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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.2 no.1 Fortaleza Mar. 2002

 

ARTIGOS

 

Linguagem e mal-estar

 

 

José Lemos Monteiro

Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi professor da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estadual do Ceará e atualmente é Professor Titular da Universidade de Fortaleza. End:Av. Rui Barbosa, 639. Aldeota - 60115-220 - Fortaleza-CE. e-mail: jolemos@ufc.br

 

 


RESUMO

Este estudo discute alguns aspectos da relação entre linguagem e mal-estar, enfocando sobretudo o poder associativo que caracteriza o signo lingüístico. Entre os assuntos que elege para demonstrar as reações de mal-estar causadas pelo uso da linguagem verbal estão os tabus lingüísticos e a diversidade dialetal. A interpretação dada retoma a tese da motivação do signo e, nesse ponto, redimensiona a teoria da arbitrariedade formulada por Saussure, ao entender que o significado não se resume no conceito ou imagem mental do referente, mas inclui aspectos de natureza afetiva e imaginativa, bem como valores de ordem social.

Palavras-chave: Linguagem, tabu, sociolingüística, mudança, significado.


ABSTRACT

This study discusses a few of the aspects of the relationship between language and uneasiness, emphasizing above all the associative power that characterize the linguistic sign. Among the topics choosen to demonstrate the reactions of uneasiness caused by the use of verbal language, are the linguistic taboos and the dialect diversity. The interpretation is basically associated to the motivation thesis of sign, and at the point redimension the theory of arbitrariness formulated by De Saussure, upon understanding that meaning does not resume in the thought or the mental image of the object, but includes aspects of an affectionate and imaginative nature, as well as values of social orders.

Keywords: Language, taboo, sociolinguistics, change, meaning.


 

 

Introdução

A questão do mal-estar que os seres humanos experimentam está associada a situações de instabilidade ou de crise, implicando sempre uma leitura ou interpretação da realidade e, por conseguinte, uma relação direta com a linguagem. Cabe, pois, elaborar algumas reflexões, no sentido de se perceber em que medida o mal-estar decorre dos usos da linguagem ou mesmo da simples percepção dos significantes lingüísticos.

Uma primeira idéia seria a de aprofundar a intuição heiddegeriana de que a linguagem é a morada do ser. Se o homem é, na linguagem, tudo o que lhe diz respeito, tudo o que o define, todo o mal-estar que o cerca, outra coisa não constitui senão expressão da própria linguagem. Nessa vertente, conceitos ontológicos teriam que ser dimensionados e o nível de abstração requerido para tanto, por si só, já poderia produzir algum mal-estar nos leitores ou ouvintes que não tivessem os referenciais teórico-especulativos para bem compreendê-los. De fato, as dificuldades na apreensão dos significados lingüísticos, em função das diferenças dos mundos vividos pelo emissor e pelos receptores de um evento comunicativo, amiúde parecem carrear tensão ou desconforto. Ao ler um texto ou ouvir uma conferência, não é raro vivenciarmos a sensação incômoda de nossa limitação ou incapacidade para assimilar o que outras pessoas elogiam ou aplaudem freneticamente, talvez também sem nada entender e apenas para disfarçar o mal-estar que sentem.

Uma outra opção seria a de refletir sobre as reações desfavoráveis que as pessoas costumam ter em contacto com certos aspectos dos usos da linguagem. Esta é o sistema simbólico mais elaborado e mais importante que identifica o ser humano (Hayakawa, 1972). Se, como entende Cassirer (1945), a existência de formas simbólicas é necessária para a efetivação do próprio ato de pensar, o que leva a se definir o homem como um animal simbólico, qualquer pensamento, inclusive o que produz mal-estar, não se exterioriza senão por meio da linguagem. E se o ser humano se apega mais ao símbolo do que à coisa em si mesma, se tudo o que valoriza não passa de mero símbolo, o uso da linguagem, a cada instante, será motivo de associações não raro inconscientes, de onde podem provir sentimentos de repulsa e inaceitação. Esse poder de estabelecer relações associativas, conferido ao signo lingüístico já em Saussure (1949), será a base das idéias que desenvolveremos a seguir.

