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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.3 n.1 Fortaleza mar. 2003

 

ARTIGOS

 

Educação intercultural e pós modernidade

 

 

Mozart Linhares da Silva

Doutor em História pela PUCRS (com extensão em Coimbra-PT), Professor do Departamento de História e Geografia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional (mestrado e doutorado) na UNISC. E-mail: e-email: mozartt@terra.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões acerca da educação intercultural a partir das transformações da perspectiva do tempo, da memória e da alteridade nas sociedades contemporâneas. Para tanto, a análise enfoca três aspectos: a) a crise da modernidade e a fratura da idéia de devir; b) a expansão do presente (presenteísmo) e um novo recorte da memória e da alteridade e c) educação intercultural e multitemporalidade nas sociedades contemporâneas. No primeiro aspecto, a análise aborda a idéia de tempo construída na modernidade e seus desdobramentos nas noções de identidade e nação, questões, vale lembrar, que nortearam as categorias de progresso, evolução e devir. No segundo aspecto, a análise redimensiona a noção de tempo nas sociedades contemporâneas, a partir da crise da modernidade e da emergência do chamado presenteísmo, o que implica numa nova construção da idéia de memória social. No terceiro, procurar-se-á problematizar as perspectivas da educação frente à questão da alteridade.

Palavras-chave: tempo, modernidade, multticulturalismo, educação, Identidade


ABSTRACT

The objective this paper is to present some reflections concerning the multicultural education from the transformations of time perspective, the memory and the alterity in contemporaries societies. So that, the analysis focuses three aspects: a) the crisis of modernity and the breaking of the devir idea; b) the expansion of the present (presenteism) and a new cutting of the memory and difference and c) Intercultural education and multitime in contemporary societies. In the first aspect, the analysis approaches the constructed time idea in modernity and its unfoldings in the conception identity and nation, questions, valley to remember, that its had guided the categories of progress, evolution and devir. In the second aspect, the analysis revise the notion of time in the contemporaries societies from the modernity crisis and the emergency of the call presenteism, what it implies in a new construction of the social memory idea. In the third question, will be looked to trouble the perspectives of the education front of the question difference.

Key-words: time, modernity, multiculturalism, education , identity


 

 

Introdução

Este artigo tem por objetivo problematizar algumas questões que implicam na definição das estratégias de uma educação intercultural. Para tanto, não aborda diretamente a educação intercultural, mas, sobretudo, procura uma análise de contexto da crise da modernidade e seus desdobramentos nas noções de tempo, memória, valores e identidade. Estas questões analisadas no conjunto permitem recolocar a problemática da alteridade no mundo contemporâneo e relacionar as narrativas identitárias legitimadas na esfera do Estado-nação com as (contra)narrativas provocadas pela crise deste Estado, no mundo globalizado. É, portanto, na fratura do discurso identitário frente ao Outro que a educação intercultural procura ser pensada.

Considerando as problematizações que a crise da modernidade implica nas concepções de tempo, de espaço, de nação, de conhecimento e ainda as dificuldades de uma "nova" experiência do tempo presente, num mundo marcado pela aceleração e pela velocidade, a discussão que procura ser conduzida neste artigo evidentemente não procura uma resposta ou um projeto para a educação intercultural, o que transcende as possibilidades deste artigo, mas, procura equacionar alguns fenômenos que julgo importantes para pensar a educação.

Se a crise da modernidade evoca a discussão da idéia de devir, é preciso considerar que a esta crise do tempo, enquanto projeto, subjaz uma nova apreensão das relações identitárias, o que implica em novas textualidades e intertextualidades culturais. Noutras palavras, nas sociedades contemporâneas, as multitemporalidades estabelecidas pela convivência pluriétnica e pluculturais deslocam do lugar, estabelecido no discurso da modernidade, as narrativas homogeneizadoras cuja diferença era pensada com a segurança do distanciamento. Num mundo marcado pelo fenômeno da imigração (contexto pós-colonial), a educação intercultural se constitui como um dos maiores desafios para os "planejadores sociais". Soma-se a este fenômeno de "hibridização" cultural, o fenômeno dos mass medias e das novas tecnologias cujos efeitos para as narrativas identitárias tradicionais são escatológicos.

A par das questões colocadas acima é que este artigo pretende uma inserção na discussão acerca das dificuldades de uma educação intercultural.

