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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.1 n.1 Fortaleza set. 2001

 

CONFERÊNCIAS

 

Mal-estar e subjetividade brasileira*

 

 

Luís Cláudio Mendonça Figueiredo

Doutor em Psicologia pela USP, Professor da USP e PUC-SP, Autor de Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos (1995), A invenção do psicológico (1996) e de diversos artigos em revistas especializadas. E-mail: lclaudio@netpoint.com.br

 

 


RESUMO

Na minha fala procurarei chegar à questão do que poderia ser considerado como "sintoma social no Brasil" através de um trajeto, um pouco longo, que se inicia com a releitura de dois textos de Freud - O Futuro de uma ilusão e O Mal-estar na cultura. Nesses trabalhos de maturidade, Freud nos oferece uma compreensão das relações entre "natureza" e "cultura" e entre "indivíduo" e "sociedade" que até hoje é difícil de apreender em sua radical novidade. Tentarei demonstrar que nem complementaridade, nem oposição simples, nem oposição dialética dão conta destas relações e que apenas o que Jacques Derrida denominou de lógica da suplementaridade corresponde ao pensamento freudiano e a uma ética psicanalítica em que o "mal-estar", um estado crônico mas tolerável de desprazer, é intrínseco à constituição do psiquismo e uma condição básica para a procura pelo homem das felicidades possíveis. Será, então, a partir desta lógica da suplementaridade e desta compreensão do "mal-estar" na cultura, que tecerei considerações acerca da Modernidade ocidental e de como o Brasil se insere em sua periferia, gerando sua própria versão, algo caricata, do "mal-estar". Finalmente, tentarei, com a ajuda de um dos nossos grandes humoristas - Luís Fernando Veríssimo -, sugerir o riso de nós mesmos como uma importante medida analítica e terapêutica.

Palavras-chave: cultura, indivíduo, natureza, sintoma social, sociedade


ABSTRACT

I tried in this paper to examine a question which could be called "the social symptom in Brazil". First I went into carefully reconsidering - The future of an illusion - and - Civilization and its discontents - from Freud. These works from Freud's maturity offer us a way of thinking about the relationship between 'nature' and 'culture',on one side and 'individual' and 'society', on the other side. It is difficult, even so many years after their issue, to fully understand the view that they convey, in all its radical novelty. I have tried to demonstrate that the logic which governs these relationships is not a logic of complementarity, nor of simple opposition, and not even of dialectic oppposition. Only what Jacques Derrida called a logic of supplementarity can correspond and be up to the Freudian way of thinking and to a psychoanalytic ethics. This way of thinking reveals that a chronic, but tolerable state of unpleasure (or a state of discontentment) is intrinsically present in the process of psychic constitution and it is also a pre-requisite for man's search for all possible happiness. It was therefore based on this logic of supplementarity and on this understanding of civilization and its discontents that I drew considerations about the way Brazil included itself in the outskirts of the occidental Modern Age, producing then its own parody-version of the discontentment. Finally I recommended, in agreement with one of our greatest humorists, Luis Fernando Versissimo, the practice of laughing at ourselves as an important therapeutic and analytic measure.

Keywords: culture, individual, nature, social symptom, society


 

 

1. A lógica da suplementaridade e as relações entre "natureza" e "cultura"

Comecemos relendo Freud, mais particularmente, dois textos de sua maturidade intelectual: O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na cultura (1930). A questão que nos move é a de como pensar freudianamente as relações entre "natureza" e "cultura" e entre "indivíduo" e "sociedade" (e, também, entre "saúde", "felicidade" e "mal-estar"). Penso que as complexas e intricadas relações que estamos investigando poderiam ser inicialmente expressas da seguinte maneira:

A cultura é o expediente que a natureza (humana) inventa para defender-se de suas deficiências e de seus excessos. Na "cultura" Freud, como se sabe, inclui os instrumentos e as técnicas para o domínio das forças naturais, os regulamentos - interdições e prescrições - ordenadores das relações entre os homens, os modelos e os ideais capazes de organizar e estabilizar a vida coletiva e ainda as ilusões necessárias à conservação da própria cultura.