 

As relações associativas

Saussure (1949) percebeu, no signo lingüístico, dois componentes indissociáveis: o significante e o significado. Numa tentativa de definição, concebeu o primeiro como a imagem acústica do som, e não propriamente o som em si, já que se pode apreender o significado de um enunciado sem a necessidade de se pronunciar ou ouvir os fonemas que o constituem, como, por exemplo, no caso de uma leitura silenciosa. Por outro lado, interpretou o significado ou a contraparte abstrata do signo lingüístico como a imagem mental ou conceito que se tem do referente ou objeto, deixando de fora outros aspectos (o imaginativo-sensorial, o emotivo e o social) que, sem dúvida, integram o campo significativo dos elementos da língua.

Nessa análise do signo lingüístico, Saussure ainda estabeleceu ou renovou certos postulados, tais como o caráter de linearidade e o polêmico princípio da arbitrariedade. Quanto ao primeiro, ninguém pode duvidar de que as unidades da fala se dispõem em cadeia, distribuindo-se ao longo de certo espaço de tempo. Todavia, quanto à teoria da arbitrariedade, já no Crátilo de Platão (427-347 A.C.), embora haja argumentos favoráveis à inexistência de uma relação intrínseca entre os nomes e as coisas, existem exemplos de simbolismo sonoro apontados por Sócrates, que conduzem à interpretação da linguagem em termos miméticos. Dito de outro modo, os nomes devem sugerir a essência dos objetos que representam.

Cumpre ter em mente, porém, que a questão não diz respeito à relação nome e coisa e, sim, ao binômio significante e significado. O problema é, pois, o de saber se a constituição fonética de um nome se associa intrinsecamente com a imagem mental ou conceito que se tem do referente por ele simbolizado. Para se dar razão à tese saussuriana, é suficiente observar as diferenças entre os sistemas lingüísticos: os termos que traduzem conceitos iguais nas inúmeras línguas do mundo são, num nível acústico-articulatório, quase sempre distanciados entre si. Nenhuma semelhança há, por exemplo, entre cachorro, dog, perro, chien, hund ou cane. E, até num mesmo idioma, um único referente pode ser designado por vocábulos fonéticos bem distintos, como cachorro, cão ou vira-lata.

Apesar de argumento tão decisivo, os falantes do português, em geral, são capazes de perceber uma certa motivação significativa sugerida pela constituição sonora de nomes como silêncio, metralhadora, ziguezague, frio, murmúrio, redondo e assim por diante. Será por mero acaso que o fonema /u/, vogal fechada e escura, se encontra presente em inúmeras palavras que evocam a idéia de fechamento, tais como sepultura, ataúde, sepulcro, túmulo, tumba, catacumba, gruta, negrume, furna, escuro, recluso, útero, luto, amargura, angústia, fúnebre, lúgubre etc.?

Não cabe aqui aprofundar essa questão, por nós já amplamente discutida em outro estudo (Monteiro, 1991). Mas será útil raciocinar que a teoria da arbitrariedade do signo, diante de percepções bem nítidas da capacidade evocatória dos segmentos fônicos, não perde sua validade, pelo menos nos termos em que Saussure interpretou o significado.

Com efeito, será difícil sustentar a existência de alguma relação entre o significante e o significado lingüístico, se este for concebido como puro conceito ou imagem mental. Ocorre, entretanto, que, conforme já ressaltamos, o significado não se resume nisso. As palavras evocam sentimentos, sensações ou valores cultuados pela sociedade. E cremos que nesse ponto é que se estabelece uma vinculação ou simbolismo sonoro que muitos falantes comumente constatam. É exatamente através dessa associação da natureza acústico-articulatória dos segmentos fônicos com os sentimentos ou valores manifestos no universo psíquico do ser humano que este experimenta sensações de mal-estar ao ouvir ou empregar, muitas vezes, a própria linguagem.

