SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 issue1Perversão e ética na clínica psicanalíticaO adolescente e a rua: encantos e desencantos author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.3 no.1 Fortaleza Mar. 2003

 

ARTIGOS

 

Loucura, cidadania e subjetividade: confluências e impasses

 

 

Alexandre Simões Ribeiro

Psicanalista, Doutor em Filosofia, Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG. Rua Cervantes, 93. Bairro: São Lucas. Belo Horizonte/MG CEP.: 30240-200. e-mail: alexandresimoes@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão sobre a loucura, em geral e a psicose, em particular, desde uma ótica que, ao invés de acoplar a última à idéia (e, por extensão, ao imaginário) da deficiência, do déficit ou do distúrbio, a apreende desde uma ótica que considere a sua positividade e, daí, o seu enigma. Trata-se, portanto, de se operacionalizar uma concepção de psicose que reconheça, em seus fenômenos e construções, a presença de um sujeito (no sentido psicanalítico do conceito). Seguir-se-á daí uma reflexão acerca das confluências, bem como dos desencontros deste conceito com aquele outro, amplamente presente em toda a reformulação, no Brasil, da assistência ao doente mental: a noção de cidadão. Até que ponto os avanços da assistência/escuta da psicose, que têm como baliza uma clínica, cujo marco é o conceito de sujeito, mostram-se homogêneos às iniciativas e propostas do Movimento antimanicomial? Enfim, uma clínica que encontra seu lastro no conceito de sujeito teria, como desdobramento, um discurso centrado na noção de cidadão e cidadania? Por outro lado, quais as relações entre o sujeito e o coletivo? Indagações como estas são urgentes, sobretudo com os atuais avanços e conquistas da reformulação da assistência no campo da saúde mental, reformulação esta que se faz sentir, não só nos espaços e concepções de serviços, bem como na formação dos profissionais que aí atuam.

Palavras-chave: loucura, sujeito, cidadania, psicose, Psicanálise


ABSTRACT

The present work proposes a reflection in general about the madness and the psychosis, in matter, from an optics that instead of coupling the last to the idea (and, for extension, to the imaginary) of the deficiency, of the deficit or of the disturbance, it apprehends his from an optics that considers his positivity and, then, his enigma. It is treated, therefore, of puttin in operation a psychosis conception that recognizes, in their phenomenons and constructions, the presence of a subject (in the psychoanalytic sense of the concept). It will be followed a reflection then concerning the confluences as well as of the disencounters of this concept with that other one, thoroughly present in the whole revision, in Brazil, of the attendance to the mental patient: citizen's notion. To what extent the progresses of the attendance and listening of the psychosis that have as mark a clinic whose mark subject's concept are shown homogeneous to the initiatives and proposals of the Movement anti-insane asylum? Finally, a clinic that finds his ballast in subject's concept would have as unfolding a speech centered in citizen's notion and citizenship? On the other hand, which the relationships between the subject and the collectivity? Inquiries as they are urgent, above all with the current progresses and conquests of the revision of the attendance in the field of the mental health, revision this that she make to feel not only in the spaces and conceptions of services, as well as in the professionals' formation that there act.

Keywords: madness, subject, citizenship, psychosis, psychoanalysis.


 

 

Os homens são tão necessariamente loucos que seria louco, de uma outra forma de loucura, não ser louco.
Pascal, Pensamentos, nº 412.

A partir da segunda metade do século XVIII, mais exatamente desde os atos iniciais daqueles que viriam a ser amplamente conhecidos como os alienistas, a abordagem da loucura não foi isenta de circunstâncias e variáveis que ultrapassavam sensivelmente o terreno epistemológico e clínico da nascente Psiquiatria. Atualmente, já se encontram bastante difundidos, entre os profissionais da saúde mental, as perspectivas e princípios não só efetivamente atuantes na Medicina, em seu matiz moderno, mas igualmente nos aparelhos jurídicos, nas instâncias social, política e econômica que contribuíram para a constituição da chamada experiência da loucura, expressão esta consagrada e reverberada pelas análises de Michel Foucault acerca do tema. Sabemos, igualmente, que aqueles princípios e perspectivas, em suas múltiplas cidadanias epistêmicas, exerceram e exercem seus efeitos, não só sob a luz daquilo que explicitavam, mas, igualmente, daquilo que ocultavam, concedendo, por conseguinte, à loucura o estatuto de uma típica obra barroca, onde luzes e sombras - e isto, frisemos, em plena atmosfera iluminista - se interpenetravam, deixando para trás o rastro de uma argumentação dissimulada. Esta grande maquinaria exposta sob a forma de uma rede discursiva, notemos, não se furtou à sua própria complexidade: ou seja, ela se impunha, não somente como a condição de possibilidade da experiência da loucura, mas colocava-se igualmente como o produto daquela mesma experiência, tal qual uma substância que se decanta como o resultado de uma mistura. Em síntese, loucura e sociedade se iluminam reciprocamente: pela análise de uma dada sociedade, podemos compreender muito acerca da loucura que ali se manifesta e ali é conduzida a um silenciamento; em contrapartida, pela espacialidade e valor reservados à loucura, bem como através do discurso dos loucos, muito se discerne da sociedade na qual este processo se desdobra. Nunca é excessivo lembrarmo-nos que a loucura não é tão-só um conjunto de fenômenos psicopatológicos, mas uma relação entre pessoas, entre saberes e entre poderes, mediada por um imaginário: o imaginário da loucura.

