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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.13 no.1 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Relações entre depressão e contingências culturais nas sociedades modernas: interpretação analítico-comportamental*, **

 

Relations between depression and cultural contingencies in modern societies: a behavioral analytic account

 

 

Darlene Cardoso FerreiraI; Emmanuel Zagury TourinhoII

IMestranda em Teoria e Pesquisa do Comportamento
IIDoutor em Psicologia Programa de Pós-graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento Universidade Federal do Pará

Endereço

 

 


RESUMO

Na análise do comportamento, a depressão tem sido definida com a referência a um conjunto de relações envolvendo variáveis ontogenéticas e culturais. Este trabalho salienta, a partir de uma interpretação analítico-comportamental, variáveis culturais que definem como a depressão se configura em sociedades individualizadas. Apresenta-se, inicialmente, uma síntese da abordagem analítico-comportamental para a depressão. Em seguida, discute-se a depressão à luz de um modelo de complexidade, com base no qual é concebida em termos das relações que a constituem. Assinala-se que a participação de relações determinadas por variáveis culturais confere maior complexidade ao fenômeno, refletindo sobre os tipos de intervenção necessários. Finalmente, são elencados aspectos centrais do processo de individualização, indicando-se como arranjos de contingências específicas das sociedades modernas, individualizadas, promoveram modos específicos de relação dos indivíduos consigo mesmos e com os outros, determinando a aquisição e manutenção de certos repertórios comportamentais classificados como depressão.

Palavras-chave: depressão; análise do comportamento; modelo de complexidade; processo de individualização.


SUMMARY

In Behavior Analysis, depression was defined with reference to a set of relations, produced by ontogenetic and cultural variables. Based on a behavior-analytic account, this article focus on cultural variables that define the features of depression in individualized societies. First, a synthesis of the behavior-analytic approach to depression is presented. Then, depression is considered in the light of complex behavioral phenomena, and conceived in terms of the relations that constitutes each of its occurrences. It is emphasized that the relations determined by cultural variables makes depression a more complex phenomenon, which reflects on the necessity of different therapeutic interventions. At last, some aspects of the individualization process are pointed out, in order to indicate how specific contingencies arrays from modern, individualized societies promoted specific patterns of relationship between the subjects with themselves and with others, which determine the acquisition and maintenance of certain behavioral repertoires classified as depression.

Key words: depression; behavior analysis; complexity of behavioral phenomena; individualization process.


 

 

O fenômeno da depressão, nas sociedades modernas, é abordado sob enfoques diversos. Em geral, nos meios não-científicos, a depressão é vista como uma espécie de transtorno mental, manifestado através de sintomas. Atribui-se à personalidade do indivíduo uma "natureza" depressiva, às vezes como característica inata, carregada desde o nascimento.

A diversidade de componentes relacionados à depressão tem levado alguns autores a uma compreensão diferenciada do fenômeno, considerando a participação de variáveis dos três níveis de variação e seleção indicados por Skinner (1981). Neste trabalho, discutiremos uma interpretação analítico-comportamental para depressão, a partir da qual serão ressaltadas variáveis culturais que definem a forma como este fenômeno existe em sociedades individualizadas como a nossa.

Nos próximos parágrafos, apresenta-se uma síntese sobre o modo como a depressão vem sendo abordada por autores analistas comportamentais. A finalidade desta introdução é fornecer bases para um entendimento da depressão enquanto fenômeno do qual podem fazer parte variáveis diversas.

A depressão tem sido abordada por vários estudos de caráter analítico- comportamental (eg.: Dougher & Hackbert, 1994; Fester, 1973, 1979; Hunziker, 2001; Kanter, Callaghan, Landes, Busch & Brown, 2004). Estes trabalhos empregam conceitos bem estabelecidos empiricamente e contemplam variados aspectos relacionados à depressão. O processo de extinção é focalizado por Fester (1973,1979); funções consequenciais, respondentes e estabelecedoras, além de influências culturais e processos verbais são descritos por Dougher e Hackbert (1994); efeitos da exposição a estímulos aversivos incontroláveis são investigados por Hunziker (2003, 2005). Estas linhas de estudo podem ser entendidas como complementares e promovem uma compreensão ampla do fenômeno.

Tanto Fester (1973, 1979) quanto Dougher e Hackbert (1994), por exemplo, ressaltam o papel da ex-tinção na ocorrência de respostas identificadas como depressivas. Além disto, também os três autores assumem a função negativamente reforçadora - na forma de fuga/esquiva - que determinadas respostas características da depressão podem adquirir.

No que concerne à punição, ao indicarem frequentes relatos de clientes envolvendo exposição a uma história de punição prolongada e inevitável, Dougher e Hackbert (1994) fornecem um paralelo com o modelo do desamparo aprendido (Overmier & Seligman, 1967; Maier & Seligman, 1976; Seligman & Maier, 1967). Este modelo, investigado sob uma perspectiva analítico-comportamental por Hunziker (2001a, 2005), propõe que a exposição experimental de sujeitos a eventos aversivos incontroláveis dificulta a aprendizagem de respostas adaptativas a novas contingências e produz alguns padrões de comportamento comparáveis àqueles classificados como depressão em contextos reais.

O estudo destas propostas permite-nos vislumbrar a depressão como um fenômeno multifacetado. Embora não se tenha um modelo explicativo único da depressão na análise do comportamento - e a discussão da (im)possibilidade de formulação deste modelo não está entre os objetivos do presente trabalho - é imprescindível em qualquer explicação analítico-comportamental que se compreenda a depressão como um fenômeno complexo, que pode envolver várias relações comportamentais, em diferentes níveis de complexidade.

