e comportamentos dos membros da equipe exercem um efeito poderoso sobre as respostas do indivíduo, frente à sua lesão.

Parece pouco convincente acreditar que a lesão produza a mesma resposta em um grupo heterogêneo de pessoas. Na realidade, a única coisa que as pessoas com lesão têm em comum é a sua deficiência física. Em suma, é muito arriscado aplicar teorias rígidas, na tentativa de ajustar a pessoa ou o tratamento à teoria, ao invés de usar a teoria para auxiliar na interpretação das reações que estão sendo observadas. Ideias preconcebidas, a respeito das respostas típicas à lesão medular traumática, podem servir para distorcer a interpretação do que realmente está acontecendo (Hammell, 1995).

Por sua vez, é preciso ter em conta que a incapacidade resultante de uma lesão medular decorre das barreiras físicas e sociais que o indivíduo encontra depois da lesão, portanto, a incapacidade está no ambiente, e não no indivíduo (Tates & cols., 1994). Quando esta incapacidade é imposta e revertida em desfavor da pessoa com limitações físicas, é mais do que esperado que ela reaja com tristeza e desânimo frente às frustrações e impotências. Nossa realidade social lamentavelmente não se equipara à dos países nortehemisféricos, nos quais existem políticas efetivas de remoção de barreiras arquitetônicas e adaptações físicas, bem como, programas de reinserção social e laboral, o que torna as referidas barreiras menos insidiosas. Talvez por isso, os resultados das pesquisas citadas (Dryden & cols., 2005; Hammell, 1995; Tate & cols., 1994) realizadas nesse contexto mais favorável ao indivíduo com necessidades especiais - retratem um quadro mais otimista do que os encontrados neste estudo, no que diz respeito aos níveis de depressão entre lesados medulares. A carência de recursos adaptativos, que a sociedade não busca suprir, faz com que, muitas vezes, por causa dos obstáculos, a pessoa com dificuldades de locomoção se sinta incapaz de exercer seu pleno direito de ir e vir.

 

Referências

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Recebido em: 03/05/2008
Aceito para publicação em: 11/08/2010

 

 

1 Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Caixa Postal 04500, 70.910900, Brasília, DF, Brasil. Email: inesgand@unb.br