Notadamente, desde o momento em que houve, de forma concomitante, o surgimento de um novo objeto - cujo amplo termo loucura viria a incorporar o seu histórico estenograma - e de um novo saber - a Psiquiatria, fazendo-se acompanhar por seus embaraços organicistas, na medida em que ela se aferrava a uma ideologia naturalista - os estigmas da exclusão necessária e do déficit incontornável ordenaram as práticas discursivas que aí se impuseram. A vertiginosa ascensão do Capitalismo, na aurora do individualismo burguês pós-revolucionário, e o sistemático aprimoramento da Tecnociência favoreceram, em muito, os determinantes da produção e a própria produção final do imaginário da loucura, bastante atuante, ainda, entre nós. Ou seja, o olhar sobre a loucura e, inclusive, o olhar da loucura, bem como o discurso sobre a loucura e o discurso do louco, conjugaram-se com uma ambiência na qual se selou, com consideráveis conseqüências, o destino dos insanos: incapazes, irracionais, estranhos, improdutivos, indóceis, alienados, excessivos, afetados, passionais, perigosos, degenerados, bizarros, inconvenientes, imprevisíveis. Foram muitos os termos que aí se instalaram e propiciaram o espetáculo da loucura, muitas vezes sob uma alegada roupagem ornada de cientificidade que visava, por fim, atestar aqueles dois domínios em relação aos quais os loucos estariam em eterna atopia: o da razão e o da vontade. Estava iniciado, portanto, um amplo e complexo processo de outrificação e estranhamento do louco cujo corolário era, nada mais nada menos, do que o inexorável horror da política do uno-verum-bonum à diferença, tanto em sua faceta social quanto subjetiva.

Nem mesmos os ruídos oriundos inicialmente de partes da Filosofia (lembremo-nos, somente a título de exemplo, dentre muitos outros, da sagacidade de um Pascal, prenunciando todo este processo por-vir, e, em especial, de Nietzsche, que, além de sua combatividade à miragem de inexorabilidade do Império da Razão, manteve intimidades com a loucura talvez sob a forma mais desesperadora para um amante do saber, a da demenciação), de alguns segmentos das Artes (Goya, com seus quadros e pranchas que retratavam o Iluminismo como não deixando de ser dialético, isto é, como gerador também de penumbras na exata proporção em que disseminava, até as fronteiras do Ocidente, o sonho da clareza e potência da Razão) e, mais tardiamente, da Psicanálise (pensemos em Freud, que sob, mais de uma forma, não se ateve ao simplismo das dicotomias familiar-estranho, eu-outro, interno-externo, levando-nos, ao contrário, a deslumbrar uma outra forma de espacialidade) puderam frear significativamente este espetáculo, que já vem durando três séculos. O campo que ali foi-se fazendo - o campo da saúde mental - , orquestrado que estava pela prática psiquiátrica e sua expectativa de se aliar a um ideal de ciência, ao custo, sempre provável, de se perder na pantomima de uma ciência ideal, não deixou de ser tencionado por uma controvérsia de difícil resolução. De um lado, observávamos um crescente processo social de culto ao individualismo burguês, bem como à decorrente delimitação das esferas do público e do privado, até então obscurecidas pela ausência, nos Estados Nacionais existentes, de uma Carta Magna (e seus similares) que literalizasse os direitos e deveres, tanto daqueles Estados, quanto da sociedade civil e seus inúmeros componentes. Em suma, uma letra reguladora que delimitasse um contrato social e seus reconhecíveis signatários. De outro lado, víamos em curso uma crescente capitalização da sociedade e de suas classes, induzindo indiretamente o engendramento daquilo que poderia conter os abusos que se potencializavam e, certamente, já se realizavam naquele modo de produção: a noção de cidadania. De um lado, pois, Narciso, quando não, o olhar da Medusa; de outro, o grande espelho que possibilita o visível, ao enquadrá-lo e cerceá-lo.

