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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.2 no.1 Fortaleza Mar. 2002

 

CONFERÊNCIAS

 

Educação e modernidade: uma contribuição às discussões sobre o mal-estar*

 

 

Maria Luisa de Aguiar Amorim

Licenciada em Pedagogia na UFC, especialista em Educação de Adultos, Básica, Não-Formal, pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, mestra em Educação, pela UFC e doutora em Sociologia e Ciências Políticas, pela Universidade Complutense de Madrid. Professora adjunto da UFC e UECE, Ceará. End: R: Ana Bilhar, 307. Aptº 303. Meireles - 60160-110 - Fortaleza-CE.

 

 


RESUMO

Este estudo busca contribuir nas discussões sobre o mal-estar. Tomamos como eixo os fundamentos econômicos, sociológicos, políticos e filosóficos que forjaram a moderna sociedade. E procedemos agrupando as análises em torno de três histórias: o mito de Robinson Crusoe, a figura histórica de Benjamin Franklin e a Fábula das Abelhas, de Mandeville. Na primeira, analisamos o individualismo, a solidão e o abandono a que estamos expostos. Destacamos o utilitarismo e a concepção de vida prática, apoiada num espírito capaz de enfrentar adversidades, num esforço infatigável diante do trabalho, numa indômita resolução e paciência invencível. Além de Ian Watt, que toma uma obra alegórica para caraterizar o individualismo, tomamos Rousseau e Marx, que ajudaram a popularizá-la e ainda tecemos considerações em Locke, que identifica as bases da legitimação da propriedade privada e funda o liberalismo político. Na segunda, vemos, no homem que se faz por si mesmo, o modelo da personalidade moderna. Weber nos ajuda a observar a filosofia da avareza e os motivos éticos religiosos que colaboraram na constituição da sociedade capitalista atual. E ainda: o conceito de profissão, a importância dos especialistas, o racionalismo calculista, a perda dos valores éticos e a maquinização da existência. Na terceira, identificamos como os vícios privados fazem a prosperidade pública. O bem-estar tem um preço: a criação de riquezas se alicerça na ignorância de milhares de trabalhadores dispostos a se entregarem com satisfação e sem descanso ao trabalho duro e sujo que há por fazer. No desdobramento, tomamos, em Smith, a importância da divisão do trabalho para a educação, sua concepção de homem egoísta e interesseiro e suas propostas de educação do homem de negócios e das pessoas comuns, ambas voltadas para o adestramento para as profissões. A ausência de ideais e de sentido do dever para si mesmo e o outro nos conduz em ao reconhecimento de uma tragédia ética moderna; e nos aponta o horizonte de Aristóteles como inspiração para resgatar nossa humanidade perdida.

Palavras-chave: Individualismo, egoísmo, solidão, utilitarísmo e desumanização.


ABSTRACT

This essay intents to bring contributions to the debate about the discontents. We choose as an axis of study the economic, sociological, political and filosofical basis that forged our modern society. And we proceed by grouping our analysis around three stories: The Rosbinson Crusoe mith, the historical figure of Benjamin Franklin and the Fable of the Bees, by Mandeville. On the first one, we can analyse the individualism, the solitude and the abandonment to which we are exposed. We underline the utilitariism and the concept of practical living, supported by an unbreakable spirit, a tireless effort in the face of work, an undomitable resolution and an unbeatable patience. Besides the alegorical work of Ian Watt, used to characterize individuality, we also take Rousseau's and Marx's works, that made it popular, and furthermore, we extend our study to Locke, that identified the basis that legitimized private property and founded political liberalism. In the second one, we see the "self made man", the model of the modern personality. In the works of Weber, we are shown the philosophy of avarice and the ethical and religious reasons behind the creation of the modern capitalist society. And yet, the concept of profession, the importance of experts, the calculist rationalism, the loss of ethical values and the machinization of existence. On the third one we observe how private vices make for public prosperity. There is a price for confort: the creation of wealth has its foundations on the ignorant bliss of thousands of workers that willingly and tirelessly give their hard work. Therefore, we see in Smith the importance of the division of work with education, his concept of a selfish man and his proposals for the education of the bussiness man and of the common folk, both of which are focused on job training. The absense of ideals and the sense of duty for oneself and others leads us to one inevitable conclusion: the tragedy that is the modern ethics; and points our views to the horizon described by Aristoteles as a guide on how to rescue our lost humanity.

Keywords: Individualism, selfishness, solitude, utilitarianism and dehumanization.


 

 

Inicialmente, agradeço, honrada, o convite para participar deste encontro onde, mediante reflexão sobre a modernidade e sua educação, espero colaborar nas discussões sobre o mal estar. O mal-estar não é objeto direto de meus estudos. No entanto, as análises que tenho realizado a respeito do mundo moderno, as condições de nossa existência e as possibilidades da educação podem ser válidas para o problema em questão.

Para estruturar meu pensamento, destaco os seguintes temas: o individualismo e a solidão e o abandono em que nos encontramos; o egoísmo como fundamento de nossas ações; o utilitarismo, a coisificação e a "maquinização" da existência; o processo de desumanização; o mundo não ético e a necessidade da recuperação de nossa humanidade.

Desenvolverei os temas lançando mão de estudos de cunho econômico, sociológico, político e filosófico, procurando, numa leitura pedagógica, os fundamentos da sociedade e educação modernas. Paradoxalmente, no mundo que se organiza dirigindo-se ao bem-estar, talvez possamos encontrar alguns elementos que expliquem o imenso mal estar que sentimos. É o caso de indagar: onde está o erro? É possível corrigi-lo? Que direção tomar?

Para tornar mais atraente a exposição, tomo três histórias, nada ingênuas: a de Crusoe, a de Franklin e a fábula das abelhas que ajuda na iluminação das questões em foco.

Diferente do que se costuma pensar, os mitos exercem um enorme papel educador. Neles se constroem referências e modelos que orientam nosso comportamento. O mundo clássico foi abundante na criação dos mitos. Hoje os abandonamos e perdemos uma bússola educadora. No entanto, menos respeitados pelo poder orientador da ciência, nasceram novos mitos. Em diferentes estudos, são mencionadas algumas figuras que nos ajudam a compreender a lógica do mundo em que vivemos. Nesse sentido, creio que não seria perda de tempo recordar a força de Robinson Crusoe e a figura histórica de Benjamin Frankin. Fausto, Dom Quixote ou Dom Juan são outros mitos ressaltados por Ian Watt, na base do individualismo moderno. Fiquemos com os primeiros e acrescentemos a "fábula das abelhas", de Bernard Mandeville, em que, a atenção se desloca do indivíduo para a sociedade.

