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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.2 n.2 Fortaleza set. 2002

 

ARTIGOS

 

Puxa-se um umbigo: considerações psicanalíticas acerca do histrionismo na estrutura histérica

 

 

Sidnei Artur Goldberg

O autor é psicanalista, coordenador do espaço Reuniões Psicanalíticas em São Paulo, editor de Textura, revista de psicanálise. Co-autor de Sobre o desejo masculino, ed. Ágalma, 1995, Sexualidade feminina e masculina, ed. Experimento, 1996 e Temas da clínica psicanalítica, ed. Experimento, 1198. Endereço: R. Pamplona, 1119, cj 23, Jardim Paulista, Cep: 01405-001. e-mail: sidgold@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo inicia retomando a teoria freudiana dos sonhos, acentuando seu caráter imaginário e o processo de transposição para uma literalidade realizado pela análise. Em seguida, trabalha e isola o traço de histrionismo na histeria, tomado da semiologia médica. Em primeiro lugar mostrando as duas posições do discurso médico frente a este traço e, em segundo, mostrando como a psicanálise, tal qual opera frente ao sonho, procura transpor este "dar a ver" numa literalidade a ser decifrada em mensagem inconsciente dirigida a um Outro, com a conseqüente implicação subjetiva do sujeito neste processo. Desvela-se assim o aspecto relacional do sofrer e gozar histérico.
Ao final, temos o relato de uma sessão intrincando teoria e clínica.

Palavras-chaves: sonho, histrionismo, histeria, inconsciente, desejo.


ABSTRACT

This article starts by going back to the Freudian theory of dreams enhancing its imaginary aspect and the transposition process to literalness accomplished by analyses. Afterwards, it detaches and works on the histrionic trace in hysteria, taken by medical semiology. First showing the two views on medical speech regarding this trace, second showing as psychoanalyses, the way it works with dreams, tries to go through the "to be seen factor" in such a literalness to be deciphered in unconscious message addressed to an Other, with the consequent subjective implication of the subject in this process. Yet unveiling the relational aspect between suffering and hysterical joy. At last, there is the report of a session interacting theory and clinic.

Keywords: dreams, histrionism, hysteria, unconscious, wish.


 

 

Em 1889, Freud nos disse como interpretar um sonho. A questão central era considerar necessário um trabalho partindo daquilo que se "fazia ver". Ou seja, não devíamos basear nossa compreensão do sentido dos sonhos naquilo que ele chamou de conteúdo manifesto. Este por sua vez é o que poderíamos chamar do "filme" que retemos e de que nos lembramos. Claro está que analisamos sempre a partir do sonho "lembrado". E esta lembrança se dá sempre em imagens. Mesmo que contenha falas, palavras, que tenham coerência discursiva ou não, é de um pequeno filme que partimos. Pensamentos oníricos ou conteúdo latente é o ponto ao qual deveríamos visar, para podermos depreender a partir destes e não dos primeiros, o sentido do sonho.

Os pensamentos oníricos e o conteúdo onírico ( conteúdo onírico é outro nome com que Freud chamou o conteúdo manifesto ) nos são apresentados como duas versões do mesmo assunto, em duas linguagens diferentes. Ou, mais apropriadamente, o conteúdo onírico parece uma transcrição dos pensamentos oníricos em outro modo de expressão, cujos caracteres e leis sintáticas é nossa tarefa descobrir comparando o original e a tradução. (FREUD, 1972a, p.295)

Assim, para que se desse esta passagem, o sonho devia ser fracionado, tomado em partes, submetidas estas partes ao processo da associação livre (que obviamente nunca seria livre, ao contrário, sujeita ao determinismo psíquico). Percorreríamos assim o caminho oposto ao da elaboração dos sonhos, aquilo que Freud chamou propriamente de interpretação dos sonhos. Teremos então o sentido literalizado do sonho, partimos do visível, em direção ao escutável:

...O conteúdo onírico, por outro lado, é expresso, por assim dizer, num roteiro pictográfico, cujos caracteres têm que ser transpostos individualmente para a linguagem dos pensamentos oníricos. Se tentássemos ler esses caracteres de acordo com seu valor pictórico, em vez de em conformidade com sua relação simbólica, seríamos nitidamente induzidos a erro..."

