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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.3 no.2 Fortaleza Sept. 2003

 

ARTIGOS

 

Subjetividade, gênero e poder: a expressão cultural da emoção na integração médico-paciente

 

 

Maria das Graças de Santana Salgado

Doutora em Letras (PUC- RJ). Mestra em Lingüística - (UFRJ). Especialização em Língua Inglesa (PUC-RJ). End.: R. Viúva Lacerda 300/601 - Humaitá. CEP: 22261-050 Rio de Janeiro - RJ. e-mail: g.salgado@uol.com.br

 

 


RESUMO

Entendendo que, quando em situação de sofrimento, o discurso do paciente sobre o médico oscila entre a submissão completa e a formulação de queixas, este trabalho desenvolve uma análise qualitativa do discurso da emoção do cliente através de cartas de reclamação contra médicos conveniados de um seguro de saúde, observando gênero e poder como aspectos relevantes da interação. A orientação teórica baseia-se na noção de emoção um construto cultural e uma prática discursiva, na noção de face (Goffman, 1967; Brown & Levinson, 1978/2001) e no modelo sugerido por Schimanoff (1987) acerca de emoções que honram e/ou ameaçam a face dos participantes. Resultados parciais indicam que, neste contexto, pacientes destratados elaboram o discurso emocional atribuindo graus diferenciados de responsabilidade ao médico e à empresa. Semelhanças e diferenças de estratégias discursivas adotadas representam atos explícitos de ameaça a face do médico e relativo alinhamento com a empresa.

Palavras-chave: emoção, gênero, poder, face, discurso.


ABSTRACT

Assuming that, when in situation of suffering, the patient discourse about doctors oscillates between total subservience on one hand, and the formulation of complaints on the other hand, this work analyses the client emotion discourse through letters of complaints against doctors contracted by a health insurance plan observing the notions of power and gender as relevant aspects of doctor-patient interaction. It uses the notion of emotion as a cultural construct and a discursive practice, the concept of face (Goffman, 1967; Brown & Levinson, 1978/2001) and the theoretical framework suggested by Schimanoff (1987) regarding emotions that save or threaten participants face needs. Results suggest that mistreated patients express an emotion discourse that ascribes different levels of responsibility to the doctor and to the company. Differences and similarities in discursive strategies adopted represent explicit face threat acts to the doctor and relative alignment with the company.

Key-words: emotion, gender, power, face, discourse.


 

 

Introdução

A inacessibilidade do profissional de saúde tem sido apontada pela literatura como uma das principais características da interação médico-paciente. Conforme essa linha teórica, trata-se de uma relação de serviço fundamentalmente baseada na distância social que separa os participantes, devido ao grau de dependência do doente em relação ao médico, pois a este confia sua saúde. Assim, para o paciente, não é simples falar sobre médicos, fazendo com que o discurso sobre esses profissionais oscile entre a submissão completa do sujeito ao médico e as queixas que tem a seu respeito (Boltanki, 1979).

Neste trabalho, desenvolvemos uma análise qualitativa da expressão da emoção do cliente em cartas de reclamação contra médicos, dirigidas a uma empresa de seguro de saúde. Na fundamentação teórica, trabalhamos com a noção de emoção como um construto cultural e uma prática discursiva construída na interação, associada aos papéis de gênero, às relações de poder e aos trabalhos de face. Na análise, tentamos adaptar o modelo teórico sugerido por Schimanoff (1987) acerca de emoções que honram e/ou ameaçam a face dos participantes.

Para os limites deste artigo, selecionamos para análise duas cartas, uma escrita por um homem e outra por uma mulher. Destratados pelo médico, dirigem-se ao plano de saúde para expressar o sofrimento através de um discurso emocional que atribui graus diferenciados de responsabilidade ao médico e à empresa. Semelhanças e diferenças de estratégias discursivas adotadas representam atos explícitos de ameaça à face do médico e relativo alinhamento com a empresa. As cartas foram reproduzidas na íntegra. Portanto, desvios da língua culta padrão e erros gramaticais contidos nas cartas foram mantidos para não comprometer a integridade dos dados.

 

Bases Teóricas

Emoção

Tradicionalmente considerada um assunto de domínio das ciências psicológicas, a emoção como objeto de investigação científica tem chamado a atenção de pesquisadores de outras áreas, caracterizando-se como um tema essencialmente interdisciplinar. Talvez por isso não tenham faltado historiadores (Delumeau, 1989) e antropólogos dedicados a uma análise do fenômeno sob diferentes perspectivas, como a visão essencialista (Lindholm 1982; Scheper-Huges 1990), e a relativista (Myers 1979; Rosaldo, 1984), até a contextualista (Abu-Lughod & Lutz, 1990), para citar apenas algumas.

Na área dos estudos lingüísticos, a emoção, ou como preferem, às vezes, alguns lingüistas (Ochs & Schieffelin, 1989; Güthner, 1997), o afeto, também não é um interesse acadêmico recente. Os membros do Círculo Lingüístico de Praga, tendo Jakobson (1960) como principal porta-voz, já chamavam a atenção para a função expressiva ou emotiva da linguagem como uma das funções primordiais, por objetivar a expressão direta da atitude do falante em direção ao ouvinte. Ainda assim, os próprios lingüistas queixam-se de certa negligência ou preconceito com relação a esta área da linguagem. Günthner (1997), por exemplo, menciona que "as análises lingüísticas do significado têm, até o momento, privilegiado o significado referencial e tratado os aspectos emotivos da linguagem como efeitos colaterais incômodos" (Günthner, 1997, p.246). Para ela (Günthner, 1997), o receio em se estudar a relação entre emoção e linguagem se deve, especialmente, à difundida dicotomia, estabelecida pela lingüística, entre a emoção como um fenômeno idiossincrático, subjetivo e irracional e a emoção como um fenômeno da cognição, cujos estudos remetem a estruturas governadas por regras.

Emoção como construto Cultural e como Prática Discursiva

Progressivamente distanciada da esfera do individual e do essencialismo, a emoção tem sido representada como um construto cultural e discursivo. De acordo com a perspectiva discursiva, o conceito naturalizado de emoção deve ser desconstruído em função de uma percepção do fenômeno como prática social. Segundo Abu-Lughod e Lutz (1990), essa perspectiva distancia-se da tendência comparativa antropológica baseada numa ampla estrutura histórica do problema, comprometendo-se mais com uma análise cuidadosa da riqueza que se pode encontrar em situações sociais específicas. Inspiradas nas idéias do sócio-lingüista Gumperz (1982), essas autoras entendem emoção como prática social que pode ser vista na interação, já que a simples produção de sentenças ou frases não constitui, por si só, comunicação. Para que isso aconteça, é necessário que uma resposta do interlocutor seja provocada. A ênfase no discurso propicia uma visão mais complexa dos múltiplos e mutáveis significados das trocas e enunciados emocionais, afastando a possibilidade de um conceito monolítico de emoção. E mais, permite reflexões valiosas sobre emoção como algo delimitado por valores culturais e como um operador da atividade social, um idioma para comunicar não apenas sentimentos, mas diferentes questões, tais como conflitos sociais, papéis de gênero e relações de poder.

Gênero

Mencionando a importância de se estudar o discurso emocional para múltiplos significados, intenções e efeitos, Abu-Lughod & Lutz (1990) afirmam que gênero é um construto social culturalmente delimitado, que faz homens e mulheres adotarem comportamentos comunicativos próprios para a expressão da emoção. Um importante aspecto dessa categoria é sua associação com a noção de feminino, de modo que aquilo que define o emocional possa definir também a mulher. Nessa perspectiva, "qualquer discurso sobre emoção é também, mesmo que implicitamente, um discurso sobre a identidade de gênero" (Lutz, 1990, p.69).

A abundante evidência de que a expressividade emocional tem sido mais associada à mulher do que ao homem vem sendo apontada por vários estudiosos. Conforme Lutz (1990), tanto o senso comum, como a literatura especializada, indicam que à mulher atribui-se mais emocionalidade e ao homem, mais racionalidade. Para ela, ao se identificar a emoção como caótica ou irracional e, subseqüentemente, rotular a mulher como o gênero mais emocional, essa crença cultural reforça a subordinação ideológica da mulher.

Do ponto de vista de uma possível tipologia de emoção associada ao gênero, espera-seque mulheres vivenciem um vasto leque de tipos de emoção, enquanto aos homens são atribuídos apenas alguns tipos de emoção, particularmente, a raiva e o ódio (Lutz 1990). Para Hochichild (1985), as emoções dos homens são vistas como mais importantes e mais explicáveis, uma vez que, na mulher, são vistas como uma característica, e no homem, como situacionais e, por isso, sensatas (Apud Lutz, 1990, p.73). Segundo Lutz (1990, p.74), essa crença tem base numa literatura clínica que reproduz um modelo cultural segundo o qual a mulher é mais emocional do que o homem porque é mais ligada aos processos biológicos que produzem emoção, uma vez que o útero, a menstruação e os hormônios prevêem o fenômeno da emoção em seu roteiro de funcionamento.

Também Lupton (1998), examinando a dicotomia existente entre emocional e racional na interface com a identidade de gênero, afirma que a expressão de determinadas emoções, como receio, sentimentalidade, vulnerabilidade, inveja e ciúme, tem sido mais comumente associada com a mulher. Já emoções como raiva, fúria, agressividade, têm sido mais associadas com o homem, visto que a crença na afirmação de que o sentimento de raiva numa mulher não é apropriado ainda é bastante difundida, tanto nas culturas do norte da Europa como nas de língua inglesa. Para ela, a habilidade do indivíduo em dominar seus desejos, praticando-os com moderação, é vista como uma realização ativa e masculina, na mesma medida em que a entrega ao desejo de forma descontrolada é vista como uma aquiescência passiva às paixões e como um traço feminino.