Nesta confluência de vetores e sob o passo de prestidigitador patrocinado pela Psiquiatria (fundamentar seu sentido e sua legitimidade no conhecimento de uma gênese orgânica para a loucura, que, no entanto, nunca era materialmente demonstrada, apesar do meteórico sucesso ilustrado pelo caso da Paralisia Geral Progressiva nos estudos de Bayle, decorrentes do método anátomo-patológico de Bichat), presenciamos um périplo de discursos (portanto, de saberes que repercutiam sobre o real) que impediam de se reconhecer, nos loucos, as prerrogativas daquilo que a sociedade civil como um todo e o Estado em especial atribuam aos produtores e consumidores daquela nova ordem mundial: o usufruto da cidadania ou, ao menos, a possibilidade de reivindicação do mesmo. A tensão entre estes vetores atingia seu paroxismo exatamente no momento em que a Psiquiatria, na inquestionável condição de carro-chefe da tecnicização da loucura, construía, por este viés, um objeto que se tornava cada vez mais possível de ser abordado por uma razão disciplinar, na medida em que ele se eclipsava do mundo dos homens.

Hoje, no cenário brasileiro, sem que se faça disto uma situação exclusiva, sobretudo após as conquistas e extravios do Movimento da Luta Antimanicomial, muito se alterou. Mas, muito ainda se mantém, em relação ao momento em que o louco passou a ser reconhecido como doente mental e, por consegüinte, foi tomado como prerrogativa de uma expertisse. A orientação usualmente buscada - e, atenção, não estamos nos referindo a uma unanimidade, pois, ao que tudo indica, a lógica da exclusão, independente de sua prevalência nas diversas formas e espacialidades que o manicômio sempre pode assumir, não se elimina tão facilmente de uma sociedade, sem que esta última tenha de criar, para si própria um outro sentido e um outro olhar para com a diferença - é a de resgatar a cidadania dos doentes mentais ali onde ela ainda nem se declarou ou zelar pela mesma ali onde ela está, sob a constante vertigem de sua própria fugacidade. A cidadania e seus avatares colocam-se, pois, como o eixo ordenador da assistência à saúde mental quando, exatamente, a palavra de comando é a não-conformidade com a lógica manicomial. É possível de se verificar que, contemporaneamente, constrói-se e opera-se com um conceito de clínica ampliada, consoante à função aí desempenhada pelo discurso que preconiza a cidadania dos doentes mentais. Todavia, resta-nos atentarmos para a astúcia do mercado e de sua parceira mais assídua, a Tecnociência, pois não está eliminada a possibilidade de a própria noção de cidadania e seu discurso tornarem-se mais um produto de consumo, dentre outros.

Compreendemos que é absolutamente inegável o valor e a legitimidade de tal empreendimento, sobretudo quando não consideramos tão somente o pathos da doença mental, todavia, as condições assaz preocupantes da saúde coletiva em meio à nossa sociedade brasileira. Agenciarmos ações que, por sua vez, tenham respaldo institucional, conceitual e, certamente, ético, contra os abusos e desumanidades recorrentes em grande parte do modelo totalitário vigente na atenção à saúde mental é, mais do que um ato clínico, um ato que se conjuga ao expurgo do exercício de um poder ilegítimo. Jacques Lacan, ao final dos anos 50, já havia salientado, de forma exemplar, que a impotência para se sustentar autenticamente uma práxis tende a desembocar no exercício de um poder (cf. A direção da cura e os princípios de seu poder, in Lacan, 1966).

