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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.3 no.1 Fortaleza Mar. 2003

 

ARTIGOS

 

Na Natureza, no Homem e na Sociedade, nada se cria, nada se transforma... tudo se repete

 

 

Vander Ferraz Neves

Psicólogo, Pós-Graduando em Temas Filosóficos, trabalha com Psicologia Clínica e Organizacional. Endereço: Rua dos Guajajaras, nº 365, aptº 504 - Centro Belo Horizonte/MG. CEP: 30180-100. e-mail: vanderneves@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho visou à junção de uma obra literária com a teoria psicanalítica. A obra escolhida foi O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago. No que diz respeito à Psicanálise, o trabalho se ateve às contribuições trazidas por Sigmund Freud, Jacques Lacan e Luiz Alfredo Garcia-Roza a respeito da repetição, uma das principais teorias dessa ciência. Na primeira parte, foram trabalhados os percursos histórico-filosóficos do tema da repetição desde seu surgimento, passando pelas contribuições da Psicanálise até a deflagração desse tema nos dias atuais. Houve explanações sobre o tema por meio de um levantamento teórico. Já na segunda parte, o trabalho tangenciou-se em realizar uma resenha sobre a obra literária escolhida. A descrição foi feita de forma prática e sucinta, a fim de propiciar ao leitor uma idéia do que representa esta obra de Saramago. Com isso, inicia-se uma tentativa interpretativa e hipotética sobre quais aspectos tratados na sua obra poderiam ter relação com a Psicanálise. Chega-se então à conclusão de que a ilha desconhecida tratada na obra é, na realidade, a ilha do desejo, uma ilha onde não existe a repetição. Na parte final, tem-se a continuidade da discussão entre os aspectos da obra e os termos da Psicanálise. Nessa parte, também se encontram as considerações finais a respeito do trabalho. Alguns pontos apresentaram-se de forma conclusiva, outros, porém, deverão ser ainda investigados mais detalhadamente.

Palavras-chave: repetição, psicanálise, desejo, Ilha Desconhecida, inconsciente


ABSTRACT

This work aimed at a junction of a literary composition with the psychonalysis theory. The chosen workmanship was " O Conto da Ilha Desconhecida', of Jose Saramago. In that it says respect to the Psychoanalysis, the work if abided by the contributions brought for Sigmund Freud, Jacques Lacan and Luiz Alfredo Garcia-Roza regarding the repetition, one of the main theories of this science. In the first part the description-philosophical passages of the subject of the repetition since its sprouting had been worked, passing for the contributions of the Psychoanalysis until the deflagration of this subject in the current days. It had communications on the subject by means of a theoretical survey. Already in the second part, the work was looked in carrying through a summary on the chosen literary composition. The description was made of practical form, in order to propitiate the reader an idea of that represents this workmanship of Saramago. With this, a attempt is initiated and hypothetical on which aspects treated in its workmanship they could have relation with the Psychoanalysis. The conclusion of that the treated unknown island in the workmanship is, in the reality is arrived then, the island of the desire, an island where the repetition does not exist. In the final part it is had continuity of the quarrel enters the aspects of the workmanship and the terms of the Psychoanalysis. In this part also the final considerations regarding the work meet. Some points had been presented of conclusive form, others, however, they will still have to be investigated more at great length.

Key-words: repetition, psychoanalysis, desire, Unknown Island, unconscious.


 

 

Introdução

Este trabalho tem como objetivo principal fazer um recorte a partir da teoria psicanalítica, aliada a uma obra literária.

O tema da Psicanálise trabalhado aqui é a repetição (Wiederholen), que é um conceito produzido por Sigmund Freud em 1914. Esse conceito veio elucidar alguns aspectos da teoria analítica no que tange o inconsciente e a transferência. Toda a primeira parte descreve como surgiu este termo histórica e filosoficamente, até chegar àquilo que foi tratado por Freud.

A respeito da obra literária, foi escolhida O Conto da Ilha Desconhecida, obra do autor português José Saramago. Na segunda parte, há uma resenha dessa obra e a descrição de alguns aspectos que corroboram com a teoria psicanalítica.

A terceira parte (parte final) diz respeito às considerações finais sobre este trabalho, constando aquilo que, neste momento, foi criado como similaridade entre a obra de Freud e a obra de Saramago.

Não há uma tentativa de esgotar a realidade, ou seja, encerrar o assunto. Mesmo porque, durante as leituras realizadas para a confecção deste trabalho, observam-se vários temas que poderiam ser tratados tanto na Psicanálise quanto nesta obra literária específica.

A preocupação maior foi de apontar a tentativa proposta por Freud para o trabalho analítico, em outras palavras, empregar o desejo no contexto de vida do sujeito. Para isso, a obra de Saramago, através de uma descrição, aponta uma saída para o desejo de um homem. Ressalta-se que só há vida se houver desejo e, mesmo que esse desejo se formalize, surgirão outros para serem realizados, como num processo quase simultâneo.

