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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.3 n.1 Fortaleza mar. 2003

 

ARTIGOS

 

As vicissitudes da teoria da angústia na obra freudiana

 

 

Rosana da Silva Telles

Psicóloga, Pós-Graduada em Psicanálise no CEPCOP/USU, Membro Associado da SPCRJ. Rua Voluntários da Pátria 181/202 - Botafogo - Rio de Janeiro/RJ CEP 22270-000. e-mail: oficinamovimento@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste trabalho, apresentamos uma proposta de leituras acerca da angústia em Freud. Inicialmente, no período entre 1888 e 1900, acompanhamos o autor em sua passagem das neuroses atuais para as psiconeuroses de defesa. A segunda etapa, que abrange o período entre 1900 e 1920, é dedicada ao estudo da teoria da angústia num contexto de primeira tópica. Finalmente, focamos o período entre 1920 e 1932, a partir do qual Freud reformula a sua nova doutrina.

Palavras-chave: neurose de angústia, recalque, 1ª teoria da angústia, ego, 2ª teoria da angústia


ABSTRACT

In this article we introduce a reading matter's proposal about anxiety in Freud. At the beginning, on the period within 1888 and 1900, we follow Freud in his passage from actual neurosis to defence neuro-psychosis. On the second step, on the period within 1900 and 1920, we concentrate on the anxiety's study in a principal first anxiety' theory. Finally, we focus on the period within 1920 and 1932, from which Freud reformulate his new doutrine.

Key-words: anxiety neurosis, repression, the first anxiety's theory, ego, the second anxiety's theory


 

 

Até o final do século XIX, o conhecimento da Medicina era constituído de pressupostos teórico-clínicos que diferenciavam a loucura verdadeira da simulação histérica.

A partir daí, o saber médico se vê impotente diante dos limites de seus métodos na clínica das histéricas. A marca do desarrazoado que estes sintomas, que se manifestam no corpo sem ter um componente orgânico correspondente, carregam abre caminho para Sigmund Freud adentrar neste terreno, carregando todos os seus esforços para a construção de uma nova teoria: a Psicanálise (Birman, 1989, p. 205-222).

Em 1885, em Salpêtrière, ele presencia, com assombro, Charcot usando apenas a hipnose para o desaparecimento momentâneo dos sintomas histéricos.

Três anos mais tarde, em seu texto Histeria (Freud, 1888/1986a), temos o embrião daquilo que posteriormente Freud chamará de dissociação psíquica (double conscience)1, característica essencial da histeria.

Mais adiante, em Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar (Freud, 1893/1986b), texto escrito a quatro mãos por Freud e Breuer, eles nos apresentam "(...) um novo método para examinar e tratar os fenômenos histéricos" (Freud, 1893/1986b, p. 35) o método catártico, que está intimamente ligado à sugestão hipnótica. Neste texto, Freud também aproxima a histeria da normalidade, dizendo que, nos sonhos e nos atos falhos, há a manifestação de uma parte desconhecida do sujeito a qual ele vincula à idéia de dissociação psíquica. Esta formulação, oriunda do esclarecimento sobre a etiologia da histeria, acaba sendo o fundamento de uma teorização sobre o funcionamento do psiquismo humano.

Em Neuropsicoses de defesa (Freud, 1894/1986c), constatamos a investigação de Freud acerca da idéia de defesa. Um novo jogo de forças no interior do psiquismo coloca-nos diante da pedra fundamental da Psicanálise: a noção de conflito psíquico. Ainda neste texto, ele procura distinguir a histeria, a obsessão/fobias e a psicose de defesa, mostrando-nos também que o processo de dissociação psíquica está na base dessas psiconeuroses.

Em Psicoterapia da histeria (Freud, 1895/1986d), Freud aponta para a precariedade do método catártico, para os obstáculos encontrados na hipnose e para a importância da sexualidade na etiologia das neuroses. Estas novas descobertas marcam o rompimento da parceria científica entre ele e Breuer.