Mas, antes de nos determos particularmente nessa espécie de associação, devemos observar que a doutrina saussuriana, evidentemente mantendo a redução do significado ao puro conceito, interpretou muito bem os mecanismos que possibilitam as recorrências ou ligações entre signos lingüísticos, não raro até semanticamente distanciados. Com efeito, após discutir as relações sintagmáticas, que ocorrem entre dois ou mais termos presentes num enunciado, Saussure (1949) tratou das relações paradigmáticas (associativas, em sua terminologia), explicitando que elas aproximam termos in absentia numa série mnemônica virtual. E ressaltou que os grupos formados por associação nem sempre se constituem de termos que apresentem alguma coisa em comum.

Será oportuno ilustrar com um exemplo dado pelo próprio autor. Demonstrou ele que em enseignement, enseigner, enseignons etc. (ensino, ensinar, ensinemos), a ligação se processa pela ocorrência de um elemento comum, no caso o radical dessas formas. De enseignement, pela motivação do sufixo, se pode também ter uma série aberta de palavras: enseignement, armement, changement , etc. (ensinamento, armamento, desfiguramento etc.). De outro lado, a partir da analogia dos significados, produz-se outra série associativa: ensino, instrução, aprendizagem, educação etc. E até mesmo a associação se estabelece estritamente por via de algum traço do significante: ensinamento pode remeter a sino ou a elemento, lento etc., etc. Ou seja, qualquer palavra é capaz de desencadear uma infinidade de associações mentais, tanto em virtude de seu significado referencial como em virtude de sua constituição sonora.

Tal percepção é a porta para irmos muito mais além, uma vez que as palavras detêm o poder de evocar sensações e até mesmo de provocar reações em todo o nosso ser. Que se pense, a título de ilustração, em certos qualificativos derivados de nomes de doenças estigmatizadas, tais como leproso e canceroso. Ou então nas palavras ríspidas que se utilizam nos insultos e ofensas pessoais. Parece que essa capacidade evocatória do significante é tão forte que, em geral, as reações que alguém sente face a um vocábulo nem sempre decorre do que ele possa significar, senão que da forma lingüística empregada. A prova é que, sem se mudar o referente, um outro termo tido como sinônimo não chega a ter as mesmas repercussões.

O interessante é que esse poder da linguagem é percebido em toda a evolução da história das civilizações humanas. A Bíblia Sagrada está repleta de passagens em que a palavra é interpretada quase como um mistério, os rituais de magia se valem de sons secretos para evocação e não poucas pessoas crêem que rogar uma praga em alguém pode trazer-lhe conseqüências funestas. Relata Ullmann (1964: 78) que a consciência desse poder existe até, ou talvez sobretudo, nas civilizações indígenas. Tanto é assim que os índios da ilha de Vancouver legaram esta notável comparação: "As palavras atingem as pessoas como a lança atinge a caça ou como os raios do sol atingem a terra".

O fenômeno mais estreitamente ligado a essa percepção é o dos tabus lingüísticos, em virtude do qual nas mais diversas culturas, determinadas expressões costumam ser evitadas. Em geral, a proibição advém do medo de alguma conseqüência funesta e muitas pessoas sentem mal-estar só em pensar num termo que adquiriu conotações pejorativas e que, por isso mesmo, se supõe que possa atrair o mal. Será oportuno refletir um pouco mais nesse assunto.