"...evidentemente, só podemos formar um julgamento adequado do rébus se pusermos de lado críticas tais como estas de toda a composição e de suas partes e se, em lugar disso, tentarmos substituir cada elemento separado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de alguma maneira ou de outra. As palavras que juntamos dessa forma não deixam mais de fazer sentido, mas podem formar uma frase poética da maior beleza e significado. Um sonho é um enigma de figuras... (FREUD, 1972a, p.296)

* * *

Se comecei chamando o conteúdo manifesto no sonho daquilo que se "faz ver", foi com a intenção de fazer uma aproximação com um traço importante da estrutura e das formações histéricas, que ficou conhecido através do discurso médico como histrionismo. Este termo é um neologismo do latim "histrione". Histrião era no teatro romano um "mimo", ou seja uma farsa popular, na qual se imitavam os costumes da época. Bufão. Palhaço. Bobo. "Indivíduo ridículo, vil e abjeto." Dito então de outra forma, poderíamos chamar esta característica de "fazer ver" (ISRAEL, 1995, p.76). É o lado espetacular do "Eu histérico" (como nos diz Nasio) e também dos sintomas histéricos...

Alguém já disse que a histeria, com sua posição insistente de manter o desejo insatisfeito, acaba por cumprir uma certa função social, que é a de apontar a castração, um furo no saber do Outro; o que sempre vai no sentido contrário das ilusões de um saber totalizante. Lucien Israel diz algo semelhante:

Reconhecer que o fundamento do ser humano, o motor de seus atos, é inconsciente, descobrir que todas as produções do homem e do seu espírito são apenas uma manifestação desse inconsciente e não a verdade fundamental do sujeito, eis o que pode justificar todas as resistências.

E é para sustentar essa mensagem que a histérica, sem o saber, ostenta o leque dos seus sintomas, provoca o médico, o homem, o grupo social com seus traços de caráter. (ISRAEL, 1995, p.23)

Assim, a própria denominação de histrionismo já nos mostra uma das formas pelas quais o discurso médico reage ao discurso histérico. Se a histeria é fértil em instituir mestres, também o é na ação de derrogá-los. O discurso da ciência, representada pelo médico, tem para com ela respostas de onde destacamos dois tipos básicos:

- A primeira consiste em colocar a histérica no lugar do ridículo, do fingido, daquela que quer manipular, chamar a atenção para si. Desde aí dedicam-se-lhe desprezo, irrisão, e o não levar em conta ("não dar ouvidos", diz a expressão) o que ela diz... enfim tudo na linha do que se chama o histrionismo. É como se o médico dissesse: "claro que não consigo curar isto, trata-se de uma atitude farsesca, ela não tem nada na verdade..." (Lacan vai nos dizer que justamente naquilo que mente – o sintoma – é de onde podemos entrever uma verdade ), "o que precisa é de um namorado..." Temos ainda para este primeiro tipo as versões folclóricas de enfermarias de hospitais, como colocar um plástico sobre a face ou aproximar seringas de injeção para provar que os desmaios e outros sintomas não passam de "cenas".

- A segunda é a mais freqüente nestes tempos de crença no "homem-pílula" (alguém saberia informar algum mal que afete a subjetividade humana para o qual não existam já – ou em promessa para um futuro próximo – drogas miraculosas e definitivas? –felicidade, medo, angústia, impotência, obesidade... quem dá mais? – seu complemento são os infinitos exames que se podem fazer – uma paciente que vive fazendo "excursões" a laboratórios, e tendo seu corpo "excursionado" – à procura, por exemplo, de descobrir o que seria uma "bola na garganta" – me diz: "é de graça, o convênio cobre tudo". Será? ) e vai a princípio no sentido oposto ao da anterior. Diz sim à histeria, reconhece que há algo que vai mal em relação ao sintoma e sai a propor explicações. Rótulos que devem encapsular o estranho do sintoma, na via do sentido – de um sentido pré-estabelecido e preferencialmente fisiológico; um distúrbio neuro-químico, hormonal, gástrico... geralmente associado a palavras mágicas (que não dizem nada): stress, nervosismo, causas emocionais e essa espécie de coringa: depressão.