Soihet (2001), explorando uma perspectiva histórica dos papéis sociais atribuídos à mulher no Brasil, lembra que a filosofia ocidental do século XIX constatava nas mulheres uma inferioridade da razão, afirmando que elas só exercitavam a razão quando circunscrita ao cumprimento de suas obrigações mais básicas, como cuidar dos filhos e obedecer ao marido. Para a autora, esta perspectiva era referendada pela medicina, que conferia a essas idéias um respaldo científico baseado na fragilidade das características femininas por razões biológicas, com predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais.

Em paralelo, fala-se que o homem sofre as coerções relacionadas ao seu próprio gênero proibitivo, mostrando que a dicotomia entre racional e emocional traz problemas tanto para o homem como para a mulher (Johnson, 1995). Segundo Seidler (1989), um desses problemas reflete, por exemplo, a incapacidade do homem em expressar emoções com a mesma lucidez das mulheres, devido à pressão da sociedade patriarcal que exige deles mais racionalidade e menos emocionalidade, levando-os a ter dificuldades em se realizar como seres humanos de forma mais completa.

Emoção como prática construída na interação e associada aos trabalhos de face

Inicialmente estudada pela lingüística descritiva sob a ótica da gramaticalização, a emoção passa posteriormente a ser investigada pela pragmática discursiva sob a perspectiva da interação.

Quando os membros do Círculo Lingüístico de Praga apontaram a função expressiva ou emotiva da linguagem como uma de suas principais funções, tentavam deslocar o foco da lingüística no significado referencial por si, para o significado que levasse em conta a relação entre afeto e linguagem. Entretanto, tais estudos não se movimentaram para além da simples descrição do comportamento do falante, ignorando a possibilidade de perceber a linguagem como um fenômeno que se realiza na relação entre interlocutores. Voltada para uma gramaticalização da emoção, a lingüística descritiva desenvolveu várias pesquisas na tentativa de mostrar que as formas expressivas podiam ser exploradas nos vários níveis de descrição da linguagem: a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica (Günthner, 1997).

Posteriormente, uma mudança de paradigma é introduzida pela sócio-lingüística e, mais particularmente, pela pragmática discursiva, através do desenvolvimento de pesquisas em torno da relação entre linguagem e emoção ou manifestações lingüísticas do afeto, considerando os diferentes contextos de comunicação. Baseada no princípio da interação, essa mudança de foco em relação aos primeiros estudos sobre a função expressiva da linguagem coloca em destaque um elemento novo que é exatamente a propriedade, isto é, a adequação de determinados tipos de comportamento emocional.

Interessado no aspecto da interação, Burkit (1997) destaca a natureza relacional da emoção, fenômeno que, segundo o autor, só se concretiza inteiramente se concebido na interação com outros participantes e como resultado de relações anteriores. Como a interação não acontece num vácuo social, a experiência emocional apresenta-se sempre como resultado de relações anteriores e como uma atividade regulada e reguladora do comportamento social dos indivíduos. Mesmo que uma emoção seja vivenciada secretamente, por não ter sido expressa ao outro participante da interação, ela terá sido sempre resultado de uma experiência anterior necessariamente habitada ou influenciada por outros interlocutores. Nesse sentido, a emoção não tem nem origem nem fim no sujeito que a expressa ou a oculta, caracterizando-se como uma atividade fundamentalmente interacional.

Arndt e Janney (1985), considerando o aspecto da interação e da "propriedade" da linguagem, fazem uma distinção, baseada no modelo do filósofo da linguagem Marty (1908), entre comunicação emocional e comunicação emotiva, caracterizando a primeira como catártica e espontânea e, portanto, não planejada, e a segunda como planejada, pois se constitui em sinalização estratégica intencional da informação afetiva na fala e na escrita para influenciar a interpretação do interlocutor sobre situações e alcançar diferentes objetivos. Conforme essa perspectiva, a comunicação emotiva não tem relação direta com estados internos reais, e sim com a auto-apresentação e estratégia de persuasão, e está sempre levando em consideração a propriedade do comportamento emotivo.

Para as autoras, a abordagem do comportamento com base na "propriedade", ou seja, no uso de palavras certas nos contextos certos segundo regras convencionais de propriedade, está no cerne de uma visão de polidez que deve ser questionada. Para elas, a ênfase dada por algumas teorias às formas lingüísticas, convenções sociais ou variáveis situacionais levam-nas a negligenciar o falante e o ouvinte envolvidos na comunicação. Sugerindo uma abordagem interpessoal, destacam que as pessoas são o locus e o fator determinante da polidez.

Em outro trabalho, Caffi & Janney (1994), no âmbito de uma pragmática da comunicação emotiva, defendem a noção de comunicação dos afetos como um fenômeno relacionado com a auto-apresentação do sujeito caracterizado por um sentido estratégico, persuasivo e interacional e, portanto, interpessoal e social. Do mesmo modo, Günthner (1997), estudando técnicas de demonstração de afeto no discurso indireto, sugere uma abordagem interacional de emoção como forma de ação social em oposição à mera expressão de estados psicológicos individuais. Sendo uma forma de ação social, é planejada para influenciar os interlocutores, exigindo deles níveis diferenciados de gerenciamento das necessidades de face.

O termo face aqui tem origem no trabalho seminal de Goffman (1967) sobre os elementos rituais da interação social. Para o autor (Goffman 1967), todo indivíduo vive em um mundo de encontros sociais que promove contatos com outros participantes, contatos esses que exigem do indivíduo o acionamento de um alinhamento ou padrão verbal e não-verbal para expressar sua visão da situação, sua avaliação sobre os participantes e sua avaliação sobre si mesmo. Esse alinhamento permite que as pessoas passem uma impressão aos outros.

Definindo o termo face como "o valor social positivo que uma pessoa reclama para si através daquilo que os outros presumem ser o alinhamento por ela adotado durante um contato específico... uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados" (Goffman, 1967, p.77), Goffman afirma ainda que as regras do grupo e a definição da situação determinam quais os sentimentos ligados à face e como esses sentimentos devem ser distribuídos entre as faces envolvidas. Assim sendo, falar de emoção significa necessariamente falar de trabalhos de face.

Nessa linha, preocupados com a qualidade das relações sociais, e adotando a noção de face desenvolvida por Goffman (1967), Brown & Levinson (1978/2001) elaboraram a teoria da polidez em termos de duas grandes categorias de necessidades de face: polidez positiva, que corresponde ao desejo que todo interlocutor tem de ser apreciado e admirado; e polidez negativa, que corresponde ao desejo de todo indivíduo em não ter suas ações impedidas pelo outro. A polidez positiva possibilita a aproximação e solidariedade, e a negativa enfatiza a distância e diminui o peso da solidariedade. Para os autores, quase todas as ações, incluindo as elocuções, são potencialmente uma ameaça à face do outro.

Ao desenvolverem a teoria da polidez, Brown & Levinson (1978/2001) pretendiam, inicialmente, identificar universais da linguagem em uso relacionados com o fenômeno da polidez. Acreditavam que um dos problemas de qualquer grupo social era manter o controle de sua agressividade interna, bem como conter o potencial agressivo de relações competitivas com outros grupos. Nesse sentido, como foi sugerido por Goffman (1971), a importância social da polidez, deferência e tato, supera o nível dos manuais de etiqueta e boas maneiras, tendo importância para a própria condição social humana.

Inspirada no modelo de Brown & Levinson (1978/2001); e desenvolvendo uma tipologia para a expressão de emoção de acordo com as necessidades de face, Shimanoff (1987) afirma que a interpretação que os indivíduos fazem da interação humana pode ser fortemente influenciada pela expressão ou repressão das emoções. Expressar ou reprimir emoções agradáveis e desagradáveis não deve, segundo a autora, estar necessariamente associado a resultado positivo para as agradáveis e negativo para as desagradáveis. Ou seja, assim como a expressão de emoções agradáveis não implica resultados positivos, também a expressão de emoções consideradas desagradáveis não implica resultados negativos. Para ela, o julgamento social sobre a expressão de diferentes tipos de emoções depende menos de quão agradável ou desagradável seja a emoção expressa, e mais do grau em que a expressão da emoção honra ou ameaça a face dos interlocutores. Nesse sentido, ainda segundo Shimanoff (1989, p.159), torna-se fundamental compreender a noção de trabalhos de face definida como comportamentos que estabelecem, intensificam, ameaçam ou diminuem as identidades dos participantes da comunicação.

Para a autora (1987), como os indivíduos têm duas necessidades de face principais (ser aprovado e não ser impedido), a expressão de emoções é extremamente relevante para a necessidade de ser aprovado, uma vez que a expressão implica comunicar aprovação ou desaprovação. A partir desse entendimento, identificou quatro categorias de expressão emocional de acordo com o grau em que elas honram ou ameaçam as necessidades de face dos participantes da comunicação: expressão emocional que honra a face, que compensa a face, que neutraliza a face e que ameaça a face.

