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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.2 n.2 Fortaleza set. 2002

 

ARTIGOS

 

Mal-estar na psicologia: a insurreição da subjetividade

 

 

Jáder F. LeiteI; Magda DimensteinII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN. Residência de Pós-graduação, apto. 02, Campus da UFRN, Lagoa Nova. Natal, RN. CEP: 59072-970. e-mail: jader.leite@bol.com.br
IIDrª. Em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN. Av. Praia de Genipabu 2100, apt 1402/N, Ponta Negra, Natal/RN. CEP: 59.094-010. e-mail: magdad@uol.com.br

 

 


RESUMO

Os autores discorrem sobre o tema da subjetividade, problematizando as concepções hegemônicas no campo da Psicologia que destacam o sujeito enquanto uma experiência individualizada, universal, estrutural e racional. Destacam como esse ideário marcou a Psicologia Social americana e apontam as revisões epistemológicas efetuadas nesta disciplina, tanto na Europa quanto no Brasil, que permitiram uma concepção de subjetividade mais articulada com os processos sociais. É no entanto, a partir de autores do pensamento filosófico contemporâneo como Foucault, Deleuze e Guattari que a subjetividade é destacada enquanto categoria processual, inscrita no plano de sua produção em função dos agenciamentos de instâncias de subjetivação dispostas no registro do social. Tal perspectiva leva a um rompimento com as posturas naturalizantes e individualizantes de abordagem da subjetividade. Concluem destacando a inseparabilidade entre os processos subjetivos e o campo social e enfatizam que o trabalho com a categoria da subjetividade permite acessar as formas pelas quais os humanos se relacionam com os regimes de verdades de sua época e como podem não só reproduzir tais regimes, mas reconstruí-los.

Palavras-chave: subjetividade - processos de subjetivação – indivíduo - psicologia – agenciamento


ABSTRACT

The authors discuss subjectivity by problematizing the hegemonic conceptualizations of the subject as an individualistic experience that is universal, structural and rational. While pointing out that those conceptions have marked american social psychology, they emphasize the epistemologic revisions occuring in Europe and Brazil that allowed for a conceptualization of subjectivity aligned with the social processes. However, it was contemporary philospohers such as Foucault, Deleuze and Guattari that offered the view of subjectivity as a process category in the production area and as active in the social sphere, thereby breaking with the naturalistic and individualistic approaches. The authors conclude that the subjective processes are inseparable from the social sphere and that work with the subjective category allows a view of how human beings relate to the current rules of truth, the reproduction of these rules, and their reconstruction.

Keywords: subjectivity – subjective processes – individual – psychology – promotion


 

 

Subjetividade: uma problematização no campo da Psicologia

Ao refletirmos a questão da subjetividade, podemos afirmar, com Morin (1996), tratar-se de um tema controverso, imbuído de um paradoxo que propõe de um lado o apagamento da experiência subjetiva, na figura do sujeito e, de outro, a sua evidência. Assim, o autor problematiza essa noção em três esferas do saber: a Filosofia, a Religião e a Ciência.

Não é difícil constatar que a noção de sujeito ganhou expressividade no campo da Filosofia, ao confundi-lo com a alma, com aquilo que em nós há de divino, porque nele se fixa a vontade, a liberdade (Morin, 1996).No campo da Religião, especialmente no Cristianismo, essa noção ganhou enorme evidência, se atentarmos à máxima bíblica: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (Livro de João 1: 1). A idéia central é que há uma entidade que por si explica-se e explica o mundo. Deus é identificado como uma subjetividade universal (Morin, 1996).

Entretanto, nos domínios da ciência, o tema da subjetividade viveu uma maior problematização, em especial pela contradição, na era da modernidade, entre uma perspectiva de subjetividade que estava ligada a um universo privado de emoções, sentimentos e formas de pensar o mundo e a própria existência (Figueiredo, 1997) e um modelo dominante de fazer ciência que visava regular essa subjetividade com vistas a obter um sujeito racional e imparcial que pudesse produzir um conhecimento do mundo ausente de juízos de valor.