Uma analisanda, em determinado momento, procura um psiquiatra, acha que está louca, porque tem apanhado muito do namorado e mesmo assim não pode imaginar ficar sem vê-lo, sente-se triste por apanhar e por não conseguir largá-lo – de fato ela já havia procurado diversos psiquiatras e neurologistas antes, mas até então todos lhe haviam dito que não precisava tomar remédios, não tinha nada. Esse psiquiatra, ao contrário dos anteriores, diz que tudo o que ela tem (a lista de sintomas que ela tem para apresentar é enorme) são sintomas de depressão. Por algum tempo o colocou em um pedestal, enquanto o analista era questionado - "como você nunca me disse que eu tinha problemas psiquiátricos e não só psicológicos?". O passo seguinte foi arranjar o máximo de informações sobre depressão. A partir daí, desenvolveu (à sua maneira) uma série de sintomas que leu nas bulas de remédios e revistas. Outras questões, como a vontade de não ir trabalhar, ganharam uma justificativa que lhe permitia desimplicar-se subjetivamente: "eu não quero fazer nada porque eu tenho uma doença". Nova consulta com o psiquiatra e esse decreta que ela já esta boa da depressão, ela diz que até concorda: "só que continuo apanhando do mesmo jeito". Ao que o médico lhe responde, segundo ela parecendo irritado, que isto é porque ela deve sentir prazer apanhando. A partir daí, a troca de médicos foi incessante, as estratégias de medicamentos as mais diferentes possíveis, mas a aderência ao significante depressão não mais se desfez.

Lacan nos fornece um divertido exemplo deste tipo de postura em seu seminário sobre "O ato psicanalítico" de 1967-68, na aula de 15 de novembro de 1967:

...Não é necessário, penso, vocês todos fizeram estudos secundários para saber o modelo corrente pelo qual ela é introduzida nos manuais, e dos quais nós também nos servimos agora para apoiar o que temos a dizer, que a associação de fato de um ruído de trompete, por exemplo, com a apresentação de um pedaço de carne a um animal, carnívoro é claro, é considerada capaz de obter, após certo número de repetições, o desencadeamento de uma secreção gástrica, desde que o animal em questão tenha um estômago, e mesmo isto, após o desfecho, a liberação da associação que se faz, claro, no sentido da manutenção somente do ruído de trompete. O efeito manifesta-se facilmente pela instalação permanente de uma fístula estomacal. Quero dizer que aí se recolhe o suco que é emitido, ao fim de um certo número de repetições, à simples emissão do ruído de trompete." "...É na medida, por exemplo, em que o barulho do trompete não tem nada a ver com coisa alguma que possa interessar a um cachorro, pelo menos no campo onde seu apetite é despertado pela visão de um pedaço de carne, que Pavlov pode introduzi-lo legitimamente no campo da experiência..." "...Pavlov se revela, se posso dizer assim, estruturalista no início. No início de sua experiência, ele é estruturalista precursor, do estruturalismo da mais estrita observância, a saber, da observância lacaniana, uma vez que precisamente o que ele aí demonstra, o que ele de alguma forma pressupõe como implicado é, muito precisamente, o que o significante faz, ou seja, que o significante é o que representa um sujeito para um outro significante.

Aí está de fato, como ilustrar o que acabo de afirmar: o ruído do trompete não representa aqui nada mais que o sujeito da ciência, a saber, o próprio Pavlov." "...É necessário, de qualquer forma, enfatizar que o que é demonstrado pela experiência pavloviana, ou seja, que não há operação interessando como tal os significantes que não implique a presença do sujeito..." "...O sujeito cuja existência é demonstrada, ou antes a demonstração de sua existência, não é absolutamente o cão que a fornece, mas, como niguém duvida, o próprio Sr. Pavlov, pois é ele que sopra o trompete; ele ou um de seus ajudantes..." "...o que ele recebe como resposta tem de fato todas as características do que definimos como fundamental na relação do ser falante à linguagem, a saber, ele recebe sua própria mensagem sob uma forma invertida. (LACAN, s.d.)

A psicanálise coloca-se frente ao sintoma histérico, como se ouvisse um sonho. Ou seja, uma mensagem inconsciente formada segundo os princípios básicos que regem os processos primários (condensação, deslocamento, energia livremente móvel, identidade de percepção...) dirigida a um Outro, ancestral fantasístico, freqüentemente encarnado por algum pequeno outro (neste sentido dizemos que a histeria é relacional). Uma mensagem à espera de deciframento.