Podemos apontar como exemplo, para esta afirmação, um sujeito que deseja um salário maior do que ganha. A partir do momento que ele o consegue, é natural que ele deseje ganhar mais em detrimento àquilo que ganha. Foi assim na obra de Saramago: o homem queria um barco para ir à ilha desconhecida, conseguiu e acabou criando outros desejos a serem realizados, que serão descritos a seguir.

O encerramento deste artigo vislumbra uma atuação do analista, apesar de em nenhum instante estar embasado em uma experiência clínica. Neste caso, recorro-me a Nietzsche para explicar como seria uma atuação do psicólogo que promove a análise. Para ele o psicólogo é:

O gênio do coração que faz amainar todas as vozes altissonantes e vaidosas, que ensinam ouvir em silêncio, que analisa as almas enrugadas, ensinando-lhes um novo desejo: o desejo de ficar quieto e fazer, como espelho d´água onde se reflita o céu profundo e calmo... O gênio do coração que ensina à mão torpe e impulsiva como deve conter-se e ser mais delicada; que sabe descobrir o tesouro oculto e esquecido, a gota de bondade e de doce espiritualismo escondida debaixo da camada sólida do gelo; que é uma varinha mágica que atrai as pepitas de ouro soterradas há muito tempo no lodo e na areia... O gênio do coração de cujo contato todos saem mais ricos, não abençoado e surpreendido, não feliz e oprimido por ter obtido um bem alheio, mas sim mais rico de si mesmo, renovado, reflorido, beijado e compenetrado quase pelo sopro de um zéfiro mais tenro, mais frágil, ainda cheio de esperança sem nome, cheio de intenções, repleto de novas vontades e de novas energias, transbordante de desdéns novos e de reações originais (...) (Nietzsche, 2001, p. 75)

Esta então é a obra. Na natureza, no homem e na sociedade nada se cria, nada se transforma... Tudo se repete.

 

Repetição e Psicanálise

Trataremos aqui o conceito de repetição, a partir da Psicanálise criada por Sigmund Freud. Desde os primórdios da humanidade, na confecção das civilizações e na criação de leis, houve uma preocupação para que sempre existisse um modelo a ser seguido. Partindo da Mitologia Grega, o começo era o Caos, o primeiro estado primitivo do mundo. Como existir ainda era uma indeterminação, coloca-se um mito narrando o preenchimento desta lacuna, que tinha o seguinte valor:

No espírito dos gregos e dos latinos, tiveram o valor de dogmas e realidades. Assim, inspiraram aos homens, sustentaram instituições, às vezes, muito respeitáveis, sugeriram aos homens, aos poetas, aos literatos a idéia de criações e mesmo admiráveis obras-primas.(Commelin, 1983, p. 15)

A narrativa da história da linguagem humana começava exatamente neste ponto, sob formas e mais formas de repetição.

Esses acontecimentos primordiais, uma vez produzidos, transformaram-se em modelos para a conduta dos homens. O homem das culturas arcaicas e primitivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repetição que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. (Garcia-Roza, 1986, p. 27)

Com este acontecimento, percebe-se que os feitos dos heróis gregos só puderam acontecer pelo Caos. No decorrer dos séculos, mesmo com as mudanças de grandes paradigmas, como o Heliocentrismo, a Religião, a Filosofia, o Renascimento, a Contra-Reforma, o Feudalismo, a Revolução Industrial, o Capitalismo; nenhum fato cotidiano ganhava sentido real, se não repetisse um modelo, sempre no pretérito.

De acordo com Garcia-Roza (1986), os acontecimentos podem ser considerados sagrados, por seguir o original, ou profanos por se apresentarem estranhos àquilo que já vinha sendo repetido. "O mundo, no que possui de verdadeiro (ou sagrado), é uma repetição. O que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e realidade" (Garcia-Roza, 198, p. 28).

A conclusão, a partir destes dados, é que o tema da repetição tornou-se um dos maiores fantasmas da humanidade, trabalhado por várias teorias com destaque para a Filosofia, a Psicologia e a Psicanálise; sendo esta última o enfoque deste trabalho.

O estudioso da teoria psicanalítica Garcia-Roza (1986), ao citar as contribuições de Hegel sobre este tema, pontua que o filósofo coloca a verdade nunca como um dado, mas sim, o resultado de um processo que produz esta verdade e a revela. A verdade não possui outro caminho, senão aquele que é provocado por uma experiência que é compreendida na consciência. A verdade só será válida se for considerada como totalidade. E esta totalidade citada por Hegel obedecia ao modelo grego.

Já na obra de Kierkegaard, o conceito de repetição aproximava-se com aquele elaborado na Psicanálise por Freud, na medida que apresentava esta repetição como não sendo uma reminiscência, uma repetição reprodutiva. Há, nesta visão, o questionamento que: "se uma coisa ao ser repetida, se ganha ou se perde?" O ganho aconteceria se houvesse uma fuga à repetição. Kierkegaard, anti-Hegel, aborda a repetição uma concepção mais cristã e não grega. Garcia-Roza (1986) afirma que:

Não se trata de afirmar uma eterna repetição do mesmo, mais de mostrar que o eterno retorno de que nos falam os gregos aponta para o que podemos chamar de repetição diferencial. Os acontecimentos, quando repetidos, já não são os mesmos. A própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição dos sentidos. (Garcia-Rosa, 1986, p. 31)

A visão de Nietzsche foi onde mais se trabalhou a repetição como sendo uma repetição diferencial. O acaso tem a conotação nietzscheniana de tragédia, é a afirmação do acaso. E este trágico implica na repetição da qual o homem não é culpado, não carece de nada e não é definido pela falta.