 

1- O MITO DE ROBINSON CRUSOE E O INDIVIDUALISMO, A SOLIDÃO E O ABANDONO EM QUE NOS ENCONTRAMOS

Robinson Crusoe, novela de Daniel Defoe, encontrou enorme popularidade, desde 1719. Sem entrar ainda diretamente na análise da obra, indagando se seria possível suportar a vida solitária, Defoe encontra, como resposta, que "a vida é, ou deveria ser, nada além de um ato universal de solidão". Para ele, nada há de aflitivo com a solidão, se o homem é capaz de encontrar voz para falar consigo mesmo ou com Deus, diz em Serious Reflecxion, no capítulo "Da Solidão". As Aventuras de Robinson Crusoe é uma obra escrita na alvorada do novo mundo e no contexto de sérias lutas religiosas protestantes. Defoe fala de solidão como expressão do individualismo, elemento central em sua psicologia. Tudo gira em torno de nós mesmos e "nosso eu é a própria finalidade da vida". Emitimos julgamentos sobre a prosperidade e a aflição, alegria e tristeza, pobreza e riqueza e todas as variadas faces da vida, comenta. A tristeza e alegria alheia só nos comovem por força da simpatia. Amamos, odiamos, desejamos, gozamos tudo em privado, em solidão. Comunicamos ao outro nosso interesse de ajuda na perseguição de nossos desejos. Mas o fim está em nós mesmos. Tudo é solidão e o amor próprio é a base de nossas ações.

O mito de Robinson Crusoe alicerça um mundo em que o homem se encontra sozinho. Sobrevivente de um naufrágio, o homem comum é capaz de vencer a natureza e dominá-la. Em solidão, ou quase solidão, passa 28 anos numa ilha. Sob a perspectiva econômica, Crusoe enfrenta situações que refazem os degraus da história humana: colhe, caça, pesca, exerce atividades agrícolas, domestica amimais, estoca mantimentos. E se convence de que, com engenho, esforço e perseverança é capaz de tudo fazer. Descobre as diversas operações no trabalho de fazer seu pão, a divisão do trabalho, como, mais tarde, ensinará Smith. Mas, para ele, a vida não se resume a operações mecânicas, desde que encontre utilidade e goste do que faz. Os processos econômicos são transformados em atividades lúdicas, terapêuticas. A concepção religiosa do trabalho como sacrifício é tomada como obrigação ética. O trabalho tedioso, infindável e infatigável exige uma paciência invencível. Crusoe demonstra que o trabalho duro, perseverante e sem quebras é um dever. O homem econômico se revela no homem comum.

O fato de a burguesia ter concebido o homem à sua imagem projetando formas de vida universais, espalhando, para os quatro cantos do globo terrestre, uma lógica e modo de existência, aparece na percepção de Robinson Crusoe como representante da humanidade. A ambição de Robinson se limita a alcançar suas necessidades básicas; ele não deverá ter mais do que poderá usar. Sua filosofia é realista e utilitária: "as coisas são boas enquanto se prestem ao nosso uso". Ele estava mais interessado no lucro imediato do que em capitalizar. Mas, na satisfação de suas necessidades e interesses, metódico e trabalhador, o náufrago, nas terras do Novo Mundo, conseguiu enriquecer.

Na moral da história, na obra alegórica e emblemática, está a resposta a situações adversas, a paciência invencível, o esforço infatigável e indômita resolução. No apelo à solidão, na ilha desabitada, por certo, Crusoe não é referência de como governar um Estado, que está vazio de homens. Mas isso pode ser interpretado como uma grande abstração que ignora toda uma coletividade. Ele é a referência a fazer dos amigos meras coisas a usar em benefício próprio. A Sexta Feira não pergunta como se chama, o apelida. Em relação de silêncio funcional, Sexta Feira responde os eventuais "Não, ou Sim, meu amo". De fato, a palavra não tem importância neste mundo. No tocante à mulher, e de volta à civilização, o sexo continua subordinado aos negócios. Entre cinco, escolhe a mais feia e velha. No casamento, considerado investimento e negócio, se devia esperar das mulheres ajuda nos trabalhos.

Sem esgotar todas suas questões, Ian Watt, em quem me baseio nessas análises, ainda comenta: Robinson Crusoe é o épico dos que não desanimam. Não há lugar para o coletivo e o egocentrismo se imprime imune às críticas.

Outros estudiosos se remeteram ao mito de Robinson Crosue. Marx o cita em várias obras. Em O Capital, nos lembra que a economia política adora imaginar experimentos robinsonianos. Robinson aparece, na ilha, como homem moderado, que, para satisfazer suas necessidades, é compelido a executar trabalhos úteis diversos, a fazer instrumentos e a realizar atividades restauradoras, como rezar. A necessidade o obriga a distribuir o tempo em várias funções: umas mais, outras menos, segundo as dificuldades a vencer para conseguir o que ambiciona. Como bom inglês, salvou do naufrágio "o relógio, o livro razão, tinta e caneta" para organizar a contabilidade de sua vida. Sua escrita registra os objetos úteis que possui, as diversas operações requeridas em sua produção e, finalmente, o tempo de trabalho, já então entendido como valor. O mito de Robinson oculta o caráter social do trabalho. Visto sob o prisma do indivíduo, livre e autônomo, mascara-se o coletivo e a interdependência implicada no trabalho humano. A livre iniciativa pessoal e autônoma oculta que o trabalho é uma produção social. A teoria do valor do trabalho construída, no tempo dedicado à produção, permanece oculta, envolvida no fetiche que envolve a produção das coisas. Todas as características do trabalho moderno se repetem com a diferença de que são, em realidade, sociais e não individuais.

Anterior a Marx, no século XIX, Rousseau, no século XVIII, contribuiu para a popularização de Robinson. Junto a Marx, contribuiu para a internacionalização do mito. Alguns (Frederick Eby) consideram Rousseau o Copérnico da Pedagogia Moderna e falam mesmo na revolução coperniciana da educação.

De fato, até o século XVII, não há o destaque que existe hoje na educação da criança. Não existiam colégios e graus de ensino, tais como os que conhecemos. E parece que as escolas foram o melhor lugar para encerrar crianças até a idade em que possam cuidar dos negócios ou subordina-se a eles.

Rousseau elabora grandes projetos sociais em que se destacam O Contrato Social e também O Emílio ou Da Educação, a formação do homem para viver na sociedade contratual. Tal como Robinson, Emílio é um personagem imaginário. Revolucionando as idéias de seu tempo, Rousseau percebe a corrupção da sociedade em que vive, ainda fortemente marcada pelas concepções aristocráticas. Assim, educar o homem para uma nova sociedade supõe afastá-lo da sociedade viciada, isolá-lo e colocá-lo em contato com a natureza. O mito de Robinson está presente no romance do menino que se educa sozinho, com um preceptor atento em favorecer uma educação negativa, preocupado em não intervir, senão quando necessário. Antes de educar Emílio para algum ofício, é preciso fazer dele homem. "Ser homem é a profissão que desejo ensinar". Sua educação deve saber diferenciar os caprichos da vontade. Educar a vontade individual, para participar posteriormente da vontade coletiva, envolve exercitá-la e respeitá-la. Satisfazer os caprichos é contribuir para a educação de um tirano; satisfazer as vontades é contribuir para a educação do homem apto a viver na sociedade contratual, em que se realiza a vontade geral.