Por isso, Morin (1996, p. 45) afirma que nessa esfera do saber "só encontramos determinismos físicos, biológicos, sociológicos ou culturais e, nessa ótica o sujeito dissolve-se".

Mancebo (2002) destaca que o projeto da modernidade centralizou a subjetividade na figura do indivíduo, trazendo consigo toda uma preocupação com a preservação de sua interioridade, com o respeito à sua privacidade e com uma separação entre um universo público e privado.

Tal projeto, iniciado no século XVI, é apresentado como

um momento específico de hegemonização da ideologia individualista, através da implantação de instituições políticas crescentes comprometidas com os valores da liberdade e igualdade, ou como espaço cultural global de sua afirmação, mediante a secularização dos costumes e a laicização e universalização sistemática do conhecimento (Mancebo, 2002, p. 101).

Tivemos, ainda, no contexto da modernidade, a consolidação do modo de produção capitalista que não só implicou em transformações de ordem econômica da produção, mas conforme Figueiredo (1997), produziu a idéia de um sujeito autônomo, livre para negociar sua força de trabalho em troca de bens de consumo e que nesse mesmo sujeito se encontraria a sede de suas atitudes, de seus atos de intenção e responsabilidade, portanto de sua autonomia.

Dessa forma, podemos dizer, apoiados nos autores acima mencionados, que a noção de sujeito e de indivíduo estão circunscritas ao plano histórico da modernidade, no afã de produzir uma entidade individualizada que desse sustentação à experiência mercantil nascente, qual fosse, o capitalismo.

Essa versão individualizada da subjetividade marcou, fortemente, o projeto da Psicologia enquanto ciência (Figueiredo, 1997) e refletiu-se em muitas de suas vertentes teóricas que assimilaram uma concepção hegemônica de subjetividade correspondente a um sujeito psicológico universalizado, particularizado.

Podemos tomar, como exemplo, o campo da Psicologia Social, basicamente aquela desenvolvida em solo norte-americano. De acordo com Bernardes (1998), a influência do Positivismo, enquanto uma filosofia científica da Psicologia Social americana, permitiu essa disciplina naturalizar os fenômenos sociais e tratá-los por meios experimentais, tendo no indivíduo o elemento último de explicação desses fenômenos. Assim, poder-se-ia alcançar um conhecimento cientificamente plausível, objetivamente neutro.

Robert Farr (1999) destaca que essa postura fez florescer uma Psicologia Social tipicamente psicológica ou individualista, tendo se constituído a partir de uma exclusão de temas e de autores que, ao longo do desenvolvimento dessa disciplina, problematizaram a relação indivíduo-sociedade. Produziu, com isso, uma cisão entre os processos de natureza social e fenômenos de ordem psicológica.

Como conseqüência dessa abordagem tradicional, a pesquisa em Psicologia ficou estritamente vinculada a um modelo baseado na centralidade de um método que requeria neutralidade, objetividade, guiado por um caráter predominantemente experimental e com uma política de generalização do conhecimento produzido (Tittoni e Jacques, 1998).

Para termos uma maior compreensão dessa questão, basta situar a perspectiva com que foram tratados os processos psicossociais da percepção social e das atitudes.

Os estudos de percepção social desenvolveram-se perpassados por uma preocupação em medir a exatidão dos indivíduos para perceber e avaliar as pessoas e seus comportamentos. Esse procedimento perseguia uma exatidão psicológica, tentando separar uma causalidade interna para o elemento percebido e uma causalidade externa, ambiental para o mesmo (Pisani e Rizzon, 1994).

No caso das atitudes sociais, Spink e Frezza (2000) comentam que essa categoria saiu de uma perspectiva mais abrangente de articulação que privilegiava os processos sociais para sofrer uma continuada individualização no entendimento de como as pessoas se posicionam frente a um objeto de sua atitude.