O tópico a seguir aborda o modelo de complexidade proposto por Tourinho (2006a), a partir do qual a depressão é concebida em termos das relações que a constituem, localizando-a ao longo de um continuum conforme os níveis das variáveis incluídas. O segundo tópico focaliza características das relações interpessoais decorrentes do processo de individualização referido por Elias (1994) e certas condições sob as quais teve lugar este processo. Por fim, o último tópico aborda características da depressão específicas ao processo de individualização, assinalando como certas variáveis sociais/culturais são relevantes para a configuração atual deste fenômeno em sociedades ocidentais altamente individualizadas.

 

Modelo de Complexidade e Depressão

A complexidade de fenômenos comportamentais humanos relativos à privacidade pode ser entendida como função de sucessivos processos seletivos, os quais envolveriam variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais (Tourinho, 2006b). Esta perspectiva torna possível o delineamento de um continuum, em cujas extremidades estariam situados eventos comportamentais de complexidade distinta.

Em uma extremidade, encontrar-se-iam respostas limitadas por relações filogenéticas, sob controle de eventos que adquiriram funções de estímulos ao longo da evolução da espécie humana - Tourinho (2006b) ressalta que este seria um extremo hipotético, posto que nenhuma relação comportamental poderia, efetivamente, ser vista como produto exclusivo da filogênese. Na outra extremidade do continuum, estariam eventos comportamentais constituídos por relações produzidas pelos três níveis de variação e seleção: filogênese, ontogênese e cultura.

Nos pontos intermediários do continuum, verificar-se-iam fenômenos comportamentais "definidos em termos de relações mais ou menos complexas" (Tourinho, 2006b, p. 25). Neste sentido, afirma o autor, ao termo "complexidade" deve ser atribuída a idéia de "inclusão", na medida em que a ocorrência de um comportamento mais complexo envolveria um conjunto de variáveis oriundas dos três níveis - Tourinho (2006b) assinala que a complexidade não se refere ao processo de seleção (nível ontogenético mais complexo que o filogenético e menos complexo que o cultural), mas aos produtos comportamentais destes processos.

No caso específico da depressão, podemos ter um conjunto de relações envolvendo respostas fisiológicas condicionadas eliciadas quando da exposição de indivíduos a determinados esquemas, como punição (Dougher & Hackbert, 1994) e extinção (Dougher & Hackbert, 1994; Fester, 1973, 1979).

Por exemplo, um bom funcionário que perde o emprego por corte de gastos, poderá apresentar respostas comuns à depressão (ex: choro frequente, desânimo, inatividade, irritabilidade). Observaríamos, aqui, um fenômeno de relativamente baixa complexidade, do qual fariam parte respostas fisiológicas condicionadas produzidas por extinção, posto que nenhuma resposta do funcionário provocou sua demissão.

Imaginemos agora que este funcionário seja casado. Sua esposa o conforta sempre que se mostra choroso, apático ou mesmo irritado. Após a primeira tentativa não exitosa de procurar um novo emprego, ele passa a esquivar-se da busca. Além disto, diante da consequência positivamente reforçadora constituída pelas respostas de acolhimento da esposa, apresenta constantemente o padrão comportamental característico da depressão.

Por fim, suponhamos que o funcionário demitido seja casado com uma esposa rígida, educada em um meio social segundo o qual o homem deve ser inteiramente responsável pelo sustento da família, sem jamais fracassar. Esta esposa, em razão do desemprego do marido e de seu "estado debilitado", dirige-lhe impropérios e queixas constantemente, descrevendo-o como "incapaz", "inútil" e "fracassado". Consideremos também que seus amigos tenham crescido no mesmo meio social da esposa e passem a evitá-lo. A partir daí, ele próprio aprende a descrever-se como "incapaz", "inútil" e "fracassado".

Nos três exemplos elencados verifica-se a ocorrência de respostas identificadas como depressivas. Contudo, os arranjos de contingências que compõem cada um diferem nitidamente quanto às relações envolvidas e, portanto, quanto às instâncias de complexidade.

No primeiro caso, observa-se a ocorrência de respostas fisiológicas condicionadas produzidas por extinção (perda do emprego). O exemplo seguinte inclui a aprendizagem de respostas de esquiva para evitar contingências aversivas operantes (insucesso na obtenção de novo emprego) e aumento da frequência de respostas depressivas produzido por reforçamento social (atenção e conforto da esposa). Já o terceiro exemplo apresenta, além do padrão respondente produzido por extinção, e de contingências aversivas operantes (ofensas, da esposa ao marido, contingentes à perda de emprego e à emissão de respostas caracterizadas como depressivas pelo último), componentes culturais (inserção do marido em um meio social que condena indivíduos com dificuldades em sustentar a família) e componentes verbais (aprendizagem de auto-descrições fornecidas pela comunidade verbal).

A partir de trabalhos que tratam a depressão na análise do comportamento (Dougher & Hackbert, 1994; Fes-ter, 1973,1979; Hunziker, 2001) e dos exemplos anteriormente propostos para ilustrar o modelo de complexidade, faz-se necessário ressaltar alguns aspectos. É possível compreender as propostas dos diversos autores como tentativas de contemplar algumas das diversas relações que podem compor o fenômeno da depressão. Tais relações, como procuramos assinalar, podem envolver variáveis de um ou mais níveis de determinação apontados por Skinner (1981).

Desta forma, é comum que se observe o mesmo padrão comportamental característico da depressão em dois ou mais indivíduos. Não obstante, cada um destes padrões provavelmente estará sendo determinado por diferentes conjuntos de relações, mais ou menos complexas, situando-se em intervalos distintos do continuum. Para efetuar uma análise funcional destes padrões em contexto clínico, um terapeuta analista do comportamento deverá identificar os componentes destas relações. Somente a partir daí poderá formular efetivas estratégias de intervenção.