 

Os tabus lingüísticos

Geralmente, um vocábulo que passa a ser considerado tabu está apenas refletindo o sistema de crenças e valores da sociedade. Por isso, Wardhaugh (1993) declara que, com o recurso aos tabus lingüísticos, a sociedade expressa sua desaprovação a certos comportamentos considerados nocivos a seus membros, seja por motivos de ordem sobrenatural, seja por uma questão de violar um código moral. Assim sendo, certas coisas não podem ser ditas ou alguns objetos não podem ser mencionados, salvo em circunstâncias especiais, e, em geral, os termos que os designam são substituídos por expressões eufêmicas.

Se fizermos um estudo dos costumes dos mais diversos povos, chegaremos à conclusão de que em todos eles há tabus lingüísticos. Dos inúmeros exemplos apontados por Ullmann (1964) e Guérios (1956), anotamos que, entre os masais da África, nunca se profere o nome de uma pessoa morta e, se houver algum vocábulo igual ou parecido, este será logo substituído por outro. Também é bastante conhecido o fato de que, nas mais variadas línguas do mundo, o nome do Diabo costuma ser substituído por circunlóquios e eufemismos. Em francês, existe a curiosa expressão "L'Autre"; em português, além dos inúmeros eufemismos (o dito cujo, o Anjo Mau etc.), há o recurso à desfiguração fonológica do vocábulo, o que produz uma série de curiosas variações: diacho, dialhe, dianho, diangras, dianga, diogo, nabo, droga, dubá etc.

Não são, contudo, apenas as forças desconhecidas que amedrontam o homem e lhe causam o medo de falar. Tudo o que o cerca, em circunstâncias várias, leva-o aos sobressaltos, à sensação do perigo, da repugnância, dos maus pressentimentos. E, em última análise, a proibição ou o temor de usar uma dada expressão parte sempre da crença de que a linguagem oculta um poder capaz de subjugar o homem de forma irremediável. Por isso, reiteramos, freqüentemente algumas pessoas temem pronunciar o nome de certas doenças. Os próprios médicos dizem c.a. em vez de câncer; a gonorréia, o cancro e demais doenças venéreas agora são conhecidas como doenças sexualmente transmissíveis; a lepra passou a ser denominada de hanseníase; o povo costuma usar doença do peito por tuberculose. E os exemplos são incontáveis.

Por motivos análogos, se pensarmos nos nomes próprios, observaremos que poucos pais teriam a coragem de registrar o filho com o nome de Nero, Hitler, Judas ou Calabar. É verdade que no Brasil existe a prática do desrespeito à pessoa humana pela atribuição de nomes estrambóticos do tipo Finadina Defuntina da Boa Morte, Franciscorréia Dorotéia Dorida, Maria Trubirina Prostituta Cata Erva, Restos Mortais de Catarina, Rolando de Alto Abaixo da Estrada, Sansão Vagina, Terebentina Terepênis e inúmeros outros, todos encontrados no Diário Oficial, conforme se lê em Peixoto (ap. Martins, 1991:39). Mas, quase sempre nesses casos de extremo mau gosto, o portador do nome o evita e, ao atingir a maioridade, tenta mudá-lo através de ação judicial.

A esse propósito, ocorre o fato de nomes estrangeiros se associarem fonologicamente a palavras obscenas do português. Pode-se ilustrar com o sobrenome de um japonês domiciliado em Fortaleza, que, registrado no Japão como Ku, foi aqui modificado judicialmente para , em razão dos argumentos óbvios apresentados pelo advogado Dr. Pedro Maia. Em geral, pois, costuma-se adulterar a pronúncia do vocábulo, para que sejam encobertas as conotações que necessariamente ele acarretaria. Lembre-se ainda, a título de ilustração, de que o sobrenome de um mafioso italiano preso no Brasil, por questão de decoro, teve que ser pronunciado Busqueta pelos locutores de rádio e de televisão (Monteiro, 1986).

A adulteração fonética do vocábulo é apenas uma das muitas estratégias que o falante emprega para evitar o mal-estar causado por um tabu lingüístico. Outros recursos bastante comuns são a substituição do termo por um sinônimo, o uso de signos dêiticos ou da linguagem gestual ou mesmo a mudança no tom de voz.