Esquematicamente, a autora sugere que a expressão de emoções agradáveis relacionadas ao ouvinte (como "Eu amo você") honra a face do ouvinte. Expressões de arrependimento por transgressão contra o ouvinte (como, "Sinto muito por tê-lo ofendido") compensam a face do ouvinte por oferecerem algum tipo de reparo à ameaça feita, ao mesmo tempo em que ameaçam a própria face do falante, na medida em que este reconhece uma ofensa feita por ele. Expressões de emoções agradáveis ou hostis dirigidas a terceiros ausentes ("Estou feliz por Pat estar administrando o projeto" ou "Estou com raiva de Chris") são neutras porque nem honram, nem ameaçam a face dos interlocutores da comunicação. Por outro lado, expressões de vulnerabilidade ou hostilidade dirigidas ao ouvinte ("Você me magoou" ou "Estou com raiva de você") ameaçam a face do ouvinte por implicar aprovação ou desaprovação para com ele. Também expressões de arrependimento por ofensa a terceiros ausentes ameaçam a face porque implicam um erro por parte do falante, que falha em oferecer compensação para o ouvinte ofendido, já que está ausente. Já o valor atribuído a emoções vulneráveis com relação a terceiros ausentes é menos claro, porque elas podem ser tanto neutralizadoras de face, uma vez que nem o falante nem o ouvinte são a causa da emoção, quanto ameaçadoras da face, caso revelem vulnerabilidade do falante.

Investigando pedidos sob a perspectiva da reciprocidade mútua no contexto da relação entre casais, as pesquisas de Schimanoff (1987) apontam que os indivíduos expressam mais emoções que honram, compensam e neutralizam a face do que emoções que ameaçam a face. A autora classifica as emoções envolvidas nesse tipo de interação em função de duas categorias: vulnerabilidade e hostilidade dirigida ao ouvinte. Inclui na categoria de vulnerabilidade as seguintes emoções: medo, ansiedade, constrangimento, frustração, sofrimento (dano/prejuízo), insegurança, nervosismo, mágoa, susto e preocupação. Na de hostilidade, sentimento provocado por ofensa, inclui raiva, descontentamento, irritação, fúria e ressentimento (1987, p.87). Conclui que os pedidos são realizados sem expressão de afeto (face neutra) ou com demonstração de afeto caracterizado como hostil e vulnerável, conforme exigido pela situação.

Esses estudos, portanto, mostram que a experiência discursiva da emoção é uma prática construída na interação que, por ter um valor positivo ou negativo, está estreitamente associada ao gerenciamento das necessidades de face.

Emoção como prática relacionada ao exercício do poder

Apresentando algumas alternativas críticas à teoria da polidez, Eelen (2001) diferencia a polidez de primeira ordem da polidez de segunda ordem. A primeira refere-se à noção de polidez do senso comum, e a segunda, ao conceito científico do fenômeno. Para ele, do ponto de vista do senso comum e do uso, a polidez tem sempre um fim ou objetivo social envolvendo situações onde se tem algo para ganhar ou perder, caracterizando-se como um fenômeno inerentemente argumentativo. Usado no sentido descritivo, o termo argumentativo, segundo o autor, envolve várias formas de envolvimento e de interesse. Nessa perspectiva, um ato ou idéia é considerado argumentativo se for trabalhado em direção a um efeito social ou a outros fins estratégicos como, por exemplo, a persuasão ao interlocutor, o controle do comportamento emotivo e das relações sociais.

Ainda segundo Eelen (2001), numa visão de polidez como prática social, o papel da argumentatividade tem estreita relação com o poder, já que o poder é também uma prática e, portanto, um ato praticado pelos indivíduos entre os indivíduos com determinados fins sociais. Por exemplo, um subordinado usa deferência para com um superior porque o superior está em condições de exigir dele um comportamento deferente.

Apesar de ainda associado a posições sociais específicas que transmitem poder aos seus ocupantes, um aspecto determinador do comportamento, o conceito de poder não é mais tratado como uma força externa objetiva, mas como um comportamento por si só. Por exemplo, ao usar formas de endereçamento deferencial com seus alunos, um professor estará certamente optando por um meio seguro de enquadrar a interação assimétrica professor-aluno, evitando ameaças a esse tipo de interação.

Simultaneamente, a literatura contemporânea em torno da noção de emoção enquanto variável social tem mostrado que a sociabilidade e as relações de poder são dois dos aspectos mais ligados ao discurso da emoção (Ochs & Schiefellin, 1989; Besnier, 1989; Irvin,e 1982; Abu-Lughod & Lutz, 1990). Na verdade, segundo Fairclough (1978/1989), discurso, seja qual for, é o local onde de fato as relações de poder são exercidas e sancionadas, sendo um fator que determina as relações e papéis entre desiguais, refletindo níveis diferenciados de dominação que indivíduos ou grupos exercem uns sobre os outros.

Lutz (1988, p.54), defendendo que falar sobre emoção significa, simultaneamente, falar sobre a sociedade, afirma que a emoção existe num sistema de relações de poder e tem importante papel para a manutenção desse sistema. Emoção, portanto, tem vários tipos de funções ideológicas, especialmente ideologias ocidentais de poder. Na mesma linha, baseando-se na noção de discurso sugerida por Foucault (1972), Abu-Lughod (1988) pretende mostrar como discursos sobre emoção ou discursos emotivos estão implicados em jogos de poder e na manutenção do sistema de hierarquias sociais. Destacando a forte associação entre poder e discurso, Abu-lughod & Lutz (1988) examinam formas pelas quais o poder influencia ou não aquilo que pode ou deve ser dito sobre o self e a emoção, para mostrar como o discurso sobre emoção estabelece, confirma ou desafia relações de poder. Discursos sobre a experiência emocional do medo, por exemplo, têm sido apontados por alguns especialistas em pesquisas sobre a violência colonial (Stoler, 1985; Taussig, 1987) como um elemento fundamental para as práticas discursivas de grupos dominantes.

Em linha semelhante, Burkitt (1997, p.49) concorda que as relações nas quais as emoções surgem são sempre, até certo ponto, relações de poder que envolvem dominação e subordinação de classe, gênero e raça. Adotando a visão foucaultiana de que os preceitos e regras que governam o corpo são utilizados não apenas para regular, mas para produzir os sentimentos, afirma o autor que essas regras têm um papel fundamental na experiência da emoção. Ainda segundo Burkitt (1997), em se tratando de uma experiência ao mesmo tempo regulada e produzida, torna-se evidente que o poder exerce grande influência sobre a experiência da emoção.

Dessa maneira, essas pesquisas convergem no sentido de demonstrar que a emoção trata de um construto cultural, de uma prática discursiva realizada na interação sensível à construção de identidades e às relações de poder.

 

Método

Optamos por um método qualitativo-interpretativo, no qual a visão do pesquisador é parte integrante do diálogo com os dados empíricos, dados estes que refletem o contexto em que estão inseridos, neste caso, um plano de saúde e seus clientes.

A empresa que forneceu as cartas analisadas gerencia um plano de saúde, fica localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro e tem representações regionais em todos os Estados. Para sua movimentação, arrecada uma percentagem do salário de seus membros e recebe também financiamento do governo federal. Trocamos o nome da empresa e todos os demais nomes próprios envolvidos no estudo, com o fim de preservar a identidade dos participantes. Os usuários do plano de saúde são funcionários ou ex-funcionários e seus dependentes, moram nas diversas regiões do Brasil, incluindo áreas do interior rural e grandes centros urbanos e compreendem os vários escalões de servidores do setor da saúde pública, desde os mais simples cargos, como faxineiros, até funcionários mais graduados, como secretárias, administradores e médicos, com predominância dos primeiros.

O corpus geral, composto de 228 cartas, é utilizado em nossa tese de doutorado. Entretanto, devido à complexidade do material e à limitação de espaço, para este trabalho, separamos duas cartas, uma escrita por um homem e outra escrita por uma mulher, obedecendo ao critério de separação por gênero e por contexto de origem da expressão da emoção (no caso, a interação médico-paciente). Todos os erros gramaticais e desvios da língua padrão contidos no material de análise foram mantidos com o fim de não comprometer a integridade dos dados.

 

Análise

"Como se eu fosse um boneco de pano": a expressão feminina de vulnerabilidade e hostilidade na relação médico-paciente

Observamos que as cartas dirigidas à empresa cujo tópico destaca o sofrimento de clientes vivenciados durante um atendimento médico, expressam emoções tanto de vulnerabilidade como de hostilidade. Empregamos o termo sofrimento, aqui, em seu sentido mais amplo para nos referirmos à experiência de emoções associadas ao desconforto físico e moral provocado por uma ação do médico. As noções de hostilidade e vulnerabilidade são adaptadas do modelo sugerido por Schimanoff (1987) acerca das emoções que honram ou ameaçam a face dos interlocutores.

Como, em nosso caso, o sofrimento é provocado por um profissional de saúde no papel de representante, o plano de saúde surge como responsável indireto, fazendo com que as emoções de hostilidade e vulnerabilidade apresentem menor teor de ameaça à face da empresa e maior teor de ameaça à face do médico. Embora a queixa apresentada não seja diretamente contra a empresa, ela envolve a empresa porque o credenciamento de médicos é responsabilidade do plano de saúde. Todavia, como o sofrimento é vivenciado na relação direta com o médico, a emoção tenta, ao mesmo tempo, honrar e ameaçar a face da empresa e do médico, ameaçando mais intensivamente a face do médico, que é o interlocutor ausente. Nesse tipo de carta, é possível observar a expressão de emoções variadas e por vezes contraditórias, fazendo emergir no discurso tanto a identidade de cliente da empresa, como a de paciente do médico.

A carta seguinte expressa o sofrimento físico e moral provocado pelo comportamento reprovável de uma médica durante um atendimento. O relato da paciente acerca desse encontro de serviço permite identificar uma perspectiva médica na qual a dor é vista como um tabu, sendo, portanto, ignorada. Ao mesmo tempo, oferece espaço para uma reflexão mais profunda sobre as características que delineiam a relação médico-paciente nas camadas menos favorecidas no Brasil.

 

CARTA 1

Sr. Diretor

Gostaria que me esclarecesse o procedimento correto para se realizar uma colonescopia.

