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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.1 no.1 Fortaleza Sept. 2001

 

CONFERÊNCIAS

 

Mal-estar e resto*

 

 

Henrique Figueiredo Carneiro

Psicanalista, Doutor pela Universidade Pontificia de Comillas - Espanha, Membro Fundador de Logos Espaço Psicanálise, Professor Titular e Coordenador do Mestrado em Psicologia da UNIFOR. E-mail: henrique@unifor.br

 

 


RESUMO

O resto é o resquício de uma operação que, mais do que uma forma de pensar, de filosofar ou de ideologizar um conceito, aparece como a causa desse ato. E, se pensar é uma tarefa que ganha terreno com o advento da ciência, a partir do homem moderno, então vale a assertiva de que não há pensamento sem resto. O "... penso, logo sou ..." envolve uma dimensão do eu, à medida que reclama sua presença no modo em que se enuncia pelo sujeito. Exige, portanto, a presença do "Iste ego sum". Dito de outra forma, não há pensamento, ou melhor, não há possibilidade de existência humana que não seja a partir dessa noção inquietante que, ao tempo em que se mostra fugidia, nunca está ausente, posto que, como causa, mostra-se como o outro lado do desejo que se desliza numa cadeia vital que situa o sujeito numa dimensão de busca. Sobretudo, é o movimento de busca que responde aos anseios que o homem contemporâneo persegue, quando tenta, a todo custo, identificar um sentido para sua existência. Portanto, se cada época entroniza um conceito de que as subseqüentes eras não conseguem desvencilhar-se, o resto é isso que pode muito bem ser identificado como causa de um mal-estar e, seja qual for o caminho que seguirmos, não será fácil negar sua presença, ainda que seja de impossível apreensão. Essa é uma construção lógica, tendo em conta que qualquer pensamento que ensaiemos, durante nossa existência, será falido no intuito de formalizar a resposta acabada sobre aquilo que nos perguntamos. Isso nos remete diretamente ao primeiro grande tema de nossa construção, quando a indagação pela era do vazio se mostra diretamente afetada pela existência do resto. Afirmar que vivemos uma era do vazio implica sobretudo em saber a causa desse sintoma diagnosticado. E a premissa geradora de nosso construto é aquela que, insistentemente, aparece no mundo moderno e que submete o sujeito à presença constante do mundo imagético como tentação quimérica frente às razões que constrói para sua existência.

Palavras-chave: eu, modernidade, narcisismo, resto, vazio


ABSTRACT

The rest, that is, what is leftover, is an operational residual which is more than a way of thinking, a way of philosophizing or an augmentation of a concept into an ideology and it comes out as a cause of an act. When thinking this assertion as a task that advances with science, starting from the modern human being, it is appropriate to state that there is no thought without its residual. The statement "... I think, therefore I am ..." takes in a dimension of the self, as much as it claims its presence in the way that it is stated by the individual. It demands, therefore, the motto "Iste ego sum". Said differently, there is no thought, no possibility of a human existence unless it starts from this restless notion. This notion is somewhat tricky, it is always present given that it is shown as the other side of the desire that slides down into a vital sequence, situating the individual in a dimension of search. After all, it is this movement of search that answers the wishes that the contemporary individual is looking for, when he/she tries, at any price, to figure out the meaning for their existence. Therefore, if for every era there is a prevalent concept that the following eras won't let it go, the rest (the leftover) is what can be identified as the source of discontent. Whatever path one takes, it will not be easy to deny its presence, even if it is of impossible comprehension. This is a logical makeup, given that whatever intellectual construction one puts together throughout his/her existence, it will be worthless in the sense that there is no formal final answer of what one asked. This takes one back to the original theme of our construction, when questioning about the era of the void is directly affected by the existence of what it is leftover. What we intend to call attention upon is that to assure that we live in an era of void implies that we know the cause of the identified symptom. The triggering assumption of our construct is that one which comes out restlessly in the modern world and undertakes the individual to a constant presence of a image world as a fantastic temptation given all the reasons that one builds up for his/her own existence.