Tentemos ver, mais em detalhe, o que fica implícito acerca das relações entre "natureza" e "cultura". De início, cabe assinalar as fraquezas e as deficiências da "natureza" que solicitam e exigem os recursos culturais de proteção (jamais suficientes e jamais perfeitamente adequados e, o que é mais grave, sempre trazendo riscos e introduzindo novos problemas); o protótipo destas fraquezas e deficiências naturais é a infância - com o nascimento antecipado, o desamparo original e nunca completamente superado, o processo de crescimento e desenvolvimento que impõem espera, incerteza, investimento no futuro e adiamento de retorno; outras figuras decisivas da fraqueza são as doenças e a morte para as quais, muitas vezes, apenas o consolo das ilusões forjadas pela cultura pode servir de remédio.

De outro lado, é necessário assinalar as forças e os excessos da "natureza" (as exigências pulsionais) e as necessidades de regulação, contenção mediante os recursos da "cultura" (recursos jamais suficientes e também trazendo riscos e introduzindo novos problemas). Enfim, dados os excessos e as deficiências da "natureza", a "cultura" é necessária para proteger a "natureza" de si mesma - em estado natural a natureza humana seria inviável; mas atenção: a "cultura" tem efeitos colaterais indesejados.

Em contrapartida, a "natureza" é o remédio que a "cultura" produz e adota para se defender de suas fraquezas e de seus excessos. Como se aprende com Freud, a libido e os impulsos destrutivos, que, de um lado, precisam estar sob os controles culturais, devem funcionar, de outro, como ingredientes constitutivos e remediativos da "cultura"; a própria hostilidade 'natural' contra a "cultura" é um aviso e um antídoto contra os excessos da "cultura" que podem pôr em risco a própria "cultura". Vejamos isso mais em detalhe.

Comecemos assinalando as fragilidades e deficiências da "cultura" expressas na impossibilidade, seja de impor-se definitivamente sobre as forças da "natureza" externa, sobre as doenças e a morte, seja de suprir adequadamente as deficiências da "natureza". Isto gera a necessidade de fortalecimento da "cultura" pelo recurso às forças naturais da libido e da agressividade. Como exemplo, podemos mencionar, rapidamente, o caso do superego e da culpa, com a pulsão de morte, fortalecendo a autoridade introjetada e a obediência racional aos regulamentos; podemos, também, mencionar o caso das identificações, fortalecendo os ideais e os modelos coletivos, e o caso da agressão dirigida aos estranhos - narcisismo das pequenas diferenças - atuando no fortalecimento dos vínculos de amor e cooperação entre parentes e vizinhos. Para Freud era claro que as paixões, cujos excessos deviam ser contidos para tornar a vida social e individual viável, tinham de ser elas mesmas cooptadas para as tarefas culturais de controle e regulação.

Finalmente, cabe salientar a força e os excessos da cultura: as exigências moralizantes rigorosas, os ideais inalcançáveis, as intervenções sobre a natureza - externa e interna - com efeitos colaterais indesejados, e, portanto, a necessidade de contrapesos naturais de ordem libidinal e agressiva. Na verdade, Freud, nos dois trabalhos que estamos examinando, freqüentemente fala como representando as exigências pulsionais contra os excessos da cultura; é assim que entendemos, por exemplo, a sua crítica ao mandamento amarás o próximo como a ti mesmo.

Após rastrear este emaranhado de relações de oposição, controle, contrapeso, apoios e alianças entre "natureza" e "cultura", podemos tentar uma visão de conjunto da lógica que aí vigora. A "relação" entre natureza e cultura, vista pela ótica de uma lógica puramente conflitual, seria reduzida a uma oposição simples; já pelo ângulo de uma lógica funcional-interacionista, "natureza" e "cultura" se ligariam em termos de complementaridade; finalmente, pela ótica de uma lógica dialética, "natureza" e cultura" se encontrariam nos momentos privilegiados das superações e das sínteses. Pensamos que o predomínio, nas duas primeiras, de uma lógica identitária (em que "natureza" e "cultura" são concebidas como entidades independentes, idênticas a si mesmas e mutuamente contrastantes) ou o predomínio da lógica dialética impedem a justa compreensão da lógica proposta e sustentada (com grande dificuldade) por Freud: trata-se, a nosso ver, de uma lógica da suplementaridade que articula "natureza" e "cultura" de um modo em que cada pólo é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, em que cada pólo procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos (Derrida e sua análise de Rousseau na Gramatologia, 1973).