Autores como Hegel, Kierkegaard e Nietzsche tiveram trabalhos consideráveis a respeito do tema da repetição, cada um com sua relevância. Mas o papel de Freud neste tema vem deflagrar uma visão nunca antes trabalhada. Pelo menos de forma tão contundente.

Freud, tratando do caso de Dora - mais precisamente na época em que publicava a Interpretação dos Sonhos (1900)-, estava com o foco voltado para a recordação dos acontecimentos passados da paciente. Com o abandono desta paciente, após três meses de análise, por repetir com ele uma situação que havia vivido com o Sr. K, Freud pontua o conceito de repetição (Wiederholen, que na etimologia do alemão para o latim, significa "novo pedir", ou seja, "pedir novamente") constituindo um dos pilares da Psicanálise e de suas técnicas. O tema pode ser entendido pela seguinte citação no texto freudiano de 1914, Recordar, Repetir e Elaborar:

(... ) a fim de salientar a diferença, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação, atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber o que está repetindo. (Freud, 1914/1974a, p. 165)

Torna-se muito comum então, nos consultórios dos analistas, os discursos: "não acontece nada de novo na minha vida", "foi Deus que quis assim", "isso foi obra do acaso"; justamente pela repetição.

Por exemplo, o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico. Não recorda de como chegou a um impotente e desesperado impasse em suas pesquisas sexuais infantis; mas produz uma massa de sonhos e associações confusas, queixa-se de que não consegue ter sucesso em nada e assevera estar fadado a nunca levar a cabo o que empreende. Não se recorda de ter-se envergonhado intensamente de certas atividades sexuais e de ter tido medo de elas serem descobertas; mas demonstra achar-se envergonhado do tratamento que agora empreendeu e tenta escondê-lo de todos. E assim por diante. (Freud, 1914/1974a, p. 165 - 166)

Toda esta repetição vem de algo primário diferente do que foi tratado no início do Caos na Mitologia Grega: o primário agora se refere a algo do sujeito que faz valer o recalque originário, ou seja, o desejo.

O que se repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao ser capturado nestas repetições, toma o lugar da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência. (Garcia-Roza, 1986, p. 23)

Denota-se com isso a transferência como sendo um fragmento da repetição. Numa entrada em análise, o sujeito possui o desejo de enamorar-se, ou seja, supõe-se que o analista irá entendê-lo e curá-lo, causando admiração e a contemplação. O analista utilizando-se de seu manejo começa a tratar este enamoramento, não se colocando como desejo do sujeito. Ele introduz o desejo, criando a resistência; podendo-se ainda dizer que o analista não responde à repetição que o sujeito lhe confere. Por este motivo, o conceito de transferência é completamente diferente do conceito de repetição.

(...) a transferência se torna hostil ou excessivamente intensa e, portanto, precisando de repressão, o recordar imediatamente abre o caminho à atuação (acting out). Daí, por diante, as resistências determinam a seqüência do material que deve ser repetido. O paciente retira do arsenal do passado as armas com que se defende contra o progresso do tratamento - armas que lhe temos de arrancar, uma por uma. (Freud, 1914/1974a, p. 167)

Podemos ainda afirmar que a repetição é o próprio inconsciente e se dá antes da transferência. Ela é da ordem do real, do ato (acting out) e possui uma inscrição simbólica. Então, o sujeito neurótico, na esperança de repetir o maior e melhor prazer que teve e está recalcado (a primeira mamada na mãe ou naquela que assume a figura), tenta repeti-lo em todas as situações no decorrer de sua vida. Como vimos, na etimologia da palavra, que repetição significa um novo pedir, conclui-se que ela não existe, o sujeito neurótico pensa que todas as situações diferentes se apresentam como iguais.

Neste sentido, a análise teria como objetivo a perlaboração (agir, labor para concluir), em fazer com que o sujeito, a partir do tratamento do desejo pela linguagem, através das associações livres e do manejo da transferência, viesse, a saber, de seu desejo, destituindo o analista da posição de objeto de amor, racionalizando seu inconsciente.

A partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos familiares até o despertar das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada. (Freud, 1914/1974a, p. 170)

Em uma forma rudimentar de resumir, pode-se dizer que o sujeito, a partir do sucesso de sua análise, deixa de repetir os acontecimentos de sua vida como profanos; mas, vendo-os, agora, identificados com o seu desejo.