O homem é bom por natureza, pois tudo é bom ao sair das mãos do Autor das coisas; a sociedade o corrompe. Eis a laicização do dogma da queda. A regeneração da sociedade exige uma nova educação dos indivíduos. Na educação da vontade, a atenção aos interesses individuais é destacada. E isso vai se repetir em todos os pedagogos clássicos da moderna sociedade. É o caso de pensar: - Como educar para a solidariedade, com tanta ênfase nos interesses individuais?

Emílio odeia os livros que só ensinam a falar do que não se conhece. Por longo tempo, o melhor tratado de sua biblioteca será Robinson Crusoe, aquele que trata da educação natural. Sozinho e sem contar com ajuda de companheiros, consegue assegurar a existência e alcançar um certo bem-estar. Por certo, é um tratado onde o homem não é um ser social, reconhece Rousseau. No entanto, há momentos em que o melhor meio de nos livrarmos dos preconceitos e organizar nosso pensamento é nos imaginarmos sozinhos, isolados numa ilha e julgar tudo a partir dessa solidão. Seu estudante ideal deve aprender a julgar corretamente e por si só. Deve isolar-se e anotar seus erros para não voltar a cometê-los. Emílio deve imitar a Robinson, personagem literário próprio para a "idade feliz da infância". Identificado com ele, deve buscar alcançar a mesma fortaleza de espírito daquele que foi a versão secular da Imitação de Cristo.

A solidão da ilha é a mesma pregada em Rousseau. O menino deve sentir o desejo de conhecer somente as coisas úteis. A ênfase deve recair sobre a educação dos sentimentos. Em meio a diferenças com Defoe, Rousseau quer evitar a falsidade dos valores e convenções sociais. Emílio deve ter considerável grau de amor próprio, auto-estima elevada, mas livre de vaidade ou orgulho. Isolado, a competição estava fora daquela natureza especial, em que sozinho, se educava o menino para viver em sociedade.

Anterior a Rousseau, tivemos Locke, no século XVII, que, mais do que a Pedagogia, revoluciona as bases da Política. Locke discute com Hobbes, em quem encontramos o grande giro em torno das questões do poder. Contra a concepção teocêntrica de mundo, Hobbes lança as bases do Estado moderno e das concepções totalitárias de sociedade. Seu absolutismo implica uma nova perspectiva do poder, que se desloca da Igreja para o Estado. O indivíduo está na base desse deslocamento. Os homens possuem uma natureza má. Entregues a si mesmos, vivem em permanente estado de guerra. A sociedade civil se forma quando os homens cedem sua liberdade ao soberano, a única instância capaz de arbitrar em favor da coletividade.

Locke escreve o Segundo Ensaio sobre o Governo Civil contra o absolutismo e em favor da liberdade individual. Nesse ensaio se encontra uma interessante justificativa para a propriedade privada. A legitimação da propriedade é construída dentro de um arrazoado em que a propriedade resulta do trabalho. A água que corre no rio é de todos. Mas ninguém lançaria dúvidas de que aquele que a coloca num cântaro é o proprietário do conteúdo. Esta é uma passagem das mais famosas do documento. A propriedade privada se constitui por meio do trabalho. O Estado se ergue para garantir o sono tranqüilo do proprietário e proteger sua propriedade, sua vida, liberdade e seus bens, frente à ameaça de outros. Nesse sentido, tem o poder de julgar e castigar as infrações da lei. O Estado tem o poder de fazer leis e castigar as transgressões, bem como, fazer a guerra e a paz; "ambos os poderes se encaminham para a preservação da propriedade". A idéia de contrato social, posteriormente ampliada por Rousseau, já encontra em Locke suas origens.

"O fim principal dos homens ao entrar em sociedade é desfrutar de sua propriedade em paz e segurança", diz Locke ao iniciar o capítulo XI, sobre o poder legislativo. A figura do juiz imparcial é evocada, nos principais textos, sobre os fundamentos do liberalismo. A propriedade está amparada em leis cabendo a um juiz neutro, imparcial, com autoridade, decidir, em favor da justiça, o direito do proprietário. Até a idéia da superioridade dos povos da Europa sobre a América está ali explicitada. Ela se constitui sobre a noção de trabalho: um pão tem mais valor do que as sementes, porque envolve mais trabalho. Isso vai justificar, para Smith, a idéia segundo a qual o trabalhador moderno e o mais simples camponês europeu vivem melhor que um rei africano, senhor das liberdades de mil corpos nus.

A obra se conecta com outras. Numa das quatro Cartas sobre a Tolerância, está mais nitidamente defendida a liberdade individual. Entre os argumentos tecidos no contexto das lutas religiosas, reaparece a idéia de que o homem é proprietário de sua pessoa, de seus bens e de sua liberdade. "A sociedade de homens é constituída apenas para a preservação e melhoria dos bens". São considerados bens civis da vida "a liberdade, a saúde física e a liberação da dor, a posse das coisas externas, tais como terras, dinheiro, móveis etc". A liberdade política se expressa primeiramente na liberdade religiosa. Sem entrar mais nessas questões, podemos concluir destacando a idéia muito difundida entre nós de que "a minha liberdade termina onde a sua começa", que pode ser traduzida em conexão com a propriedade, cujos limites se demarcam na fronteira das possessões. É o caso de indagar: - É sobre a idéia de propriedade que queremos construir nossa liberdade?

 

2- O INDIVIDUALISMO NA FIGURA HISTÓRICA DE BENJAMIN FRANKLIN

Benjamin Franklin foi uma personalidade histórica que se tornou referência emblemática para o homem moderno: o homem que se faz por si mesmo encontra nele toda inspiração. Nasceu em Massachusetts, nos Estados Unidos, em 17 de janeiro de 1706 e morreu em 1790, também nos albores da moderna sociedade capitalista. Em sua larga existência, "conheceu todos os níveis sociais e todas as condições de fortuna", afirma Rone Amorim, no Prefácio de sua famosa Autobiografia. De aprendiz de tipógrafo, galgou posições que o projetaram na política e na diplomacia, exercendo profunda influência no processo de libertação de seu país, então colônia inglesa. Foi inventor do pára-raios, destacando-se nas ciências, nas letras, como escritor e nos trabalhos filantrópicos.

Reconhecendo a grandeza de seu caráter, Max Weber o toma como referência para explicar as características do espírito do capitalismo, na perspectiva não religiosa. Os dados são tomados da Autobiografia, onde aconselha o filho com algumas máximas:

"Lembra-te de que o tempo é dinheiro". Aproximando de nossa moeda: aquele que gastar dez centavos, por dia, de seu trabalho para passear ou vadear perde na verdade mais cinco centavos mais do que gastou.