Nessa categoria, a causa primeira e última passou a ser o indivíduo que, dotado de uma estrutura cognitiva, emocional e comportamental, elaboraria suas atitudes por meio de um processo passivo de aprendizagem pautado em condicionamentos e imitações (Pisani e Rizzon, 1994).

Ademais, sendo as atitudes impossíveis de uma observação direta, poderiam ser medidas através do comportamento, via escalas de mensuração das atitudes, a exemplo das famosas escalas de Thurstone e Likert (Pisani & Rizzon, 1994), bem como em espaços experimentais de laboratório, descontextualizando-as do campo social de pesquisa (Spink e Frezza, 2000).

No entanto, o campo da Psicologia Social tradicional e suas bases conceituais, fundadas na perspectiva do monismo metodológico,¹ sofreram profundas modificações, em função dos diversos elementos presentes no contexto social da época, especialmente, nas décadas de 60 e 70.

Na Europa, a Psicologia Social tradicional foi contestada, em especial, pela Teoria das Representações Sociais, que tendo em Moscovici seu maior expoente, visou produzir uma Psicologia Social sociológica (Farr, 1999). A partir de então, o caráter relacional entre indivíduo e sociedade passou a ser destacado como objeto dessa disciplina, havendo entre esses termos o que Farr (1999, p. 51) nomeia de uma "tensão criativa".

Desse modo, o estudo das Representações Sociais privilegia, em detrimento da situação controlada e ascéptica do laboratório, o conhecimento produzido pelas pessoas no âmbito do seu cotidiano, das suas relações travadas no nível do senso comum (Spink, 1999).

No caso da América Latina e do Brasil, especialmente nos anos 70, essa contestação ao modelo experimental se colocou de um ponto central, qual fosse:

A discussão de fundo é como extrair entidades psicológicas de fenômenos sociais. O materialismo histórico dialético ditava as discussões da época. Também conhecida como a Psicologia Marxista, tal perspectiva no Brasil rompe de vez com a Psicologia Social científica (norte-americana). (Bernardes, 1994, p. 31).

Nesse novo olhar, busca-se uma articulação entre o indivíduo, a cultura e a sociedade, em que o primeiro assume um caráter histórico-social, que, além de seu aparato biológico, constitui-se numa rede de inter-relações sociais (Bonin, 1998).

Desse modo, a crise que se instalou no campo da Psicologia Social permitiu um redimensionamento tanto da visão de homem quanto das práticas exercidas pelos profissionais de Psicologia, até então vigentes no cenário desta disciplina. Uma nova perspectiva, apontada por Lane (1994, p. 12) passou a defender que "o ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser descartada, que é a sua condição social e histórica, sob o risco de termos uma visão distorcida (ideológica) de seu comportamento".

Nessa mesma linha de contestação ao modelo reducionista do objeto psicológico e adotando uma perspectiva crítica, vem se destacando a Psicologia Sócio-Histórica (Bock, 2001), inspirada, especialmente, nos autores russos Vigotski e Leontiev, para os quais os fenômenos psicológicos estão em estreita relação com processos sociais.

Dentre os principais aspectos da Psicologia Sócio-Histórica está a referência de que a experiência humana, "realizada socialmente pelos homens, como forma de atender a suas necessidades, produzindo, dessa forma, sua própria existência" (Gonçalves, 2001, p. 38), situa-se num plano de historicidade, termo que faz com que a subjetividade ressalte-se em condições históricas específicas de sua realização.

Assim, apoiada em Vigotski, Gonçalves (2001) destaca que a subjetividade constitui-se pela mediação das relações sociais, em que um plano ou nível inicial intersubjetivo converte-se num plano intrasubjetivo, conversão essa permitida ou mediada pela linguagem. Esta aparece como um instrumento que internaliza, ao nível de uma categoria psicológica, a objetividade das relações sociais.