Entre 1894 e 1900, Freud está circunscrevendo o campo das psiconeuroses de defesa. Nesta época, "(...) a preocupação dele não é delimitar psicose e neurose" (Laplanche e Pontalis, 1991, p. 297), mas distinguir esta última das neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia e posteriormente, a hipocondria), objetivando não só evidenciar o contraste existente entre ambas, mas também explicar a questão da defesa.2

Recorremos mais uma vez ao texto Neuropsicoses de defesa (Freud, 1894/1986c) para entendermos melhor esta distinção. As psiconeuroses de defesa têm, como modelo explicativo, a dinâmica do conflito psíquico e possuem uma etiologia psíquica; já as neuroses atuais têm uma etiologia somática e uma explicação a nível atual, isto é, há algo no funcionamento sexual que é incapaz de aliviar a tensão sexual física. Esta situação (ou de falta ou de excesso de práticas sexuais) gera desconforto, não remetendo o sujeito, necessariamente, a um conflito psíquico. Conseqüentemente, o que é fundamental na oposição entre as psiconeuroses de defesa e as neuroses atuais é a etiologia e a patogênese.

A classificação acima descrita é mantida até 1914, quando então Freud propõe um outro quadro nosográfico para as neuroses. As psiconeuroses de defesa são divididas em psiconeuroses de transferência e neuroses narcísicas. Esta subdivisão varia, mais uma vez, em 1924, quando ele troca a expressão psiconeuroses de transferência por neuroses propriamente ditas. (Laplanche e Pontalis, 1991, p. 301) No caso das fobias, ele as designa em 1895, como sendo uma expressão bastante típica da neurose de angústia. (Freud, 1895/1986e) Mais adiante, no caso O Pequeno Hans (Freud, 1909/1986f), as fobias são alçadas à dignidade de psiconeuroses e passam a ter uma equivalência com a histeria de angústia. No que tange à nomenclatura das neuroses atuais, Freud a mantém até o final de sua obra. Hoje, porém, "(...) a antiga noção de neurose atual leva às concepções modernas sobre as afecções somáticas." (Laplanche e Pontalis, 1991, p. 301).

Neste contexto histórico da Psicanálise, a neurose de angústia é o prenúncio do que em 1917 será a primeira teoria da angústia. Esta teoria já começa a ser formulada por Freud desde a sua correspondência com Wilhelm Fliess em 1893, em seu Rascunho B - A etiologia das neuroses (Freud, 1893/1986g) e Rascunho E - Como se origina a ansiedade (Freud, 1894/1986h). Em Sobre os fundamentos para destacarda neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia (Freud, 1895/1986i), ele se depara frente à necessidade de diferenciar a neurastenia da neurose de angústia. A primeira decorre de um mal funcionamento sexual, incapaz de resolver de forma adequada a descarga da tensão sexual física; esta afecção apresenta um extenso repertório de sintomas - fadiga física, cefaléia, dispepsia, prisão de ventre, etc. A segunda é o produto da tensão sexual física que não foi psiquicamente ligada. Esta energia livre que não é descarregada ocasiona inúmeras manifestações que se agrupam em torno de um sintoma principal: a angústia. O quadro clínico desta neurose se caracteriza por irritabilidade geral, vertigem, sudorese, taquicardia, etc.

Retomamos o Rascunho E (Freud, 1894/1986h), pois é nele que Freud responde à sua própria pergunta sobre o porquê da transformação do acúmulo de tensão, que não foi psiquicamente ligada, em angústia:

(...) na neurose de angústia, essa transformação de fato ocorre, o que sugere a idéia de que, nessa neurose, as coisas se desvirtuam da seguinte maneira: a tensão física aumenta, atinge o nível do limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em - angústia." (Freud, 1894/1986h, p. 273; grifo nosso)

Mais à frente, neste mesmo Rascunho (Freud, 1894/1986h), ele aponta para as semelhanças existentes entre a neurose de angústia e a histeria. Ambas são neuroses de estase e, tanto numa quanto na outra, existe uma espécie de conversão, "(...) na histeria, é a excitação psíquica que toma um caminho errado, em direção à área somática, ao passo que, aqui (na neurose de angústia), é uma tensão física, que não consegue penetrar no âmbito psíquico e, portanto, permanece no trajeto físico" (Freud, 1894/1986h, p. 273).