Em decorrência de cada uma das formas de pensar as relações entre "natureza" e "cultura", impõe-se um modo de conceber "indivíduo" e "sociedade" e um modo de pensar o "mal-estar" e a felicidade. Pela lógica da pura oposição, o indivíduo vê-se e é visto como esmagado entre as forças conflitantes irreconciliáveis de "natureza" e "cultura"; aqui não poderia haver felicidade e nem mesmo "mal-estar" (uma forma tolerável de desprazer), apenas desintegração, desespero, hostilidade e destruição. Desta maneira de ver as coisas ou bem se faz uma opção pelos controles sociais e culturais, vale dizer, pela repressão, ou bem se opta pela liberação, pela espontaneidade, pela ruptura em nome das forças e exigências naturais.

Pela lógica funcional-interacionista, o indivíduo reconhece-se e é reconhecido como constituído pela contribuição complementar de "natureza" e "cultura"; neste caso, o "mal-estar" seria corrigível com uma reforma da "cultura" que a tornasse mais compatível com as demandas e imposições da "natureza". Freud, contudo, nos lembra que tais programas radicais de reforma - programas revolucionários - podem, paradoxalmente, impor imensos sacrifícios pulsionais sem nenhuma garantia de extinguir o "mal-estar".

Pela lógica dialética, o indivíduo é compreendido como síntese dialética de "natureza" e "cultura". Cabe reconhecer, nesta posição, conquistas e limites: já não há "cultura" e "natureza", "indivíduo" e "sociedade" como pólos auto-suficientes e idênticos a si mesmos, anteriores às suas mútuas relações, o que é um avanço; contudo espera-se, dialeticamente, uma síntese em que "natureza" e "cultura", "sociedade" e "indivíduo" formem uma unidade, o que, nos termos freudianos, já seria da ordem da ilusão, uma esperança utópica que apenas serviria para que se aceitassem - numa crença em sua provisoriedade - os imensos sacrifícios que os esforços de superação e síntese impõem; quanto ao "mal-estar", poderia ser aceito como um motivo da história - uma das formas da 'inadequação' entre sujeito e objeto que, desde a Fenomenologia do Espírito de Hegel, era tomada como fator de progresso no rumo de níveis superiores de unidade - mas deveria ser, finalmente, eliminado pela marcha triunfante da história.

Na perspectiva que acredito ser a de Freud, a subjetividade (o aparelho psíquico) é constituída na e pela lógica da suplementaridade. Neste caso, um certo desprazer é constitutivo, na medida em que não se pode pensar mais em uma subjetividade sobre a qual se abate o "mal-estar", mas em uma subjetividade que se constrói em e como conquista de um certo desprazer que é, ao mesmo tempo, a condição para a procura de múltiplas formas de felicidade, qualitativamente diferenciadas. Vale a pena recordar, neste contexto, que Ernest Wallwork, 1991 nos chama a atenção para a transição do uso do termo "prazer" (Die Lust) para o termo "felicidade" (Das Glück), nessas obras de Freud, o que implica, segundo ele, numa transição do hedonismo quantitativo - que envolve descarga de intensidades energéticas - para o hedonismo qualitativo - que contempla diversos prazeres que, mais do que conduzir à felicidade, a constituem, como, por exemplo, o prazer da criação artística, da fruição da beleza, da descoberta científica, da intimidade amorosa, da atividade livremente escolhida etc.

Nas três primeiras perspectivas, o "mal-estar" é, ou acaba sendo, de alguma forma, extrínseco, pois, mesmo segundo a lógica dialética na tradição hegeliano-marxista, ainda que inerente à história tal como a conhecemos, ele tenderia, ao cabo desta, a uma extinção; já pela lógica da suplementaridade (ou, provavelmente, da dialética sem síntese de Merleau-Ponty), o "mal-estar" é constitutivo e parte integrante de uma certa saúde; ainda assim, é possível distinguir o "mal-estar" constitutivo do que seriam os 'excessos desnecessários' de "mal-estar" que geram uma acentuação da hostilidade do indivíduo contra a cultura; convém não esquecer, contudo, as dúvidas de Freud quanto ao alcance até mesmo de suas esperanças mais moderadas e menos utópicas de conquista de uma felicidade mais completa, no sentido de uma felicidade de baixo custo.