Quanto à substituição do termo por um sinônimo, cumpre ter em mente que não são os significados ou os referentes dos vocábulos (seres, doenças, objetos etc.) que justificam a crença nos efeitos maléficos dos tabus lingüísticos. Por isso é que as pessoas usam, com a maior naturalidade, sem medos ou maus pressentimentos, termos conceptualmente análogos às palavras proibidas.

Quanto ao uso de dêiticos, é freqüente evitar-se o nome de alguém a quem se odeia, mediante o emprego de pronomes: "não me fales nele", "o dito cujo", "já esqueci aquilo" etc. são construções que se ouvem a cada instante. Florival Seraine (ap. Guérios, 1956), observa que, no interior cearense, em vez do nome de certas doenças incuráveis, se diz aquela doença. Mais curioso é o uso das expressões populares lá nele ou lá nela. Comenta o autor acima citado que alguém, ao proferir determinados vocábulos, teme que estes repercutam em seu próprio corpo, concretizando-se em si mesmo as doenças ou ferimentos graves evocados pela pronúncia dos nomes. Para livrar-se de tal perigo, logo aponta para a parte de seu corpo, acrescentando a expressão lá nele (ou lá nela), como se esta fosse uma espécie de fórmula mágica capaz de imunizá-lo ou protegê-lo.

Quanto à mudança no tom de voz, basta lembrar que, em situações especiais, os nomes dos mortos ou de certas doenças, os pedidos feitos a Deus, enfim, todos os sons aos quais se atribui alguma força ou poder imanente costumam ser emitidos com uma modulação especial da voz. É como se o signo lingüístico não tivesse apenas uma função comunicativa: ele também seria capaz de operar mudanças em nosso comportamento, atuar em nossas emoções, trazer-nos a dor ou o prazer. Quantas vezes basta ouvirmos um vocábulo ou expressão para alterarmos subitamente nosso estado de espírito! Por tudo isso, a mudança no tom da voz, que às vezes se transforma num simples murmúrio ou no silêncio total, expressa a consciência de que a linguagem pode causar ao homem algum tipo de mal-estar.

Em suma, parece-nos que a atitude, face aos termos considerados tabus, se explica em virtude de profundas associações de natureza imaginativo-sensorial e afetiva, através das quais se atribui alguma motivação ao significante lingüístico. Ou seja, a constituição fonética de certas palavras remete, de algum modo, às conotações que elas possam sugerir e disso advêm as reações de insegurança ou até de medo. Mas, para completar a visão que temos do signo, entendemos que também a contraparte social do significado pode ser motivada pelo significante. Será o caso, pois, de examinar em que medida o mal-estar associado à percepção dos valores sociais pode ser então veiculado pela linguagem.

 

As diferenças dialetais

É consistente a observação de Hudson (1984), segundo a qual todo indivíduo usa a sua própria língua com o fim de se localizar num espaço social multidimensional. Com efeito, sempre que alguém fala, procura transmitir informação sobre si mesmo, ou seja, tem a intenção de dizer que espécie de pessoa é ou gostaria de ser e que posição ocupa na sociedade. Por outro lado, quem ouve costuma tirar inferências a respeito de quem fala, através de certos sinais ou traços, às vezes veiculados até de forma inconsciente. Daí, surge a seguinte questão: por que as pessoas avaliam as outras, favorável ou desfavoravelmente, a partir de traços lingüísticos ou, mais propriamente, dialetais?

Uma das possíveis respostas é a de que a fala de alguém por si só identifica o grupo social ao qual pertence, de tal forma que, se determinado traço é próprio de um grupo inferiorizado, com certeza, será mal visto e até mesmo estigmatizado. E, como não é possível dissociar a linguagem do indivíduo enquanto ser social, o fato de ser diferente a fala das pessoas das classes desprotegidas motiva um dos mais fortes preconceitos cultivados pela sociedade: o preconceito lingüístico. É um preconceito tão assumido que, nos mais variados contextos, confirma-se a aversão ou repulsa dos que tiveram acesso a um bom nível de escolaridade, face ao modo de falar das pessoas incultas.