Keywords: self, modern age, narcissism, rest, void


 

 

A noção de resto dentro do contexto do mundo global ganha corpo a partir do nascimento da modernidade, apesar de que sua existência data da mais remota notícia sobre a presença do homem. Isto significa dizer que, tal como o referencial de linguagem, sempre acompanhou o homem desde que o mesmo se humanizou. Ao mesmo tempo requer uma reflexão sobre sua presença de forma definitiva na existência do homem quando esse pôde dizer: "Iste ego sum", isto é, quando se passa a resgatar o momento dessa afirmação.

Sendo uma afirmação resgatada no próprio mito de Narciso e sua precisão válida no contexto da modernidade, o resto que agora ocupa nossa época exige uma leitura mais demorada, à medida que, como conceito, cria raízes nas tentativas de desfazer-se daquilo que hoje em dia se ensaia em direção ao aniquilamento da modernidade.

 

1 - O engasgo moderno da psicanálise

Freud (1905), depois de estremecer as bases do pensamento individual do sujeito moderno, através da montagem psicanalítica sobre a sexualidade humana, ainda não havia lançado definitivamente a desconstrução da idealização ocidental. Esse feito só aconteceria em 1920 quando apontaria finalmente alguma coisa que está mais além do princípio do prazer. O que está além desse princípio que convoca a todos a uma construção de vida atrelada ao encontro da felicidade? Freud responderia em 1930, no "Mal-estar na Civilização": a impossibilidade de apreensão do Bem que poderia definir um estado de bem-estar pleno. Isso remete a um ponto crucial na existência do homem. Não há viabilidade possível para o desfrute da felicidade e mais: fica implícito que ali onde reside uma calmaria, um bem-estar, há de ser vasculhada a articulação de um sintoma.

Com essa indicação começamos a percorrer um duplo caminho: o do sintoma e o do gozo. Se o sintoma leva o sujeito ao gozo, então a felicidade, como um bem-estar, leva a uma construção do único estado possível em que o indivíduo possa imaginar-se feliz, ou seja, quando está inserido no seu próprio sintoma.

Essa relação é alarmante à medida em que a felicidade e o bem-estar são indicadores de que o sujeito goza de um sintoma "sui generis". A felicidade e o bem-estar são duas formas de apresentação do sintoma, ou ainda, a felicidade como sintoma indica que o sujeito se utiliza de uma situação de desprazer para usufruir de uma referência do prazer.

Passemos então a construir a relação entre sintoma e gozo, como dois indicadores de um autêntico mal-estar - ao invés de bem-estar -, e o resto como aquilo que sobra de qualquer operação que o homem moderno possa realizar.

Assim, um dos grandes engasgos que a Psicanálise promulga na modernidade é exatamente a indicação de uma subversão sobre o corpo biológico. O corpo agora é dito pela linguagem, ao mesmo tempo que o atravessa dando-lhe sentido. Nesse passeio entre o que o corpo é e o que dele se diz, aparece uma outra dimensão que se plasma numa operação que sempre deixa transparecer um resto inapreensível. E essa é, indiscutivelmente, a marca moderna que mais esforços exige das construções de saber e das ações específicas que cada sujeito desenvolve em direção à busca da felicidade.

 

2 - O EU no mito

A construção do EU, na historia do homem, não poderia emergir de outro lugar que não fosse a partir da concepção de um MITO.

Nesse sentido, os mitos perpassam as várias culturas e as várias civilizações, servindo, sobretudo, para a criação de uma referência para a existência do homem. Da civilização egípcia à civilização grega, do homem antigo ao homem moderno, não há um só momento em que os mitos não estejam presentes, marcando e demarcando os caminhos simbólicos que a humanidade perseguiu.

E, entre tantos mitos estruturantes, há um que se destaca pela sua força construtiva de um conceito fundamental para a existência humana à medida que é paradigmático da problematização sobre o EU. Nele a carga de complexidade desse conceito fundamental emerge com uma grande referência que admite, em qualquer época, um resgate estruturante para o mal-estar vigente.