Uma pequena digressão pode ser aqui incluída: se um certo desprazer é a condição e o preço das felicidades possíveis, podemos vislumbrar uma tragicidade na visão psicanalítica da existência humana e, também, na experiência analítica; esta tragicidade teria a ver com a necessária aceitação deste preço (preço que os neuróticos não suportam, buscando compensações sintomáticas, e do qual os perversos pretendem se furtar). A envergadura interior de que nos fala Alfredo Naffah Neto talvez seja mais do que apenas sustentar e reconhecer, em nós, os impulsos agressivos e libidinais anti-sociais, mas, principalmente, sustentar, no plano da experiência - e não apenas no plano intelectual -, o que já não é fácil - a lógica da suplementaridade que articula "natureza" e "cultura" e que nos impõe custos mais ou menos toleráveis, seja para a mera sobrevivência, seja, mais ainda, para a procura da felicidade em momentos intensos e criativos.

 

2. As vicissitudes da suplementaridade na Idade Moderna

Cabe-nos, na verdade, reconhecer a (quase) impossibilidade de sustentar a lógica da suplementaridade, mesmo no plano meramente intelectual e, mais ainda, não é preciso dizer, no plano das experiências: O fenômeno que mais chamava a atenção de Freud era o da hipertrofia patológica do cultural, uma exacerbação e rigidez excessiva dos controles e regulações da vida pulsional, o que se expressava, para ele, da forma mais clara no famoso "amarás ao próximo como a ti mesmo" da tradição judaico-cristã. Ora, nós hoje, se assistimos a um certo declínio da força deste e de outros "mandamentos", assistimos também à expansão e fortalecimento das "disciplinas" laicas que, sob a égide do individualismo, se organizam e atuam na forma de uma rede de controles extremamente eficaz, constituindo uma teia invisível que ordena, sustenta e orienta as existências individuais. A administração de corpos e mentes é hoje exercida em escala mundial e, ao mesmo tempo, na escala micropolítica, tal como nos sugeriu, de forma tão convincente, Michel Foucault (1975).

Na contramão da hipertrofia patológica do cultural, sempre foram criados os sonhos nostálgicos e terroríficos do encontro com a "natureza": em outras eras, a descida aos 'infernos', o contato, sempre arriscadíssimo e fascinante, com as forças subterrâneas (do mais exaltante bem e do mais tenebroso mal) parecem ter representado esta reabilitação da "natureza" no que tem de mais poderoso, restaurador, entusiasmante e aterrorizante. O 'dionisíaco' expressa bastante bem a duplicidade desta aventura. Na modernidade ocidental, sob a égide do individualismo, coube ao romantismo e seus heróis - a criança, o primitivo/selvagem, o doente, o puro/ingênuo, o delinqüente (o bandido), o louco, e, muito em especial, o gênio, que de uma certa forma reúne todas as demais figuras - esta recuperação do natural em sua angustiante ambigüidade. Chamam a atenção duas figuras arquetípicas que, desde os inícios da idade moderna, personificam a grandiosidade do que faz contato com a "natureza" em sua impetuosidade criativa e sedutora e em suas trevas: refiro-me ao Fausto e a D. Juan, ambos concebidos, no século XVI, e que, daí por diante, não deixaram de receber, em todos os séculos seguintes, inúmeras versões (Ian Watt, 1996). É interessante verificar como este contato íntimo com as forças subterrâneas dá ao Fausto e a D. Juan uma grandeza extraordinária - são figuras geniais, cada uma à sua moda - mas os leva sempre à danação, ao aniquilamento.

Contudo cabe, também, uma breve menção à noção romântica de "bildung" (formação) como representando a esperança de uma passagem mais harmoniosa, mais integrada, da "natureza" à "cultura" e do "indivíduo" à "sociedade"; trata-se de uma noção muito cara à vertente "dialética" do romantismo que estaria assim buscando, com seus próprios meios e a partir de suas premissas, uma solução menos destrutiva do conflito, por eles, inclusive, acentuado, entre "civilização" e "natureza" (Dumont, 1988, p 45-63). Mediante o conceito de "formação", o pensamento romântico se apropria, à sua maneira, de uma certa noção de equilíbrio que o coloca nas proximidades da posição ética que trataremos a seguir. A trajetória literária e estética de Göethe, que vai do "sturm und drang" a um certo 'classicismo', ilustra a passagem de uma crua oposição entre "natureza" e "cultura" para uma solução pela via da bildung.