Assim, no exemplo de menor complexidade (funcionário demitido por corte de gastos na empresa), é possível que a identificação de habilidades para facilitar a busca por uma nova ocupação e exposição gradual a contingências de reforçamento - favorecendo a aprendizagem de que suas respostas podem exercer controle sobre as consequências do ambiente - podem constituir medidas suficientes para uma intervenção eficaz.

No segundo exemplo (marido confortado pela esposa ao se mostrar "deprimido" passa a apresentar este padrão com maior frequência), dada a função reforçadora exercida pelas respostas de atenção social da esposa, seria relevante promover-se a aquisição e manutenção de repertórios mais adaptativos - poderia ser empregado um esquema de reforço diferencial de outro comportamento (Catania, 1998/1999), em que respostas distintas daquelas que compõem o repertório identificado como depressivo seriam positivamente reforçadas - por meio dos quais o cliente produzisse reforçamento social.

O terceiro caso (marido insultado pela esposa aprende a descrever-se conforme os insultos) requereria outro tipo de procedimento, com ênfase sobre a terapia verbal. Neste contexto, o terapeuta focalizaria a identificação das auto-descrições negativas e, junto ao cliente, procuraria modificar suas funções a partir de comparações com contingências de reforçamento reais às quais o cliente estivesse exposto, que possibilitassem a utilização de descritores mais positivos. O objetivo aqui seria basicamente a identificação de regras disfuncionais e a formulação de regras mais funcionais, as quais estivessem em acordo com uma auto-discriminação sob controle de contingências diferentes das relativas às descrições da esposa e dos amigos.

Conforme Friman, Hayes e Wilson (1998), a auto-discriminação de um indivíduo pode afetar seu comportamento, valendo ressaltar que esta auto-discriminação tem necessariamente caráter verbal. Para estes autores, auto-relatos não somente descrevem comportamentos e circunstâncias como também alteram a função do comportamento e das circunstâncias descritas. Neste sentido, as auto-descrições fariam parte do fenômeno em questão, participando de um entrelaçamento de relações e passando a exercer controle sobre outras respostas do indivíduo. De acordo com Tourinho (2006a):

Um indivíduo que se comporta de determinados modos em certos contextos e é sensível (ou não) a certas consequências, pode ser considerado por outros "depressivo" ou não, independentemente de se autodescrever desse modo. Todavia, quando aprende a dizer-se um indivíduo depressivo, dependendo das contingências culturais a que tiver sido exposto, pode estar aprendendo mais do que isso. Pode aprender, também, que sujeitos deprimidos são um fracasso social, têm dificuldades para cumprir funções profissionais, não são bem sucedidos afetivamente etc... Essas descrições entram no controle de uma ampla gama de outros comportamentos e muito mais relações (e muito mais complexas) passam a ser constitutivas de sua depressão. (p. 131)

A participação de componentes culturais caracteriza um fator determinante para a maior complexidade das relações que constituem determinado fenômeno. Nas sociedades modernas, processos sociais específicos favoreceram o surgimento e complexificação crescente de diversos fenômenos relacionados ao tema da subjetividade, entre os quais se pode incluir a depressão. No próximo tópico, abordar-se-ão algumas destas mudanças, indicando-se como podem ter gerado implicações para uma concepção hodierna de depressão, difundida entre os membros de uma sociedade altamente individualizada.

 

Relações Interpessoais em Sociedades Individualizadas

O surgimento da concepção moderna ocidental de homem enquanto indivíduo autônomo está relacionado a um conjunto de transformações de caráter social, político e econômico. A compreensão dos modos por meio dos quais cada membro de nossa sociedade passou a ver a si mesmo como um ser inteiramente à parte de todos os demais - noção que, por sua vez, irá refletir no modo como são tratados os chamados problemas de ordem subjetiva - perpassa necessariamente estas transformações.

A despeito de extensamente discutidos por alguns autores, serão contemplados somente alguns aspectos destas transformações, pertinentes ao propósito deste estudo. Neste sentido, os parágrafos seguintes apontam certas variáveis sociais/culturais, encontradas em uma sociedade individualizada como a sociedade moderna, relevantes para a configuração atual da depressão e para uma discussão desta enquanto fenômeno cultural.

Em sociedades pré-modernas, a sobrevivência de cada um encontra-se diretamente atrelada à dos outros em todos os sentidos. Os objetivos de cada membro e do grupo convergem. A forma de vida se organiza em termos das necessidades coletivas. Os grupos não estão isentos de conflitos internos, mas ameaças externas constantes - predadores, catástrofes naturais, fome, embates com outros grupos - exigem cooperação mútua (Elias, 1994). Cada um deve desempenhar determinadas funções para garantir a própria sobrevivência e a dos demais. Os membros destas sociedades pensam e agem do ponto de vista do "nós" (Elias, 1994, p. 108). A organização na Europa feudal, por exemplo, ilustra essa realidade.

Durante a Idade Média, a organização em feudos favorecia a descentralização de poder. Cada feudo possuía seu próprio código de costumes e obrigações. A mobilidade social era quase inexistente, de forma que as funções atribuídas a cada um eram, predomi-nantemente, pré-definidas conforme a origem (Figueiredo, 1991), não constituindo objeto de reflexão pessoal ou dedicação e conquista ao longo da vida (Tourinho, 2006a). Cabia à Igreja o papel de legitimar uma estrutura social na qual alguns poucos eram destinados a rezar, outros a proteger e a maioria a produzir. Conforme a ética paternalista cristã então difundida, quem possuísse meios deveria dedicar-se à proteção dos outros sem se render a gananciosos interesses materialistas (Hunt & Sherman, 1993).