Todavia, parece-nos que, em meio a toda postura acertada da reformulação da assistência à saúde mental e aos ativismos e paroxismos aí presentes, resta ainda por se esclarecer uma tensão que, como antecipamos, já estava presente no engendramento do campo da saúde mental. Esta tensão, que não é exclusiva deste campo, lhe interroga de maneira constante e de uma forma tal, que a sua consideração ou o seu desprezo não serão sem conseqüências para o porvir deste longo itinerário da loucura. Trata-se da tensão se não da agonística estabelecida entre o domínio público (e, por sua vez, tendente a uma coletividade) e o domínio privado (e, por sua vez, tendente a uma individualidade). Se pensarmos no papel crucial que a teoria e a práxis psicanalítica desempenham, em meio à reconsideração da assistência no campo da saúde mental, tal tensão torna-se ainda mais urgente de ser, ao menos, sinalizada. Se, igualmente, considerarmos um caso especial de loucura, tal como é a psicose e suas modalidades, é difícil não concluirmos que a cada experiência clínica em que esta se expõe, em toda a radicalidade de seu pathos, é a própria resistência à coletivização que se consuma, seja no delírio, na alucinação, na fala, na passagem ao ato ou nas obras. Provavelmente, vai muito além de um recurso retórico a caracterização que Lacan dá à Psicanálise: em um momento mais avançado de seu ensino, ele a concebeu como uma paranóia dirigida. Isto não significa, de forma alguma, que os psicanalistas sejam levados a sustentar uma apologia da loucura aos moldes do que já ocorreu, por exemplo, na Antipsiquiatria. Significa que aquilo que condiciona esta espécie de loucura que é a paranóia não é, de forma alguma irrelevante para se compreender, fundamentalmente, o que se produz em um percurso analítico. Por conseguinte, não é igualmente desprezível para se compreender uma práxis que ressalta a positividade da descontinuidade, isto é, da singularidade.

Para concluir, sublinharíamos que um conceito imprescindível ao discurso psicanalítico, sobretudo em sua orientação lacaniana, é o conceito de sujeito. Sua dimensão teórica e, inegavelmente, sua dimensão operativa (pois trata-se de se discernir as conseqüências do mesmo sobre o exercício de uma prática clínica) funcionam tal qual um divisor de águas para o campo psicanalítico. Em um estudo que tivemos oportunidade de desenvolver, quando da defesa de uma Tese de Doutorado em Filosofia na UFMG (cf. Ribeiro, 2002), pudemos apontar para o aspecto eminentemente aporético do sujeito e, como toda aporia que se preze, para seu aspecto essencialmente paradoxal. O sujeito, enfim, é resistente à consumada abolição da diferença, daí sua originalidade e sua função descontínua. Decorre daí, também, a dificuldade de sua compreensão e abordagem, quando não de sua produção, por parte de muitos daqueles que se interessam por pensar em questões semelhantes às que aqui propomos. A aporia do sujeito reside no fato de ele se determinar, à medida em que não cede a nenhuma determinação, localizar-se enquanto não se atém a nenhum lugar e deter-se enquanto deslocável.

Estas considerações, por fim, têm como objetivo interrogar até que ponto, no campo da saúde mental, em nossa contemporaneidade, a noção de cidadania é confluente ou não com o conceito de sujeito, conceito este, aliás, distinto de qualquer forma de individualidade empírica. O sujeito, preconizado pela Psicanálise, destituído de substância, imagem ou qualquer outra referência que não a da fugacidade sinalizada pela temporalidade de um haverá sido, é confluente com o amplo e desejável processo de reformulação da assistência à saúde mental, norteada, tal como está a maior parte das vezes, pela bandeira da cidadania? Ou, por outro lado, aquilo que aprendemos com o percurso de um sujeito, no campo da saúde mental, coadunar-se-ia com a trajetória de uma noção menos conteudista e mais formal de cidadania, tal como, a título de exemplo, nos é sugerida por Hanna Arendt ao propor que cidadania é, basicamente, ter direito a direitos?

 

Referências

Amarante, Paulo (1996). O homem e a serpente: Outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Débord, Guy (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Foucault, Michel (1999). Problematização do sujeito: Psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, Michel (1980). O nascimento da clínica (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense.         [ Links ]

Foucault, Michel (1995). História da loucura na idade clássica (4a ed.). São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Lacan, Jacques (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lobosque, Ana Marta (1997). Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos. São Paulo: Hucitec         [ Links ]

Pinsky, Jaime (Org.). (2003). História da cidadania. São Paulo: Contexto.         [ Links ]

Ribeiro, Alexandre Simões (2002). A aporia do sujeito em Lacan (1953-1960). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.         [ Links ]

Russo, Jane (2002). O mundo psi no Brasil (Coleção Descobrindo o Brasil). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Tundis, Silvério Almeida, Costa, Nilson do Rosário (Orgs.). (1990). Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

 

 

Recebido em 20 de novembro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

Creative Commons License