 

A crise da modernidade e a fratura da idéia de devir

Questões como identidade, tolerância, hibridismo, multiculturalismo, alteridade, complexidade e heterogeneidade, entre outras, figuram como temas constantes nos debates atuais acerca da crise da modernidade e do fenômeno da globalização (Ver: Postcolonial enconters, 2000). Na realidade, estes termos colocam em xeque alguns aspectos profundamente arraigados a desestruturação da modernidade como uma forma de civilização calcada no saber laico, numa concepção de tempo progressivo e linear, racionalista e antropocêntrica e, sobretudo, homogeneizadora.

Paradoxalmente, a modernidade se apresenta, pelo menos a partir do século XVII, nomeadamente com o advento da revolução galileana-newtoniana, como expressão da diferença, com uma postura calcada na idéia do novo, de um novo redentor, cujos aspectos civilizatórios são compreendidos através da idéia de ruptura com a cosmovisão escolástica ou medieval. O cerne desta "ruptura" dos modernos pode ser colocada tendo em vista a reordenação do conhecimento, a partir de um método baseado numa razão antropológica que reordenou a própria condição do homem.

O desenvolvimento da ciência moderna implicou, portanto, num processo de secularização do saber e, por extensão, de laicização da sociedade. A este processo subjaz uma nova concepção de indivíduo, não mais inscrito numa cosmovisão ordenada e externa ao mundo, mas uma cosmovisão subjetivista e antropológica que não apenas o deslocou do fora-do-mundo (Dumont, 1985), mas ainda o historicizou. É, nesse sentido, um indivíduo no espaço-tempo, cuja identidade se constrói justamente a partir das narrativas sobre este espaço-tempo que o habita e é habitado por ele.

Problematizar a crise da modernidade é colocar em questão a própria crise do tempo, e por extensão, do indivíduo e da história. É colocar ainda a crise do Estado-nação estruturado numa narrativa de pertencimento a um espaço-tempo específico, que permite a constituição de um universo simbólico específico que estabelece os critérios da identidade e da différance em função da criação de uma tradição e de uma genealogia.1

A narrativa moderna sobre o tempo legitima e instaura noções que ignoram as multitemporalidades e as intertextualidades, enfatizando a percepção de progresso e evolução como escritura contínua, linear e progressiva, o que permite unificar as diversas temporalidades que caracterizam as diversidades culturais num discurso unificado. O tempo da narrativa moderna, nesse sentido, é homogeneizador e, segundo Ruth Gauer, "coloca na história, todas as sociedades, independente das concepções que as mesmas formularam sobre o tempo" (Gauer, 1998, p. 17).

É preciso lembrar ainda que o tempo linear, ao garantir uma percepção evolutiva do homem na história, implicou numa concepção do passado como tempo pedagógico, pois transformou as ações passadas em lições para o presente, garantiu ainda a legitimidade de valores que, para sua funcionalidade, eram dotados de duração. O passado, dentro desta concepção moderna, é uma alavanca, um dispositivo para o devir, para a continuidade e para o progresso, não só do homem, mas sobretudo do "homem da nação".2

A estruturação de um tempo, unificado e homogêneo como condição da civilização moderna, acarretou numa concepção unívoca de sociedade, universalista e dominadora, cuja diferença é percebida como desvio. O eurocentrismo, característico do imperialismo, por exemplo, estava assentado nesta concepção de evolução e linearidade. A homogeneidade que caracteriza este discurso civilizatório ocidental percebe a diferença a partir de um referencial hierárquico, o que, de certo modo, revela não apenas os estranhamentos culturais, mas também os processos desestruturadores das identidades do outro.

Entretanto, a relação com a diferença pode ser pensada em diversas escalas espaço-temporais. No caso específico de uma nação ou sociedade, ela comporta complexidades consideráveis onde falar em estrutura social é falar a partir de um discurso que efetivamente desconsidera as diferenças intrínsecas que implicam numa precária idéia de estabilidade, ou ainda, de estrutura, no sentido rígido do termo. Seria mais interessante, nesse caso, pensar a partir de uma perspectiva da harmonia-conflitual, pois, permite a crítica à idéia de coesão social moderna, ou na interpretação de Homi Bhabha, do muitos como um (1998, p. 203), fundamental no discurso do tempo histórico-nacional.

A partir deste viés, vale notar que a construção da memória nacional procura anular os tempos disjuntivos da nação, a partir da articulação de uma temporalidade pedagógica que é "sempre" marcada pela idéia de coesão social no presente. O tempo pedagógico estabelece os critérios políticos da memória que unifica, através do discurso identitário, as diferenças internas da sociedade.