A proteção era exercida por solidariedades coletivas, de modo que um significativo agrupamento de pessoas compartilhava o mesmo espaço físico, vivendo sob a liderança de um mesmo senhor. A vida pública confundia-se com a vida privada. Espaços indiferenciados assumiam as mais diversas funções e a casa constituía o local onde se davam tanto reuniões sociais quanto atividades de lazer, pois as vidas profissional, social e privada não eram dissociadas. Tudo isto determinava modos de relações totalmente distintos daqueles que se verificam nas sociedades contemporâneas.

Neste tipo de organização doméstica, na qual a casa era uma extensão da rua, não havia lugar para a intimidade, o segredo, a privacidade. Com o predomínio de atividades coletivas e de uma hierarquia bem demarcada, as obrigações e atribuições eram traçadas desde muito cedo. Em um contexto no qual todos os caminhos possíveis estavam preestabelecidos e eventuais reflexões eram publicamente realizadas, praticamente não havia necessidade de ponderar acerca de decisões ou planos alternativos (Elias, 1994).

Estas contingências sociais inibiam uma concepção individualizada de homem (Tourinho, 2006a), sem espaço para o cultivo de interesses pessoais ou o planejamento para obtenção de metas a longo prazo- a realização de atividades obedecia a necessidades imediatas (Elias, 1994). Mudanças nesta realidade tiveram início quando da ocorrência de significativas transformações tanto no âmbito político quanto econômico e social.

Avanços na tecnologia agrícola e nos meios de transporte entre o século XI e final do século XIII, aumento da produtividade, além de crescimento populacional e urbano provocaram uma monetarização das funções econômicas e das atividades produtivas, minando a base social do feudalismo, fortalecendo as relações de mercado e a crescente busca de lucros1 (Hunt & Sherman, 1993). Como resultados, surgiram uma crescente divisão do trabalho e uma nítida dedicação a interesses pessoais (Tourinho, 2006a). Emerge a possibilidade de sucesso não atrelado à origem, mas ao esforço próprio ao longo da vida. A diferenciação de funções leva à multiplicação dos cursos de vida possíveis (Elias, 1994).

O fim da ordem política feudal e a formação dos Estados Nacionais complementam o quadro (Hunt & Sherman, 1993). As relações econômicas passam a ser reguladas por um poder impessoal, que também assume a função de proteção, antes exercida pelas solidariedades coletivas. Agora, o Estado fornece as condições para os indivíduos se desvincularem de seus respectivos grupos de origem (Elias, 1994).

No campo filosófico também se observam repercussões, especialmente no empirismo de Bacon (15611626) e no racionalismo de Descartes (1596-1650), que trarão para o plano do homem singular as condições para chegar-se ao conhecimento verdadeiro (Tourinho, 2006a). Nasce o homo philosophicus (Elias, 1939/1990), o indivíduo capaz de conhecer o mundo exterior de maneira autônoma, independente das autoridades eclesiásticas.

No âmbito das relações sociais, a difusão de códigos refinados de conduta traz mudanças importantes nas relações dos homens entre si e com eles mesmos. Durante a Idade Média, a conduta moral e ética era basicamente regulada pela igreja e as formas de portar-se no cotidiano doméstico obedeciam a prescrições simples e pouco numerosas (Elias 1939/1990). A partir do Renascimento, porém, haverá acentuado crescimento da chamada literatura de civilidade, a qual estipulará formas mais polidas e contidas de comportamento social. Elias (1939/1990) refere-se a esta gradativa mudança de hábitos como processo civilizador, caracterizado pela elaboração de exigentes e minuciosas regras de conduta que irão introduzir uma atitude nova com relação ao próprio corpo e ao corpo dos outros.

A literatura de civilidade impõe um pudor até então ausente nas relações interpessoais, uma preocupação nova em ocultar determinadas partes e funções do corpo (Ariès, 1991), tratando também de indicar um estrito controle das emoções - a simples menção às funções corporais deveria ser evitada para não causar embaraço. Este processo de refinamento dos costumes foi impulsionado pelo interesse da burguesia em compartilhar do status social da nobreza e acabou difundindo-se por outras classes sociais (Elias, 1939/1990).

Em uma sociedade urbanizada, com economia de mercado em ascensão, na qual se estabelecem relações comerciais extensas e de caráter impessoal entre uma população numerosa, caberá ao Estado regular os conflitos e proteger a todos (Elias, 1994). Torna-se necessária a coordenação, previsibilidade e controle dos comportamentos dos indivíduos de modo que se mantenha a "civilidade" em entrelaçamentos de relações assaz complexos, envolvendo funções sociais cada vez mais diferenciadas (Elias, 1994; Tourinho, 2006a).

A espontaneidade nas relações é substituída por um autocontrole permanente, somente possível se acompanhado de cuidadosa auto-observação com respeito ao próprio corpo. A partir daí, cada um manterá para si suas "verdadeiras" emoções e sentimentos, expressando de maneira pública apenas o que for socialmente recomendado. Estão presentes as condições para a formação da "parede invisível das emoções" entre um indivíduo e outro (Elias, 1939/1990), como também para a internalização de um eu íntimo e totalmente à parte daqueles que estão no "mundo exterior": a sociedade.

Este conjunto de transformações favoreceu o surgimento da noção de autonomia fortemente atribuída aos indivíduos de sociedades contemporâneas. O descolamento do grupo de origem; a possibilidade de escolher, entre tantos, um curso de ação particular, de prover o próprio sustento e obter realização sem a ajuda dos demais; além do desenvolvimento da auto-observação e do autocontrole em graus refinadíssimos, promoveram não só uma efetiva autonomia de cada indivíduo com relação aos outros - especialmente em comparação a sociedades mais simples - mas, sobretudo, "cristalizaram" uma auto-imagem de autonomia, em que cada um se vê como um ser separado de todo o resto (Elias, 1994). A substituição de relações de dependência direta por complexas redes de relações indiretas coloca a perder de vista uma sólida interdependência que se es-tabelece entre funções exercidas mesmo pelos membros mais distantes de uma sociedade.