Tenho uma deficiência de ferro (23), e meu hematologista (Dr.xxxxx 3a. ordem) pediu que procurasse um proctologista. Fiz o exame inicial com Dr.yyyyy - Policlínica da Nilo Peçanha - Centro. Pediu que eu fizesse a colonescopia, e aproveitando que estava lá marquei com a secretária. Chegando ao trabalho, telefonei para outro estabelecimento, percebi que era diferente o procedimento.

O Labs só marcava pessoalmente devido as orientações necessárias, e o exame era feito somente com anestesia geral.

Como eu não tinha cheque para pagar a anestesia procurei outro estabelecimento que não me atrasasse tanto. Mas antes de marcar liguei para a X-SAÚDE e me informei quanto o exame e a pessoa que me atendeu disse que cada lugar trabalha de um jeito, mas todos usam "quase" todo procedimento. Resolvi fazer na Policlínica porque tinha horário no dia em que eu podia sair mais cedo do trabalho, ou até mesmo faltar se fosse preciso.

O Labs era contra-mão já que eu trabalho em Ipanema, e não tinha como ir até lá, só para marcar, além do cheque. Preparei-me durante três dias para a clínica fazer o exame, entrei no soro as 9:00, tive que tomar um líquido horrivel, que parecia ácido, mas até ai foi tudo bem! Depois das 14:30 hs me levaram para a sala onde foi realizado o exame.

A enfermeira enfiou um tubo no meu nariz como se eu fosse um "boneco de pano". Me deu um sedativo mas o mesmo não fez efeito. A Dra XXXXX não esperou que eu dormissi e mesmo assim fez o exame!

Pedi a ela que esperasse o efeito ou que me desse mais sedativo mas ela nada respondia! Queria morrer naquela hora! Eu gritava, chorava pedia pelo amor de Deus, mas de nada adiantou.

A enfermeira me segurava pra eu não me sacudir viu meu desespero mas tambem nada fez. Quando eu cheguei na enfermaria, outra enfermeira perguntou-me porque eu já estava acordada! Estranhou mas nada fez! Chamei a Dra e ela disse que me deu a dose necessária e que não podia ter me dado mais.

Odiei a atitude da Dra. XXXX e gostaria que a X-SAÚDE tomasse as providências.

Liguei pra vários estabelecimentos e todos ficaram pasmos com a atitude da mesma. Sei que a CRM esconde seus profissionais embaixo dos panos, mas não me calarei diante de tal brutalidade! Tenho certeza que nem um animal deveria ser tratado assim. Será que ela é humana? Claro que não!!! Será que ela jurou na sua formatura de forma legal? De coração?

Desde já agradeço a X-SAÚDE que tem sido tão correta e que ajuda seus associados da melhor maneira.

Como o discurso da emoção, aqui, está associado à construção de identidades no contexto do atendimento médico, decidimos focar a análise nas implicações dos papéis assimétricos desempenhados na relação médico-paciente. Ao mesmo tempo em que podemos observar estratégias discursivas para a expressão da emoção adotadas por clientes, podemos, também, através dessa rica e detalhada narrativa, tentar acessar o mundo discursivo de uma das interações mais assimétricas e marcadas pelo exercício do poder da sociedade contemporânea.

Segundo Boltanski (1979), devido ao grau de dependência do doente em relação ao médico, é extremamente complicado para o paciente falar sobre médicos, fazendo com que o discurso dele sobre o médico oscile entre a submissão completa e um estado de queixa a seu respeito.

Nessa perspectiva, podemos estabelecer alguma diferença entre o comportamento lingüístico do sujeito imbuído da identidade de paciente do médico e o comportamento verbal do sujeito influenciado pela identidade de cliente do plano de saúde. Em nosso exemplo, a identidade de paciente força o sujeito a submeter-se ao poder do médico e aos rituais de humilhação impostos durante o encontro profissional. A identidade de cliente, porém, permite que o indivíduo abandone as demandas impostas naquela situação, encontrando nova via de expressão viabilizada através de queixas feitas à empresa acerca da conduta errada do médico. Ou seja, deixa de ser o paciente do médico, passando a ser o cliente da empresa. Nesse sentido, a cliente elabora o trabalho de ameaça à face tendo em vista dois interlocutores diferentes que, embora pertençam ao mesmo universo institucional, impõem diferentes níveis de explicitação de ameaça à face.

Utilizando a lógica da emoção em oposição à alienação (Lutz, 1988, p.59), a cliente posiciona a médica e a enfermeira como indivíduos alienados pelo fato de não terem mostrado reação emocional alguma diante de seu sofrimento durante o exame, colocando-as no lado negativo do contraste entre envolvimento e indiferença.

"A enfermeira enfiou um tubo no meu nariz como se eu fosse um "boneco de pano". Me deu um sedativo mas o mesmo não fez efeito. A Dra XXXXX não esperou que eu dormissi e mesmo assim fez o exame!

Pedi a ela que esperasse o efeito ou que me desse mais sedativo mas ela nada respondia! Queria morrer naquela hora! Eu gritava, chorava pedia pelo amor de Deus, mas de nada adiantou.

A enfermeira me segurava pra eu não me sacudir viu meu desespero mas tambem nada fez. Quando eu cheguei na enfermaria, outra enfermeira perguntou-me porque eu já estava acordada! Estranhou mas nada fez! Chamei a Dra e ela disse que me deu a dose necessária e que não podia ter me dado mais".

Segundo Lutz (1988), a oposição entre emoção e alienação inclui vários dualismos como, por exemplo, vida ou morte, conexão ou alienação e relacionamento ou individualismo. Para a cliente, a médica representa o lado negativo de todos esses dualismos, uma vez que o comportamento dela foi frio e indiferente à experiência da dor durante o exame. Um dos recursos lingüísticos de que lança mão para expressar sua indignação para com o tratamento recebido é o uso de perguntas.

Perguntas em seminários formais foram examinadas por Holmes (1995), que identificou três categorias assim denominadas: elicitações de apoio (supportive elicitations); elicitações críticas e elicitações antagônicas. Nas de apoio, o sujeito tenta chamar a atenção primeiro para um aspecto positivo e depois pede para o interlocutor esclarecer ou ampliar a discussão. Nas críticas, o sujeito expressa a crítica com um grau de avaliação negativa e, nas antagônicas, o sujeito fala bem depois discorda. Já em estudo sobre o uso de interrogativas e a representação de gênero no discurso publicitário (Salgado, 1999), mostramos que existe um verdadeiro abismo entre a forma e a função da pergunta naquele tipo de discurso.

Nos dados que estamos analisando agora, observamos que, apesar de não imprimir um ponto de interrogação para caracterizar formalmente a primeira elocução da carta como uma pergunta, a cliente elabora-a como uma busca de informação, já que expressa o desejo de saber como funciona determinado tipo de procedimento ("Gostaria de saber o procedimento correto para se fazer(...)"). Não se pode negar que se trata de uma pergunta com o fim de obter informação referencial. Todavia, se examinarmos a pergunta sob o ponto de vista discursivo mais amplo, veremos que pode apresentar outras funções que não a simples busca de informação para preencher uma lacuna de conhecimento sobre determinado fato, objeto ou pessoa. Ao perguntar qual o procedimento correto, a cliente insinua e denuncia a realização de um procedimento incorreto enfatizando a dimensão afetiva através da ambiguidade e intensidade veiculada no sublinhamento da palavra "correto" para indicar o seu extremo oposto.

Portanto, a função da pergunta, aqui, não é buscar uma informação simplesmente, mas insinuar, acusar e expressar uma crítica, atos de fala, neste caso, associados à experiência do sentimento de raiva e indignação, como veremos oportunamente. Paralelamente, a forma condicional com elocução voltada para o falante ("(...) eu gostaria") é utilizada para imprimir à elocução disposições afetivas que ameaçam a face da médica e da empresa já que, segundo Trosborg (1995, p.41), é menos polida do que o condicional com elocução voltada para o ouvinte (você poderia), porque a estrutura do pedido que tem o ponto de vista do falante oferece menos controle ao ouvinte e expressa menor grau de polidez.

A descrição detalhada do percurso da experiência da dor feita pela paciente, desde a preparação até o dia da realização do exame, começa com um discurso moderado acerca do que viria a se transformar numa experiência quase insuportável ("Preparei-me durante três dias para a clínica fazer o exame, entrei no soro as 9:00, tive que tomar um líquido horrivel, que parecia ácido, mas até ai foi tudo bem!").

Ao utilizar a oração restritiva "até ai foi tudo bem", sinaliza ou avisa ao interlocutor que alguma coisa oposta a essa afirmação aconteceu posteriormente. Isso se confirma na medida em que, construindo o discurso sobre seu sofrimento num crescendo, passa a descrever de maneira contundente e detalhada os acontecimentos mais concretamente marcados pelo sofrimento da dor física ("A enfermeira enfiou um tubo no meu nariz como se eu fosse um "boneco de pano". Me deu um sedativo mas o mesmo não fez efeito. A Dra XXXXX não esperou que eu dormissi e mesmo assim fez o exame!").

Produzindo uma metáfora para expressar sua indignação, a cliente atribui à enfermeira o papel desumanizado de profissional que, ao invés de cuidar do corpo do paciente como se espera de um profissional de saúde, trata-o como um objeto, um simples "boneco de pano". Ao mesmo tempo, atribui à médica o papel de profissional insensível e incompetente, por ter feito um exame insuportavelmente doloroso sem esperar que ela dormisse sob efeito do sedativo ("A Dra XXXXX não esperou que eu dormissi e mesmo assim fez o exame!).