Esta elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquer tipo de tratamento por sugestão. (Freud, 1914/1974a, p. 171)

Algumas outras teorias e grandes romances literários apontam o amor como solução para o sofrimento do sujeito. Este amor não cura, porque o sujeito já o teve e adoece por ele criando o recalque originário. Então, na tentativa de cura proposta, o sujeito ama repetindo este amor primórdio, tendo como grande mecanismo de repetição, a pulsão. "O amor não nos retira da roda do tempo para nos remeter a um lugar nirvânico de plenitude e gozo, ele nos mantém no interminável das repetições". (Garcia-Roza, 1990: 9)

Este conceito de repetição foi retomado por Freud no artigo O Estranho, de 1919, e em Além do Princípio do Prazer, de 1920.

É a repetição que vai servir de fundamento para explicação da pulsão de morte, algo mais primitivo, mais elementar e pulsional que o princípio do prazer e que se expressa pela compulsão à repetição. A repetição é característica própria da pulsão. (Garcia-Roza, 1986, p. 25)

Lacan, no seu Seminário de 1964, aborda o tema da repetição afirmando que, na medida em que se forma um pensamento adequado, este deve ter como objetivo evitar reencontrar tudo como se fosse a mesma coisa. Ele pontua que toda teoria da repetição, na obra de Freud, diz respeito ao encontro do pensamento com o real e explica que repetir não é reproduzir. "A repetição aparece primeiro numa forma que não é clara, que não é espontânea, como uma reprodução, ou uma presentificação, em ato" (Lacan, 1964, p. 52).

Além dessa diferença, Lacan (1964) também cita que a repetição não pode ser confundida com o retorno dos signos, como uma reprodução ou um modo de conduta ou rememoração.

A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado na análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas. Ora, é mesmo este o ponto a que se deve dar distinção(...) o que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz - a expressão nos diz bastante sua relação com a tiquê - como por acaso. (Lacan, 1964, p. 56)

Observa-se que esta repetição, trazida desta forma pela Psicanálise, muitas vezes possui um disfarce que se utiliza de máscaras. Garcia-Roza (1986) aponta para uma repetição que é interminável e grande aliada ao conceito freudiano de pulsão de morte; o sexual é o que se repete.

Como vivemos mergulhados num mundo social, cercado de regras das quais nenhuma privilegia o desejo, a saída para a repetição é utilizar-se de máscaras.

A sexualidade humana é, essencialmente, disfarce. Isto quer dizer que a repetição não é representação, a máscara não representa um objeto, ela significa algo... a repetição em sua essência é de natureza simbólica. (Garcia-Roza, 1986, p. 51)

Mundo social... A moda nos dias atuais, depois de todo o avanço cultural-tecnológico, é seguir modelos mais do que nunca. Então, a Psicanálise, décadas atrás, já afirmava que as pessoas repetem, mas não sabem que estão repetindo. Nenhuma outra afirmação é melhor do que esta para o que está acontecendo hoje.

Andamos pelas ruas e vemos todos usando praticamente as mesmas roupas, falando as mesmas gírias (de preferência, aquelas da última novela das oito) e o que é "diferente" é totalmente isolado e repulsivo. Não há espaço para o desejo, o grande negócio é repetir. É evidente: quem está disposto a se haver com seu desejo, num processo que angustia e tem seus efeitos reconhecidos em longo prazo? Como se faz isto em nossa cultura imediatista, egoísta e alienante?

Não cabe neste espaço discutir qual o melhor caminho, mas, é importante salientar que o sujeito só poderá viver a partir de seu desejo, mesmo este sendo satisfeito apenas com a morte. E viver este desejo só será possível ao sujeito, se não houver mais a repetição. Se a repetição não parece dessa forma explícita, ela, portanto, está naqueles discursos que desqualificam o desejo já citados anteriormente: o destino, o acaso, Deus, sorte, mal-olhado, dentre outros. Mais adiante, discutiremos especificamente o que a Psicanálise pode fornecer a estas repetitivas histórias da modernidade, além do que ela pode proporcionar para estas pessoas que estão "cegas" e apenas repetem.

A seguir, trataremos da obra de José Saramago O Conto da Ilha Desconhecida (1998), numa forma de resenha e alguns aspectos de junção entre esta obra e a repetição tratada na Psicanálise.

 

A ilha desconhecida ou a ilha do desejo

Até este ponto, abordamos o tema da repetição naquilo que envolve a Psicanálise. Foi feito um percurso histórico a respeito do tema, inclusive no que tange a outras ciências e à Filosofia.

O objetivo desta parte é realizar um estudo sobre a obra de José Saramago chamada O Conto da Ilha Desconhecida, de 1998. Uma obra riquíssima que nos remete aos períodos de colonização portuguesa, da monarquia, da tirania que literalmente reinava naqueles tempos. Denota também um estado de alienação de uma sociedade frente ao diferenciado, que neste caso é a ilha e o desejo de um homem de chegar nela sendo tratado com repugnação e descaso.

O livro se inicia com um homem procurando o palácio do rei e lá faz o seu pedido, à porta deste local. Portas que, no reinado eram muitas, mas, com a insistência deste bater é que o pedido fazia seu percurso: o 1º Secretário ouvia o barulho causado pela aldabra de bronze e chama o 2º Secretário. Este chama o 3º que se põe a solicitar o 1º Ajudante. Daí para o 2º... até chegar à mulher da limpeza. Foi assim que aconteceu com o homem que batia à porta.