Na obra de Elias (1994), estes conjuntos de mudanças, elevado distanciamento dos outros, constante auto-observação de sentimentos, de funções corporais, de pensamentos e permanente controle de impulsos são reunidos sob o termo "processo de individualização".

Elias (1994) aponta que ao abandonarem seus grupos familiares estreitamente aparentados, os indivíduos em sociedades crescentemente complexas se vêem diante de um número cada vez maior de opções. Precisam, agora, necessariamente decidir sobre aspectos de suas vidas que em períodos anteriores eram definidos antes do nascimento e sequer constituíam objeto de reflexão. Nestas sociedades, a autonomia traduz-se em um modo de agir diante do mundo que se torna obrigatório, refletindo sobremaneira nas relações que surgem de seus membros uns com os outros e consigo mesmos. Conforme Elias (1994):

Aquilo que visto por um aspecto se apresenta como um processo de individualização crescente é, visto por outro, um processo de civilização. Pode-se considerar característico de certa fase desse processo que se intensifiquem as tensões entre os ditames e proibições sociais, internalizados como autocontrole, e os impulsos espontâneos reprimidos. Como dissemos, é esse conflito no indivíduo, essa "privatização" (...) que desperta no indivíduo a sensação de ser, "internamente", uma coisa totalmente separada, de existir sem relação com outras pessoas, relacionando-se apenas "retrospectivamente" com os que estão "fora" dele. Examinando de perto, vê-se que esse modo de auto-percepção vira de cabeça para baixo o processo que a ele conduziu. (p. 103)

Transformações políticas, econômicas e sociais forneceram condições para o surgimento de um processo de individualização, que passou a regular o modo de os membros de sociedades complexas agirem no mundo, traçarem planos de vida, ocultarem aspirações, emoções e desenvolverem a auto-observação e o autocontrole em níveis muito elevados.

O processo de individualização promoveu, na sociedade ocidental contemporânea, uma internalização de sentimentos de tal modo consolidada que se legitimou a existência de um mundo particular. Este mundo refletiria a verdadeira natureza de cada um, protegida dos outros e livre de imposições sociais, com acesso restrito ao próprio indivíduo. Cria-se uma barreira invisível (Elias, 1994) que separa o "eu íntimo" da realidade externa ao indivíduo. Como resultado, as relações sociais responsáveis tanto pelo surgimento de um mundo interior quanto pelos sentimentos e emoções que o compõe são negligenciadas.

Neste sentido, surgem fenômenos emocionais característicos de uma sociedade contemporânea complexa e altamente individualizada. A diferenciação de tais fenômenos entre os membros destas sociedades foi determinada por contingências de reforçamento específicas, produtos de um extenso processo de mudanças ao longo da história de desenvolvimento da sociedade ocidental.

A seguir, serão abordadas características específicas do processo referido por Elias (1994), na medida em que ajudarem a esclarecer o advento do que se conhece, na sociedade ocidental moderna, como depressão.

 

Processo de Individualização e Depressão

No caso da depressão, também contingências sociais responsáveis por um modo de vida contemporâneo específico estabeleceram condições para a diferenciação de um conjunto de sintomas e a reunião destes sob uma mesma nomenclatura. Pessotti (2001) indica que sintomas hodiernamente atribuídos à depressão como sensação de incompetência ou fracasso, apreensão quanto ao futuro, entre outros, teriam estado presentes por séculos anteriores à contemporaneidade e constituiriam o que, no passado, era conhecido como "vida dura". A seguir será apresentada uma análise complementar à noção defendida por Pessotti (2001), tomando-se como base as transformações sociais que deram lugar ao processo de individualização abordado por Elias (1994).

No passado, se levarmos em consideração sociedades de organização mais primitiva, havia pouco espaço para a ocorrência de "apreensão quanto ao futuro", pois os cursos de ação eram muito limitados, definidos em termos de sobrevivência do grupo, não envolviam numerosas possibilidades de escolha. Com poucas e pré-determinadas funções sociais, não havia contingências favoráveis a uma reflexão individual acerca do caminho a se seguir ao longo da vida. Muitas vezes a alternativa disponível era formada por uma linha reta, sendo raras as encruzilhadas (Elias, 1994).

Outro fator relevante refere-se à invenção da infância (Ariès, 1981). Na Idade Média, as relações sociais eram mais espontâneas, não reguladas por rígidos códigos de conduta. Crianças e adultos freqüentavam os mesmos ambientes. Os muito jovens eram considerados adultos em miniatura (Ariès, 1981), não havia uma separação. Com a necessidade de contenção de impulsos e funções corporais, surge um distanciamento entre a conduta de adultos e crianças. Torna-se necessário separar as crianças dos outros durante um longo período, a fim de adestrar seu comportamento espontâneo para um agir autocontrolado.

Este lapso de tempo foi se estendendo nas sociedades mais desenvolvidas. A complexa diferenciação de funções provocou uma espécie de prolongamento da infância, aumentando cada vez mais o tempo requerido para preparar o ingresso dos jovens na vida adulta. Isto traz implicações importantes no âmbito de discussão deste trabalho. Embora o alargamento da preparação dos jovens seja impulsionado pela expansão do conhecimento e possa facilitar o ingresso na vida adulta (Elias, 1994), não oferece um contato real com as contingências sociais a serem experenciadas no futuro - pelo contrário, é comum haver incompatibilidade entre os arranjos de contingências presente em um e em outro período. Assim, indivíduos biologicamente maduros permanecem social e emocionalmente despreparados diante das exigências da vida social adulta (Elias, 1994). Os repertórios desenvolvidos na adolescência não correspondem àqueles exigidos na idade adulta. É provavelmente neste contexto que surgem, entre outros, os freqüentes relatos de "apreensão quanto ao futuro".