"Lembra-te de que o crédito é dinheiro". Se emprestamos dinheiro, temos ainda os juros durante o tempo em que ficar emprestado; isso pode alcançar uma boa soma, quando se tem bom crédito e se sabe fazer uso dele.

"Lembra-te de que o dinheiro é de natureza profícua, procriativa". Dinheiro gera dinheiro. Cinco reais em giro são seis que, novamente empregados, são sete, oito. A simbologia do "cofre do porquinho" aparece: "quem mata uma porca prenhe destrói toda uma prole, até a miléssima geração. Assim como aquele que desperdiça um real destrói tudo que ele poderia ter produzido".

Lembra-te que "O bom pagador é dono da bolsa alheia". Aquele que é pontual nos seus negócios pode facilmente levantar grandes somas. Junto à industriosidade e à frugalidade, nada contribui mais para um jovem subir na vida que a pontualidade nos negócios.

"As mais insignificantes ações que afetam o crédito de um homem devem ser consideradas". O som do martelo, cedo da manhã ou tarde da noite, ouvido pelo credor poderá ampliar mais o crédito. Diferentemente, se ele encontrar o devedor numa mesa de bilhar ou num bar, no dia seguinte, estará a sua porta cobrando o devido.

"Guarda-te de pensar que tens tudo o que possuis e de viver de acordo com isso". As mínimas despesas se amealham em grandes somas. Assim, é preciso economizar para evitar inconvenientes futuros.

"Por 100 reais anuais poderás ter o uso de 1000, uma vez que sejas um homem de conhecida prudência e honestidade".

"Aquele que gasta inutilmente um tostão por dia, desperdiça mais de seis reais por ano, que é o preço do uso de 100".

"Aquele que desperdiça o valor de um tostão do seu tempo por dia, dia pós dia, desperdiça o privilégio de usar 100 reais todos os dias.

"Aquele que inutilmente perde o valor de 5 reais, não perde somente esta soma, mas todo o proveito que, investindo-a dela poderia ser tirado, e que, durante o tempo em que um jovem se torna velho, integraria considerável soma de dinheiro".

Ao recolher essas máximas, Weber destaca que o espírito do capitalismo não se resume a elas, no entanto se expressam suas características. Na "profissão de fé" dos yankees, como disse Kürnberger, "eles arrancam gado do sebo e dinheiro dos homens". Weber sublinha a filosofia da avareza como ideal do homem honesto e de reconhecido crédito. Acima de tudo está o dever do indivíduo de aumentar seu capital, como um fim em si mesmo. Mais do que uma técnica de vida ou um bom senso comercial, passa uma ética peculiar, constituída sob a perspectiva do protestantismo puritano. Sem caracterizar Franklin como utilitarista, identifica, nas máximas morais, todos os seus matizes: a utilidade da honestidade, da pontualidade, laboriosidade e frugalidade são virtudes capazes de assegurar o crédito. A aparência de honestidade não é o bastante. Neste caso, a hipocrisia não basta, como não bastam a aparência de modéstia ou a depreciação dos próprios méritos para obter um reconhecimento posterior. Trata-se de uma conversão, de algo mais que a mera ornamentação das máximas egocêntricas.

A obtenção de mais e mais dinheiro "é destituída do gozo espontâneo da vida" e se coloca como fim em si, de uma maneira que parece superior à felicidade, algo impulsionado por motivos irracionais. Algo que reforça a ética social da cultura capitalista: a obrigação que o indivíduo sente "com relação ao conteúdo de suas atividades profissionais". O indivíduo parece nascer já na ordem inabalável de coisas, em que tem que viver: envolvido pelas relações de mercado, tem que se conformar às regras da sociedade capitalista. As regras são válidas nas duas perspectivas: na do trabalhador e na do fabricante. O fabricante que se opuser será permanentemente eliminado e o trabalhador que não se adaptar será lançado à rua, sem trabalho, lembra Weber. Por meio da seleção econômica dos mais aptos, o capitalismo escolhe os empreendimentos e os trabalhadores de que necessita.

Criticando os teóricos da superestrutura, Weber explica que a história das idéias é mais complexa do que eles supõem, e entende que o capitalismo não é algo novo e não se caracteriza pelo mero afã de lucro, que sempre existiu. A modernidade construiu um capitalismo de novo tipo, em que o trabalho se organiza como indústria. A absoluta inescrupulosidade, na utilização dos interesses egoístas para obter dinheiro, é característica daqueles países onde o desenvolvimento capitalista burguês chegou "atrasado". A aquisição brutal é conhecida em outras épocas históricas. O espírito capitalista, para Weber, vem revestido de uma ética.

O empreendedor moderno encontrou meios técnicos para assegurar a maior quantidade possível de trabalho: o pagamento por tarefas. A diferença entre o alto lucro e as grandes perdas pode depender da presteza com que o trabalho é realizado. A idéia que correlaciona os altos lucros aos baixos salários é enganosa, no ponto de vista weberiano. Os baixos salários falham, sempre que a produção de mercadorias exija trabalho especializado ou que o alto custo das máquinas facilmente danificáveis não se acompanhe da necessária atenção ou da iniciativa dos trabalhadores. Outras observações dirigem a atenção para a força da moral religiosa, puritana, cristã e protestante.

Atualmente, a ordem econômica é produto da adaptação e já não necessita do suporte religioso. Aquele que não se adapta é sobrepujado ou não pode ascender. Em outras épocas, a idéia de ganhar dinheiro, como fim em si, é desconhecida. Na Idade Média, uma atitude como a de Franklin seria inimaginável: a usura era perigosa para a salvação.

O racionalismo, na ciência e na organização do trabalho, determina os ideais de vida da moderna sociedade burguesa. O trabalho, ao serviço da organização racional para abastecer a humanidade de bens materiais, tem constituído a finalidade da vida profissional. Hoje, a sociedade já não necessita dos princípios éticos que a forjaram. Mas, sem eles, não se teria construído esta caixa de cimento em que vivemos. Weber vai encontrar, no elemento irracional da fé, todos os elementos que construíram a moderna sociedade.

Tomando superficialmente alguns desses elementos, encontramos a idéia de vocação. O "segue tua profissão", voltado para os interesses religiosos da salvação, foi capaz de servir à disciplina do trabalho. A entrega ao trabalho dirigida a Deus teve imensa repercussão no plano material. A moral puritana, que só entende o gozo com Deus rejeitando os prazeres terrenais, serviu, por longo tempo, à acumulação de capitais: enormes riquezas foram proibidas do gozo material. No entanto, segundo os dogmas, Deus escolhia alguns homens para a salvação. Em algumas Igrejas e ou seitas, o predestinado recebia os sinais da salvação e a riqueza funcionava como tal. Em outras, como entre os quakers, foi possível gozar da riqueza com limites: a utilidade-limite deu origem à moderna concepção de conforto; desde que o uso das riquezas não ultrapassasse os limites funcionais, poderia ser desfrutado. A moderna idéia do "lar doce lar" aparece sobre estes fundamentos, e parece não ter sido à toa que a funcionalidade dos objetos domésticos tenha aparecido no contexto norte-americano.