Indagado sobre o que queria, o homem logo respondeu que queria falar com o rei e instalou-se no canto da porta, à espera. A mulher da limpeza começou todo o caminho inverso da petição, mesmo tendo alertado ao homem que o rei não poderia vir. Como o homem já demonstrava sinais de que só iria sair daquele local quando fosse atendido, a solicitação retornou ao 1º Secretário.

Pela pragmática dessas portas, o rei jamais iria se expor a um pedido de uma pessoa que iria lhe trazer lamúrias e fazer perder o precioso tempo real, que era destinado ao descanso e à contemplação dos obséquios. Passam-se três dias e o rei, já preocupado com o mal-estar social causado pelos curiosos que ali estavam, resolve atender o homem.

E o rei reapareceu à porta numa situação que nunca ocorrera antes, causando um espanto geral ou surpresa desmedida, como o autor utiliza. O rei mandou abrir toda a porta, a mesma que parecia intransponível. O homem não se surpreendeu com a presença do rei como se tivesse certeza de que seria atendido. O rei, curioso e perturbado com a situação, foi logo se dirigindo ao homem, fazendo-lhe três perguntas seguidas e ferrenhas: "Que é que queres? Por que não disseste logo o que querias? Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer?" (Saramago, 1998, p. 15) O homem respondeu só à primeira, dizendo que queria um barco. O rei estava, a partir deste momento, assombrado com aquilo que ouvira. Não que fosse um pedido impossível, mas por tal audácia e convicção com que foi respondido. Fica evidente então que o rei perguntaria o motivo de tal atitude.

O homem disse ao rei que queria um barco para ir à ilha desconhecida. O rei segurando o riso e imaginando que estava diante de uma pessoa com perturbações mentais, já retrucou afirmando, com uma certeza cristalizada, que não havia mais ilhas desconhecidas.

(...) Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas? Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é esta que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então, não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe? Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida. (Saramago, 1998, p. 17)

Uma discussão prolongada se inicia a partir deste momento com o homem: quem é o rei, o que é o rei com seus barcos e o que são os barcos sem o rei? A discussão é interrompida quando o homem reafirma que quer apenas o barco, nada mais que isso. É reiniciada quando há a indagação de quem seria o dono da ilha, caso o homem a descobrisse. E ele afirma ao rei que só são deles as ilhas que estão nos mapas.

Preocupado com a ansiedade que a história estava causando nas pessoas pedintes que se aglomeraram e manifestavam em favor do homem, o rei decreta que o homem iria receber seu barco, diante da confusão estabelecida. O rei afirma que dará o barco, deixando sob sua responsabilidade a tripulação. O monarquista deu ao homem um cartão assinado em que deveria entregá-lo ao responsável pelas embarcações nas docas. Ele pôs-se a agradecer ao rei e imediatamente retirou-se das escadarias, dando espaço aos outros pedintes.

A aldabra de bronze da porta bateu novamente assim que se fechou, só que, desta vez, a mulher da limpeza não apareceu para atendê-la. Tinha saído atrás do homem, decidindo abrir mão de seu trabalho no palácio, seduzida por esta tal ilha desconhecida. O homem que estava a demonstrar sua preocupação com a tripulação, mal sabia que já tinha, no seu encalço, a mulher da limpeza.

(...) O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais que ver, é tudo igual. (Saramago, 1998, p. 24)

Chegando ao porto, o homem entrega ao capitão o cartão dado pelo rei que trazia a solicitação de dar um barco que navegue bem e seja seguro. O capitão pergunta a ele se sabia navegar, sendo respondido que o que haveria de ser aprendido seria no mar. Foi desaconselhado pelo capitão, que passava a indagar o motivo de tal solicitação do homem. Motivo respondido, mesmo questionamento: não existem ilhas desconhecidas.

Nesta passagem, o homem retorna o questionamento ao capitão, dizendo que se admirava de um capitão fazer tal afirmação sendo que esta seria a função dele, ou seja, ele é que devia procurar ilhas. O capitão escolheu então o barco que levaria o homem à ilha desconhecida. O fato curioso que acontece nesta passagem é a euforia da mulher da limpeza, que gritou que era o seu barco quando o capitão o designou. Era justamente o barco de que ela mais havia gostado, espontaneamente.

O homem, diante de tal fato pôs-se a recordar que era aquela mulher da limpeza do palácio do rei que reivindicava o direito de ir com ele até a ilha desconhecida. Observando e confirmando a decisão que a mulher havia tomado, solicitou-lhe que examinasse aquela espécie de caravela que lhe fora concedida. Entregue a chave do barco pelo capitão, a mulher da limpeza responsabilizou-se pelas primeiras tarefas. E o homem partiu em busca de sua tripulação.

A mulher da limpeza então foi começar a preparação daquilo que seria o transporte para a ilha desconhecida. Tirou os ninhos de gaivota que se encontravam no barco (o que gerou uma intensa batalha com as gaivotas), abriu o paiol das velas e começou a costurá-las e preocupou-se com o que iria servir ao homem, quando ele voltasse de sua busca pela tripulação.