No final deste artigo, Freud nos dá cabedal teórico para que possamos concluir que é a partir da noção de neurose de angústia que ele amplia a idéia de transformação do acúmulo da libido em angústia, para todas as outras neuroses.3 Com muita propriedade, escreve o autor:

(...) há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica, por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica-, a tensão sexual se transforma em angústia. (Freud, 1894/1986h, p. 276)

Vimos até aqui que, nos textos escritos entre 1892 e 1899, Freud nos fala de duas possibilidades diferentes de surgimento da angústia: na primeira, a angústia inscreve-se no corpo quando considerada no campo da neurose de angústia e, na segunda, a angústia é inscrita no corpo e também no psiquismo, quando abordada no terreno das psiconeuroses de defesa.

O interesse de Freud pela neurose de angústia diminui consideravelmente quando ele começa a dispor de um campo clínico mais rico e de um arcabouço teórico mais elaborado, como, por exemplo, a entrada em cena da libido, que será o carro chefe do novo entendimento da angústia na primeira tópica. No quadro da teoria psicanalítica, este conceito é descrito da seguinte forma: "Na medida em que a pulsão sexual representa uma força que exerce uma "pressão", a libido é definida por Freud, como a energia dessa pulsão. É este aspecto quantitativo que vai prevalecer no que se tornará, a partir da concepção do narcisismo e de uma libido do ego, a "teoria da libido" (Laplanche e Pontalis, 1991, p. 267).

Para uma melhor compreensão deste contexto teórico-clínico, tomamos como referência 4 textos balizadores da construção teórica da Psicanálise, objetivando explicar o nosso novo escopo de estudo: o conceito de angústia numa abordagem metapsicológica.

O primeiro deles é o Capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos (Die Traumdeutung) (Freud, 1900/1986j) onde Freud desenvolve a hipótese, já elaborada por ele e Breuer em 1892/95, "(...) de um aparelho psíquico primitivo cujo trabalho é regulado pela tendência para evitar a acumulação de excitação e para se manter, tanto quanto possível, sem excitação" (Freud, 1900/1986j, p. 516), ou seja, uma teoria da psiquê de caráter eminentemente econômico. Por caráter econômico entende-se a quantidade de excitação presente no aparelho psíquico; a tarefa deste aparelho é manter o nível de excitação dentro dele o mais baixo possível ou constante, ligando essas excitações (Princípio de Constância). Quando isto não acontece, quando o aparelho falha nesta sua missão, um acúmulo de libido não ligada dentro do aparelho provoca um aumento de tensão e, conseqüentemente, angústia. Portanto, uma das formas de manter esta constância é ligar esta energia livre a grupos de representações adequadas (elaboração psíquica) (Laplanche, 1987, p. 32-42). Ainda na obra de 1900, o autor nos apresenta a concepção de um aparelho psíquico formado pelos sistemas inconsciente (Ics), pré-consciente (Pcs) e consciente (Cs) concebendo, deste modo, o Ics como um sistema distinto do sistema Pcs/Cs. Finalmente, uma outra citação indica como Freud sustenta o seu ponto de vista a respeito da primeira teoria da angústia. "A ansiedade é um impulso libidinal que tem origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente" (Freud, 1900/1986j, p. 360)

Em O Inconsciente (Das Unbewusste) (Freud, 1915/1986l), o segundo dos 4 textos acima descritos, o autor afirma que "(...) a distinção entre os dois sistemas psíquicos ganha novo significado quando observamos que os processos em um dos sistemas, o Ics, apresentam características que não tornamos a encontrar no sistema imediatamente acima dele" (Freud, 1915/1986l, p. 213). O responsável por esta distinção entre os sistemas Ics e Pcs/Cs é o recalque.