Narciso é o protagonista do EU para a cultura ocidental. É o dono de um dos conceitos mais evocados durante a vida do sujeito, ao mesmo tempo em que se mostra como o mais fugidio. Na sua essência jaz um traço metamorfoseado, como nos diz Ovídio. E, nessa metamorfose, identificamos a presença de um resto implacavelmente perdido, fruto da operação realizada.

Narciso nasce de um ato de violação desfechado por Céfiso - rio e pai - sobre Liríope - flor e mãe. Uma mãe que, sendo da família das flores, aparece como a que nomeia seu filho de Narciso, ou seja, nada menos que uma flor narcótica que adornava os funerais na antigüidade. Depois de nomeá-lo de tal forma, acode a Tiressias para saber se Narciso viveria muito. O adivinho diz: Sim. Desde que não conheça a si mesmo.

Resposta de um sábio dada à pergunta de uma mãe que indaga se a morte viveria muito. Dessa forma, Narciso - que no instante do nascimento ostentava uma beleza tão envolvente, ao ponto de ser capaz de paralisar homens e mulheres - cresce desdenhando de todos. Inúmeras ninfas, desprezadas por Narciso, haviam-se perdido num mundo de desengano. Porém o outro lado do mito não esquece de elaborar as malhas sob as quais ver-se-ia Narciso, enfim, humanizado. Trata-se de Eco, a ninfa da voz, a eloqüente, que, devido a sua posição enganadora assumida perante Juno - esposa de Júpiter - recebeu o castigo de só poder travar uma conversação a partir do momento em que alguém iniciasse um diálogo. Duas matrizes aparecem no mito: uma que vaga portando a morte em si e outra que transporta o fio de humanização - a linguagem.

O encontro dessas duas vertentes se dá de forma bastante interessante. Narciso, perdido do seu bando no momento de uma caça, procura seus companheiros perguntando, depois de ouvir um ruído de passos adentrando a mata: -Tem alguém aí?. Eco que só podia estabelecer um diálogo com uma conversação desencadeada diz: -... aí, aí, aí ... . Assim, a morte e a linguagem aproximam-se, cada uma exercendo sobre a outra uma espécie de sedução mútua; aproximam-se ao ponto de a linguagem ficar literalmente encantada com a morte. Uma não conhece a si mesma, enquanto que a outra, fascinada pela primeira, apresenta-se como a reveladora de um enigma. E assim o faz, iniciando em Narciso a verdadeira força de uma revelação daquilo que era: a morte. Por sua vez, Narciso, no momento exato da iminência de ser tocado pela linguagem reveladora, diz: ... antes a morte do que tu gozes do meu corpo. Abria-se assim o caminho para o cumprimento da verdadeira força da predição do adivinho Tiressias.

A linguagem, desdenhada, desidrata-se, "seca" de amor, transforma-se numa pedra; e dela, somente sua voz se escuta nos confins do tempo. Isso foi suficiente para que outras ninfas que haviam sofrido o mesmo desdém, solicitassem a Ramnusia castigo de igual magnitude para Narciso. Atendidas por Ramnusia, Narciso recebe seu devido castigo. Uma sede profunda o invade, impelindo-o às águas virginais de um lago. Agacha-se para tomar da fonte; a água já não mais lhe importa, mas, sim, a imagem que do seu espelho emana. Narciso, defronte ao espelho, apaixona-se perdidamente. Nesse momento, pela primeira vez, a morte tem uma chance de revelação frente à linguagem. Único momento em que a linguagem pode tocar a morte, através da contemplação e da impossibilidade de uma complementação. Essa revelação é da ordem de uma referência eterna de presença e inapreensão. É assim que Narciso toma contato com o que ele era: a morte anunciada pela linguagem que, desdenhada pela morte, exige uma metamorfose por parte daquele que pretenda saber sobre ela.