Mais tarde, o homem apareceu no extremo do cais carregando um embrulho, cabisbaixo e sozinho. O embrulho era a comida para os dois e dizia que não conseguiu trazer ninguém para ir com eles à ilha desconhecida.

(...) Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há mais ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego de seus lares para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso (... ) (Saramago, 1998, p. 39)

O homem se recusava a falar com as pessoas sobre uma ilha que nem ele conhecia, mas tinha certeza de que ela existia, tanto quanto a certeza de que o mar é tenebroso. Ele inclusive rejeita a opção oferecida pela mulher da limpeza de morar ali, afirmando que teria que chegar à ilha desconhecida. "(...) Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa" (Saramago, 1998, p. 41).

Passado este diálogo, o homem volta seus olhos para a embarcação que acabara de conseguir. Ela estava arrumada pela mulher da limpeza, que inclusive indicou alguns detalhes que ainda precisavam ser acertados, no que tange ao aspecto físico e prático da caravela (barco). O homem admirado olha, repara e diz que é bonita; mas que, se não conseguisse arrumar tripulantes, teria que devolvê-la ao rei. Imediatamente é retrucado pela mulher que propõe um tempo para esta tentativa. Concretizada ou não, eles decidiram que iriam se lançar em busca da ilha desconhecida. Apesar do risco, esqueceram o assunto e puseram-se a comer o que o homem havia trazido.

Pão, queijo duro e de cabra, azeitonas e uma garrafa de vinho. Esta era a refeição que seria feita sob a luz do luar, reluzente no mar. Durante este evento, repararam ainda mais na caravela que era dos dois, ou do homem apenas. E começaram a planejar quando e como sairiam para aquela que seria a mais incrível viagem de suas vidas.

De repente, a luz do luar refletiu diretamente no rosto da mulher (onde, no próprio texto, pela primeira vez a mulher da limpeza foi tratada como mulher). A beleza agora já não era mais da caravela. Acabou-se o jantar e veio o sono do dia estafante. Até amanhã, foi a despedida utilizada por ambos, inicialmente.

Mas a mulher voltou, pois esquecera de tirar o avental e de buscar velas para iluminar o local onde iria dormir, a poucos metros do homem. E foi ele quem acendeu a vela e novamente a luz foi ao encontro do belo rosto da mulher. O homem vê-se perturbado por um desejo comum aos homens quando estão sozinhos com uma mulher. Automaticamente os refutou, já que só tinha olhos para a ilha desconhecida. A despedida acontece mais uma vez: a mulher disse para ele dormir bem e ele desejou a ela bons sonhos. Imaginando sobre a situação e o seu desejo diante da mulher, foi-se o homem dormir e logo começou a sonhar.

O sonho basicamente era assim: este homem que pediu o barco ao rei agora estava no seu comando, em alto mar. Atrás do leme, deparou-se com a tripulação que foi buscar e que agora estava no barco, auxiliando-o. Via também vários animais, frutas e vegetais; um grupo de mulheres, as quais eram cortejadas pelos rapazes, faziam-se ali presentes também. Porém, o homem não via a mulher da limpeza. Pensou que ela não estaria lá pelo fato de apenas querer a ilha desconhecida.

Enfim, o homem mal acreditava naquilo que estava acontecendo, mas evidente, estava sonhando. Ele então a avista: é ela, a ilha desconhecida. Foi informado que aquela era uma ilha que constava no mapa e, pressionado pela tripulação, não teve outra alternativa a não ser desembarcar nas docas daquela ilha. Relutou em descer do barco, queria muito a ilha desconhecida. Depois de um tempo, desceu do barco e deparou-se com sua própria sombra. E acordou...

Acordou abraçado à mulher, confundidos os corpos e as beliches. O sol nasceu e os dois puseram-se a pintar na proa do barco o nome da caravela. "Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma" (Saramago, 1998, p. 62).

Esta foi uma resenha da bela obra de José Saramago. Rica e poderosa nas palavras, sábia e perspicaz de sentidos.

Diante desta obra e dos assuntos abordados, torna-se prudente uma junção, mesmo a Psicanálise e a Literatura sendo dois mundos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos. Vimos anteriormente, que é com o abandono da repetição que é possível se chegar ao desejo. Apenas com esse fragmento, a ilha desconhecida torna-se a ilha do desejo. O pedido do homem ao rei, descrito por Saramago, nada mais é do que um pedido para ir ao encontro do desejo, livre da repetição.

Mesmo ganhando o barco, o homem foi questionado várias vezes sobre o fato de não haver ilhas desconhecidas. Evidente, não existe um local onde não haja a repetição. Tudo que é repetido está catalogado no mapa, assim como as ilhas e os modelos gregos citados anteriormente. E também não há ninguém que queira ir à busca da ilha desconhecida (ilha do desejo). Para que sair da terra firme, da terra das repetições, para lançar-se numa aventura que ninguém sabia se existia? Mas o homem desafiou tudo isso, pois sabia do seu desejo e lutou mesmo diante das adversidades que teve; como a de não ter esta tripulação, contar com um barco velho que mais parecia uma caravela e com a descrença de todos a não ser da mulher da limpeza.