Finalizando este bloco de idéias, a ciência e a técnica têm sido postas a serviço do capital. O cálculo racional que prevê os lucros e a própria indústria parece privilegiar umas ciências em detrimento de outras. Na sociedade capitalista moderna, a Matemática é fundamental, bem como a Física e a Mecânica. Todas as nossas ações são calculadas. Nesse processo, não podemos deixar de planificar nossas ações. É novamente Franklin quem nos lembra de elaborar diariamente "nossas agendas", pois "tempo é dinheiro".

Depois de haver ressaltado que a idéia de ser profissional move a todos, coisa inconcebível em outras épocas, e de observar que estamos condenados a nos encerrar nas especializações, em suas conclusões, Weber volta a reforçar a idéia puritana que nos determina ser profissionais. O ascetismo se seculariza pois, a partir de certa altura, "o espírito religioso se safou da prisão". O capitalismo vitorioso, apoiado numa base mecânica, já não precisa mais desse abrigo. O consumo exacerbado está protegido pela engrenagem do sistema. A "maquinização" da existência criou, para os homens, um mundo completamente estranho à humanidade. Projetando o futuro, o desespero evoca novos profetas ou, no melhor dos casos, o renascimento de velhas idéias. Diante da "petrificação mecanizada" só se pode esperar dos "últimos homens" desse desenvolvimento histórico que sejam designados "especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado".

 

3- A FÁBULA DAS ABELHAS E A CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE MODERNA

A última história que escolhemos para tratar da modernidade parte da famosa A Fábula das Abelhas", de Bernard Mandeville. Mandeville (1670-1733) foi um médico holandês, radicado em Londres, que causou grande furor com suas idéias em seu tempo. Como médico, dedicou-se ao estudo de doenças nervosas, mas isso talvez não seja o suficiente para explicar sua concepção de homem e sociedade. Suas idéias tiveram imensa repercussão sobre Smith, inclusive na expressão "divisão do trabalho", que inicia a Riqueza das Nações.

A fábula é a seguinte: Havia uma sociedade em que as abelhas viviam em luxo e comodidade. Vivendo como homens, os insetos eram laboriosos e inescrupulosos, mas produziam grandes riquezas. Abasteciam meio mundo com suas manufaturas. Enquanto grande quantidade vivia na luxúria e vaidade, outros tantos estavam condenados aos ofícios laboriosos e à miséria. Vagabundavam às custas do trabalho alheio. Um dia, Júpiter, zangado, propôs pôr um termo naquela sociedade viciada. Todos teriam que ser justos, corretos e, enfim morais. Os advogados não poderiam protelar suas causas na burocracia da justiça para obter mais vantagens de seus clientes; os médicos que valorizavam mais a riqueza e a fama do que a saúde ou a perícia, não poderiam tratar doenças inexistentes. E assim outras profissões: os soldados, os magistrados, o clero e os funcionários menores. Nenhum poderia continuar vivendo devendo o que gastava. No entanto, passado algum tempo, à medida em que o orgulho e o luxo iam desaparecendo, não apenas os mercadores, mas companhias inteiras fechavam suas portas e iam em busca de outros mares. Os artesãos já não tinham para quem fabricar jóias extravagantes e roupas luxuosas. O triunfo de uma sociedade honrada teve seu preço. Poucas abelhas continuaram na colmeia. Vivendo com grandes dificuldades, seu exército já não tinha mercenários; os poucos que restaram lutavam com bravura por sua integridade e coragem. Sem nada para fazer, as últimas abelhas emigraram para evitar o próprio descanso que consideravam um vício. Na moral da história, a fraude, o luxo e o orgulho são constituintes da riqueza. Em outras palavras, os vícios privados é que fazem a prosperidade pública.

Passando da fábula para a análise da sociedade, do homem e sua educação, no começo do XVIII, Mandeville faz interessantes considerações que explicitam os fundamentos sociológicos do liberalismo. Suas análises são frias. Evitando qualificar de cínicas, são, antes, elementos para nossa reflexão atual. Um dos capítulos de sua obra trata das "Escolas de Caridade". Evidentemente, certas idéias devem ser compreendidas em seu tempo. Mas não estão muito longe de nós.

A primeira parte do texto, dirigido para a crítica à caridade, incide sobre considerações a respeito do homem. Tudo que o homem faz pelo outro, amigos, parentes ou desconhecidos, o faz por si mesmo, para alcançar o respeito, a reputação, a honra e a estima do mundo. Não podemos esperar ajuda de ninguém. As aparentes virtudes como a caridade, a piedade, a compaixão, atendem aos nossos interesses de obter o crédito de que necessitamos. A avareza passa por sobriedade e a religião por hipocrisia A virtude ou compaixão chamada piedade consiste na simpatia e condolência que sentimos pela desgraça alheia, que afeta toda humanidade. No entanto, para nos comover diante da violência não é necessária nenhuma abnegação. Tanto o homem honrado como o bandido e ladrão podem sentir ansiedade diante da mesma situação. Qualquer um se comove diante de uma cena violenta. A piedade entra pelos sentidos Quanto mais perto, mais sentimos e quanto mais longe menos nos perturbamos. (É o caso de pensar na miséria, lá em Ruanda, ou lá nos subúrbios e favelas, longe do entorno ascético que conseguimos construir para nós). Nossos sentimentos são egoístas; o altruísmo está conectado com a razão. No entanto, em sociedade, os homens não podem ser tal como são: incrédulos, insolentes, depreciativos e desrespeitosos. Ele não pode ser o que é, porque não quer parecer orgulhoso, cobiçoso ou desrespeitoso. Precisa dar provas de humanitarismo; mas o faz por si mesmo. Por isso, é capaz de deixar os parentes na indigência e doar o que possui a uma instituição em favor da honra e glória futura. O rico avaro quer receber juros até depois da morte, desfralda os seus para comprar a imortalidade à custa de pouco mérito.

Os presentes e as doações são prejudiciais. A caridade fomenta a preguiça e a ociosidade multiplica os zangões e destrói a indústria. "Para fazer feliz a sociedade deve haver uma grande desproporção entre sua parte ativa e inativa". Certamente, é indispensável a existência de hospitais para feridos e enfermos e a atenção e a ternura às crianças sem pais ou dos velhos desabrigados. Mas não é possível induzir os pobres à mendicidade. Todos que tiverem disposição para trabalhar devem fazê-lo, inclusive cegos ou ditos inválidos.