 

A Insurreição da Subjetividade

A partir dessas revisões epistemológicas feitas no âmbito da Psicologia, a subjetividade não pode ser mais compreendida nos termos de uma experiência universalista, racional e estruturada do mundo privado, mas referida a:

Uma forma particular de se colocar, de ver e estar no mundo que não se reduz a uma dimensão individual. A subjetividade é um fato social construído a partir de processos de subjetivação, o qual é engendrado por determinantes sociais – históricos, políticos, ideológicos de gênero, de religião, conscientes ou não. Dessa forma, em diferentes contextos culturais, diferentes subjetividades são produzidas (Dimenstein, 2000, p. 116-117).

Conforme visto na sessão anterior, é justamente em oposição a essa perspectiva de abordagem da subjetividade que uma série de questionamentos passaram a ser feitos no âmbito da Psicologia, especialmente da Psicologia Social.

Por sua vez, autores como Foucault, Deleuze e Guattari apresentaram grandes contribuições ao refletirem a questão da subjetividade, especialmente pela crítica radical que teceram sobre os modos hegemônicos de seu tratamento. Puderam lançar luz no debate e o fizeram destacando o caráter processual e produtivo da subjetividade, possibilitando, portanto, sua desnaturalização.

Foucault (1984), ao tratar do sujeito moderno, parte de uma perspectiva de entendimento de construção da experiência subjetiva pela via de um poder do tipo disciplinar, que possibilitará a produção de um lugar de interioridade e de individualidade no humano.

O que caracteriza o poder disciplinar, segundo Foucault (1984), é que, ao invés de destruir, ele cataloga singularidades, produz e investe nas individualidades, determina se os sujeitos estão aptos ou não ao trabalho, a exercerem com parcimônia atividades desgastantes, a apresentarem condições de desempenho numa guerra e, de não sendo dotados desses perfis, os mesmos poderem ser criados.

O exercício do poder disciplinar não mobiliza grandes procedimentos, complexas estratégias, mas atua por meio de instrumentos comuns, como enumera Foucault (1984): a vigilância hierárquica (no sentido de se poder enxergar a tudo e a todos, estabelecendo uma rede, onde todos são observados), a sanção normalizadora (existência de uma modalidade punitiva, na qual os mínimos atos desviantes do indivíduo sejam passíveis de penalização, via correção ou punição) e o exame (caracterizado por permitir uma alta visibilidade do indivíduo, intensifica sua individualização mediante sua descrição pormenorizada, destacando suas diferenças frente aos demais sujeitos).

A classe da burguesia, como representante maior da ideologia liberal e como detentora dos meios de produção de riquezas no capitalismo, vai multiplicar seus lucros, investindo na produção desse poder disciplinar – bem como suas técnicas e procedimentos - que não se pauta pelo caráter repressivo das massas de trabalhadores, mas baseado no controle do corpo e dos atos dessa mesma massa (Foucault, 1995), de forma analítica, pormenorizada e especializada.

Os métodos disciplinares, segundo Foucault (1984, p. 118) "permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade (...)", inaugurando uma anatomia política, circunscrevendo uma relação de extrema sujeição, pois implica no domínio do corpo do outro.

Essa docilidade política e utilidade econômica são particularmente interessantes para uma burguesia que tinha como projeto alargar seus lucros, enraizar-se politicamente, universalizar valores que lhe eram próprios e afastar de si os riscos da subversão e da revolta popular.

Desse modo, o corpo do homem moderno será investido de uma disciplina que especializa uma individualidade e uma interioridade, fabricadas por meio de mecanismos que visam circunscrever esse indivíduo nos espaços habitados, no controle de suas atividades, na organização do seu tempo (Foucault, 1984).

Podemos, com isso, notar como uma prática de potencialização da individualidade, por meio da disciplina do corpo, levou o indivíduo a uma experiência subjetiva, que conforme assinala Rosa (1997), tem uma realidade histórica e circunscreve o corpo nessa realidade.

No entanto, essa prisão do indivíduo no corpo não quer dizer que o seja inevitavelmente. Para tanto, é preciso entender que a noção de poder em Foucault não o assemelha a uma propriedade de classe ou que tenha um grande lugar de exercício. Assim, o poder não está unicamente numa classe, num grupo social ou no Estado, mas é tomado por seu caráter relacional, menor, microfísico, molecular (para usar uma expressão de Guattari, 1986).