O motivo pelo qual a mulher da limpeza seguiu o homem pode ser designado por uma tentativa de não repetir, descrita na obra. A busca da ilha desconhecida, era algo de novo para ela. E o desejo aí foi mais forte.

Desiludido ficou o homem, pois não arrumou tripulação. O questionamento surge outra vez: quem é capaz de "pagar o preço" por deixar de repetir e, com isso, ir em busca do desejo? Naquela situação e na de todos nós, atualmente são poucos. Porém, isso não foi suficiente para desviá-lo do seu objetivo.

Durante a obra, percebemos que, na busca de ir à ilha desconhecida, o homem chegou à realização de um desejo. Primeiro sonhou. Para a Psicanálise são nos sonhos que o desejo é satisfeito. E ele foi mesmo: não o de chegar à ilha desconhecida, mas o de buscar si mesmo. Numa forma mais clara de abordar isso, podemos dizer que o desejo do homem era a ilha desconhecida, mas ele foi realizado quando viu sua própria sombra no sonho.

Com isso, ele acordou e se viu agarrado à mulher ao amanhecer. Juntos, eles dão nome ao barco de Ilha Desconhecida e lançam-se ao mar. Era a Ilha Desconhecida em busca de si mesma. Conclui-se nesta passagem que o desejo nunca é satisfeito, mas, apenas pelo fato de sabermos dele, porque não repetimos mais e, além disso, de movimentar-se em busca desta satisfação; realizamos vários desejos nestas veredas.

O próprio livro deixa nas entrelinhas este questionamento. Nele, não há informações de que eles chegaram ou chegarão à ilha desconhecida. Mas foram em busca dela, ou seja, em busca de si mesmos. Isto se deve porque ambos não quiseram mais repetir, queriam algo realmente novo. Sabiam das dificuldades, mas também do mais importante: sabiam dos seus desejos.

Se existem ou não ilhas desconhecidas, no percurso é que se dá nossa vida. Basta a resolução de que podemos ir ou ficar e repetir. Não existe o que é melhor ou pior, o que é certo ou errado; existe o saber sobre o desejo e o não saber do desejo. Daí cabe a cada um diante do sofrimento psíquico, das neuroses e dos sintomas num processo analítico, vir a trabalhar seu desejo e aí sim buscá-lo. Nesta busca, se dá a vida do sujeito.

Faremos, agora, as considerações finais a respeito deste artigo, relacionando a obra de José Saramago e os conceitos psicanalíticos aqui estudados.

 

Considerações finais

Todos nós vivemos em uma ilha bastante conhecida até em seus mínimos detalhes. Somos criados para sermos educados, gentis, éticos, desde quando estávamos na nossa formação familiar (lei). Estamos todos em um mesmo barco, em busca da felicidade. Percebemos aí um discurso, no mínimo, utópico.

A vida de uma pessoa adulta normal (neurótica), em sua grande maioria é mais ou menos assim: procura-se uma formação profissional, começa-se a trabalhar, casa-se, procria-se, envelhece-se e morre-se. Parece ruim, mas tem o lado bom da história: os domingos são com os olhos colados nas últimas da televisão, de vez em quando um "jantarzinho" fora com o companheiro (a), existem as viagens com a família nas férias, uma ou duas vezes por semana "fazer um amor", uma vez por mês também tem um cinema ou um teatro para ir, um carro, uma casa, um apartamento na praia (para poucos) e um salário no final do mês, que é fruto do trabalho.

Para algumas pessoas, isso está bom demais, não há a necessidade de mais nada. Para quê? E se der algo errado na busca desse ícone de felicidade alienante e repetitivo, as desculpas já estão prontas: "foi Deus que quis assim", "foi um azar danado", "pode ter sido um mal-olhado", "faltou sorte para mim", dentre outras. Além de não irmos ao encontro das ilhas desconhecidas, ou seja, ao encontro de nossos desejos; ainda atribuímos às coisas que estão além da ciência e de qualquer ser humano, o sentido para aquilo que está ocorrendo em nossas vidas, ou seja, atribuímos sentido para o mal-estar da civilização.

O problema é que isso chegou ao extremo em nossa sociedade. E parece que algumas pessoas estão deixando de ser cegas para abrir os olhos para o desejo. O próprio Saramago já afirma em uma outra obra, Ensaio sobre a Cegueira (1995), que a maré branca se espalha apenas com o contato. Começamos a imaginar uma sociedade caótica e massacrante.

Mas esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece, que não poderá durar para sempre, E se fôssemos ficar assim para o resto da vida, Nós, Toda a gente, Seria horrível, um mundo todo de cegos, Não quero nem imaginar. (Saramago, 1995, p. 59)

A religião surge como um dos grandes artifícios para nos afastarmos da idéia de saber de nossos desejos, por justamente pregar um discurso comum e de massa. E em qualquer uma existe um ideal de felicidade, paz e purificação.