O discurso identitário, nesse sentido, articula uma dupla temporalidade em que a tensão é percebida entre o pedagógico, cuja dimensão histórica é formativa, e o performativo, que cinde o sujeito do presente através de uma contra-narrativa anunciativa. O pedagógico, segundo Bhabha,

funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo que Poulantzas descreve como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representam uma eternidade produzida por autogeração. Por outro lado, o performativo intervém na soberania da autogeração da nação, ao lançar uma sombra entre o povo como 'imagem' e sua significação como um signo diferenciador do Eu, distinto do Outro ou do Exterior (Bhabha, 1998, p. 209).

Nesta direção, Bhabha afirma que "a fronteira que assinala a individualidade da nação interrompe o tempo autogerador da produção nacional e desestabiliza o significado do povo como homogêneo" (Bhabha, 1998, p. 209).

Esta desestabilização é corroborada pelas narrativas transversais que perpassam a tecitura discursiva da homogeneidade, como as performances de minorias e tensões regionalizadas, cujos desdobramentos constituem a ambivalência discursiva da nação moderna.

A par destas colocações, a idéia de hybris pode ser instrumentalizada e alargada e, com isso, estaríamos entrando com mais profundidade no cerne da crítica da modernidade, homogeneizadora, binária e cronocêntrica. Trabalhar com a idéia de hybris é abrir possibilidades e deslocamentos conceituais que imagino são mais prudentes, hoje, pois, comportam a dinâmica da complexidade. É preciso ressalvar que a idéia de hybris não implica em fusão ou síntese, mas coexistência, ou seja, é formada por partes que se recusam terminantemente a se desfazer e a se reunir em uma entidade separada, original e indivisível (ver: Araújo, 1994, p. 44 e Gruzinski, 2001), o que não desloca o conflito, mas o redimensiona.

Se a modernidade se caracteriza pela retórica de um tempo linear e pela fixação de memórias identitárias, é preciso reconhecer que o fenômeno do hibridismo transcende o discurso moderno e se instala, como paradoxo deste discurso, no própria narrativa da nação, ou melhor, como contra-narrativa, que comporta o outro no eu.

Assim, é que o tempo unificado da nação moderna se esvai pela própria condição de sua heterogeneidade, correlata de uma temporalidade disjuntiva que desloca a concepção de corpus unificado. Segundo Homi Bhabha, "estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população" (1998, p. 209).

 

Presenteísmo, velocidade e memória

A unificação do tempo moderno não comporta a crise das sociedades contemporâneas, sobretudo se considerarmos as sociedades contemporâneas como resultado de um processo migratório, cujas diversidades espaço-temporais corroem a idéia identitária como a concebíamos.

O mundo pós Segunda Guerra, assistiu a uma progressiva globalização, cuja concepção de fronteira nacional foi fragmentada pela idéia de trânsito ininterrupto não apenas de bens de consumo mas também de corpos.

Soma-se a esse fenômeno migratório desestruturador das fronteiras dos Estados-nação uma intensa proliferação dos mass media, ou ainda, da chamada revolução das novas tecnologias de comunicação. Não apenas as diferenças são expostas por um processo de visibilidade corpórea, mas, sobretudo, pelas formas mediáticas a partir da televisão e hoje da internet.

A questão que se coloca então diz respeito aos efeitos das novas tecnologias no entendimento da memória e das identidades que navegam no mundo contemporâneo. Ela será útil para pensar a educação, nesse processo de complexificação do mundo globalizado, cuja interculturalidade/etnicidade é um dos aspectos relevantes.

É opinião corrente entre teóricos, como Paul Virilio, que a vida moderna, no sentido lato do termo, se organiza sob o corolário da velocidade, da aceleração contínua, o que revela uma nova relação com o tempo e com os valores cuja validação depende, justamente, da experiência de duração desse tempo (sobre o tema ver: Virílio, 1993, Kerckhove, 1997 e Silva, 2001). Se os valores funcionam como dispositivos que orientam o "indivíduo" em sociedade, eles dependem de uma dinâmica do homem em relação ao tempo. A velocidade das mudanças e as acelerações sociais possuem desdobramentos que se refletem diretamente na duração e na validade dos valores. As sociedades contemporâneas, cujo presenteísmo é perceptível, vivem uma crise dos valores de caráter universal, conforme o corolário moderno: o humanismo, a democracia, a solidariedade, a cidadania, a ética e a responsabilidade, entre tantos.