Dessa forma Narciso conhece a si mesmo e, partindo desse conhecimento, queima-se de desejo, de amor, por uma imagem fugidia que lhe serviu como matriz do que ele era: EU. Tiressias, o sábio, já havia proferido à sua mãe: ... viverá muito, desde que não conheça a si mesmo. Era o construto moderno para inferência do homem na sua finitude. E dessa constatação que o mito estrutura aparece um dos mais importantes construtos que a modernidade sustenta. A linguagem afetada pela morte e a morte, que afeta a linguagem, deixam como herança a presença de um elemento que marca presença pela ausência do que era primitivamente: o resto. O importante da presença do resto é que ele, aparecendo como um traço residual, é inassimilável e, ao mesmo tempo, não desprezível. Narciso, entre a morte e a linguagem, transparece no mito um resto dessa operação: uma flor que chama atenção pela mesma qualidade que sua mãe exercia.

A partir daí, seja no mito narrado por Ovídio, nas tentativas pictóricas de representação do mito ou nas elaborações filosóficas sobre Narciso, podemos resgatar a presença de um resto inabalável como a presença de algo que falta enquanto referências originais que apontamos como a morte e a linguagem.

No Narciso atribuído a Caravaggio, se situa um dos traços mais interessantes que a modernidade pode resgatar da presença estruturante para a humanidade. Nele é representada uma espécie de elemento separador entre a morte, a imagem e a linguagem. O próprio corpo do vagabundo exibido na obra caravaggiana serve como sugestão de que, para a compreensão da metamorfose que ali se opera, era necessária a alocação de um joelho disforme, que bem se presta a uma anamorfose. Um joelho que se insinua como marca genital, e, ao mesmo tempo, como joelho, que não é mais um joelho em si; tampouco, um pênis. É algo inquietante, ao mesmo tempo que exige uma outra leitura. Como não é um pênis, devido à desproporcionalidade que impõe à pintura, fica claramente situado como um demarcador do centro do quadro. O quadro, a imagem e o autor confundem-se já nesse momento.

Dessa maneira, encontramo-nos com uma referência de gozo, mal-estar e sintoma, articulados numa narrativa mitológica que se reproduz numa pintura, principalmente ali onde o que está em jogo é a nomeação; o sentido do Eu que é extraído do espelho das águas, possibilitado pela marca da linguagem que afetou Narciso no momento em que se aproximou de Eco, a ninfa da voz.

A Psicanálise sempre apontou a importância de Narciso frente à presença do amor, merecendo também atenção o fato de que, na construção imaginária do EU, algo da ordem de um suporte essencial dessa operação manifesta-se exatamente através do desejo do Outro. Não há possibilidade de construção imagética sem o Outro; esse Outro que é exatamente o suporte, aquele que banca com os seus significantes toda a operação que se joga no espelho da vida, tal e qual Narciso experimentou no espelho das águas.

 

3 - O narciso moderno

O narcisismo, o individualismo é o traço marcante da nossa época. E aqui inicia-se o nosso principal construto.

Como mal-estar, não existe outro ponto que possa melhor suscitar a formação de polêmicas discussões para nossa época. Da ética à moral, da simbolização ao ato, o que vemos é que o narcisismo jamais havia cobrado tamanho preço.

A grande evocação do narcisismo como mal-estar aparece no sentido de que não dá para ser feliz com a presença de um traço que afeta as relações no contexto do social. E será que quem, supostamente, experimenta esse traço contemporâneo também encontra em sua vida a possibilidade sonhada de ser feliz? É esse o lugar em que podemos situar o mal-estar de nossa época, a despeito de que Narciso sempre esteve presente na genealogia do homem.

A indiferença, o isolamento, a apatia, entre tantas outras leituras do sintoma narcisista que representa a época atual, recebem, ao mesmo tempo, um grande suporte que parece sustentar e, até mesmo, articular o mal-estar da nossa era. Esse suporte aparece transmutado exatamente no sintoma que se plasma no individualismo que o caracteriza e não poderia ser de outra forma, se o pensamos bem. O saber de nossa época carrega sua potência precisamente nas asas do virtual. E, quando falamos em potência, não podemos esquecer que o requisito básico para sua existência é exatamente a castração: o primado da angústia que Freud nos ensinou, em 1926, com "Inibição, sintoma e angústia". Significa dizer que, em si, a potência é angustiante.