Pois, se há uma hipertrofia do cultural e, em contrapartida, um sonho de recuperação da natureza, a separação destes dois pólos também propiciou o sonho prometéico da equilibração: indo do apolinismo grego ao iluminismo ilustrado e a seu representante político, o liberalismo, o que vemos é a procura de uma forma equilibrada em que "natureza" e "cultura" - pensadas como entidades independentes - possam, apesar disso, conviver proveitosamente. Sob a égide do individualismo moderno, este impulso encontrou sua expressão ideológica mais clara na ética liberal: de um lado, "cultura" (instrumentos e técnicas) e "natureza" (fontes e materiais) reunidas na forma do trabalho livre, representando a verdadeira essência do humano; de outro, liberdades e direitos individuais ajustados, complementarmente, à obediência às exigências da vida coletiva expressas na forma do 'contrato social', representando a verdadeira essência tanto da individualidade (na sua forma plenamente desenvolvida de 'cidadão') como da sociedade (na sua forma plenamente desenvolvida de 'democracia'). Aqui, vale recordar a figura arquetípica e um dos emblemas da modernidade burguesa e liberal que é Robinson Crusoe (Ian Watt, 1957 e 1996), este heróico comerciante e industrial que, sozinho, implanta a civilização em uma ilha selvagem.

No livro A Invenção do Psicológico, Quatro séculos de subjetivação (1500-1900), começamos a investigar as relações entre "disciplinas", "romantismo" e "liberalismo" marcados por conflitos e alianças muito mais complexos do que se poderia pensar, tomando-os isoladamente como pólos éticos que disputam a dominância ideológica da nossa contemporaneidade. Ora, retomando o problema a partir da leitura que fazemos do pensamento de Freud, poderíamos dizer que estes pólos e estas complexas relações são derivados da lógica da suplementaridade que articula "natureza" e "cultura", quando age sob a égide do individualismo moderno. (Em outras épocas, a mesma lógica gerou outros terrenos e outras tensões).

 

3. Retomando Freud e o lugar ético da psicanálise

Mas retornemos, por um momento, a Freud e à lógica da suplementaridade. O primeiro aspecto que convém assinalar é a sua incompatibilidade com as éticas disciplinares, românticas e liberais. Se a "natureza" é apenas apelo do suplemento cultural e a "cultura" é apenas o apelo do suplemento natural, todas as éticas, que têm como premissa a independência e auto-suficiência de um dos pólos, não só estão fundamentalmente equivocadas, mas, o que é mais grave, estarão sempre gerando, sem querer e sem saber, os seus inevitáveis suplementos que, por inadvertência, lhes parecerão seus opostos. A lógica da suplementaridade não pede licença à consciência para produzir seus efeitos!

Outro aspecto a considerar é o da vigência inevitável destas éticas e das separações identitárias entre "natureza" e "cultura". O movimento da suplementaridade é um desafio tanto à consciência como à experiência afetiva pois exige uma mobilidade contra a qual costumamos resistir. Na verdade, esta mobilidade, vale dizer, este desassossego, esta temporalização inevitável em que cada 'momento', cada 'pólo', cada 'lugar', nos remete ao seu outro, é a outra face do "mal-estar", é aquela quota de dilaceramento, de desprazer, de insatisfação com que pagamos, quando estamos preparados para isso, o preço das felicidades possíveis. As resistências neuróticas ou perversas ao "mal-estar", que, continuamente, procuram reduzir o preço da suplementaridade separando "natureza" e "cultura", dão à psicanálise a incumbência de uma desconstrução permanente. Os humores da tragédia e da ironia provavelmente sejam os que poderão desempenhar-se mais a contento desta tarefa desconstrutiva.