A situação mais freqüente de mal-estar causado pela diversidade lingüística deve ser, por conseguinte, a experimentada pelos falantes da variedade padrão ou norma culta (ou que assim se imaginam), quando ouvem uma construção que consideram errada, por chocar-se contra os seus próprios hábitos lingüísticos. Na verdade, em termos científicos, a noção de erro gramatical não tem nenhuma validade. Conforme adverte Trudgill (1979), o estudo científico da linguagem evidencia que todos os dialetos são igualmente bons como sistemas de expressão, não tendo pois qualquer sustentação a idéia de que uma dada variedade lingüística seja superior a outras nem que certas frases ou construções sejam erradas ou corretas. Todas as variedades de uma língua são estruturas complexas e adequadas para as necessidades expressionais de seus falantes. E, sendo assim, qualquer julgamento de valor concernente à correção e pureza de linguagem é de natureza social e não intrinsecamente lingüística. O que se avalia como um erro de linguagem se deve somente à associação com falantes de classes desprivilegiadas ou de grupos de baixo nível social.

Contudo a idéia de que existem formas lingüísticas corretas e, logicamente, formas erradas, parece ser tão antiga quanto as primeiras reflexões sobre a linguagem humana. Tal idéia constitui a razão de ser de um tipo de gramática, denominada de prescritiva ou normativa, que privilegiou o uso escrito da língua e passou a considerar erro tudo o que não fosse abonado pelos grandes escritores do passado. Essa visão chegou até nós, com todas as conseqüências discriminatórias que acarreta, gerando um duplo mal-estar na sociedade: o das pessoas que não aceitam a fala que se desvia da norma culta e o das que se sentem inferiorizadas por não falarem como a elite dominante.

Parece-nos que, da mesma forma que o mal-estar em geral, tudo pode ser interpretado como uma atitude de insegurança face ao que pode constituir ameaça ao equilíbrio. Tanto é assim que o desejo da elite é o de preservar, a todo custo, as formas de falar consideradas elegantes e corretas. Por isso há um esforço institucionalizado no sentido da uniformização, não raro com tentativas de erradicação dos dialetos populares. Por isso, cultua-se o conservadorismo lingüístico, quando se sabe que a língua necessariamente acompanha a evolução dos padrões sociais e, portanto, está sempre sujeita a mudanças em todos os seus níveis estruturais. Por isso, enfim, luta-se quixotescamente, em plena era da globalização, por um purismo ingênuo que tenta rejeitar os empréstimos lingüísticos.

Analisemos um pouco mais esses aspectos do conservadorismo lingüístico, refletindo nos motivos que levam certas pessoas a reagir contra as inovações ou empréstimos, quando toda língua é inerentemente mutável.

 

A resistência às mudanças

Sempre que surge uma inovação lingüística, os falantes mais idosos ou mais conservadores tendem a não aceitá-la e a nutrir um certo incômodo diante das pessoas que a utilizam. É claro que, depois de aceita a inovação, o mal-estar pode diminuir e deixar de manifestar-se. Tomemos um exemplo bem simples dessa situação: o emprego de a gente em vez de nós no português do Brasil. Tivemos oportunidade de testemunhar a inquietação ou desassossego de falantes cultos idosos ao ouvirem, em seminários ou congressos, algum conferencista usar a expressão a gente, quando, de acordo com os hábitos lingüísticos das antigas gerações, somente poderia caber o pronome nós. Imaginemos, para ter uma noção melhor do transtorno que a expressão a gente deve ter causado em muitas pessoas, se de repente os advogados ou promotores, no exercício da profissão, passassem a tratar por você o meritíssimo senhor juiz.