A interação temporária entre a cliente, a enfermeira e a médica responsável pelo exame é preponderantemente marcada pela indiferença silenciosa ao sofrimento do corpo alheio, já que o exercício do poder médico se manifesta ignorando sistematicamente o pedido da paciente para que "...esperasse o efeito ou que ... desse mais sedativo". Diante da fria resposta e mostrando total impotência frente à indiferença da médica, a paciente "gritava, chorava pedia pelo amor de Deus, mas de nada adiantou", chegando mesmo ao desespero de querer " morrer naquela hora!".

De acordo com Trosborg (1995, p.41), em sociedades cujo ethos interacional é fortemente deferencial, a expressão da dor é vista como tabu na medida em que os indivíduos têm mais dificuldade em mostrar emoções de um modo geral. Também Wiersbicka (1985) chama a atenção para o fato de que suas pesquisas têm mostrado que os povos do mediterrâneo, comparados com os anglo-saxões, são mais inclinados a mostrar emoções. Para ela, médicos e enfermeiras anglo-saxões, por exemplo, pensam que a dor deve ser estóica por natureza e esperam que os indivíduos sejam impassíveis à dor e à adversidade.

Segundo Lutz (1988, p.57), há duas dicotomias que expressam visões de emoção. Por um lado, a dicotomia entre emoção e pensamento, na qual a emoção é inferior ao pensamento. Por outro, o contraste entre emoção e alienação, segundo o qual onde existe emoção existe vida, e onde não existe emoção há a representação da morte.

A ausência de emoção da médica em nosso exemplo pode representar, tanto uma recusa dela em se apresentar como parte de um grupo vivenciando a experiência de um fenômeno inferior (a emoção), que deve ser evitado em encontros profissionais, como também um sinal de alienação, na medida em que a vida naquele encontro, nada ou pouco representa para ela.

Outra questão interessante remete ao fato de que as mulheres são comumente associadas a seres humanos que resistem à dor de forma especial. Conforme Knauth (1991, p.52), as mulheres percebem-se mais resistentes à dor que os homens e esta resistência está relacionada ao parto como um fato caracterizado por dor intensa, mas suportável pela condição feminina.

Para Scarry (1985), a dor física aguda impossibilita a realização de uma linguagem que faça sentido, levando o sujeito a produzir algo caracterizado como uma linguagem pré-simbólica expressa através de gritos, guinchos e gemidos com dificuldade de penetrar no mundo do significado.

Culturalmente preparada para dores físicas intensas como a do parto, a cliente, em nosso exemplo, pôde suportar a experiência da dor, transformando-a no sentimento de raiva capaz de motivá-la a produzir a linguagem pré-simbólica de gritos de dor na relação face-a-face com a médica e, posteriormente, fazer um pedido de reparo à empresa através da punição à médica, pedido esse que questiona não apenas a integridade da médica como pessoa - sua humanidade - como, sobretudo, sua capacidade profissional. Os gritos de pedido de socorro da paciente podem representar um tipo de linguagem que não alcançou o universo do significado construído pela médica, já que não se obteve dela reação alguma a não ser o silêncio. Curiosamente, o relato de sua experiência é feito através do discurso indireto ao invés do direto, refletindo, possivelmente, uma impossibilidade de relatar algo que não foi teatralizado o suficiente pelos participantes na medida em que a médica não respondia a suas perguntas e não interagia verbalmente senão através do silêncio. Isso é interessante porque, na narrativa masculina, que veremos posteriormente, o cliente opta exatamente pelo discurso relatado ou construído (Tanen, 1985), porque o médico, embora de maneira negativa, participou ativamente da comunicação através de sua fala autoritária.

No exemplo que estamos analisando, a cliente percebe emoção como um fenômeno positivo, como capacidade de "entender profundamente ao invés de falhar em ver e conhecer" (Lutz, 1988, p.57) e, para ela, a médica falhou não apenas em ver, como falhou em conhecer. Ao se perguntar "será que ela é humana?", "(...) será que ela jurou com sinceridade?", expõe a face positiva da médica, questionando a devoção e gosto profissional esperado nos profissionais de saúde.

Segundo Boltanski (1979, p.52), de acordo com a classe social do paciente, o médico emprega estratégias visando a, em graus diferentes, fazê-lo reconhecer sua autoridade de todo-poderoso, desapropriando o paciente de sua doença e até, de certo modo, de seu corpo e de suas sensações. Além disso, é a própria característica técnica terapêutica que torna a relação médico-paciente assimétrica e dependente, na medida em que, nesta relação, o objeto é representado pelo doente, favorecendo a manipulação moral do paciente pelo médico. Em exames difíceis, nos quais o paciente tem de ficar despido, por exemplo, ele se torna o centro de manipulações físicas do médico que, estando vestido, decide que se faça o que for necessário (Boltanski, 1979. p.57).

Um aspecto importante do discurso emocional aqui analisado chama a atenção para a cumplicidade dos profissionais de saúde diante de problemas relacionados com erros médicos, levando-os a não reconhecer a existência de um problema diante de suas vítimas. Em certo trecho da narrativa, afirma a paciente que "a enfermeira me segurava para eu não me sacudir viu meu desespero mas também nada fez. Quando eu cheguei na enfermaria, outra enfermeira perguntou-me porque eu já estava acordada Estranhou mas nada fez!". A escolha da palavra inclusiva também funciona para denunciar que o fato foi realizado e testemunhado por vários sujeitos envolvidos, e não apenas pela médica isoladamente. A cumplicidade, no entanto, indica uma defesa da face errada da médica enquanto profissional responsável pelo exame, ao mesmo tempo em que garante a perpetuidade do grupo. Essa perspectiva se confirma através da surpresa demonstrada pela enfermeira ao perceber que a paciente já estava acordada ("outra enfermeira perguntou-me porque eu já estava acordada Estranhou mas nada fez!"). O sublinhamento da palavra nada e a exclamação ao final da sentença servem para emprestar intensidade afetiva tanto à omissão da médica e de seus auxiliares, quanto à própria indignação da paciente. Esses são alguns dos recursos paralingüísticos que, segundo Labov (1987), podem ser recuperados para apresentar uma avaliação do falante em narrativas escritas.

Na primeira oportunidade de obter alguma resposta da médica, chamou a "Dra e ela disse que deu a dose certa e que não podia ter dado mais". Referindo-se a essa resposta como algo inaceitável, produz o primeiro verbo de emoção (Besnier 1995), "odiar", para expressar explicitamente seu sentimento em relação à médica e sua expectativa em relação à empresa ("Odiei a atitude da Dra XXXX e gostaria que a X-SAÚDE tomasse as providências"). Depois de nomear o sentimento de raiva, denuncia também a cumplicidade estabelecida entre a instituição responsável por autorizar o exercício da profissão médica e os médicos de um modo geral através de sua desconfiança para com a mesma ("Sei que a CRM esconde seus profissionais embaixo dos panos"). Mesmo tendo vivenciado uma experiência com os profissionais de saúde na qual foi forçada a mostrar impotência e vulnerabilidade para com o poder médico imposto naquele tipo de interação, ao dirigir-se à empresa, traz para o centro do discurso emocional sua identidade de cliente e cidadã, e, com indignação e consciência do direito que lhe deve ser reservado, afirma que não silenciará "diante de tal brutalidade" certa de que "nem um animal deveria ser tratado assim".

O pressuposto desenvolvido pelo senso comum acerca da imagem positiva do médico como um sujeito cuja escolha profissional reflete amor e dedicação incondicional ao trabalho, sensibilidade e humanização especiais no trato com seus pacientes e responsabilidade total no que concerne a questões éticas está implícito nas últimas perguntas da cliente. No entanto, as próprias perguntas questionam a pertinência da crença, visto que, para ela, todas as expectativas foram frustradas, e só lhe resta contar com a colaboração da empresa como aliada no sentido de tomar as providências cabíveis contra a médica. O recurso lingüístico da pergunta retórica com função de desafiar uma verdade tomada como pressuposto leva-a a responder à própria pergunta "Será que ela é humana? Claro que não!!! Será que ela jurou na sua formatura de forma legal? De coração?". A experiência da dor física leva ao sofrimento da dor moral, provocando um questionamento tanto da ética médica, como do critério de legitimação adotado para se atuar profissionalmente.

A função de desafiar implícita na escolha pelo uso de perguntas não é aleatória, na medida em que, do ponto de vista pragmático, impõe uma expectativa ao ouvinte que deve ser preenchida por ele. Ao mostrar-se com raiva, chocada e indignada com o tratamento recebido pela médica, estabelece alinhamento com a empresa expressando, simultaneamente, orgulho e gratidão pela instituição, de forma a comprometê-la com uma resposta favorável à sua expectativa. Nesse sentido, seu discurso emocional apresenta um maior teor de ameaça à face dos representantes da empresa e um menor teor de ameaça à face da empresa propriamente dita, fazendo com que essa resposta inclua o preenchimento de uma expectativa de solidariedade da empresa ao seu sofrimento através da punição ao médico ("Desde já agradeço a X-SAÚDE que tem sido tão correta e que ajuda seus associados da melhor maneira"). Abandonando a identidade de paciente do médico, passa a assumir a identidade de cliente da empresa.

Do ponto de vista da construção de uma identidade de cliente, o ciclo dos atos de fala no discurso é completo. Apresenta a queixa, denuncia uma conduta reprovável e faz um pedido de punição contra a médica, sinalizando que as classes populares, ocasionalmente, mostram ampla consciência de direitos no contexto profissional em que elas se inserem. Ainda que impulsionada pela dor física e/ou moral e não necessariamente por uma consciência cívica claramente definida, faz com que a identidade de cidadão inclua tanto a identidade de paciente como de cliente. Na de paciente, prevalece a vulnerabilidade na relação médico-paciente, e na de cliente, a consciência do direito na relação cliente-empresa. A mesma experiência emocional negativa possibilita à cliente o exercício de cidadania, na medida em que o próprio sofrimento provoca a formulação de um discurso emocional contundente caracterizado por atos de fala típicos de quem reclama um direito, neste caso, uma queixa e, como consequência, um pedido. Em seguida, analisamos o discurso masculino em situação de queixa semelhante e destacamos a questão referente à identidade de gênero.