* * *

Um umbigo é puxado

Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, que é o que se chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição...

Márcia chega à sessão e afirma: "Hoje você tem que me dar uma dica. Eu ando muito preocupada com uma coisa que a Bruna (sua filha de dois anos) tem feito. É uma mania que ela tem e que eu não sei mais o que fazer para que ela pare. Ela está com o costume de puxar o umbigo. Eu já gritei, dei bronca, ameaçei bater, tudo. O que eu posso fazer?"

Essa sessão se passou há alguns anos do momento em que estou escrevendo e até esse dia eu não conseguia fazer a mínima idéia de como seria a ação de puxar algo que é um buraco e não um apêndice. Porém ontem tive uma demonstração por parte de uma sobrinha – prestes a completar dois anos – que brincando pelada após o banho tirou repentinamente uma almofada com a qual se cobria e disparou: "Juju tem pito, óia o pito di Juju". Disse e repetiu várias vezes como que desafiando os adultos surpresos à sua volta ("mas ela já sabe que tem perereca..." – diz a avó). E sempre mostrando, puxando a... Mas o que nos interessa de fato não são os detalhes da ação mecânica e sim o valor significante que adquire um movimento ou ação qualquer da criança, que em determinado instante é tomado numa cadeia associativa de representações, superpondo ao real do corpo um pedaço de "anatomia imaginária" e possibilitando que redes de significações, por vezes inconscientes, se manifestem, como veremos a seguir retomando a sequência da sessão.

-"Como é puxar o umbigo ?" Ela responde tautologicamente: "ela puxa, fica puxando, não tem jeito...". Perguntou ao pediatra se havia algum problema. "Primeiro ele fez uma cara estranha, parece que não tinha entendido, depois pensou um pouco e me disse: 'se puder evitar é bom'" - afirmou dizendo ainda que não haveria problema físico mas talvez estético no futuro. (Lacan nos diz que a histérica apresenta-se como – ou apresenta-nos, como neste caso – um objeto para ser decifrado, estudado e trabalhado por aquele a quem ela institui na posição de mestre, para que lhe digam qual o seu valor enquanto objeto de desejo. Ao analista cabe reenviar-lhe sua questão, de forma a implicá-la na produção de uma verdade que aponte seu sintoma, e o fantasma que o sustenta).

Perguntada se é todo o tempo que a menina faz isto, ela diz que não, que é apenas antes de dormir. Em seguida comenta já ter se perguntado se tem dado importância demais ao assunto e se isto pode estar fazendo a menina insistir mais ainda.

"Já tentei de tudo, fingir que não ligo - só que eu não consigo, eu logo me irrito – pus uma roupa fechada nela, um macacão, mas ela fica muito nervosa. Pus esparadrapo, mas ela arranca. Agora estou tentando uma coisa nova. Eu comprei uma bonequinha que ela adorou. E tem desta boneca em várias situações diferentes – no trabalho, cuidando da casa, preparando-se para a festa... Anteontem eu disse para ela que se ela não puxasse o umbigo antes de dormir eu lhe traria outra boneca amanhã. Ela não puxou e no dia seguinte quando abri a porta chegando do trabalho me perguntou "cadê minha boneca?". "Mas então você já arranjou uma solução." (disse-lhe eu, achando interessante a seqüência de tentativas que foram da negação ao recalque, e desembocaram na inserção de uma cadeia de trocas, onde o objeto proposto e aceito para a permuta exprime claramente um ideal feminino – ganhar uma boneca que ao mesmo tempo pode ser cuidada como uma criança, mas que apresenta uma "imagem de ideal feminino" – ou seja, uma proposta de devir, a qual ela pode no presente manipular).