Contudo, a própria Psicanálise não está livre destas mesmas resistências e isto resulta na dificuldade de ler efetivamente Freud e na predominância das leituras tendenciosamente disciplinares, liberais ou românticas da psicanálise. É preciso que se diga que estas leituras freqüentemente se valem de trechos efetivamente escritos por Freud. Em quantas situações, por exemplo, Freud pareceria estar esposando uma perspectiva de crua oposição ("o indivíduo esmagado pelas repressões culturais") para a qual se poderia pensar, ou bem numa saída libertadora e romântica, ou bem numa solução adaptativa e funcional, o que criaria uma espécie de oposição entre "freudianos de esquerda" e "freudianos de direita"? E, no meu entender, Freud nem está à esquerda, nem à direita nem, muito menos, no "centro", se esta for entendida como uma posição conciliadora.

Se me permitem uma pequena digressão, gostaria de ressaltar que é, a partir de uma leitura da psicanálise sob a ótica da oposição simples, que Foucault (1984) a identifica com o que ele denominou de "hipótese repressiva", a que ele contrapõe a idéia de que os dispositivos de controle da sexualidade, longe de a reprimirem, constituem-na. Ora, mas é exatamente a duplicidade repressão/constituição que revela uma das dimensões e um dos movimentos típicos da lógica da suplementaridade que, a nosso ver, é a que corresponde de fato ao pensamento freudiano. Nesta medida, a crítica de Foucault à "hipótese repressiva" não derruba senão uma leitura simplificadora e facciosa da psicanálise - que só pode conceber uma oposição simples entre "natureza" e "cultura" - e não a psicanálise tal como pede para ser lida como uma teoria da "cultura" em que esta comparece como resposta a um apelo de suplemento à natureza (tanto para refreá-la, quanto para sustentá-la e constituí-la) e, ela mesma, solicitando suplementos naturais para o exercício de suas funções. Diante da lógica da suplementaridade, a proposta foucaultiana representa, isto sim, uma redução simplificadora, embora antagônica à da "hipótese repressiva", pois dela fica eliminado o momento conflituoso que a lógica da suplementaridade supõe.

Por outro lado, em quantas situações Freud pareceria sustentar uma perspectiva conciliadora, equilibrada, sensata e liberal? E, no entanto, uma leitura do conjunto destas obras e da lógica que articula suas idéias, nos leva a algo muito diferente do interacionismo-funcionalista que subjaz à ética liberal.

Contudo, a lógica da suplementaridade não sossega nem nos dá sossego, é preciso considerar as lições que estas leituras facciosas da psicanálise proporcionam, se sustentadas umas com e contra as demais. Este movimento pode mesmo gerar uma freudianização progressiva da psicanálise, não na forma de um retorno a Freud, mas de um progresso na sua direção. Freud - segundo A. Green - é o que de mais novo há em psicanálise, e, provavelmente, continuará sempre sendo, mas a este novo 'original' só chegaremos, se é que poderemos um dia ir tão longe, pela mediação do que vier depois.

 

4. Terra à vista

Mas, finalmente, cremos que é hora de ir chegando, se não a Freud, ao menos ao Brasil, estranho País na periferia do Ocidente. Dada esta condição periférica e vicissitudes de nosso processo de colonização (que ainda está em curso), fomos, desde muito cedo, associados ao exótico naturista e paradisíaco. Não se trata de um exotismo qualquer, como o "exotismo" oriental, mas de um exotismo em que a ligação com a natureza sobressai. Criou-se, assim, uma predominância da imagem romantizada da terra e da gente, pois foi o romantismo e seus predecessores históricos que sonharam, permanentemente, com a reabilitação da "natureza". É como se fôssemos e devêssemos nos contentar em ser a encarnação viva destes sonhos, conforme tão bem foi analisado por Sérgio Buarque de Hollanda e por Octavio Paz (1972). Cremos que há uma nítida continuidade entre os primeiros relatos europeus, baseados em viagens geográficas e imaginárias, que vão do "nesta terra em se plantando, tudo dá", passando pelo espanto excitadíssimo dos europeus com o canibalismo lascivo das velhas índias, que chupavam, até a medula, os ossinhos dos prisioneiros sacrificados e se dispunham, de bom grado, a fazer a iniciação sexual dos curumins, até o "nacionalismo indigenista romântico" que marcou uma certa emancipação brasileira nas artes e nas letras do século XIX. De sorte que a volta à antropofagia como projeto cultural, no século XX, é muito menos inovadora e muito mais de acordo com a resistência à lógica da suplementaridade - vale dizer, resistência ao "mal-estar" - do que pretendem seus porta-vozes. Da mesma forma, o mito da miscigenação, o mito da natureza luxuriante, das mulheres gostosas e generosas, o mito da cozinha farta e seus quitutes, o mito da feijoada, do vatapá e outras comidas quentes e pesadas -, o mito da cordialidade, da informalidade, do jeitinho, do doméstico e do pessoal, etc. que tão entranhadamente participam de nossas subjetivações são os sinais esparsos e diversificados da índole romântica com que nos criamos e fomos criados. Como dizia o poeta Lamartine: do guarany ao guaraná surgiu a feijoada e depois o parati.