"Como se tivéssemos sido acertados por uma bala perdida": a expressão masculina de vulnerabilidade e hostilidade na relação médico-paciente

Mencionamos que a literatura sobre a relação médico-paciente mostra que este tipo de encontro profissional é sempre marcado pelas diferenças sociais, fazendo com que o médico mude de atitude com relação ao paciente em função principalmente da classe social a que ele pertence. De acordo com Bostanski (1979), isso acontece, especialmente, pelo fato de que as classes sociais superiores podem escolher seus médicos, enquanto as menos favorecidas fazem essa escolha ao acaso, quando fazem.

No Brasil, este "acaso" está circunscrito ao sistema de saúde pública e aos planos de saúde privados mais accessíveis que acolhem clientes de baixa renda como o que estamos investigando neste trabalho. Apesar de privado, esse plano possui clientes de classes sociais mais baixas. Planos particulares com estas características apresentam, às vezes, fortes semelhanças com o sistema público no que concerne às suas deficiências de funcionamento.

A carta masculina que analisamos a seguir nos permite, mais uma vez, refletir sobre a interação médico-paciente e a questão da consciência do direito frente à empresa, prestando atenção aos pontos da comunicação que se aproximam ou se distanciam da carta feminina já analisada.

CARTA 2

Prezado Senhor

Venho, por meio desta, pedir o descredenciamento do pediatra X, por motivo de agressão verbal contra minha esposa no atendiimento a nosso filho Mateus, matrícula X, em consulta realizada no dia 21/09/99, na Clínica Ipiranga.

A consulta de encaixe, marcada para esse dia, estava prevista para as 9:00 h, foi realizada às 11:00h, uma vez que o médico chegou à Clínica por volta das 10:00 h, quando já havia várias outras crianças à sua espera, sem que nos fosse dada qualquer explicação de sua parte ou por parte das atendentes da clínica. Como minha esposa estava na porta da clínica na hora da sua chegada e, por pensar que já tivéssemos com ele alguma intimidade (pois este senhor atendia meu filho há vários meses e ele próprio costumava fazer alguns comentários "engraçados" que tomávamos por brincadeiras), minha esposa, para "quebrar o gelo"e longe de qualquer intenção de escárnio ou agressão, fez o seguinte comentário (que pode até ser considerado impróprio ou inconveniente, mas que de maneira alguma justificaria a reação covarde e violenta da qual minha esposa foi vítima): "Doutor, o senuor quase caiu da cama hoje, hein?" Tal comentário foi apenas uma brincadeira pois, embora não tivéssemos sido informados (como deveríamos), já havíamos deduzido que o seu atraso se devia provavelmente a alguma emergência ou cirurgia de última hora e não por ter realmente acordado tarde.

No entanto, a reação do pediatra foi imediata e bombástica, ao gritar com minha esposa o seguinte: "Cara de pau você, hein? Você é muito cara de pau! Devem ser poucos os que te aguentam: você é muito chata" Após esse comentário, sem dar tempo de qualquer reação de nossa parte, o médico subiu rapidamente para sua sala.

Eu e minha esposa ficamos completamente sem graça e sem reação, em estado de choque, como se tivéssemos sido acertados por uma bala perdida, com nosso filho de 7 meses no colo (doente com estomatite há 2 dias, sem conseguir se alimentar e suando muito). Tanto ficamos sem entender tamanha agressividade que permanecemos ali, todos os três tensos (meu filho ficou imediatamente com o coração disparado).

Pensei que o médico estivesse com algum problema pessoal e que fosse nos pedir desculpas quando nos atendesse, mas ao invés disso ele fez de tudo para não nos atender. Minha esposa me pediu para irmos embora, mas eu estava muito preocupado com o estado de meu filho e, já que eu tinha perdido a manhã inteira de trabalho, não achava justo sairmos dali sem atendimento. Pude perceber que ele ligou para a recepcionista algumas vezes, para saber se ainda estávamos ali. Ele atendeu duas outras crianças antes do meu filho e, quando resolvi me levantar para ir embora avisando a recepcionista que não mais poderia esperar, ela me pediu que aguardássemos, pois ele iria atender nosso filho em seguida (era o próximo a ser chamado). No entanto, percebi que em seguida ele ligou novamente a recepcionista e lhe pediu que nos explicasse que não poderia nos atender, pedindo para voltarmos no dia seguinte; porém a recepcionista lhe avisou que isso seria impossível, pois não havia nenhum horário para o dia seguinte, nem de encaixe. Sendo assim, nos mandaram entrar na sua sala.

Quando entramos, ele voltou a agredir verbalmente minha esposa, perguntando se ela estava mais calma e dizendo que ela era muito "debochada". Minha esposa lhe pediu desculpas pelo comentário, garantindo que não tivera intenção nenhuma de agredí-lo, porém ele nem nos deixava falar; disse que minha esposa era cínica e vivia fazendo piadas (o que não é verdade, e mesmo que fosse não justificaria sua falta de postura profissional). Ele estava descontrolado, trêmulo, com a voz alterada, enquanto tentava explicar que estava desde as cinco horas da manhã em atendimento na rua. Quando minha esposa comentou que ninguém nos dera nenhuma posição sobre seu atraso, ele foi taxativo: "Ninguém avisou porque eu não avisei, e eu não tenho que avisar!" E em seguida, completou:: "Eu não tenho culpa se toda vez que vou atender vocês coincide de eu estar atrasado por causa de alguma cirurgia..." (em tempo: nós nunca antes reclamos de seus frequentes atrasos). E, para arrematar, acrescentou: "Sei que não tenho o direito de estar falando assim... Deve ter alguma coisa entre a gente que não bate bem!" Mas vamos examinar o Mateus, que é o que interessa - bem, pelo menos eu acho que é o que interessa!"Eu estava com meu filho no colo e fiquei ainda mais chocado e sem reação ( o que não consigo entender e aceitar até hoje, mas creio que o meu instinto foi o de preservar o meu filho de mais discussão, o que não iria levar a nada). Semelhantemente, minha esposa se calou e deixou que eu posicionasse o nosso filho para ser atendido por esse senhor covarde e grosseiro que se diz médico.

A partir daí, eu apenas respondi às suas perguntas sobre o estado de saúde de meu filho e percebi que durante todo o resto da consulta esse senhor estava sem graça (talvez porque não batemos boca com ele e ele tenha caído em si, mas não a ponto de nos pedir desculpas). Também percebi que após todo esse estresse e destrato, o médico apenas recomendou que continuássemos o mesmo medicamento prescrito por outra médica da emergência aonde levamos nosso filho dois dias antes, por recomendação do próprio médico (era fim de semana e ele não podia nos atender, apenas por telefone).

Também lamentei ter ido embora sem dizer-lhe o que merecia ouvir depois de tanta violência gratuita (o que não fiz para poupar meu filho). O resultado foi que saí de lá tão nervoso que bati com meu carro ao tentar tirá-lo da vaga, quebrando a lanterna lateral (o que não aconteceria em condições normais, pois sou excelente motorista).

Demorei tanto para escrever esta carta (mais de duas semanas após o ocorrido), porque levei algum tempo para me recobrar da agressão que sofremos por parte daquele que acreditávamos até ser nosso amigo, pois era a ele que estávamos confiando a saúde do nosso filho. Resolvi escrever para comunicar o ocorrido (que considero grave) e para pedir a V. Sas. uma providência coerente com o ocorrido, pois julgo inadmissível que um "médico" sem equilíbrio emocional e postura profissional seja credenciado para prestar "serviços"em nome de tão conceituado serviço como o X-SAÚDE, assim como não é justo que outros pacientes e pais desavisados corram o risco de serem vítimas de um atendimento tão desumano, covarde e doentio.

No aguardo das providências cabíveis e de um retorno de V. Sas. quanto à presente reclamação subscrevo-me.

Atenciosamente

Aproximadamente três vezes maior do que a carta anterior escrita por uma mulher, a extensão deste texto não poderia deixar de nos chamar a atenção, já que, segundo Besnier (1995), o ato de escrever cartas representa um considerável esforço cognitivo e afetivo. Aqui, essa perspectiva se confirma através de elocuções associadas à dificuldade que o cliente teve em produzir a carta ((...) "Demorei tanto para escrever esta carta (mais de duas semanas após o ocorrido"), com o tratamento agressivo dispensado pelo médico ("porque levei algum tempo para me recobrar da agressão que sofremos"). Esse dado nos permite indagar se a dicotomia feminino emocional versus masculino racional apontada pela literatura, tem alguma relação com a tolerância da atividade afetivo-cognitiva dos indivíduos.

Outro aspecto que nos chama a atenção é o nível de diretividade imposto ao ato de queixar-se elaborado pelo cliente, já que um pedido explícito - descredenciamento do médico - constitui a abertura da carta, conferindo-lhe alto grau de prioridade. Enquanto a abertura da carta feminina é feita através de uma pergunta com função de insinuar um procedimento médico incorreto, aqui o pedido direto denuncia a face errada do interlocutor que está sendo indiciado. No exemplo anterior, depois da pergunta, a mulher opta pela apresentação do relato detalhado de sua experiência, para somente no final pedir providência contra a médica que a maltratara, enquanto aqui o escritor opta pelo caminho inverso: explicita o pedido de punição ao médico como primeiro contato da comunicação entre as partes ("Venho, por meio desta, pedir o descredenciamento do pediatra X") para, posteriormente, relatar a experiência passada.