Este conceito, que traz uma contribuição especial para o estudo do novo entendimento da angústia na metapsicologia freudiana, abre a página do terceiro texto de mesmo nome. Nele, Freud nos diz que há uma tendência geral do psiquismo a se livrar dos estímulos que chegam até ele. "Se o que estava em questão era o funcionamento de um estímulo externo, obviamente se deveria adotar a fuga como método apropriado; para o instinto, a fuga não tem qualquer valia, pois o ego não pode escapar de si próprio" (Freud, 1915/1986m, p. 169). De fato, o Ego, para se defender deste ataque interno de um excesso pulsional, se vê obrigado a construir um mecanismo defensivo cuja "(...) essência consiste em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância" (Freud, 1915/1986n, p. 170). Este mecanismo é o recalque. Ainda neste texto, verificamos que Freud trata do recalque incidindo sobre "(...) um representante instintual (uma idéia ou grupo de idéias), catexizado com uma quota definida de energia psíquica proveniente de um instinto." (Freud, 1915/1986n, p. 175-6). A partir de sua observação clínica, "(...) um outro elemento representativo do instinto tem que ser levado em consideração. (...) a expressão quota de afeto designa esse outro elemento do representante psíquico" (Freud, 1915/1986m, p. 175-6). O que Freud postula neste trecho do artigo é a maneira pela qual a pulsão é representada no mundo psíquico, isto é, por intermédio de seus representantes: Vorstellung (representação) e Affektbetrag (quota de afeto) (Freud, 1915/1986m, p. 176). Em O Inconsciente (Das Unbewusste) (Freud, 1915/1986l), confirmamos esta asserção quando lemos que "(...) um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência - só a idéia que o representa pode" (Freud, 1915/1986l, p. 203).

Com o intuito de separarmos o conceito de pulsão (Trieb) de como ela se inscreve na alma (siele), seguimos os passos de Freud no último texto proposto por nós inicialmente: Os instintos e suas vicissitudes (Triebe undTtriebschicksale) (Freud, 1915/1986m). O autor inaugura este artigo descrevendo a pulsão (Trieb) "(...) como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente" (Freud, 1915/1986m, p. 142). Estamos, então, no campo do humano e não no campo animal (Instinkt). Enquanto pulsão, que tem a sua fonte no corpo, ela é pura dispersão porque não tem nenhuma representação no aparelho anímico. O "(...) representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo" (Freud, 1915/1986m, p. 142) só se faz inscrever no psiquismo através dos representantes Vorstellung e Affektbetrag. Este último elemento, componente da representação psíquica da pulsão (Triebrepräsentanz), é para Freud o mais importante no processo de recalque por causa dos diferentes destinos que essa quota de afeto toma. Assim, percebe-se a relação de intimidade que existe entre a teoria da angústia e o processo de recalque proposto pelo autor em sua primeira tópica. Este processo separa a idéia (representação) da quota de afeto (libido), recalcando a primeira e encaminhando a segunda para 3 possibilidades. Uma delas é a descarga sob a forma de angústia. Recorremos mais uma vez ao texto Die Verdrängung (Freud, 1915/1986n) para mostrarmos o que Freud nos diz a este respeito:

A idéia que representa o instinto passa por uma vicissitude geral que consiste em desaparecer do consciente (...). O fator quantitativo do representante instintual (a quota de afeto) possui três vicissitudes possíveis (...) ou o instinto é inteiramente suprimido, de modo que não se encontra qualquer vestígio dele, ou aparece como um afeto que de uma maneira ou de outra, é qualitativamente colorido ou é transformado em ansiedade. (...) a vicissitude da quota de afeto pertencente ao representante é muito mais importante do que a vicissitude da idéia, sendo este fator decisivo para nossa avaliação do processo de repressão.34(O grifo é nosso)