Gostaríamos aqui, dada a ressurgência endêmica das propostas antropofágicas, de fazer o assinalamento de uma importante anotação freudiana acerca do canibalismo. Em O futuro de uma ilusão (p. 10-11), Freud apresenta o canibalismo como sendo o impulso primitivo, definitivamente, controlado pela cultura, ao contrário do impulso agressivo e libidinal que, de diversas maneiras, acaba escapando ao controle. Ora, é interessante ver Freud situando o canibalismo entre o amor e o ódio (a ordem da apresentação é exatamente esta). Poderíamos, também, e Melanie Klein e Winnicott nos ajudam nisso, pensar o canibalismo como o intrincamento pulsional de amor e ódio na formação de um amor absoluto, voraz e destrutivo. Nele, as forças magnas da "natureza", ao invés de se articularem segundo a lógica da suplementaridade, somam-se na produção de um 'excesso excessivo' exigindo, conforme Freud bem acentua, o máximo de rigor no seu controle. A partir dessas referências, o projeto antropofágico, canibalista, poderia ser entendido como uma hiperutopia romântica, como a liberação e o exercício do que de mais fascinante e tenebroso a "natureza" pode criar, esta aliança irrestrita do amor e do ódio. Mas não nos assustemos: a lógica da suplementaridade nos salva deste perigo da devoração. Nossos antropófagos modernos e pós-modernos, de Oswald de Andrade em diante, são gente cultivada, com muitas passagens pela Europa e com modos muito cosmopolitas, bem diferentes dos índios que paparam o bispo Sardinha. Não há motivo para medo.

O que se passa é que tão antigo quanto a referência naturista e romântica, despertou-se em nós o gosto pela ocidentalização ornamental. Como ficavam alegres os índios com os espelhinhos, os pentes, as contas de vidro e demais bugigangas que recebiam de presente dos invasores. Como continuamos consumindo alegremente as bugigangas metropolitanas. Mas, como se dizia numa velha marchinha carnavalesca, "índio quer apito", ou seja, um jeito mais eficaz de produzir barulho e chamar a atenção. É possível, assim, seguir uma linha de continuidade que nos leva das bugigangas de antigamente aos modos e costumes do brilho internacional, às falas empoladas e pretensiosas - ultramodernas, pós-modernas - aos equipamentos importados de última geração, às idéias fora de lugar, etc., etc. É neste contexto que se pode pensar a questão da globalização e seus usos indígenas: do apito do índio ao celular do camelô haverá realmente alguma diferença? Os modernos canibais não estão, em absoluto, livres desta tendência. O próprio liberalismo, como nos mostra Roberto Schwarz, é importado como outros artigos estrangeiros que, de um lado, ornamentam seus falantes defensores e, de outro, prestam-se a usos perversos, como instrumento de exclusão e marginalização econômica e social das massas.

Mas não é só: a entrada da periferia no concerto das Nações dependerá, também, de um processo que já foi muito bem denominado de modernização autoritária. As "disciplinas", ou seja, uma hipertrofia do "cultural", é imposta pelas elites europeizadas ou americanizadas para nos tornarmos ou, ao menos, nos parecermos minimamente parceiros confiáveis na acima mencionada globalização da economia e da cultura. O recente episódio da implantação de um novo código de trânsito revela claramente a presença deste motivo e deste estilo de funcionamento subjetivo que, em outro trabalho, chamei de "legalismo": através de leis e decretos modernizantes e autoritários tenta-se criar uma realidade social que, como seria de esperar, resiste a estas intervenções produzindo, no seu lugar, uma cultura da transgressão. A suplementaridade pode ser impiedosa!