O cliente estabelece o ato de fala "pedido de punição" como prioridade, apresentando imediatamente a justificativa para o pedido ("por motivo de agressão verbal contra minha esposa no atendimento a nosso filho"), e elabora um relato detalhado da experiência do sofrimento através da localização do evento no tempo passado. O relato explora nuances de horário e local, para evidenciar concretamente o acontecimento, sem deixar espaço para que a empresa possa duvidar de seu depoimento ("A consulta de encaixe, marcada para esse dia, estava prevista para as 9:00 h, foi realizada às 11:00h, uma vez que o médico chegou à Clínica por volta das 10:00 h, quando já havia várias outras crianças à sua espera, sem que nos fosse dada qualquer explicação de sua parte ou por parte das atendentes da clínica").

Diferentemente do relato feminino analisado anteriormente, aqui o cliente utiliza o discurso direto ou construído (Tannen, 1985) para reconstruir o testemunho crível de um comportamento reprovável, produzindo simultaneamente uma queixa e um pedido à empresa e uma crítica ao comportamento do médico. Segundo Goffman (1978), ao utilizar esse tipo de recurso, o falante não apenas provê uma informação, mas encena pequenos dramas com personagens atuantes, oferecendo ao interlocutor um discurso marcado pelo afeto. Para Silverstein (1992), ao citar elocuções passadas entre aspas, o falante está indiretamente comentando sobre a propriedade ou impropriedade do uso da linguagem por alguém, mostrando afeto e reconstruindo ideologias e normas culturais.

Em nosso exemplo, esse recurso é utilizado para mostrar um ponto de vista sobre a conduta médica, denunciar o comportamento verbal inadequado do médico e checar a resposta que será dada pela empresa. Devido à complexidade da experiência afetiva vivenciada, as emoções, aqui, envolvem tanto vulnerabilidade quanto hostilidade. Assim sendo, a expressão de emoções tem a função de explicitar a verdadeira dimensão do evento, criticar uma postura profissional de um representante da empresa e exigir outra postura diferente por parte da empresa como elemento chave da interação profissional. A dimensão do evento mostra indivíduos vulneráveis numa relação assimétrica e, ao mesmo tempo, hostis em relação aos seus algozes.

O recurso do discurso construído é explorado especialmente na descrição do momento em que a esposa do cliente sofre uma agressão por ter feito uma brincadeira inocente com o médico que chegava para a consulta com aproximadamente duas horas de atraso. Segundo o depoimento do cliente, a esposa, na tentativa de promover um encontro mais acolhedor com o médico, fez a brincadeira sem intenção alguma de ofendê-lo ("Como minha esposa estava na porta da clínica na hora da sua chegada e, por pensar que já tivéssemos com ele alguma intimidade (pois este senhor atendia meu filho há vários meses e ele próprio costumava fazer alguns comentários "engraçados" que tomávamos por brincadeiras), minha esposa, para "quebrar o gelo"e longe de qualquer intenção de escárnio ou agressão, fez o seguinte comentário (que pode até ser considerado impróprio ou inconveniente, mas que de maneira alguma justificaria a reação covarde e violenta da qual minha esposa foi vítima): "Doutor, o senhor quase caiu da cama hoje, hein?"

Contrariando seu próprio paradigma, o médico reage de "forma violenta" e com "agressão verbal", pois, segundo o cliente, diante de tal brincadeira inofensiva, a violência do médico não poupou esforço em demonstrar a desigualdade que os separava ("(...) a reação do pediatra foi imediata e bombástica, ao gritar com minha esposa o seguinte: "Cara de pau você, hein? Você é muito cara de pau! Devem ser poucos os que te aguentam: você é muito chata" Após esse comentário, sem dar tempo de qualquer reação de nossa parte, o médico subiu rapidamente para sua sala").

Em outros momentos, o cliente justifica a brincadeira através de uma tentativa frustrada de identificar algum nível de confiança, amizade e intimidade desejado numa interação profissional como a relação médico-paciente ("por pensar que já tivéssemos com ele alguma intimidade (...) acreditávamos ser nosso amigo pois a ele confiávamos a saúde de nosso filho"). Ao mesmo tempo, chega até a construir algum tipo de auto-crítica ao fato de a esposa ter feito o comentário engraçado, o que, neste caso, serve para tornar ainda mais evidente a injustiça impressa no discurso agressivo do médico ("o (...) comentário que pode até ser considerado impróprio ou inconveniente, mas que de maneira alguma justificaria a reação covarde e violenta da qual minha esposa foi vítima").

A polifonia instalada em seu discurso mostra emoções de hostilidade, na medida em que reprova a conduta do médico através de escolhas discursivas circunscritas a emoções de hostilidade ("este senhor covarde e grosseiro que se diz médico (...) desequilibrado (...) sem postura profissional") e de vulnerabilidade, uma vez que, enfraquecido pelo abuso sofrido no atendimento médico, permanece no local sem mostrar capacidade alguma de reação ao constrangimento que lhe foi imposto ("eu e minha esposa ficamos totalmente sem graça...em estado de choque como se tivéssemos sido acertados por uma bala perdida ").

Segundo Bolstanski (1979), umas das estratégias de manipulação exercidas pelo médico para marcar sua distância social e poder, ao atender pacientes de classes baixas, é o uso de brincadeiras infantilizantes ou de uma representação de brutalidade. Aqui o cliente confirma esse paradigma ao se referir a comentários "engraçados" que o médico costumava fazer durante consultas anteriores. Sentindo-se com o mesmo direito, uma vez que o próprio médico "(...) costumava fazer alguns comentários engraçados" que consideravam como "brincadeiras", justifica a brincadeira feita pela esposa ao dirigir-se ao médico, lembrando que o mesmo já atendia o filho há algum tempo, o que os levava a pensar que já tivessem "alguma intimidade". Sua atitude ingênua, portanto, longe de pretender ofendê-lo, pretendia apenas "quebrar o gelo" para promover uma boa interação.

Observando a natureza antagônica da expressão do humor sugerida por Radicliffe-Brown (1973), Oliveira (2000) estudou uma interação de atendimento e constatou que, também naquele contexto, somente o atendente tem direito de "brincar", e que a brincadeira incorporava, ao mesmo tempo, uma ofensa ao cliente.

No exemplo que estamos analisando, algo semelhante acontece. Aparentemente, a expectativa do cliente era de que a brincadeira de sua esposa fosse aceita pelo médico, na mesma medida em que ele aceitava as brincadeiras feitas pelo médico nos encontros de atendimento anteriores. Segundo Brown & Levinson (1978/2001), fazer brincadeiras pode representar um ato de ameaça à face do ouvinte, fazendo-o sentir-se constrangido. Nesse sentido, dificilmente, numa interação de desiguais, uma brincadeira feita pelo sujeito em posição inferior seria apreciada pelo interlocutor em posição privilegiada (Brown & Levinson, 1978/2001). Como, em nosso caso, a posição marcadamente superior do médico não oferece espaço para reciprocidade, a brincadeira pode ter sido vista como uma quebra nas normas de comportamento verbal e social que permeiam as relações assimétricas de poder, levando o médico a reagir com agressão verbal, conforme definido pelo cliente.

Em determinadas situações de assimetria, é mais fácil submeter-se do que resistir arriscando-se ao conflito. Um conflito aqui colocaria a saúde do filho em perigo. Por essa razão, optam por uma reação típica de quem ocupa o papel de subordinado nesse tipo de relação de poder, já que ele e a esposa, humilhados, ficaram "completamente sem graça e sem reação", como que paralisados "por uma bala perdida".

Para Lutz (1990, p.70), o discurso ocidental vê as emoções como um fenômeno paradoxal que se divide entre sinal de fraqueza e, ao mesmo tempo, como uma força poderosa, e a retórica do controle ou gerenciamento da emoção revela a dupla natureza - fraca e perigosa - da emoção em grupos dominados. Conforme a autora, por um lado, a emoção pode enfraquecer a pessoa que a experiencia, colocando-a em estado temporário de desordem intrapsicótica e, por outro, é uma força física que pode se transformar em ação. Ao falar sobre emoções, o sujeito tanto pode se referir a um "estado de fragilidade" para refletir um defeito ou incapacidade temporária de reação, como pode se referir ao seu extremo correspondente quando se diz, por exemplo, que uma pessoa está "cheia de gás" para reagir e tomar uma atitude. Em nosso exemplo, o cliente corporifica o estado de fragilidade ao ficar temporariamente sem reação diante da agressão do médico, permanecendo no consultório ("Eu e minha esposa ficamos completamente sem graça e sem reação, em estado de choque, como se tivéssemos sido acertados por uma bala perdida, com nosso filho de 7 meses no colo permanecemos ali, todos os três tensos meu filho ficou imediatamente com o coração disparado").

Uma possibilidade de interpretação acerca da resposta silenciosa oferecida pelo cliente neste exemplo é a de que a dor moral circunscrita às emoções de vulnerabilidade fez com que ele silenciasse a linguagem do significado, uma vez que permaneceu imóvel, sem reação, como que "atingido por uma bala perdida", permitindo a continuidade do ritual de humilhação. A eficácia da dor moral para a manutenção do ritual se impôs a ponto de impossibilitá-lo de produzir até mesmo uma linguagem pré-simbólica, como a produzida no exemplo anterior.