- Márcia: "O problema é que estas bonecas vão acabar em alguns dias. E aí? O que eu vou fazer?"... (gira a cabeça para trás para me fitar, como que esperando uma reposta, que no entanto não vem)... "acho que estou dando muita atenção a isso... (pausa) ... acabei de lembrar uma coisa, não sei como eu não tinha pensado antes. Quando Bruna nasceu, minha mãe ficou me enchendo, depois que caiu o umbigo, para eu pôr um esparadrapo, para ficar bonitinho. Ela disse que tinha posto em mim e em meus irmãos quando éramos bebês". Na época, Márcia enfrentou a mãe e resolveu não colocar, apelando para o aval do pediatra que disse que isto era "coisa de antigamente". Ficou de fato espantada por não ter lhe ocorrido esta associação antes. Em seguida, como que saturada do assunto, disparou a clássica frase: "mudando completamente de assunto..." E passa a contar que tem tido corrimentos toda vez que transa; que trata com "lavagens vaginais..." e quando diz isto interrompe-se: "...agora eu pensei em sujeira..." e conta uma passagem de anos antes na qual sentia-se suja, e isto tinha conexão com uma questão sexual da época (não vem ao caso aqui detalhar). - Pergunto-lhe então: "de onde vem isto?", ao que ela responde prontamente: "Minha mãe sempre viu sexo como coisa suja e pesada". "Ela sempre disse que nunca teve prazer, que transava porque meu pai queria".

Segue lembrando que a mãe se referia às namoradas dos irmãos, que "dormiam" com eles, com uma palavra estrangeira, que ela não consegue lembrar de forma alguma, mas cujo sentido literal denota sujeira e porcaria e que no entanto é aqui aplicada a algo como "vadiagem". Ocorre-lhe então que antes de seu primeiro casamento foi "morar junto" com seu noivo, o que deve tê-la deixado frente à opinião da mãe neste mesmo ponto. "Ela nunca gostou de sexo", afirma. Pergunto-lhe: "Prá que então querer o umbigo bonito?" - ao que ela me responde com um tom intrigado: "É mesmo, né? Ainda mais em uma mulher, vai ser para os... ah! mas tem uma coisa que você não sabe...". De fato, nesse momento, surge o que vou chamar de "segunda versão" da mãe, em relação ao desejo, e que até então nunca havia sido mencionada em sua análise. Ela diz: "minha mãe é assim, mas ao mesmo tempo, ela sempre foi super-sedutora. Meu pai morria de ciúmes dela"... ( Seus pais estão separados há alguns anos)... "até hoje ela sai com homens, seduz, deixa os caras loucos, mas na hora agá, nada. Mas gosta de seduzir com roupas, no jeito de falar e de ser. Eu falo para ela ir fundo, mas ela diz que não consegue. Além disso, ela ainda é uma mulher muito bonita". - Aqui interrompo a sessão.

* * *

Provavelmente diversos trechos dessa sessão poderiam nos conduzir a pontos de interesse em relação à análise de Márcia. Vou, no entanto, fazer apenas uma marcação.

As viragens (giros no discurso) durante a sessão poderiam a meu ver ser demarcadas de uma maneira aproximada, da seguinte forma:

1°- Instante da queixa – o umbigo é histrionicamente mostrado (corresponderia a escutar o relato de um sonho).

2°- Lembrança de Márcia da divergência com sua mãe quando o umbigo de Bruna caiu. Aqui o sujeito se apresenta "multiposicionado" na temporalidade inconsciente (o momento atual, o do nascimento da sua filha e o do seu próprio nascimento).

3°- Momento em que a questão inicial cede de seu fascínio ("mudando completamente de assunto") e vemos a partir de um significante – Corrimentos – abrir-se uma "meada" associativa, que não se fecha, nem é conclusiva, mas que chega a produzir uma significação – vadia – na qual ela "terá estado" frente ao discurso materno, nos momentos em que assume algo de seu desejo em relação a um homem. (Nesse exemplo a situação é de ter ido "morar junto", mas existem outras situações onde isso reverbera). As substituições metáforo-metonímicas se dão aproximadamente na seguinte seqüência:

 

 

Que não se fecha, nem é conclusiva – e isto é fácil demonstrar. A vertente que iria da visão materna de sexo em direção à – "pesada", não evolui. A própria relação com o termo "obesidade" foi feita por mim depois, ao escrever a sessão, por isto a linha pontilhada. É apenas uma suposição. Outro ponto é quanto à tal palavra estrangeira esquecida. A que implicações associativas nos levaria, a partir do efeito contingencial de sua materialidade significante? Considerando-se ainda que a língua (o árabe) na qual esta palavra se diz é a do país de origem dos avós paternos e maternos. Impossível responder, o termo ficou como um resto – unterdruckt – soterrado.