Da mesma forma, no que se refere à "sensação de incompetência ou fracasso" referida por Pessotti (2001), contingências sociais estabelecidas a partir do processo de individualização - em que se exige dos indivíduos que tomem suas decisões, busquem seus objetivos de forma independente, e, enquanto, adultos, obtenham autonomamente o próprio sustento - combinadas a contingências culturais específicas - que propagam os mais diversos modelos profissionais bem sucedidos, modos de vida baseados em consumo desenfreado e um permanente bem estar como regras - salientam o valor aversivo de contingências nas quais não se produz reforço positivo com respeito a uma determinada atividade, na medida em que se está sob controle de um modelo ideal. Sob tais condições, por exemplo, um insucesso profissional, combinado à queda nos padrões de consumo e a mudanças no estado de ânimo de certo indivíduo, pode adquirir função aversiva ainda maior ao ser comparado, pelo próprio indivíduo, ao sucesso socialmente reconhecido de outras pessoas. Em sociedades mais complexas, proporcionais ao vasto leque de opções são as possibilidades de fracasso: "A maior liberdade de escolha e os riscos maiores andam de mãos dadas" (Elias, 1994, p. 109). Desta forma, descrições verbais envolvendo "sensações de incompetência ou fracasso" tornam-se muito mais prováveis. E mais: enquanto indivíduos autônomos, assim como se exige que as escolhas sejam feitas de forma independente, também a cada um é atribuída a responsabilidade pelo próprio fracasso.

Afirma-se, pois, que se membros de sociedades não individualizadas apresentassem constantemente respostas verbais de "sensação de incompetência ou fracasso", certamente estariam sob controle de contingências distintas das que controlam a mesma topografia verbal emitida por um homem moderno.

A exigência de autonomia imposta por sociedades individualizadas favorece o arranjo de contingências sociais aversivas quando os indivíduos não se comportam em acordo com o prescrito. Neste contexto, além da conseqüência direta de determinada resposta (por exemplo, não conseguir um novo emprego por não sair de casa durante várias semanas após uma demissão), há exposição a outras conseqüências punitivas (ofensas da família, por exemplo) e, por meio de relações indiretas, adquire-se um repertório auto-descritivo que, como já mencionado, entra no controle de outros comportamentos.

Assim, junto com o desemprego, pode haver a aprendizagem de que pessoas que não vão em busca de suas metas são "fracas, dependentes, não conseguem fazer nada". Na medida em que é difundida a noção de que cada um possui uma natureza própria, dissociada do mundo externo, padrões de comportamento mais ou menos adaptativos poderão ser atribuídos a esta personalidade imutável, e não a repertórios produzidos por certas contingências e que podem ser modificados - sob contingências sociais distintas das que os originaram e os mantêm.

É pertinente mencionar-se mais um aspecto. O treino da auto-observação de sentimentos e funções corporais passou a ser exigido a partir das condições responsáveis pelo surgimento do processo de individualização previamente abordadas. Apenas a partir daí, são estabelecidas as contingências sociais favoráveis à auto-discriminação - ensinada por uma comunidade verbal - de um vasto conjunto de "sensações" até então indiferenciadas, e, portanto, inexistentes enquanto tais.

Contingências sociais específicas forneceram as bases para o surgimento (diferenciação) de "sentimentos, emoções" e repertórios comportamentais específicos, alguns dos quais são identificados socialmente com o que se denomina depressão. A auto-imagem do homem moderno baseada em um eu interior isolado do mundo externo fortalecerá a noção de sentimentos e emoções intrínsecos à natureza do indivíduo, deixando à margem o fato de que constituem componentes estabelecidos nas relações dos indivíduos uns com os outros.

Desta forma, quando a cultura ocidental atribui a característica "depressivo" a determinado indivíduo, está se referindo estritamente a um conjunto de sintomas (choro excessivo, desânimo, queixas freqüentes, inatividade, entre outros) apresentados por ele. Fatores hipotéticos relativos a uma "essência", uma "personalidade" são postos em foco na tentativa de explicar o padrão comportamental, ao afirmar-se, por exemplo, que tal indivíduo apresenta uma "tendência depressiva".

Em geral, é comum associar-se a ocorrência da depressão a perdas significativas - para a análise do comportamento, perda de estímulos com alto valor reforçador (Dougher & Hackbert, 1994; Fester, 1979; Kanter, Callaghan, Landes, Busch & Brown, 2004) - como morte de um ente querido ou, em outro âmbito, aposentadoria. No tocante aos exemplos referidos, cabem algumas elucidações.

Na formação de sociedades modernas, fatores como o desenvolvimento urbano e avanços no conhecimento científico tornaram possível a prevenção e o tratamento de doenças, o domínio sobre vários aspectos da natureza e sua utilização em prol de interesses humanos. Perigos iminentes que por longos períodos ameaçaram a vida humana foram contornados, levando ao aumento da expectativa de vida. Segundo Elias (2001), a relativa pacificação interna da sociedade e a presença de um Estado, que detém o poder da violência física e mantém os indivíduos sob proteção contra a violência não sancionada, provocaram, em certo sentido, um adiamento da morte (Elias, 2001).

O crescimento da expectativa de vida nas sociedades modernas trouxe o afastamento dos indivíduos com relação à morte (Elias, 2001). A nova postura exibida diante da morte foi também reflexo das mudanças na conduta social trazidas pelos códigos de civilidade. Em sociedades mais simples, a morte fazia parte do cotidiano próximo sob a forma de epidemias, disputas, catástrofes naturais imprevisíveis ou ataques de grupos vizinhos, atingindo por vezes o status de espetáculo, como nas execuções (Elias, 2001). Caracterizava um acontecimento doméstico, público. Era encarada com a mesma naturalidade que quaisquer outros fatos ordinários, e envolvia a participação de um grande número de pessoas.