Como assinala o autor, "o poder circula, funciona em cadeia. Os indivíduos estão na posição de exercê-lo e/ou sofrer sua ação" (Foucault, 1995). Essa noção é particularmente importante porque situa o sujeito no campo da política e da ética, no sentido de que o mesmo possa se insurgir em face a modelos hegemônicos de dominação, abrindo aos humanos a possibilidade de busca de formas não-autoritárias de convívio social.

Por meio dessa perspectiva, Foucault acaba por efetuar uma discussão que resgata a noção de sujeito, banida da ciência (Morin, 1996), mas não nos termos de reconhecer a subjetividade no plano da metafísica ou uma experiência racional fundadora do mundo e das representações (Rosa, 1997).

A originalidade do projeto foucaultiano está em situar o sujeito no campo das condições histórias de sua produção, da tensão estabelecida nas relações de poder que faz emergir, em dado contexto, uma possibilidade discursiva para o sujeito.

Nesse sentido, talvez seja mais apropriado falarmos de processos de subjetivação (Deleuze, 2000), ou mesmo de produção de subjetividade (Guattari e Rolnik, 1986; Guattari, 2000).

Enquanto o termo sujeito nos remete a algo já dado, no sentido de um efeito que se produziu ou de algo que se individuou, os processos de subjetivação e a produção de subjetividade perguntam, anteriormente, pelas condições de produção desse sujeito. Ou seja, estamos nos situando nos dispositivos e agenciamentos (Deleuze, 2000) que possibilitaram o surgimento de determinados modos de subjetivação.

Dessa forma, Foucault, Deleuze e Guattari perguntam pelos agenciamentos ou vetores de subjetivação, bem como que tipo de subjetividades estão sendo produzidas em função de tais agenciamentos.

Guattari (2000, p. 19) aponta que a subjetividade pode ser descrita como "o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva".

Desse modo, ela pode se expressar tanto em modos individuados, de uma pessoa, que se inscreve num mundo de particularidades ligadas ao campo social, e em função desse campo, estar apta a fazer escolhas, a conduzir sua vida, pensar e decidir por si mesma. Mais ainda, os modos de subjetivação podem se expressar num plano coletivo, que ultrapassa o indivíduo, conectando-o ao processo grupal.

Para o autor, as condições de produção da subjetividade estão ligadas a fatores heterogêneos que, de forma transversal e não-hierárquicos, se arranjarão para secretar novas formas subjetivas.

Dentre tais condições de produção da subjetividade, Guattari (2000, p. 20) destaca:

Instâncias humanas intersubjetivas manifestadas pela linguagem e instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes a etologia, interações institucionais de diversas naturezas, dispositivos maquínicos, tais como aqueles que trabalham com o uso do computador, universos de referência incorporais, tais como aqueles relativos à música e às artes plásticas...

Como se apreende dessa citação, o autor opera uma descentralização de componentes de uma interioridade psicológica, auto-fundante ou mesmo fundada pela essencialidade dos complexos familiares, tão cara ao saber psicológico, em favor de uma noção dotada de complexidade, nos termos de considerar uma multiplicidade de elementos (lingüísticos, institucionais, sociais, culturais, de mídia) possíveis de nos criar num campo existencial de auto-referência.

Para o autor, a articulação dessas diversas instâncias se dá no registro do social. Este, por sua vez, não pode ser tomado como um amontoado de indivíduos que se somam para compô-lo, mas, segundo o autor, trata-se de um "entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc." (p. 34).