As sociedades contemporâneas, cujo presenteísmo estabelece uma nova relação com os valores, cultiva um culto hedonista-utilitarista do tempo presente, revelado no distanciamento de uma ética do esforço em função do benefício imediato, do benefício dos resultados a curto prazo, caracterizado por uma lógica em que a produção, que envolve investimento de tempo a médio e longo prazo, é substituída pela especulação, como exemplifica Gilles Lipovetsky (1998, p. 32).

Se o homem contemporâneo potencializa o desejo, ele, na mesma direção, nega a espera e cria o proselitismo da satisfação imediata, o que, nos termos de Jean Chesneaux (1998, p. 117-132), significa a criação de uma lógica social constituída pela tirania do efêmero, que se consubstancializa no consumismo, traduzido numa espécie de potencialização do princípio do prazer, no sentido Freudiano. Um bom exemplo dessa potencialização é dado por Pascal Bruckner, o qual lembra que, com o surgimento do crédito, criou-se uma nova maneira de satisfação de nossos desejos que provocou um verdadeiro curto-circuito no tempo. Para o autor, o "crédito permitiu fazer desaparecer o intervalo entre o desejo e a sua satisfação" (Bruckner, 1998, p. 56). O que se depreende é que a frustração tornou-se obscena e a satisfação, a regra.

Esse fenômeno caracterizado pela infantilização da sociedade revela uma dimensão do tempo que nega o projeto, ou seja, o devir. A construção presenteísta das formas de sociabilidades permite sugerir que o lugar da memória se tornou evasivo e os valores também efêmeros, como os desejos satisfeitos.

É tempo de afirmar que esse mundo constituído pela expansão do presente é também um mundo de inovações constantes, inovações que implicam o reconhecimento da imprevisibilidade e da incapacidade dos sistemas ou modelos deterministas em dar conta das projeções do futuro. Num mundo onde as inovações são constantes e as certezas efêmeras, não se pode conferir crédito aos determinismos e aos objetivos calculados (Raux, 1998, p. 15).

Pensar o futuro, sem nos colocarmos na lógica do tempo como construção e processo, tornou-se um desafio caro aos planejadores da sociedade futura. Se as grandes narrativas legitimadoras da modernidade fracassaram em seu sonho redentor, o que podemos fazer, segundo Morin, "é levantar problemas, é formular as contradições, é propor a moral provisória" (2000, p. 133).

 

Educação intercultural e multitemporalidade nas sociedades contemporâneas

O mundo globalizado não se caracteriza apenas pela circulação frenética de objetos, mas sobretudo pela também frenética migração. Este fenômeno desafia os modelos educacionais cuja origem remonta a um tempo pedagógico estratégico para o Estado-nação. Desde a Revolução Francesa, a educação passou a ser estratégica para os Estados Modernos. Por vários motivos, entre eles, pelo cumprimento de um papel moralizador e identitário. Era a partir da escola que a narrativa da nação formava a tecitura sobre a qual as diferenças nacionais eram exaltadas e enaltecidas as qualidades próprias da nação, em particular.

Vale lembrar ainda que, entre os componentes que viabilizavam a identidade, estava a idéia de raça, que, no século XIX, segundo a expressão de Hannah Arendt (Arendt, 1973), tornou-se a nova chave da História. Povo e raça eram termos simétricos e a idéia de pureza nacional impulsionava políticas eugênicas, inspiradas em teóricos como Galton, que atravessavam os projetos pedagógicos (ver: Silva, 2003). Os resultados deste cientificismo racial são bem conhecidos e dispensam comentários (ver: Silva, 2003 e Gould, 1999). O que importa ressaltar, para os objetivos deste artigo, é a idéia de homogeneização identitária no ocidente. O etnocentrismo e o cronocentrismo, neste contexto de nacionalismo, começam a ser colocados em xeque no processo de descolonização seguido pela expansão dos medias. O trânsito humano neste processo marca um novo estatuto da alteridade. Pois, conforme Homi Bhabha, o processo que caracterizou a luta contra a dominação colonial não mudou apenas a direção da história do ocidente, mas contestou sua concepção historicista de tempo, como um todo progressivo e ordenado (Ver: Bhabha, 1998).