Ora, temos, assim, três maneiras de nos integrar, como periferia, à cultura ocidental: bancamos a "natureza" em estado bruto e convidamos todos ao gozo universal ("você já foi ao carnaval de Salvador?"); mas também queremos apito, para apitar um pouco mais alto nos ouvidos estrangeiros ("nosso futebol, nossa alegria, nossa natureza e até nossas leis são as melhores do mundo! Como me ufano do meu País!"); e ainda nos submetemos, geralmente contra gosto, mas com grande alarde na midia, às disciplinas, o que nos torna ou nos faz parecer um povo viável.

Ora, não se trata de três diferentes personagens, externas umas às outras. O que está em jogo é um movimento que habita e desassossega cada um de nós. Nesta tríplice inserção, o que está operando, como não podia deixar de ser, é a lógica da suplementaridade cujo vislumbre Freud nos ofereceu. Contudo, parece que estamos diante desta lógica na sua versão caricata. Trata-se de uma versão que nos solicita, para ser posta a nu e em movimento, uma forma muito eficaz de desconstrução: o riso.

 

5. Só rindo

Quando a civilização ocidental chegou a certos lugares distantes, puderam-se ver cenas curiosas em que alguns nativos adotavam cartola, gravata e meias e assim desfilavam descalços e sem mais nenhuma peça de roupa. Com isso perdiam a elegância que um corpo nu pode ter e não conquistavam a elegância dos 'civilizados'. Pois bem, o riso é o que brota quando vemos que o povo está nu, está nu debaixo dos seus pobres farrapos, mas continuamos nus dentro das luxuosas fantasias de griffes internacionais e dentro de nossos carrões importados, nus manipulando nossos computadores, nus navegando na Internet, nus exibindo, orgulhosamente, nossos celulares, etc., etc., etc.

Só rindo e numa homenagem aos humoristas brasileiros, capazes de captar o País através de uma espécie de 'linha vermelha', com ligação direta com nossas peculiaridades, eu quero terminar lendo trechos de uma crônica de Luís Fernando Veríssimo, um dos meus mais queridos professores do Brasil.

Biggs foi destaque! O famoso ladrão inglês encontrou no Brasil algo que foi além da brasileira hospitalidade. Escolhido como destaque de uma escola de samba, ensejou as seguintes observações de Veríssimo.

 

6. "Nos entendendo"

"É uma velha angústia colonial: o que vão dizer de nós na metrópole?" O que dirão os ingleses vendo a foto de seu ladrão mais célebre transformado em carro alegórico no carnaval da Argentina, ou do Brasil, ou como quer que se chame aquele estranho lugar lá embaixo?... Os ingleses que nos roubaram durante tantos anos mas com tanta distinção, devem ter ficado chocados. Biggs lá embaixo, não é apenas um pecador absorvido, absolvido e salvo da extradição. É destaque?

E a Jacqueline Bisset? O que a Jacqueline Bisset pensou de tudo aquilo? Qual a mensagem do camarote da Brahma para o hemisfério Norte? Não me convidando para o seu camarote, este ano, a Brahma, sem saber, frustrou um antigo projeto meu, que era ter um filho com a Jacqueline Bisset ... . Além de lhe propor um filho, eu gostaria de observar a impressão que o Brasil, ou mais precisamente, a Sapucaí estava causando na Jacqueline Bisset em particular e na civilização ocidental em geral. Temos esta convicção contraditória de que só se pode explicar o Brasil explicando o Carnaval e que o Carnaval - acima de tudo o camarote da Brahma - é inexplicável. Temos um carinho por nós mesmos, pelas nossas contradições e bizarrias, e a certeza de que o que mais nos auto-enternece é o que nos torna inviáveis para o resto do mundo. Ou seja, se a Jacqueline Bisset compreendeu o Brasil, a sua vinda foi um fracasso. Queremos celebridades perplexas, espantadas, se possível, revoltadas. Vivemos com a cabeça no hemisfério deles e com o corpo suado aqui embaixo e, se eles por acaso aderirem a esta esquizofrenia, é porque estão se rebaixando, e não interessam. Queremos lamentar o Biggs e festejá-lo ao mesmo tempo. Vá nos entender.

 

 

* Conferência apresentada no I Congresso sobre Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza/CE, 1998.

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