Ainda no contexto da primeira tópica, destacamos a Conferência XXV (das Vorlesungen) (conferências introdutórias) (Freud, 1917/1986o) que, segundo Laplanche, é um texto intermediário entre os primeiros escritos de Freud e aquilo que será formulado por ele posteriormente. Evidenciamos os pontos que achamos mais relevantes neste artigo, objetivando demonstrar as referências teóricas que ele nos oferece. Primeiramente, Freud descreve a angústia realística (Realangst) em contraste com a angústia neurótica (neurotische Angst). A primeira é racional e vantajosa, prepara o sujeito para se defender do perigo externo e é vista como uma manifestação da pulsão de autoconservação; a segunda é classificada por Freud de 2 formas: uma é expectante livremente flutuante e é característica da neurose de angústia, a outra é psiquicamente ligada e é característica das psiconeuroses. Nestas últimas, há uma tentativa de fuga por parte do ego para dar conta da exigência feita por sua libido, apesar de sabermos que esta libido é algo do sujeito, não podendo portanto, ser tratada como um perigo externo. Ainda no início do texto, Freud faz a distinção entre angústia (Angst), medo (Furcht) e susto (Schreck). A primeira "(...) refere-se ao estado e não considera o objeto" (Freud, 1917/1986o, p. 461), a segunda designa o medo de um objeto determinado e a terceira implica um perigo para o qual não se está preparado. Mais adiante, ele relaciona a angústia infantil com a angústia neurótica dos adultos que assim como esta resulta da libido não descarregada (Freud, 1917/1986o, p. 476). Finalmente, Freud nos diz que "(...) a geração de ansiedade está intimamente vinculada ao sistema inconsciente. Tenho afirmado que a transformação em ansiedade - seria melhor dizer, descarga sob a forma de ansiedade - é o destino da libido quando sujeita à repressão" (Freud, 1917/1986o, p. 477). Desta forma, o que fica sistematizado como aquisição em 1917 é a estreita relação que a primeira teoria da angústia mantém com a libido e, ainda, o aspecto econômico que marca este período, a angústia como produto da transformação da libido não descarregada, sua substituição pela formação de sintomas e como resultado do recalque.

"Quanto mais nos aprofundamos no estudo dos processos mentais, mais reconhecemos sua abundância e complexidade. Muitas fórmulas simples, que, de início, pareciam preencher nossas necessidades, posteriormente vieram a se revelar inadequadas. Não nos cansamos de modificá-las" (Freud, 1932[1933]/1986p, p. 477). De fato, desde o texto Sobre o narcisismo: uma introdução (Freud, 1914/1986q), uma exigência concernente a um aumento teórico do campo psicanalítico se impõe. Mas, é somente a partir da reformulação da teoria das pulsões, realizada no texto Além do princípio do prazer (Freud, 1920/1986r), da introdução da pulsão de morte e da divisão estrutural do aparelho psíquico, no artigo O Ego e o Id (Freud, 1923/1986s), que Freud refaz a sua trajetória no que diz respeito à teoria da angústia. Neste contexto teórico da segunda tópica, ele repensa a natureza da angústia, reformula a sua função, tendo como pano de fundo o novo conceito de Ego e suas instâncias ideais. Neste caminho, o autor se questiona a respeito da primeira teoria da angústia sustentada desde 1894 da qual ele faz uma descrição fenomenológica e não um relato metapsicológico (Freud, 1932[1933]/1986p, p. 144).