Potência e angústia abrem precisamente uma conexão com aquilo que construímos, a partir da leitura moderna do mito de Narciso. A potência de Narciso anunciava-se através de uma imagem virtual, ao mesmo tempo em que exibia algo da ordem de uma impossibilidade já contida na alienação a que se submeteu. A marca da castração pode ser construída num "après-coup" quando, no início do mito, uma alusão à função paterna já aponta um interstício no desejo de Liríope que, depois de violentada, nomeia Narciso com um nome pertencente a uma cadeia simbólica narcótica. ... E Tiressias o previu: viverá muito desde que não conheça a si mesmo. ... E complementou Ovídio sabiamente, quando inseriu o mito de Narciso dentro das metamorfoses.

A ordem do sujeito do inconsciente aparece assim como aquela que cobra uma operação resultante de uma metamorfose e dela própria. De tudo aquilo que o sujeito transforma na sua existência sobra algo inominável, a não ser que o faça mediante a presença de uma pequena letra que em si aponta toda uma cadeia de pretendentes à ocupação do seu sentido. E, na nossa era, quem cobra o lugar, pretensioso de ocupá-lo, é tudo aquilo que a virtualidade propiciadora do individualismo reclama sob a égide da globalização. O objeto, o bem, a resposta e a informação voam em muitos bytes por segundo. E nele a possibilidade que se apresenta ao sujeito de apreender o que lhe falta.

Entretanto o resto de toda operação formalizada em direção à apreensão dos objetos que se anunciam, no horizonte, permanece inviolável. E nossa época carrega em si uma particularidade. Ela desponta como sendo - a partir do traço sintomático que a define -, como aquela que tenta, através da virtualidade, globalizar o resquício de todas as operações empreendidas pelo sujeito. Nela, apresenta-se Narciso um antigo herói de si mesmo, cuja maior façanha foi a de morrer quando tocou, pela linguagem, a morte que carregava em si. Inevitável ponto do nó, onde, para conhecer-se a si mesmo, inexoravelmente, há de ser traspassado pela linguagem, que, em si mesma, transporta a presença da morte. Há resto mais angustiante que esse suscitado pela linguagem? É a autêntica angústia do sujeito. É o ponto onde todas as estruturas se encontram mediante a presença ou a afetação de sua ausência.

Nesse ponto, o resto que emerge da operação formada pelo encontro da morte com a linguagem, isto é, de Narciso com Eco, é nada menos que algo que permanece para sempre passível de ser o causador de uma re-significação.

Podemos constatá-lo agora mesmo quando lemos, na imprensa, que os restos mortais de Santa Terezinha de Lisieux provocam filas quilométricas para que a fé seja realimentada, e, conseqüentemente, re-significada. Nesse ponto, não é necessário ficarmos presos aos restos mortais de famosos. É um dado constatável perante qualquer resto, depende muito mais do sujeito que o contempla e que, a partir dele, se vê causado. E mais: o resto mortal de Santa Terezinha - o que ele é além da contemplação de uma urna elegantemente adornada? Seria nada mais do que uma ausência contornada por uma caixa? É interessante essa idéia de resto causador de tentativas de significações, pois temos notícias, desde a Antigüidade, de que os Imperadores romanos que iam aos campos de batalhas e ali eram abatidos, recebiam dois tipos de funerais. Um em que se erguia uma tumba, em volta da qual a família se reunia para sua contemplação e homenagem; e outro, realizado em nome da figura pública perante todos. O curioso é que o nada que residia dentro desse espaço era suficiente para causar, naqueles que o contemplavam, a possibilidade de tentar preencher como podiam o vazio anunciado.

Assim, partindo da referência do vazio anunciado pelo resto que se faz evocado como presente na constatação de sua ausência, o Narciso contemporâneo cobra algo extremamente importante no vazio que se anuncia. O vazio se faz presente pelo traço narcisista constatado pelos grandes sintomas antes descritos. Entretanto, como os sintomas são metamorfoseados - e essa é sua maior qualidade -, hemos de vasculhar a causa de sua existência. É aí que, invariavelmente, nos encontramos com a presença inexorável de um resto. Resto atômico, resto de matéria radioativa, resto mortal e mortífero; enfim, causas de tentativas de elaborações simbólicas sobre um mal-estar que se plasma de forma impregnada aonde quer que o sujeito vá.