Mandeville passa, então, a falar sobre as Escolas de Caridade. (Se atentarmos, elas estão no contexto das primeiras expressões sobre a escola pública). A nação se ocupa com uma espécie de distração: criar Escolas de Caridade. Pode parecer um panorama sedutor ver crianças vestidas e alimentadas indo à escola em lugar das ruas; ou supor que a sociedade se verá livre dos ladrões que invadem a cidade. Mas trata-se de um prazer efêmero.

Não podemos esquecer que o vício está presente onde florescem as artes e a ciência e que a ignorância é a mãe da devoção. Em geral, a inocência e a honradez se encontram entre os menos ilustrados. Inculcar bons modos e urbanidade, qualidades frívolas, é prejudicial e inútil para o trabalhador. Dele esperamos assiduidade e trabalho, não cumprimentos ou boas maneiras. O saber é igual à insubmissão. O homem que sabe de si não se submete, com renúncia, a outro.

Um trabalhador honrado, por pobre que seja, não consentirá que os filhos vaguem nas ruas. Os trabalhadores devem ter autoridade sobre os filhos e encaminhá-los às atividades proveitosas, tão logo estejam em condições. - O que podem aprender nas escolas as crianças abandonadas por pais irresponsáveis? Na escola, aprendem lições que logo esquecem ao chegar em casa e encontrar pais malvados e de má conduta que não se preocupam com os filhos.

Uma cidade populosa está cheia de ladrões. Abriga e oferece asilo à pior classe de gente. Facilmente as mãos pequenas se misturam na multidão para roubar. Um pequeno delito arrasta outro maior. O que furta impunemente uma carteira, aos 12 anos, aos 16, será ladrão de casas, aos 20, um vilão que comete delitos sem que o descubram. As ruas são abrigos seguros para milhares de delinqüentes que, mudando freqüentemente de casa, conseguem se esconder por muito tempo. Os ladrões não são nada estúpidos e, quando capturados, arranjam mil maneiras de se safar. Se os homens estivessem convencidos de que, pelos atos cometidos, mereceriam a forca e seriam enforcados, as execuções seriam raras. As leis devem ser simples, claras e severas. Não é preferível que 500 pessoas escapem a que um inocente sofra. Em nome da propriedade e da paz é preferível que o inocente sofra.

Em toda parte, a natureza humana é a mesma. A virtude ou a vilania melhoram com a prática. Nenhuma conversão religiosa conduz à bondade. Só a vontade de poder conduz alguns a vociferar em favor das Escolas de Caridade. Falam que não têm fins lucrativos. Mas o que as move é a satisfação que causa o ordenar e dirigir. A palavra governo fascina as pessoas mesquinhas. O amor ao domínio e o sentimento usurpador são naturais aos seres humanos. Somos movidos pelas paixões e nelas não há moralidade possível

Longe de ser um benefício, as Escolas de Caridade são perniciosas ao público. É preciso convir que sobre a terra pesa a maldição: temos que "ganhar o pão com o suor do rosto". Essa é uma pena que o homem se vê obrigado a suportar para suprir a necessidade de subsistência, submetendo ao trabalho sua natureza corrompida. É impossível que a sociedade possa subsistir, oferecendo comodidade e prazer, suportando a ociosidade, sem que exista uma multidão que aceite trabalhar por força do hábito e da paciência, não para si, mas para outros.

O bem-estar da sociedade requer trabalhos de homens fortes e robustos que nunca conheceram comodidade, nem ociosidade e que se conformem apenas com o indispensável, aceitando, satisfeitos, tudo o que usam: manufaturas deficientes, comida, apenas como alimento, e bebida para aplacar a sede.

O trabalho penoso deve ser realizado durante o dia, sem contar as horas, nem o cansaço. Ao amanhecer, o trabalhador se levanta, não porque tenha descansado. É intolerável que o adulto, com menos de 30 anos, permaneça dormindo o tempo que lhe apetece. Se o pobre pudesse, não trabalharia. A necessidade é que o obriga.

Para ser feliz, a sociedade precisa de homens humildes, pobres e totalmente ignorantes, pois o saber multiplica os desejos. O bem-estar e a felicidade de todo Estado exigem que os conhecimentos da classe pobre se limitem à esfera de suas ocupações e não vão além de sua profissão. Quanto mais se sabe de coisas alheias ao trabalho, mais difícil será suportar as fadigas e penas, com alegria e satisfação.

Comparada ao trabalho, a escola é divertimento e folga. Os que devem permanecer até o fim dos dias, em duras condições de vida, não devem conhecer comodidade. Quanto antes trabalhem, mais pacientemente se submeterão. Ninguém se submete, de boa vontade, a seus iguais; se o cavalo soubesse tanto quanto o homem, não haveria prazer algum em montá-lo. Só quando desconhecemos, servimos submissos. A ignorância é, pois, a amálgama necessária da sociedade civil.

Os que aprendem a ler, escrever e calcular esperam, com razão, obter emprego em que essas qualidades sejam úteis. As escolas e universidades deveriam ser mais úteis e ensinar menos Teologia, Letras ou Filosofia e mais Medicina, Farmácia, Cálculo e Matemática. O Latim não serve ao homem que vai se dedicar aos negócios. As matemáticas, estas sim, se tornaram estudos mais valiosos.

A proliferação de escolas inferiores, a expensas do Estado, deve ser combatida. A sabedoria comprada não é a pior. Ninguém deve ensinar gratuitamente, a não ser a Igreja. Para os pobres é um atrevimento aspirar a mais do que à escola dominical. As classes inferiores necessitam apenas das lições do Evangelho. É preciso resignar-se à vida dura. Há muito trabalho duro e sujo por fazer e alguém deve se submeter a ele com alegria e satisfação.

A felicidade é relativa. Quanto menos noção o homem tenha de sua existência, melhor e mais contente se sentirá com ela. Quando o homem se diverte, ri e canta, demonstra, em suas atividades, contentamento. É um homem feliz. Se ao camponês pobre, fosse dado trocar de posição com o rei, ainda que escolhesse coisas que lhe agradassem, mais seriam as que o monarca escolheria. Embora o trabalho lhe parecesse abominável, encontraria paz e tranqüilidade na alma; não teria que fingir, que ter medo de conspirações, aceitar amores impostos, falsos patriotas, subornos etc.

O pobre não precisa se dar conta de que o trabalho é penoso. A ignorância tem utilidade. A liberdade e a propriedade poderão permanecer seguras enquanto o filho do pobre estivar com as roupas sujas do pó do trabalho, em lugar de manchadas inutilmente de tinta.