Se as diferenças internas nas nações já eram uma evidência de que a narrativa não dava mais conta, com a colonização - mas principalmente com a descolonização - assistimos a uma intensificação do relato da alteridade. A espacialidade do outro se desloca para o espaço do eu. Aqueles que já estavam como diferença (produtores de contra-narrativas) ao lado do eu (o eu da narrativa da nação) adquirem cores mais fortes, desafiando a capacidade dos relatos identitários em manter uma coerência discursiva e homogeneizadora. Trata-se de considerar que o outro no mesmo é um fato e que deve ser mensurado, pois opera uma fratura na idéia do eu como referencial identitário da generalidade.

As tentativas do pensamento ocidental em manter fixada a idéia de identidade, como algo naturalizado ou substantivado, não resistem e não acompanham os ritmos acelerados de mudanças da globalização e promovem um curto circuito no espaço-tempo das narrativas identitárias, até porque, como afirma Stuart Hall, "na era das comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea" (Hall, 1999, p. 81), o que revela que o distanciamento que propiciava a segurança das fronteiras é fraturado por uma nova experiência do espaço, por uma percepção da fragilidade ou insignificância do espaço demarcado pela fronteira ou mensurado a partir de distâncias insuperáveis. A estas transformações identitárias dos Estados-nação, corresponde uma transformação identitária planetária.

A educação, que, no Estado moderno, tinha um papel estratégico e disciplinar, pois, domesticava um espaço-tempo identitário a partir de uma narrativa homogeneizadora, no mundo atual não comporta senão a fragmentação discursiva, o que implica que é preciso assimilar novos objetos pedagógicos que contornem a idéia de povo unificado. O desafio da educação intercultural é corresponder às idiossincrasias do local e do universalismo global, a um só tempo. Para tanto, segundo a reflexão de Edgar Morin, é preciso que o objetivo maior de todo o ensino seja a condição humana (Morin, 2001, p. 15). Nestes termos, o foco pedagógico não se centraliza no sujeito histórico de uma nação ou grupo, mas investe naquilo que estabelece a igualdade na diferença. A condição humana não corresponde assim ao relato da razão unificadora como no iluminismo, porém na condição bio-antropo-social que considera a diversidade e as diferenças encerradas na própria humanidade. Trata-se de uma espécie de eco-humanismo.

Edgar Morin chama atenção também para a importância do ensino da compreensão mútua entre os seres humanos, "quer próximos, quer estranhos", disso de fato decorre a necessidade de "estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque enfocaria, não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo" (Morin, 2001, p. 17).

Estes saberes (Morin aponta sete) em seu conjunto promoveriam uma antropo-ética, segundo a qual a humanidade deveria ser pensada a partir de uma cidadania terrena, como habitantes de um mesmo espaço, a terra-pátria.

A educação intercultural depende, nesse sentido, da construção de uma outra narrativa, distanciada das estratégias identitárias da nação moderna e atenta à igualdade na diversidade. Disso resulta que é preciso estabelecer um novo "contrato social", baseado, não na igualdade (no sentido moderno), mas na alteridade, cujo sentido seja firmado na idéia do outro no eu e não.

Estas considerações propositivas evidentemente comportam boa dose de utopia, mas é preciso admitir que não se pode pensar a educação num tempo presenteísta, cuja fixação do efêmero serve de corolário, mas sim na duração de um tempo que permita articular valores que não se sustentam no imediato. O desafio da educação intercultural está posto, portanto, na complexa tarefa de articular valores a partir de diferentes temporalidades que coabitam o espaço planetário, que articula, num só movimento, o local e o global.

 

Referências

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Virílio, Paul (1993). A inércia polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

 

 

Recebido em 04 de dezembro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

 

 

Notas

1 Paradoxalmente, esta genealogia é atemporal, pois a "fixação" imaginária da identidade se processa numa idéia de essência primordial que se perde no tempo, mas é acionada pelos ritos, valores e pela religação simbólica do presente ao passado imemorial, onde está fixado o mito fundacional. (Ver: Hall, 1999, p. 54-55). Sobre as diversas abordagens acerca da cultura e da identidade, ver: (Cuche, 1999).
2 Nesta mesma direção, é preciso considerar o papel da ciência e da técnica, pois estes saberes constituem também uma narrativa da cumulação e da continuidade. Distribuídos em escala cumulativa no tempo moderno, os saberes científicos e técnicos corroboram, para a simbolização do progresso e da evolução como condição primordial do homem "civilizado".

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