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualdade, a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. (Freud, 1929/1974b, p. 104)

Não queremos aplicar neste trabalho uma leitura atéia. Apenas ressaltar que a partir dos lançamentos ao mar em busca das ilhas desconhecidas, ou seja, com o saber dos nossos desejos, ficamos distantes de atribuir a fatores que fogem à realidade do sujeito a responsabilidade do que ocorre no cotidiano disto a que damos o nome de vida. É evidente que é dado a cada um de nós a liberdade para escolher uma religiosidade ou uma crença.

Deus é uma conjectura; mas eu quero que a vossa conjectura se circunscreva ao imaginável. Poderíeis imaginar um Deus? Signifique para vós a vontade de verdade; que tudo se transforme no que o homem pode pensar; ver e sentir! Deveis cuidar até o último os vossos próprios sentidos! E o que chamáveis mundo deve ser criado já por vós; a vossa razão, a vossa imagem, a vossa vontade, o vosso amor devem tornar-se o vosso próprio mundo. E, verdadeiramente, será para ventura vossa! (Nietzsche, 2002, p. 75)

Esta vontade de verdade, o próprio amor e o próprio mundo trazidos aqui por Nietzsche dizem única e exclusivamente ao desejo. E para se chegar ao desejo, é preciso que o sujeito venha redirecioná-lo em sua vida, processo que realmente causa angústia, faz sofrer; mas é o caminho mais próximo da verdade desse sujeito. Como a idéia de ir a uma ilha desconhecida.

Ele se apresenta dessa forma, pois remete ao terror da castração, às vicissitudes da pulsão. A repetição não atua dessa forma: ela apenas tenta reinscrever um tipo de prazer primário (pulsão sexual) nas ações que tomamos, por meio dos signos.

O que sem dúvida é marcado pela repetição é Eros, a pulsão sexual. Assim, como nosso primeiro encontro amoroso é já uma repetição, repetição de encontros que não foram vividos por nós, os demais encontros também são repetições. O sexual é o que se repete, nos diz Freud. (Garcia-Roza, 1986, p. 51)

E a oferta oferecida pela Psicanálise não dá a garantia de satisfação total dos desejos livres da repetição. O trabalho consiste em elucidar este desejo, sublimando estas repetições e decantando o material do inconsciente. Não há como nos livrarmos deste, ou seja, sempre vamos produzir sintomas e outros mecanismos de manifestações do inconsciente. Sempre vamos sofrer em determinadas situações, vamos "travar" em alguns lugares desconhecidos.

A Psicanálise aplicada em seu manejo transferencial (citada na 2ª parte), propicia ao sujeito que ele mesmo venha a se encontrar com seu desejo, tirando-o do contexto interminável das repetições. Esta é a tentativa de todo o trabalho proposto por Freud e que ele mesmo realizou.

Em sua obra, quantas vezes nos deparamos com suas mudanças de paradigmas (1ª e 2ª tópicas, interrupção do tratamento via sonho, implementação da associação livre, construção de novas hipóteses). Mesmo assim, a Psicanálise continuou surtindo efeito.

Até mesmo na vida pessoal de Freud, é difícil imaginarmos uma pessoa que teve um câncer diagnosticado em 1923 e ainda ter vivido 16 (dezesseis) anos após esse fato, terminando de escrever sua brilhante obra científica, naquela época. Isso nos leva a crer que aquele que mais escreveu sobre repetição, pouco repetia.

Este foi o propósito deste trabalho. Apenas fazer um alerta a alguns fatores cotidianos caracterizados na Psicanálise e na obra literária aqui trabalhada. De maneira alguma, levantamos soluções mágicas diante da repetição em massa de nossa sociedade contemporânea.

Gostaria de ressaltar, finalmente, que aquilo que o sujeito faz de sua vida está diretamente ligado ao quanto ele repete e ao quanto ele sabe do seu desejo. Cabe a cada um buscar esta sabedoria e lançar-se prontamente em busca da ilha desconhecida - ilha do desejo - em busca de si mesmo.

Sim, homem sublime: um dia serás belo e apresentarás ao espelho tua própria beleza. Então estremecerá tua alma com desejos divinos, e na tua vaidade haverá adoração! Porque eis aqui o segredo de tua alma: quando o herói a abandona, então que se aproxima em sonhos o super-herói. (Nietzsche, 2002, p. 99)

 

Referências

Commelin, P. (1983). Nova mitologia grega e romana. Belo Horizonte, MG: Itatiaia.         [ Links ]

Freud, S. (1974a). Recordar, repetir e elaborar (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1974b). O futuro de uma ilusão e o mal estar da civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1929).         [ Links ]

Freud, S. (1974c). A cabeça de medusa (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1924).         [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (1990). Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (1999). Acaso e repetição em psicanálise: Uma introdução à teoria das pulsões ( 6a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1990). O seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (4a ed.) Rio de Janeiro: Zahar .         [ Links ]

Nietzsche, F. (2001). Ecce homo. São Paulo: Martin Claret.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2002). Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret.         [ Links ]

Saramago, J. (1995). Ensaio sobre a cegueira (4a ed.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Saramago, J. (1998). O conto da ilha desconhecida (11a ed). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Recebido em 22 de setembro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

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