4°- A mãe como sedutora. (É um lugar diferente daquele de alguém que não tem implicação alguma com o desejo. Aqui no mínimo lhe interessa ocupar o lugar de destinatária do desejo de outrem).

Parece-me possível formular a hipótese de que o umbigo, nesse caso (ao menos é como aparece nesta sessão), funciona como um significante, uma letra que erogeniza o corpo e atravessa as diferentes gerações nessa linhagem familiar. Sendo que, frente a este significante, cada uma delas é chamada a se posicionar em relação à feminilidade e quanto a seu desejo.

* * *

Não posso resistir a introduzir um dado externo a esta sessão, coisa que até então evitei. Márcia, paralelamente à sua profissão, tornou-se professora de dança do ventre...

 

Referências

Breue, J. & Freud, S. (1974). Estudos sobre a histeria. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol 2). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1972a). A Interpretação dos Sonhos. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol 4-5). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1972b). Sobre os sonhos. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol 5). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1972c). Fragmento da análise de um caso de histeria (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol 7). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Goldberg, S. (1995). Desejo aos pedaços. In R. Goldberg (Org.), Sobre o desejo masculino. Salvador: Ágalma.         [ Links ]

Israel, L. (1995). A histérica, o sexo e o médico. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Lacan, J. (s.d.). Seminário XV: o ato psicanalítico. Edição não-autorizada.         [ Links ]

Lacan, J. (1978). Intervenção sobre a transferência. In Escritos. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 3. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1993). Televisão. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Recebido em 02 de julho de 2002
Aceito em 22 de agosto de 2002
Revisado em 25 de agosto de 2002

 

 

Notas:

1 Com mais rigor, teremos que lembrar que mesmo o sonho contado, se bem tenha de fato um apelo visual forte, já foi transposto para o palavreado e alguma tentativa de lógica e coerência discursiva já lhe foi imposta. É o quarto elemento de deformação onírica (trabalho do sonho ) que Freud chamou de elaboração secundária.
2 Os parênteses são meus.
3 Quando instruo um paciente a abandonar a reflexão de qualquer tipo e dizer-me o que lhe vem à cabeça, estou-me apoiando firmemente na presunção de que ele não será capaz de abandonar as idéias intencionais inerentes ao tratamento e sinto-me justificado em inferir que aquelas que parecem ser as coisas mais inocentes e arbitrárias que me contam acham-se de fato relacionadas à sua enfermidade. (FREUD, 1972a, p.567).
4 ... Descreverei o processo que transforma o conteúdo latente dos sonhos no conteúdo manifesto como 'elaboração onírica'. A contrapartida a esta atividadeaquela que ocasiona uma transformação na direção opostajá nos é conhecida como sendo o trabalho de análise. (FREUD, 1972b, p. 679)
5 Ver interessante capítulo a este respeito "Os maus encontros" (ISRAEL, 1995, p.227-239)
6 Discurso de Aristófanes sobre o amor no Banquete de Platão; trecho em que comenta o corte que Zeus fazia nos seres andróginos, como castigo por sua demasiada ambição separando-os e criando assim o que conhecemos como homens e mulheres.
7 ...Nada na anatomia nervosa recobre, seja o que for, do que é produzido nos sintomas histéricos. É sempre de uma anatomia imaginária que se trata. (LACAN, 1985, p.204)
8 o grifo é meu.
9 apenas de passagem anoto o fato de que uma queixa constante de Márcia é quanto a sua suposta obesidade: "aumentei de peso esta semana...". Porém ela não seguiu esta trilha.
10 Posição (Inconsciente) que deduz (no momento mesmo do exercício associativo) ter estado frente à mãe, quando foi "morar junto".
11 ...É o real que permite efetivamente desatar aquilo em que consiste o sintoma, ou seja, um nó de significantes. Atar e desatar não sendo aqui metáfora, e sim devendo ser apreendidos como esses nós que se constroem realmente ao fazer cadeia da matéria significante. (LACAN, 1993, p.25)

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