Ao situarmos o tema da subjetividade no cenário contemporâneo, considerando o grande desenvolvimento dos elementos da mídia e da tecnologia, bem como o avanço do capitalismo em sua versão neoliberal e globalizada, vivemos num paradoxo. De um lado, dissolvem-se as fronteiras, antigos agentes de subjetivação presentes ao longo da história (como Religião, Família, Comunidade, as tradições) são, de um lado fragilizados, desterritorializados (Guattari, 1999), indivíduos de diferentes culturas se aproximam, por meio de uma polifonia eletrônica (Rolnik, 1997). Mas inversamente, reavivam-se identidades nacionalistas e produzem-se estilos de vida orientados sob a égide dos mercados no intuito de fazer florescer seus lucros.

Para Guattari (Guattari e Rolnik, 1986; Guattari, 2000), essa versão mundializada dos mercados capitalistas apresenta-se como um dos principais produtores de subjetividade, de modo que não há uma oposição entre as relações de produção de riquezas desenvolvidas no capitalismo e o tipo de subjetividades que se coadunam a este sistema.

Assim, o capitalismo produz, antes de tudo, subjetividades. Para este autor, a subjetividade está no mesmo nível de fabricação tal como as riquezas geradas pela máquina capitalista. Podemos associar, desse modo, a subjetividade produzida em Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) com a experiência do corpo disciplinado em Foucault, dado o caráter histórico de modelização dos indivíduos, bem como a importância que essa modelização exerce para a manutenção do Capitalismo.

A maneira pela qual o Capitalismo se utiliza para garantir sua sustentação não se limita ao nível representacional da ideologia (Guattari e Rolnik, 1986), na qual o indivíduo opera uma representação a uma realidade que não condiz com sua condição de classe.

Como assinala o autor, o caráter de representação conferido à ideologia é insuficiente para abordar o aspecto produtivo da subjetividade, pois não se trata, unicamente, de indivíduos que representam o mundo, mas que são fabricados, por meio de "(...) uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas imaginários, etc." (p. 26).

Assim sendo, a produção de subjetividade está inscrita em diversas esferas, sejam elas conscientes, inconscientes, no nível da razão, dos afetos e da memória. Não é difícil constatar tal assertiva, se observarmos como a mídia associa determinados produtos lançados no mercado a um estilo de vida, a uma modalidade subjetiva. Isso se faz notar nas propagandas de cigarro, na moda, nos tipos de alimentos ingeridos, no cuidado com o corpo, nas literaturas descartáveis, etc.

Nesse contexto, Guattari (1999, p. 190-191) observa que

A subjetividade permanece hoje massivamente controlada por dispositivos de poder e de saber que colocam as inovações técnicas, científicas e artísticas a serviço das mais retrógradas figuras da socialidade. E, no entanto, é possível conceber outras modalidades de produção subjetiva – estas processuais e singularizantes.

Assim, uma questão que se coloca para o autor é a possibilidade de identificar os processos de subjetivação a partir de uma perspectiva que podem promover subjetividades serializadas, vinculadas a uma lógica consumista. Em outras palavras, se tais agenciamentos engendram um sujeito dócil e submisso, que circunscreve nas esferas individual/coletivo e consciente/inconsciente uma sujeição econômica e subjetiva a um modelo de indivíduo para-o-consumo, dando sustentação aos mercados capitalistas. Para essa forma subjetiva serializada, individualizada e mantedora de relações sociais assimétricas, Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) nomeia de subjetividade capitalística.

Do outro lado, podemos caracterizar os processos de subjetivação pela via de poderem inaugurar subjetividades singulares, desarticuladoras do modelo de indivíduo acima descrito. Estamos no campo das linhas de fuga (Guattari e Rolnik, 1986), ou seja, das experimentações nas quais os indivíduos rompem com modelos subjetivos de manutenção de um staus quo para enfatizar espaços de criação, de outras formas de existência que redimensionam o campo social, ou para dizer com Foucault (1995), que redefinem a forma de exercício do poder.

É nesse sentido que Guattari (Guattari e Rolnik, 1986, p. 33) afirma: "a subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares".