Estas são palavras extraídas de Mandeville, sem dar conta do texto integral. Pode-se ver toda a lógica que, ainda que não confessemos, se introjeta no senso comum do homem moderno e atual. Algumas coisas mudaram, inclusive o acesso ao saber, que continua atrelado aos interesses do capital; mas permanece a mesma lógica que discrimina saberes, conforme as posições sociais e a mesma relação entre trabalho e saber, restritos às coisas da profissão. No conjunto, devemos estar atentos à sua concepção de homem e sociedade. A sociabilidade é construída sem moralidade, sem humanidade, a partir de nossa natureza viciada.

Para finalizar, fiquemos com algumas idéias de Adam Smith, o pai do liberalismo moderno. - Como compreender nossa inserção na sociedade neoliberal sem observar os princípios que forjaram o liberalismo? Já nos detemos em considerações filosóficas, políticas e sociológicas, mas restam as de ordem econômica. Com diferenças, a mesma lógica que envolve Mandeville aparece em Smith.

Adam Smith (1723-1790) nasceu na Escócia e foi um intelectual ativo e brilhante. A Teoria dos Sentimentos Morais e a Investigação sobre a Natureza e Causa da Riqueza das Nações são obras fundamentais que inauguram o pensamento econômico de uma época. E mais, explicam o giro em torno do qual se processou a supremacia da economia sobre a política, a supervalorização das coisas em detrimento dos homens. Na busca da realização de seus interesses, do aumento de riquezas e de valorizar seus ganhos, o indivíduo "é conduzido por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções"; ao fazê-lo, muitas vezes, promove o benefício público. Assim se explica a relação entre o público e o privado, em que o público não resulta da vontade política, mas do arbítrio do mercado.

O homem tratado na Teoria dos Sentimentos Morais analisa o que o autor considera "as regiões recônditas da alma" para descobrir as regras naturais do comportamento humano. Movido pelas paixões, o homem é um ser egoísta que busca realizar, apenas, os interesses particulares. A Riqueza das Nações conecta o homem egoísta com a sociedade liberal e faz dele suporte. Mais do que animal que fala, o homem se caracteriza como animal que troca e intercambia coisas - distinguir o meu do seu é o que nos distingue dos animais. É interessante observar que um tratado sobre os sentimentos morais desnude a alma humana para extirpar as condições de moralidade que darão suporte à sociedade. A moral se resume ao sentimento de simpatia, a faculdade de participar do sentimento alheio, que se encontra em todos; por ela nos transportamos para o lugar do outro e suas circunstâncias. E para que se arraigue é necessário proximidade; a contemplação superficial é insuficiente; ela é fruto do contato de pele, por isso é imperfeita. Nisso percebemos claramente a presença de Mandeville.

"Não é da benevolência do padeiro, do cervejeiro ou do açougueiro que esperamos nosso jantar". Não contamos com sua humanidade, mas com o atendimento a seus interesses egoístas. Isso está no 2º capítulo da Riqueza das Nações. Não nos movemos pelos grandes objetivos e ideais, mas pelo interesse particular de sobrevivência.

A divisão do trabalho é a causa da riqueza da nação. Colocada em primeiro plano, a produção estrutura a sociedade fazendo com que uns mandem e outros executem. O exemplo da fabricação de alfinetes mostra, por meio de uma coisa ínfima, como a divisão do trabalho aumenta a produtividade e "a riqueza que se derrama sobre todos". A subdivisão em 18 operações, envolvendo trabalhos diferentes, comprova a superioridade diante do esforço que seria a fabricação por um único operário.

São três as circunstâncias que aumentam a quantidade de trabalho: 1- a destreza do trabalhador diz respeito à sua educação, habilidade e adestramento. Ao reduzir a atividade do homem a uma operação simples, que será o único emprego de sua vida, vê-se aumentada enormemente sua destreza. Sua rapidez será maior do que a da pessoa que nunca a realizou. Esta é a importância do treino, do adestramento para a produção. 2- a economia do tempo perdido, ao passar de uma operação a outra, é o segundo fator de produção. A rapidez exige que o trabalho seja realizado no mesmo lugar e que a pessoa não perca tempo, ao passar de uma operação a outra e de uma ferramenta a outra. É preciso evitar que a cabeça vagueie; a concentração, a aplicação intensa e a disciplina são fundamentais à rapidez dos trabalhos. 3- A invenção das máquinas é o terceiro fator; abrevia os trabalhos economizando tempo.

A idéia de que o homem tende a viver da maneira mais cômoda possível, supõe que as primeiras invenções se deveram aos próprios trabalhadores que inventaram artifícios para se livrar dele e folgar. Posteriormente, a invenção das máquinas passou a ser uma especialidade de pesquisadores, cuja tarefa consistia em observar, combinar as forças dos objetos para melhorar a destreza e economizar o tempo da produção. Foi esse o lugar que restou ao filósofo moderno, segundo Smith. A filosofia sai do domínio do humano para o das coisas. O utilitarismo e o pragmatismo estão na base desta concepção em que o trabalho filosófico deve se voltar para a produção das coisas úteis. Não é só a ciência e a técnica, mas a Filosofia que devem estar a serviço da sociedade capitalista moderna.

Inspirado em Hume, encontramos o homem limitado ao seu perímetro psicológico, movendo-se em torno de interesses particulares; e ainda uma concepção experimentalista de ciência. Com base em Hume, antes de serem cultivados pela educação, os homens são iguais entre si, em força física, atitudes e faculdades mentais; a educação para a divisão do trabalho os diferencia. Quando pequenos, entre o filósofo e o carregador não se percebe grandes diferenças. A diferença de talentos surge por força do hábito, dos costumes e da educação, que terão efeitos na divisão do trabalho. "Os talentos mais díspares se caracterizam por sua mútua utilidade". Assim como as coisas, os homens competem entre si. E hão de fazê-lo na busca da subsistência.

Smith reconhece que a educação do homem comum, que deverá se dedicar a fazer a só coisa por toda uma vida, é bastante limitada. O trabalho moderno mutila as faculdades mentais e inabilita para a direção da sociedade. O entorpecimento da mente o torna incapaz de saborear uma conversação ou conceber o sentimento generoso e formar juízos; a uniformidade da vida estagnada corrompe o espírito e a coragem. Muito cedo, o filho do trabalhador necessita se engajar na produção, não dispõe de tempo ocioso para se preparar de outra forma. O Estado deverá suprir essa deficiência oferecendo uma educação literária (ler, escrever e contar) e preparando os jovens para a evolução do processo produtivo, mediante noções úteis, voltadas para as atividades futuras. Nesse sentido, o Desenho industrial, a Geometria, a Mecânica e a Física adquirem relevância.

Para os filhos das pessoas de fortuna, embora com defeitos, não se inventou coisa melhor que a escola para prepará-los, do período que vai da infância à idade de assumir os negócios. Suas ocupações são extremamente complexas e exigem o exercício das faculdades mentais, em maior grau que as corporais ou manuais. Dispõem de lazer e despreocupação podendo ocupar-se com atividades além da subsistência.