 

4 - Mal-estar e resto

A noção de resto, como dizíamos no princípio deste trabalho, é contemporânea da emergência do homem moderno, à medida em que, sempre existindo, é ali que ele passa a ser resgatado com toda sua pujança. Ela é contemporânea à construção do homem finito. Como resultado da operação de sujeito, o resto passa a ser o autêntico mal-estar que sempre há de incomodá-lo.

Quando consultamos a Psicanálise, deparamos uma referência importante para dimensionar a noção de resto. Algo da ordem de um mito e que Freud, em 1915, na "Pulsão e seus destinos", destaca como uma referência sem a qual a Psicanálise não pode sobreviver. A pulsão, como algo fronteiriço entre o que aparentemente se cobra sobre o corpo biológico, ganha outro espaço, destacando, sobretudo, tal como Narciso às margens das límpidas águas da fonte, uma outra dimensão encaminhada diretamente ao nível não mais das necessidades, senão daquilo que se estrutura a partir da demanda.

Assim, a demanda do Narciso contemporâneo, muito longe de ser atendida pelo lado do discurso da necessidade de individualização e das invenções tecnológicas, aponta em direção ao amor - autêntica matriz do nosso velho Narciso ovidiano e que serve de esteio para os reclames de uma demanda de individualização, o que é totalmente distinto de uma necessidade.

O resultado dessa operação é constatado nas diversas formas que veiculam o sintoma de nossa época. A "preocupação de si" que hoje vislumbramos, enche as academias em busca do belo; enche os calçadões em busca das formas; enche as redes de navegação informatizada em busca de tudo, deflagrando, em cada saída, um encontro com o vazio nunca preenchido.

Em todas essas buscas o sujeito do contemporâneo, viajando nas asas do velho Narciso, se depara com seu ponto de finitude, seu ponto de apoio estrutural que é exatamente a linguagem que o faz existir. E é nesse ponto de apoio que a linguagem transporta a finitude de todo projeto pleno ou global, pois como já assinalamos, a linguagem porta a morte do ser, tal como Narciso experimentou depois do contato mantido com Eco.

Estamos outra vez com o encontro promulgado pela morte e a linguagem. Só que hoje, a linguagem sugerida pela tecnologia virtual sintomatiza uma relação extremamente formadora do estranho como causa de angústia. A tecnologia virtual que se propõe a fazer o novo, na verdade, produz o velho, o obsoleto, isto é, ali onde se pensa apresentar o novo que impele uma relegação de realização e de satisfação do indivíduo "consigo mesmo", o que promulga é a presença da morte inserida nas entranhas do recém-fabricado. Esse fato denota que nada, ninguém, que esteja atrelado a um estatuto simbólico, poderá subverter para si, em sua plenitude, a condição de viver por si. Fundamentalmente vive-se pelo amor narcisista, porém, sempre com uma fantasmática que se atrela ao Outro, como aquele que porta o tesouro dos significantes.

Quando a tecnologia virtual propõe a morte como artefato, como artifício da individualização, é suportada essencialmente pela condição de um discurso que se apresenta como garantia do individual. Significa dizer que aquilo, que socialmente ocupa o lugar de uma idealização máxima em um dado momento da história da humanidade, é produto inconteste de uma criação - e isso podemos constatar agora com o avanço constante da tecnologia e da ciência - que o sujeito, através do seu suporte fantasmático, articula para dar conta, mais uma vez, de uma possível apreensibilidade do resto como causador de um mal-estar perene.