O fato é que, principalmente quando a inovação surge nas camadas baixas da população, há uma fase de reação. Nos dias atuais, nota-se, por exemplo, que a simplificação do processo de concordância nominal, com a marca de plural restrita praticamente só aos determinantes, o que já é bastante comum na fala espontânea, se processa com forte resistência das camadas cultas. Para ilustrar com outro caso, o emprego dos pronomes de distância no português do Brasil não é o mesmo de há trinta ou quarenta anos, em que os laços hierárquicos vigentes em nossa sociedade, eram muito mais rígidos. Mas a mudança, nesse aspecto, também não se perfez sem resistência: ainda nos dias atuais, há quem julgue uma tremenda falta de respeito um filho tratar um pai por você.

Nossa interpretação é a mesma de Kroch (ap. Baylon, 1991). Julgamos que a motivação do conservadorismo lingüístico não se distingue da que subjaz ao conservadorismo político: uma posição favorável à manutenção do status quo existente. Enquanto algumas pessoas se sentem motivadas para inovar, muitas outras resistem à inovação, tentando suprimi-la, sobretudo se ela se inicia na base da escala social. É lógico que os grupos que formam as camadas mais elevadas da sociedade, pretendendo defender sua posição social, resistem evidentemente a qualquer inovação e a estigmatizam. A evolução subseqüente de toda mudança, sua adoção ou sua rejeição, depende pois do peso relativo das forças sociais em atuação.

Tais idéias podem ser interpretadas em termos marxistas. O conservadorismo dos grupos dominantes deriva de uma necessidade de defender sua posição privilegiada contra as exigências democráticas. Na medida em que as normas conservadoras, no uso da língua, são aceitas publicamente, o seu status social e o seu poder serão reforçados, valorizados pela posse desse capital social. E isto é o que sustenta a ilusão de que é necessário impedir as mudanças, como se com elas se instaurasse o caos.

Quanto aos empréstimos, a motivação deve ser a mesma. É fato que, no Brasil, já não se sente uma reação tão forte contra os estrangeirismos, tal como ocorreu em outras épocas. Mas num país como a França, onde existe uma longa tradição de luta ideológica contra os idiomas concorrentes do francês em seu território, as autoridades francesas continuam com essa preocupação, editando leis e propondo medidas no sentido de coibir o avanço do franglais. Assim, por exemplo, um decreto de 1986 fixa os domínios em que o emprego da língua francesa é obrigatório e o recurso a qualquer termo estrangeiro é proibido. É como se o emprego de vocábulos não lidimamente vernáculos pudesse desestabilizar ou desestruturar o sistema lingüístico. Outra vez, a comprovação de que a invasão do novo assusta e incomoda.

 

Conclusão

Os aspectos da relação entre linguagem e mal-estar aqui analisados apenas abrem algumas possibilidades de interpretação sobre a natureza da linguagem humana, vista, antes de tudo, como um sistema de símbolos. A complexidade do tema deixa margens a reflexões mais profundas sobre a própria definição do ser humano enquanto linguagem e permite logicamente que se estabeleça um elo com a noção de subjetividade. Esta, sem dúvida, é a ponta do vértice que faltou para termos uma visão mais abrangente ou tridimensional do fenômeno em estudo.

De todo modo, o ângulo que elegemos para enfoque do assunto nos permitiu inferir que o mal-estar humano pode decorrer da própria linguagem, em virtude de mecanismos de associação com elementos de ordem imaginativo-sensorial e afetiva ou de valoração social. São, em última instância, componentes que devem integrar o significado e, por isso mesmo, podem ser veiculados pelas formas lingüísticas. As reações que o indivíduo experimenta no uso ou no contacto com a linguagem se explicam, pois, em função desses mecanismos. Sejam ou não reações de puro mal-estar.

 

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Artigo aceito em 08 de janeiro de 2002

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