Todas as travas hão de ser eliminadas para o livre trânsito das mercadorias. As coisas e os homens devem competir livremente. Não cabe ao Estado colocar limites ou intervir. Os gastos públicos devem ser limitados e contar com a contribuição da sociedade mediante impostos e taxas. Devem ser suficientes para garantir a dignidade do cargo do governante, a defesa do país, a administração da justiça, a construção de boas estradas e comunicações, a educação e instrução religiosa. Em alguns casos, o Estado favorece subsídios limitados. Mas tudo deverá ser pago por aqueles que usufruem benefícios.

A sociedade deverá dar livre trânsito à iniciativa privada. A educação deverá ser privatizada. Apenas, em casos excepcionais, o Estado poderá criar escolas onde a criança possa aprender, pagando tão pouco quanto seja possível ao trabalhador comum.

A experiência comprova que o ensino privado é melhor. Os profissionais do ensino e as instituições devem funcionar com base na competição. Todo o arrazoado é desenvolvido de modo a implicar o professor que tem o salário garantido pelo Estado, como responsável pelo fracasso da educação. O homem é como é: não desprende esforços para além de seus interesses. Quando tem o salário garantido, negligencia suas obrigações. As corporações de professores tendem a ser coniventes. E o máximo que as autoridades podem fazer é obrigar o professor a dar aulas e, para isso, não é preciso fazer muito.

Os professores, as instituições de ensino como as universidades deverão ser pagos pelos interessados. Os alunos deveriam ser livres para escolher com quem estudar e onde estudar. O sistema de bolsas de estudo deveria ser incentivado pela competição dos estabelecimentos de ensino. Como nas outras profissões, o professor deveria depender apenas de seu mérito; a reputação fica, assim, a critério de seu desempenho.

Na sociedade em que o sistema moral é fundado na simpatia, a idéia de dever para consigo mesmo e para com o outro está fora dos parâmetros. O sistema moral da sociedade é observado em função da liberalidade ou da austeridade. Em geral, o pobre está mais propenso ao sistema rigoroso; um dia de devassidão é suficiente para lançá-lo na miséria; quanto ao rico, mais propenso ao sistema frouxo, a devassidão, a alegria desordenada, a busca exagerada de prazer, desde que não acompanhadas de indecência, são mais toleradas.

No entanto, o homem de posição e fortuna não pode esquecer que é um membro destacado da sociedade, sua autoridade depende do respeito da sociedade que está atenta a seus atos. Como ideal de homem, Smith chama a atenção para a parcimônia, a decência, a sobriedade, a prudência nos gastos, a sensatez e a honra. Todas estas qualidades de caráter estão direcionadas aos negócios, ao pagamento em dia, ao cumprimento dos contratos, ao interesse de crédito. Economizar "é o desejo de melhorar de condição" e se manifesta de forma serena e desapaixonada e "arraiga em nós desde o nascimento e nos acompanha até a tumba". A inclinação para o gasto deve ser contida. A generosidade é perniciosa, está fora de cogitações. O ideal de felicidade está orientado para a aquisição das condições do bem-estar. No breve transcurso da vida, o homem deve pensar apenas em si e nos seus.

 

ALGUMAS CONCLUSÕES

O homem que a modernidade gerou, individualista, utilitário, interesseiro, em uma palavra, autista, perdeu as referências de moralidade, humanidade e felicidade. Imerso no processo de acumulação sem fim e sem finalidade, perdeu a si mesmo. Ao perder a referência do outro, do sentido de dever para consigo mesmo e para com o outro, se vê num mundo sem ética. A tragédia do ético foi identificada por Lukács, a partir de Hegel, na percepção do mundo capaz de criar imensas riquezas e da impotência da burguesia para distribui-las, sob pena de morte. Ainda sem mencionar a contribuição revolucionária de Marx e sua crítica à economia política moderna, sobre a qual seria necessário um outro trabalho, eu quis, a propósito, extrair as condições de nossa desumanização, a partir dos próprios liberais. Weber foi a exceção mas que, com o conceito de profissão, ajuda a perceber o outro lado da educação como adestramento.

Tomando as referências expostas, sem esperar por profetas, resta voltar aos clássicos imortais. Vinte e quatro séculos nos separam do horizonte onde o rio da vida fluía em direção ao humano. Outra estrutura de sociedade, outra estrutura de pensamento, outro tempo que, no entanto, pode nos apontar caminhos para a recuperação de nossa humanidade. Ali entre os gregos, tudo estava direcionado à educação como paidéia. Em função da formação humana, os poemas, a música, a ginástica, as letras, a literatura, as matemáticas, a física, a filosofia do cosmo e a dos costumes se ergueram. Outra concepção de natureza, de ciência e de humanidade falou da educação como preocupação dos legisladores, políticos e filósofos. Até o ideal de beleza estava em função da ornamentação do espírito e não é à toa que a idéia de formação humana procede de uma metáfora das artes plásticas. A areté estava comprometida com o ethos, dirigido à coletividade. Sem a sociedade, o indivíduo era inconcebível. A palavra idiota procedia do homem, um louco, talvez, aquele desligado da sociedade.

Educar a areté dizia respeito à formação do carácter, do homem virtuoso, voltado para o bem, para o justo. Nesse sentido, chamo atenção para a necessidade de visitarmos Aristóteles e a Ética a Nicômaco. Outro ideal de prudência se plasma na busca do termo médio, nada matemático, alcançado na prática de ações nobres que se desdobram de um espírito bem forjado. A educação de nossa alma, vendida a Deus na Idade Média, e a Deus e ao Diabo, na modernidade, é resultado da vida bem vivida em que o ideal de felicidade se expressa no outro, na coragem de enfrentar as adversidades, de escolher, decidir e atuar justamente.

A alma nobre e bem formada é generosa, magnânima, responsável, liberal sim, mas voltada para a compreensão do outro. É ainda mansa e aguda, sincera e amiga. O capítulo nono da Ética é um tratado sobre a amizade, o maior bem. E a felicidade está no princípio e no fim. Embora prazerosa, nada tem a ver com os prazeres. A felicidade não está na diversão. A vida feliz é virtuosa, em que a paixão escuta a razão e está dirigida ao bem da cidade, cujo governo está orientado pela filosofia das coisas humanas.

Num mundo em que perdemos todas as referências de moralidade, talvez nos fizesse bem voltar e refletir sobre o passado. Todas as épocas de crise fizeram este giro. Já passa da hora de fazermos nós também. Espero, através do tratamento do contrário, as condições de bem-estar, haver favorecido com alguma contribuição, o tema que os reúne aqui: o imenso mal-estar que sentimos.

 

Referências Bibliográficas

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Artigo aceito em 08 de janeiro de 2002

 

 

* Conferência apresentada no III Congresso sobre Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza-CE, 2000.

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