O texto Inibições, sintomas e ansiedade (Freud, 1926[1925]/1986t) é testemunha da reviravolta teórica a que Freud submete esta primeira teoria. Em sua nova concepção, ele nos apresenta, como novidade, a oposição conceitual entre angústia sinal e angústia automática. O eixo central do artigo de 26 é o novo entendimento da angústia à luz da segunda tópica. Neste contexto, a angústia deixa de ser o resultado de um movimento de defesa do Ego e passa a ser um dispositivo que avisa ao Ego que ele tem que se defender melhor frente à ameaça da ocorrência de uma situação de perigo. Segundo o pensamento freudiano, os perigos internos têm, como denominador comum, a separação ou a perda do objeto amado. Esta situação conduz a um acúmulo de desejos incestuosos e, conseqüentemente, leva o sujeito ao desamparo. Como último recurso, o Ego utiliza-se da angústia sinal para defender-se desta sobrecarga libidinal, colocando em marcha o processo de recalque. Isto significa, portanto, que o Ego lança mão da angústia como uma vacina para livrá-lo de situações dolorosas, mantendo sob controle a intensidade desta angústia que o acomete. "(...) Se ela (angústia) extravasar certos limites, causará desprazer análogo ao que deveria impedir, de sorte que o processo defensivo fracassará" (Mezan, 1998, p. 311). Constatamos que houve uma subversão daquilo que foi afirmado em 1917, ou seja, ao invés do recalque causar angústia, a angústia sinal é que causa o recalque (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 131). Vejamos como Freud vai proceder para explicar todas estas mudanças.

Inicialmente, no texto Inibições, sintomas e ansiedade (Freud, 1926[1925]/1986t) o autor reconhece que "(...) no homem e nos animais superiores, pareceria que o ato do nascimento, como a primeira experiência de ansiedade do indivíduo, imprimiu ao afeto de ansiedade certas formas características de expressão" (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 115). Mais adiante, ele tece considerações sobre o ato do nascimento, protótipo de todos os estados de angústia que surgirão ao longo da vida do sujeito (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 186). Ao nascer, o homem, por imaturidade biológica e psíquica, precisa de alguém que cuide dele. Isto o coloca à mercê do outro, num estado de completa dependência e passividade. No ato do nascimento, Freud reconhece que existe "(...) um verdadeiro perigo para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas, num sentido psicológico, nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico" (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 158) Por este motivo, o infans experimenta em seu próprio corpo intensas manifestações de angústia ao qual se associam sensações físicas, como o aumento dos batimentos cardíacos e a aceleração da respiração. Além disto, seu Ego imaturo ainda não dispõe de meios para representar esta angústia, simbolizá-la. Conseqüentemente, ela (angústia) fica circunscrita ao corpo do recém-nascido que vivencia este momento de forma traumática. Quando posteriormente esta situação é reavivada, a angústia então "(...) é reproduzida como um estado afetivo de conformidade com a imagem mnêmica já existente" (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 114) podendo o sujeito ficar tão desamparado quanto o recém-nato o foi um dia. Podemos-nos questionar se a angústia originária atribuída ao trauma do nascimento é um fenômeno puramente biológico. Parafraseando Freud, Mezan nos responde que "(...) o trauma do nascimento não é a primeira manifestação da angústia, mas seu paradigma (...); é na infância que se devem buscar os primeiros fenômenos verdadeiramente caracterizáveis como angustiosos" (Mezan, 1998, p. 309). Ainda no texto de 1926, Freud prossegue examinando as situações de perigo que são propícias à manifestação de fenômenos angustiosos e que ocorrem na tenra infância. Ele então relaciona a angústia manifestada pela criança a estas situações de perigo.

Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e, logo que surge esse perigo, a criança dá o sinal de ansiedade, antes que a temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro grande passo à frente na providência adotada pela criança para a sua autopreservação, representando ao mesmo tempo, uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da ansiedade para a reprodução intencional da ansiedade como um sinal de perigo. (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 161-2).