Nas sociedades individualizadas, indica Elias (2001), a atitude com relação à morte é inteiramente diferente. Assumiu o caráter de evento privatizado, e, muitas vezes, institucionalizado. Abandonou o domínio familiar para alocar-se em lugares específicos, nos quais pode ser higienicamente tratada. Tornou-se ocorrência excepcional, distante do cotidiano dos indivíduos. O cuidado é especialmente maior com relação às crianças. Nada lhes é dito acerca da morte, e são mantidas longe de quaisquer aspectos referentes ao assunto tanto quanto possível. Quanto aos adultos, convenções sociais oferecem algumas poucas expressões e padrões estereotipados para lidar com a morte nos contextos em que o afastamento não é possível (Elias, 2001).

Assim, diferentemente de períodos anteriores, nos quais se convivia de perto com a morte dos outros, nas sociedades individualizadas o distanciamento é a regra, seja com respeito à morte efetivamente, seja no sentido de percebê-la como uma ocorrência possível. O distanciamento se mantém no que concerne aos moribundos, provocando um isolamento social dos que estão prestes a morrer antes que a morte efetivamente ocorra. Sugere-se que esta atitude ocidental contemporânea acerca da morte possa estar relacionada a alguns aspectos importantes no que se refere à depressão. É possível, por exemplo, que a atitude contemporânea ocidental com relação ao tema da morte dificulte a aquisição de um repertório comportamental mais adaptativo quando da exposição a contingências reais envolvendo a morte (repentina ou não) de um ente querido.

Além disso, a tecnologia alcançada por sociedades altamente desenvolvidas, responsável pelo controle e previsão de diversos aspectos do ambiente a partir de interesses humanos, acompanhada de vários outros avanços, levou a humanidade (ou uma parte dela) a um modo de vida quase isento de ameaças imediatas. Tornou-se comum, e muitas vezes necessário, planejar cursos de ação com vários anos de antecedência. Obviamente, morrer está fora dos planos. Não se fala a respeito. Deste modo, a convivência com aqueles cuja morte se aproxima se torna aversiva, constrangedora.

Inevitavelmente, isto se reflete sobre a maneira como a sociedade contemporânea trata seus idosos. De acordo com Elias (2001):

Nas sociedades pré-industriais...quem lida com os que vão envelhecendo e com os moribundos é a família...Os velhos que vão ficando fisicamente mais fracos em geral permanecem dentro do espaço de vida da família...e em geral morrem dentro desse espaço. Por isso mesmo, tudo o que diz respeito ao envelhecimento e à morte acontece muito mais publicamente que nas sociedades industriais altamente urbanizadas, sendo ambos os processos formalizados por tradições sociais específicas... Hoje, nas sociedades industrializadas o Estado protege o idoso ou o moribundo, como qualquer outro cidadão, da violência física óbvia. Mas ao mesmo tempo as pessoas, quando envelhecem e ficam mais fracas, são mais e mais isoladas da sociedade e, portanto, do círculo da família e dos conhecidos. Há um número crescente de instituições em que apenas pessoas velhas que não se conheceram na juventude vivem juntas... O atendimento físico dos médicos e o pessoal da enfermagem podem ser excelentes. Mas a separação dos idosos da vida normal e sua reunião com estranhos significa solidão para o indivíduo. (pp. 85-86)

Criam-se, assim, condições específicas que podem, em termos analítico-comportamentais, caracterizar a perda de reforçadores importantes (convivência com os entes queridos, lugares e rotinas familiares) de forma a reduzir a freqüência de determinadas respostas e provocar a ocorrência de outras (chorar excessivamente, não se engajar em qualquer atividade etc) identificadas com a depressão. Com efeito, estudos realizados apontam que o percentual de idosos institucionalizados que apresentam depressão é superior ao dobro de idosos não institucionalizados (e.g.: McDougal, Matthews, Kvaal, Dewey & Brayne, 2007; Porcu & et al., 2002).

Dado o afastamento presente em sociedades altamente individualizadas com respeito tanto a moribundos quanto a idosos - como ressalta Elias (2001), ainda que saudáveis, estes últimos estão (em tese) biologicamente mais próximos da morte - torna-se mais fácil compreender a dificuldade apresentada por alguns indivíduos quando do início da aposentadoria, momento em que devem encerrar sua atividade profissional. De fato, a aposentadoria é indicada como um dos diversos eventos que podem favorecer a ocorrência da depressão (Dougher & Hackbert, 1994).

A questão se apresenta da seguinte forma: sociedades individualizadas e complexas exigem de seus membros um padrão comportamental regido pela autonomia. Valora-se a alta produtividade, a independência social e econômica. Ao desempenharem uma função específica, os indivíduos passam a ser socialmente reconhecidos por esta função, sendo identificados por ela, à semelhança de um segundo nome.

Assim, o desvinculamento, imposto pela aposentadoria, de uma atividade associada a estímulos reforçadores específicos, privará o indivíduo de tais estímulos, assumindo uma função de perda. Tudo isto, vale lembrar, em um contexto no qual a aproximação da velhice e consequente dependência com relação a outras pessoas não são socialmente bem recebidas.

Elias (2001) aponta que as atitudes hodiernas predominantes com relação aos moribundos constituem peculiaridades de sociedades em um estágio particular de desenvolvimento, com uma estrutura particular. Neste sentido, os efeitos desta postura social sobre o repertório comportamental de indivíduos idosos - na medida em que se assemelham aos moribundos no tocante ao isolamento e privação de reforçadores - também são específicos.