A permanência do cliente no consultório médico, mesmo depois de humilhado, é por ele justificada através da preocupação com a saúde de seu filho pequeno (Minha esposa me pediu para irmos embora, mas eu estava muito preocupado com o estado de saúde de meu filho). De acordo com Oliveira (1998, p.82), existe de fato uma preocupação especial das classes populares para com o segmento infantil, porque as crianças são vistas como seres particularmente mais frágeis, exigindo da família a ida ao médico o mais rápido possível. Aqui, a crença nessa fragilidade pode ter representado um fator de pressão para que o pai permanecesse no local, mesmo tendo de suportar a humilhação. Ao corporificar a emoção ("meu filho ficou com o coração disparado", "(...) saí de lá tão nervoso que bati o carro"), o cliente dilui a dicotomia entre "corpo"e "espírito", tornando a experiência de seu sofrimento um fenômeno global (Duarte, 1998, p.20). Em pesquisa sobre a doença em informantes franceses, Herzlich & Pierret (1984) sugerem a existência de uma articulação hierárquica entre físico e moral, ao contrário da separação dicotômica entre esses elementos do modo como nós os entendemos. Aqui, essa perspectiva se confirma na medida em que físico e moral, ao contrário de se mostrarem categorias dicotômicas, apresentam-se como fenômenos que se complementam, um provocando o outro. O dano moral e emocional sofrido pelo cliente através da humilhação propicia um dano físico concretizado através da alteração em seu sistema nervoso, o que, por sua vez, provoca um dano material - a batida do carro ("saí de lá tão nervoso que bati o carro").

A baixa tolerância afetiva do homem em relação a uma perda de face pela humilhação moral paralisou sua capacidade de responder ao sofrimento causado pela agressividade do médico, fazendo com que corporificasse a emoção ao transferir para seu corpo, para o de sua esposa e para o do filho, os efeitos da emoção ("permanecemos ali, todos os três tensos meu filho ficou imediatamente com o coração disparado"). Todavia, o fenômeno da corporificação, ao invés de produzir capacidade de reação à altura do sofrimento, incapacitou o cliente, deixando-o mais exposto ainda ao enquadre da relação assimétrica.

A metáfora radical de morte por bala perdida mostra a extensão da experiência da dor moral e dos efeitos da humilhação, ao mesmo tempo em que justifica a falta de reação do cliente, já que o papel social masculino impõe ao homem a prova de capacidade para reagir a situações adversas. Reação e combate a adversidades garantem ao homem a manutenção da superioridade dos papéis hierárquicos legitimados pela representação social de gênero. O pedido de punição, apresentado na carta masculina, aqui, chama a atenção para as falhas na conduta moral e ética do médico, questionando, como na carta feminina, o conhecimento do profissional. Esse questionamento se dá de forma implícita através de uma oração restritiva na qual o cliente destaca, também de forma implícita, a perda de tempo que o atendimento médico representou ("(...)após todo esse estresse e destrato, o médico apenas receitou o mesmo medicamento prescrito por outra médica"). Para ele, todo o sofrimento vivenciado, na verdade, foi em vão, já que no final das contas, até a expectativa de um novo medicamento foi frustrada, por incapacidade do médico de avaliar outro tratamento para o filho doente.

Aqui, o cliente reivindica solidariedade da empresa através de uma avaliação positiva ou alinhamento com a instituição ao mesmo tempo em que aponta o erro do médico( "julgo inadmissível que um "médico" sem equilíbrio emocional e postura profissional seja credenciado para prestar "serviços"em nome de tão conceituado serviço como o X-SAÚDE, assim como não é justo que outros pacientes e pais desavisados corram o risco de serem vítimas de um atendimento tão desumano, covarde e doentio.

No aguardo das providências cabíveis e de um retorno de V. Sas. quanto à presente reclamação subscrevo-me").

Às vezes, a identidade de paciente vulnerável silencia a identidade de cliente, forçando-o a mostrar sua fraqueza e vulnerabilidade. Entretanto, na comunicação com a empresa, essa operacionalização exige que a identidade de cliente se imponha através de emoções de hostilidade e vulnerabilidade com menor teor de ameaça à face da empresa e maior teor de ameaça à face do médico.

Como mencionamos, um dos recursos interessantes utilizados nesta narrativa masculina é o discurso relatado ou construído em seu discurso sobre o outro. A literatura desta área aponta que, apesar desse tipo de recurso reclamar uma autenticidade à elocução reproduzida, é, ao mesmo tempo, uma estilização da elocução original e um recurso retórico para dar vida às figuras presentes no "drama" (Goffman, 1986).

De acordo com Lausberg (1960, p.408), a construção cênica de conversas entre pessoas comuns pode ser utilizada não apenas como uma técnica para prover evidência, mas também como uma técnica persuasiva importante, em que a representação vívida de algum fato tem o fim de levantar emoções no receptor, transformando-se num importante recurso afetivo da linguagem. Complementando essa perspectiva, Hall (1999, p.297) menciona o discurso construído como um poderoso recurso da linguagem expressiva que pode ser usado por clientes e profissionais para darem autenticidade a diferentes versões da história contada, apresentando seus posicionamentos nestas versões. Besnier (1990, p.427) sugere que citações da fala do outro são afetivamente marcadas porque unem as vozes de diferentes entidades sociais e a re-atuação de uma agenda moral. Segundo o autor, a apresentação dessas vozes pode marcar o envolvimento emocional do falante ou escritor no texto e aumentar a natureza heteroglóssica do discurso.

Também para Labov (1972), o discurso direto serve como um recurso avaliativo em narrativa, salientando o argumento da história ao criar um drama, porque o drama criado através do diálogo construído ajuda a criar rapport entre o narrador e o ouvinte (Tannen, 1985, p.98). Por outro lado, conforme Lutz (1990, p.16), o evocar de um cenário pelo falante que experiencia a emoção é feito em determinados contextos para atingir determinados fins, negociar aspectos da realidade social e para criar a realidade.

Em nosso exemplo, esse recurso sinaliza esta aparente função contraditória. Por um lado, o sujeito pretende apenas "relatar" as palavras do médico na tentativa de preservar suas características originais, portanto, verdadeiras, ao apresentar a elocução como entidade discursiva independente do contexto dado. Por outro lado, o discurso direto parece ter sido utilizado como um poderoso instrumento lingüístico teatral para alimentar um drama desenvolvido pelo sujeito, criando envolvimento e motivando o receptor a um alinhamento com sua indignação. Ao lançar mão desse recurso, o cliente pretende levar para o ouvinte a materialização da cena como evidência de seu sofrimento durante o encontro com o médico, ao mesmo tempo em que espera que a empresa se torne sensível a isso e tome uma providência contra aquele profissional. No encontro com o médico, prevalece sua identidade vulnerável de paciente, enquanto, ao dirigir-se à empresa, deixa prevalecer a identidade de cliente, cujas emoções de hostilidade parecem coerentes com o discurso da queixa como um todo.

 

Conclusões Parciais

Considerando o fator gênero nessas duas narrativas comparáveis do ponto de vista do contexto que provoca a experiência emocional, um dos aspectos interessantes refere-se à escolha das metáforas para dimensionar o sofrimento vivido pelos clientes. Tanto o homem como a mulher escolhem a imagem de um objeto para, através dele, construírem o discurso da emoção. No primeiro caso, o sujeito é atingido pelo objeto: uma bala perdida; no segundo, é tratado como um objeto - um boneco de pano. Se pensarmos que a relação dos indivíduos com os objetos reflete a cultura apropriada a cada gênero, parece interessante que o homem tenha escolhido a imagem de um revólver - objeto que em nossa cultura está mais circunscrito ao universo masculino - e a mulher, de um boneco - objeto mais próximo do universo feminino - para representar metaforicamente o sofrimento e a incapacidade de reação. Ao mesmo tempo em que, culturalmente, espera-se do homem reações mais violentas diante de um tratamento considerado desafiador à sua condição de homem, a incapacidade de reação masculina, neste caso, parece justificada na medida em que a metáfora "acertados por uma bala perdida" testemunha e legitima a impossibilidade de reação no encontro com o médico. Por outro lado, a vulnerabilidade emocional mais esperada no comportamento feminino é, em nosso exemplo, desafiada pela capacidade de reação feminina, que também se justifica, porque o corpo da vítima foi tratado como um objeto, mas não atingido por um objeto fatal.

Na carta anterior, diferentemente do homem, que utiliza o recurso da citação em vários momentos de sua narrativa, a mulher não usa esse recurso, optando pela descrição do evento na forma de discurso indireto. De acordo com a lógica da emoção que envolve o discurso direto, isso caracterizaria a fala feminina, neste exemplo, como um discurso cuja carga emocional apresenta características discursivas diferentes das apresentadas pelo discurso masculino. Entretanto, a despeito dessas diferenças, a quantidade limitada de cartas investigadas com base no fator gênero não nos permite fazer afirmações categóricas que corroborem a representação cultural da mulher como um ser mais emocional do que o homem.

Por outro lado, acreditamos que essas cartas refletem o sólido paradigma de dominação confirmado pela literatura sobre a relação médico-paciente, já que expõem a completa vulnerabilidade do paciente nesse tipo de encontro profissional. Entretanto, o discurso emocional temporariamente silenciado na relação face-a-face com os profissionais de saúde provoca uma verdadeira explosão de emoção no discurso dirigido à empresa posteriormente, fazendo com que o indivíduo abandone a identidade silenciada de paciente e assuma a identidade expressa de cliente. No geral, o comportamento verbal do cliente na relação direta com o médico é de impotência. Entretanto, para compensar o silêncio e vulnerabilidade ali instalados, faz à empresa pedidos diretos, queixas explícitas, elabora comandos na formulação desses atos de fala, assumindo um comportamento que expressa emoções de hostilidade, exercitando seu poder de ameaça à face errada dos participantes da interação. Ao mesmo tempo, busca alinhamento com a empresa através do recurso do elogio e outras proposições de apoio, favorecendo a possibilidade de uma resposta solidária da instituição.

 

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Recebido em 06 de maio de 2003
Aceito em 21 de maio de 2003
Revisado em 22 de julho de 2003

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