Assim, a angústia tem sua gênese em dois pontos distintos na vida posterior do sujeito. Numa, a angústia é inadequada e ocorre quando uma situação, análoga a uma situação traumática, é sentida como perigosa; na outra, a angústia é conveniente e tem a função de impedir o aparecimento da angústia automática. A esse respeito, Freud nos fala que:

A ansiedade sentida ao nascer tornou-se o protótipo de um estado afetivo que teve de sofrer as mesmas vicissitudes que os outros afetos. Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situações análogas à situação original e era, assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção, reproduzia-a, por sua própria iniciativa, e a empregava como uma advertência de perigo e como um meio de pôr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 186).

É neste sentido que o autor afirma que o Ego é a sede da angústia - ele sente e produz angústia (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 164). Com muita propriedade, Freud nos diz que:

(...) o ego é a sede da ansiedade. Penso que essa proposição ainda é válida. Não existe razão alguma para atribuir qualquer manifestação de ansiedade ao superego; embora a expressão "ansiedade no id" necessitasse de correção, isto seria antes quanto à forma do que quanto ao fundo. A ansiedade é um estado afetivo e como tal, naturalmente, só pode ser sentida no ego. O id não pode ter ansiedade como o ego, pois não é uma organização e não pode fazer um julgamento sobre situações de perigo. Por outro lado, muitas vezes acontece ocorrer ou começar a ocorrer processos no id que fazem com que o ego produza ansiedade (Freud, 1926[1925]/1986t, p. 164; grifo nosso).

Finalmente, ele enumera as diversas situações vividas pelo sujeito ao longo de sua vida que deflagram angústia. Para tal, ele relaciona o Ego imaturo ao desamparo, a primeira infância à perda do objeto, a fase fálica ao perigo de castração e o período de latência ao medo do superego(Freud, 1926[1925]/1986t, p. 164)

Em nossa exposição, vimos como Freud vai, sistematicamente, abandonando parte da teoria de 1917 para adotar, em 1926, um novo modelo teórico para o entendimento da angústia. No percurso realizado, compreendemos que inicialmente, o recém-nascido não tem ciência de si. Ele é uma mônada revestida com pedaços de mãe. Seu Ego, ainda muito incipiente, sofre influências da realidade externa, encarregando-se de recalcar as demandas pulsionais oriundas do Id. Neste momento, a angústia experimentada pelo recém-nato fica circunscrita ao corpo, pois ainda não existe Ego para representá-la. Freud designa esta angústia do corpo de angústia automática. Esta, por sua vez, propicia a formação de um aparelho psíquico neste organismo. Experimentando a falta e, por conseguinte vivendo a angústia, a criança poderá representá-la, simbolizá-la. Isto fala de um Ego que se constitui a partir da primeira experiência de satisfação e da angústia proveniente da falta. Nesta nova fase da vida do infans, a angústia automática e involuntária dá lugar à angústia sinal que é emitida pelo Ego como um sinal de alerta e como um mecanismo de defesa, que coloca em marcha o processo de recalque. Por isso, a angústia é constitutiva do sujeito e não está, necessariamente, relacionada a uma patologia.

Depois da revisão feita por Freud em 1926 e de sua reorganização conceitualmente no texto de, intitulado Ansiedade e vida instintual (Freud, 1932[1933]/1986p), a angústia se torna um dos pilares que sustentam o edifício teórico da Psicanálise. É para evitá-la que o Ego se defende através de seus mecanismos defensivos.

 

Referências

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Recebido em 12 de setembro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

 

 

NOTAS

Nota do Autor: Neste trabalho, mantenho as citações da edição da Imago, já que uso como texto referência esta publicação.
1 Termo usado por Freud para referir-se à divisão da consciência presente na histeria.
2 Notas de aula do Seminário A Clínica e a Metapsicologia ministrado por Suelena Werneck Pereira, na SPCRJ, em 2001.
3 Notas de aula do Seminário A Clínica e a Metapsicologia, ministrado por Suelena Werneck Pereira, na SPCRJ, em 2001.

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