Em "Ciência e a verdade" (1965), podem ser deduzidos efeitos do resto que Lacan indica nas dimensões da arte, da religião e da ciência. Há sempre, nessa dimensão da verdade, um ato, um artifício, um artefato que denotam os efeitos do resto na criação e da responsabilidade que o sujeito do inconsciente ostenta desde a posição que ocupa. E aqui aparece uma referência ao resto como sendo aquilo que, de qualquer ponto que apareça, causa o sujeito desde a posição que ele ocupa e que o conclama, sobretudo, a uma responsabilidade.

Dizer-se "Iste ego sum", no contemporâneo, requer, sobretudo, uma leitura das novas águas que a virtualidade criada como demanda nos impõe. E essa virtualidade nos mostra que as águas são mais sutis.

Nas águas do virtual, podemos acessar inúmeras variantes da escrita, da escultura, da pintura, da política, do bem e do mal, enfim, estamos sempre perscrutando, ao mesmo tempo em que o olho do tempo - como Dali estruturou - nos contempla, mostrando que há dois tempos, um pertencente a Chronos e outro da ordem de uma outra lógica, defasado de qualquer possibilidade de justa medida, pertencente ao Inconsciente.

O que importa dentro dessa série de referências é que o resto é uma constante que emerge como presente ali onde tentamos deixar a marca da nossa presença. E a resposta será sempre aquela que não pode encontrar outra dimensão que não seja a marca do inapreensível. Dele somente uma referência é incontestável: seu fundamento de "causação".

A causa que queremos resgatar para o cenário do sintoma contemporâneo é exatamente essa que emerge do espaço promulgado pelas metamorfoses. Metamorfose que Ovídio soube apontar magistralmente na sua época e que hoje se anuncia como possibilidade/impossibilidade, ali onde a causa é o outro lado do desejo. E, como causa, o resto é mantenedor daquilo que há de vigorar para sustentar a condição humana. Metamorfose é um princípio de humanização. E se por um lado existe a causa silenciosa que afeta o sujeito, é porque encontra-se nela mesma a possibilidade de que o homem viva - através da sua condição de desejante eternamente insatisfeito - perseguindo uma meta inatingível que implica um movimento dietético constante em torno da falta e do excesso.

Nesse sentido, o resto serve, ao mesmo tempo, como causa e como desencadeamento de produção. E o produto sempre implicará a presença do resto, à medida em que nenhuma produção portará em si a grande obra acabada. Do único que pode dar conta é a presença do resto da operação gerando um mal-estar.

O mal-estar na religião sempre se encaminha a uma busca de um resto que anuncie uma forma de garantir a fé. O das artes implica a tentativa de ocupar um vazio mediante um artifício. Finalmente, o da ciência segue em direção à possibilidade de agarrar o saber. Em todas elas permanece, resplandecente e invisível, o resto silencioso de uma operação que denota uma falta, um vazio em todas as tentativas de respostas totalitárias ao sentido das existências. Em todas elas aparece, intocável, o fracasso de uma satisfação plena. Assim o foi com o nazismo, o fascismo e com todas as intentonas que relacionam poder e delírios de domínio pela superpotência cega. A potência imprime a cada totalitarismo uma condição de limite. Isso pode ser visto em todas as seitas que, pela promessa da salvação da falta, geram a totalização do fanatismo. Fanáticos do real impossível que, em suma, geram o fracasso da fé. Assim pode ser constatado na busca cega da construção do saber no terreno da ciência que gera os impasses éticos do lugar da ciência, exigindo que seja operada uma aparente parada nos ideais do cientista.

Mal-estar na religião, na ciência, nas artes, na política, enfim, mal-estar do sujeito que tanto nos dispomos a dizer. É natural que a todo fim sempre se evoque um resto. No individual e no social. Assim é o mal-estar do fim do século. Requer, sobretudo, que seja re-significada a presença daquilo que fica acoplado ao momento de tantas buscas de elaborações. É o que fica como causa da própria condição de desejo do que caracteristicamente não pode ser dado conta e que sempre exige uma outra forma de lógica que cada sujeito há de produzir. É o mal-estar marcando sua autêntica presença: a impossibilidade de elaboração totalitária.

 

 

* Conferência apresentada no I Congresso sobre Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza/CE, 1998.

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