Por fim, não seria correto afirmar que toda e qualquer resposta caracterizada como depressiva é culturalmente determinada. A depressão pode ser compreendida como um fenômeno localizado em algum ponto de um continuum no qual se localizam relações mais ou menos complexas, conforme os níveis de variação e seleção envolvidos. Isto implica dizer que se podem encontrar fenômenos emocionais menos complexos, identificados como depressão, envolvendo variáveis filogenéticas e ontogenéticas. Da mesma forma, outros eventos que compartilham a mesma denominação podem incluir variáveis culturais. Fenômenos deste tipo, pois, apresentam um nível maior de complexidade.

Por esta razão, considerou-se válido realizar, no presente trabalho, a abordagem de aspectos responsáveis pelo surgimento de determinados padrões culturais, identificando características específicas destes padrões que poderiam estar relacionadas à ocorrência de respostas identificadas como depressivas.

 

Considerações Finais

Compreender a depressão como um fenômeno complexo e multifacetado - à luz da análise do comportamento, vale ressaltar - traz algumas implicações. Implica deixar de atribuir-lhe características pré-definidas, invariáveis, na medida em que pode incluir uma ampla gama de relações de diferentes graus de complexidade. Implica, na intervenção, desviar o foco dos "sintomas" apresentados, para os arranjos de contingências envolvidos na ocorrência dessas relações.

A partir disto, a idéia de um continuum de complexidade (Tourinho, 2006b) permite um estudo da de-pressão com base nas redes de relações diretas e indiretas que dela participam. A identificação de termos constitutivos de relações que possam indiretamente participar do controle de certas respostas faz-se imprescindível para a elaboração de procedimentos de intervenção eficazes. Redes mais ou menos complexas exigirão diferentes procedimentos. Reconhecer a participação de componentes do terceiro nível de determinação na ocorrência de respostas caracterizadas como depressivas traz consigo a necessidade de identificação destes componentes culturais.

A formação das sociedades modernas envolveu um longo caminho de modificações nos modos de os indivíduos interagirem uns com os outros e também com o mundo físico. Estruturas coletivas de subsistência foram substituídas por formas de organização altamente desenvolvidas e complexas. Nestas, a autonomia se impõe de tal forma que não se percebem as extensas relações de interdependência entre as pessoas (Elias, 1994).

Valora-se a privacidade em níveis sem precedentes. Dos enormes cômodos indiferenciados compartilhados por dezenas de pessoas no período medieval, chegou-se a uma arquitetura minuciosamente definida, em que cada cômodo possui uma função específica (Ariés, 1991). É possível que se habite a mesma residência sem que se precise efetivamente conviver com o outro, tal o grau de privacidade instaurado.

O treino de auto-observação e o autocontrole favorecem a auto-imagem de um eu cuja existência é dissociada dos demais. A idéia de que quaisquer eventos, emocionais ou não, só se dão em termos das relações dos indivíduos uns com os outros é incompatível com esta maneira de ver a si. Deste modo, explicações para eventos referentes ao indivíduo serão buscadas no indivíduo. Fenômenos emocionais como a depressão são vistos como ocorrências exclusivas do indivíduo, quando, efetivamente, constituem, cada vez mais, conjuntos de relações, sejam ontogenéticas, sejam culturais.

Afirma-se que fatores como a rígida contenção dos impulsos (Elias, 1990) a necessidade de auto-observação e conseqüente "interiorização" de sentimentos; a forma pela qual se dá o ingresso dos jovens na idade adulta; a multiplicação dos cursos de vida possíveis e das possibilidades de fracasso; os ditames sociais de bem estar e êxito social; as formas específicas de conduta com relação à morte e à velhice, além das concepções sociais acerca do que implica o "estar deprimido", podem contribuir, em maior ou menor grau - e aí teremos o mesmo conceito referindo-se a eventos comportamentais diferencialmente complexos - para a aquisição e manutenção de um repertório comportamental característico da depressão.

A discriminação de contingências culturais sob as quais certos modos de relações foram construídos dispensa rótulos inatos de "patologia" ou "transtorno". Reafirma a noção de que uma parte predominante de nosso repertório comportamental é socialmente determinado. Reitera, a nível sócio-histórico, uma prática clínica segundo a qual as demandas trazidas pelos clientes - inclusive aquelas relativas à depressão - não são "anormais", "patológicas" ou "inerentes" a cada um, mas fazem sentido em um determinado contexto social, surgem neste contexto, e devem, a partir dele, ser submetidas à análise e intervenção.

 

Referências

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Notas:

1. Estas condições materiais de vida são refletidas nas novas formas de religião, que tornam virtudes motivações materialistas antes condenadas, como a avareza, a ganância, o egoísmo e ambição por riquezas (Hunt & Sherman, 1993).

2. A obra literária "Ensaio sobre a cegueira" (Saramago, 1995/1998) ilustra interessantemente esta identificação. Os personagens são referidos pelo narrador somente por meio de atribuições físicas ou funções sociais específicas e um dos protagonistas é identificado apenas como "médico". A sociedade descrita por José Saramago também demonstra como padrões sociais bem estabelecidos podem ser significativamente alterados por contingências específicas. A exposição de um grupo de pessoas a condições extremamente aversivas leva à crescente deterioração dos modos "civilizados" de conduta - responsáveis pela contenção de impulsos e regulação de funções corporais -, reconfigurando as noções de privacidade e autocontrole.

 

 

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* Trabalho realizado com o apoio do CNPq (Processos Nº 304116/2007-6 e Nº 480727/2007-4) e da FAPESPA (Bolsa de mestrado).
** Parte deste trabalho foi apresentada em formato de comunicação científica no 6º Congresso Norte-Nordeste de Psicologia - Belém/PA.