Aqui, ao nosso ver, cabe uma associação com a noção, anteriormente discutida em Foucault, de que a experiência subjetiva novamente se inscreve num plano de historicidade, em que as relações de poder e de saber vão configurar, dependendo de seus arranjos, indivíduos reprodutivistas de uma lógica de mercado ou se há brechas para novos contornos subjetivos pautados numa dimensão ética. Essa dimensão está aqui entendida nos termos apontados por Guareschi (1998), de considerar seu caráter crítico e relacional, portanto, revelador de relações assimétricas no tecido social.

A subjetividade, nessa perspectiva, dota-se de uma processualidade tal que não permite sua reificação em estratificações psicológicas. Embora os dispositivos sociais inscrevam os corpos em territórios pré-estabelecidos, como pertença grupal, cor de pele, sexualidade, ou classe, mesmo assim, não se finaliza o sujeito, mas reconhece seu contínuo movimento (Doel, 2001).

Nessa mesma vertente de pensamento, Deleuze (2000), refletindo Foucault, indica que a noção de sujeito pouco ou nada tem com os processos de subjetivação, pois não caminhamos para uma fórmula final ou fundante de sujeito.

Deleuze opera com a noção de processos de subjetivação, que se coloca anteriormente à individualização, sendo, portanto, pré-pessoal. O sujeito, nesse caso, vira pele, fronteira, já que não se mantém ad infinitum como estabilidade identitária (Domènech, Tirado e Gomèz, 2001), mas passa a ser afetado por agentes múltiplos de subjetivação.

Por esse modo, Deleuze (2000, p. 109) comenta que seu empreendimento busca analisar...

Estados mistos, agenciamentos, aquilo que Foucault chama de dispositivos (...). É nos agenciamentos que encontraríamos focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem sempre desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe uma linha agitada.

Deleuze recusa, podemos ver, qualquer tentativa de aprisionamento do sujeito em uma identidade pré-fixada, seja ela psicológica, sociológica, lingüística, de mercado, etc. Sendo assim, necessário relativizar sua produção. Por conseguinte, os dispositivos de subjetivação (aqueles já citados a partir de Guattari) engendram subjetividades múltiplas ao sabor da dinâmica inscrita no corpo social.

 

Considerações finais

Ao longo desse trabalho, tentamos realizar um percurso no qual a subjetividade, ao ser tomada pelo projeto da modernidade, passou a ser identificada como uma categoria individualizada, naturalizada e universalizada, sendo assim tomada como objeto da Psicologia e passando por uma problematização, especialmente no campo da Psicologia Social.

A partir da articulação de autores como Deleuze, Guattari e Foucault, ligados ao pensamento filosófico contemporâneo, pudemos resgatar o tema da subjetividade e deduzir que os processos de subjetivação podem alterar as maneiras ordinárias que nos definem para outras modalidades de existência impensáveis desde uma perspectiva que dota a subjetividade de uma estrutura racionalizada e internamente independente.

Do contrário, trata-se de recusar tal postura, para nos colocarmos numa possibilidade de redimensionamento de nossa trajetória de vida em face às regras sociais de nossa época.

Nesses termos, podemos dizer com Nardi (2002), que a subjetividade se apresenta como um conceito operativo, que permite vislumbrar a dinâmica da estrutura social pela impossibilidade de divisão da relação individual-coletivo.

Acessar as subjetividades é, portanto, conhecer como os indivíduos ou grupos sociais fazem sua história, seja reproduzindo, negando ou recriando esquemas culturais ou regimes de verdades (Nardi, 2002) vigentes, desfamiliarizando a noção de que exista um sujeito implacável ao tempo, à história, e à cultura.

 

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Recebido em 14 de julho de 2002
Aceito em 22 de agosto de 2002
Revisado em 25 de agosto de 2002

 

 

Notas

1. O monismo metodológico faz referência a um modelo de fazer ciência que prega a unidade do método científico para todos os campos de investigação, seja das ciências naturais, seja das ciências humanas (Spink & Menegon, 2000). Em oposição, surge a perspectiva da epistemologia da diferença, na qual defende métodos específicos para as ciências humanas.

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