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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.3 n.2 Fortaleza set. 2003

 

ARTIGOS

 

Mal-estar na psiquiatria: o papel da mulher na instituição psiquiátrica

 

 

Patrícia Alves Ribeiro

Pós-graduada pelo programa de residência em saúde mental do Instituto Philippe Pinel, RJ; Aluna do Programa de Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Psicóloga do ambulatório do Hospital Municipal Jurandir Manfredine - hospital psiquiátrico da Colônia Juliano Moreira, RJ. End. Rua Assis Brasil, 143 bl2, apto. 306 - Copacabana, Rio de Janeiro, RJ- Brasil. e-mail: vitoria96862@ig.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma reflexão sobre o papel questionador e revolucionário das mulheres, especialmente as histéricas, nas instituições psiquiátricas, dado seu atravessamento pelo discurso capitalista que, em aliança com o discurso da ciência, produz sérias consequências no campo da psiquiatria e na cultura moderna. Um desses efeitos é a dessubjetivação do sofrimento, localizando-o no corpo, para que seja tratável pelo saber médico. Por isso, tomamos a psiquiatria biológica como exemplo paradigmático do entrelaçamento desses dois discursos no campo da psiquiatria.Um outro efeito é a transformação de qualquer mal-estar em doença, para que possa ser medicável. Perdemos o direito de ficar tristes, ficamos deprimidos.
O discurso capitalista é apontado por Lacan como aquele que foraclui a castração. Esta foraclusão corresponde ao apagamento da diferença, à dessexualização, à massificação que vivemos em nossa cultura. A foraclusão da castração corresponde a foraclusão do laço social. É nesse ponto que as histéricas têm seu papel revolucionário, pois o discurso da histérica é o que pode mais diretamente questionar o do capitalismo, pois aponta para a castração e não pode existir fora do laço social. As histéricas desafiam a psiquiatria biológica também com seu corpo, pois produzem o sintoma no "corpo erógeno" e não no "corpo biológico".
Ao foracluir a castração, o discurso do capitalista foraclui também as "coisas do amor". A erotização, a valorização do laço social e das "coisas do amor" é o ponto comum das histéricas com as mulheres. Freud delega à mulher o papel de Eros na cultura e lhe dá a condição de ser o "antídoto contra a massa".
Não estariam as mulheres, em especial as histéricas, encarnando o limite de impossibilidade de tratar do humano em uma perspectiva dessexualizada? Não estariam estes sujeitos berrando com seu inconsciente o fracasso da pretenção de homogenização, apagamento das diferenças? Não teriam as mulheres e as histéricas, com seu "antídoto contra a massa", uma função de resistência a essa tendência de dessubjetivação operado pela psquiatria biológica? É o que pretendemos articular nesse pequeno ensaio.

Palavras-chave: mulheres, mal-estar, psiquiatria, capitalismo, Eros


ABSTRACT

This article is about the revolutionary roll played by women, especially the hysterical ones, in mental institutions, considering that the logics capitalism rules these institutions. The liaison between capitalism and science has serious consequences to psychiatry and to our culture.One of the consequences is the attempt to localize psychological suffering in the body, so that it is of concern to the medical knowledgement. Therefore biological psychiatry will be taken in this article as an exemple of the association of science and capitalism in the field of psychiatry. This association has another consequence: any kind of indisposition is taken as illness and there is a corresponding medicine.We do not get sad anymore, we get depressed.
According to Jacques Lacan capitalism denies ("Vewerfung") castration. This corresponds to the fading of differences (especially the sexual difference) and to the effect of massing people we feel in our culture. As a result of denying castration we have the fading of the social bonds. Hysteria, this way of relationship formalized by Lacan as a speech, points to castration and does not exist out of the social bonds. Therefore hysteria questions capitalism and may play a revolutionary roll in modern culture. Hysterical women also threaten science with their body, since their symptoms belong to the erotic body, that is, the body as it is built by the investiment of the libid and not to the biological body.
Denying ("Verwerfung") castration capitalism also denies the affairs of love. The importance given to the social bonds, erotism and the affairs of love is what hysterical women and "ordinary"women have in common. Freud gives women the status of Eros in the culture and the condition of a "medicine against massing".
For those reasons we ask: don't women, especially the hysterical ones, resist to the attempt of treating human beings as mere organisms, desconsidering the erotism involved in their symptoms, that is, the repressed desire, the unconscious? Isn't that why they cause so much trouble in mental institutions where biological psychiatry is used to treat people and the logic of capitalism rules?

Key-words: women, discontents, psychiatry, capitalism, Eros


 

 

Introdução

O presente artigo é uma reflexão sobre uma questão que se impôs a partir de minha experiência como acompanhante terapêutico em uma enfermaria mista de um hospital psiquiátrico no Estado do Rio de Janeiro. Internavam-se nesta enfermaria vinte homens e quatro mulheres. Por vezes, e não raro, quatro mulheres "davam mais trabalho" que vinte homens: eram mais solicitantes, mais agitadas, mais falantes, mais "histéricas". O "incômodo" feminino pode ser ouvido em várias instituições psiquiátricas em que tive oportunidade de estar: "A enfermaria feminina, aquilo lá é o hospício"; "Mulher não enlouquece, só piora"; "Onde tem mulher tem confusão"; "Mulher, é tudo histérica." Por diversas ocasiões, ao sair do plantão noturno, os colegas da enfermaria feminina relatavam noites em claro, pois alguma paciente, mesmo após vários SOS's, continuava agitando, gritando: "Não tem remédio que dê conta", disse um desses acompanhantes, certa vez.
"Não tem remédio que dê conta." Pode haver maior incômodo para uma prática médica que se pretende detentora de um saber científico que dê conta do sofrimento humano, pela via da medicalização1 e da biologização? Refiro-me aqui a uma certa corrente da psiquiatria, a psiquiatria biológica, que ainda se faz presente nas instituições psiquiátricas, mesmo após seu atravessamento pelo movimento da Reforma psiquiátrica, movimento este que, incansavelmente, aponta para os fatores psico-sociais do sofrimento psíquico.
As instituições psiquiátricas não são atravessadas apenas pela Reforma ou pelas questões de ordem social. Cabe-nos ressaltar seu atravessamento pelo discurso capitalista que, em aliança com o discurso científico, produz sérias distorções no campo da psiquiatria. Sentimos em nossso cotidiano um efeito da aliança desses dois discursos: não ficamos mais tristes, e sim deprimidos, o que é bem diferente, pois, se a depressão é consequência direta de falta de serotonina e o remédio oferecido compensa essa falta, está erradicada a síndrome, o sofrimento, a falta.
Por que as mulheres, em especial as histéricas, teriam a função de apontar o fracasso desta pretensão de haver "um remédio que dê conta", se a falta é estrutural para ambos os sexos?

 

As mulheres: condenadas ao amor por estrutura

Para a psicanálise, é a partir do complexo de castração e da lógica do falo que homens e mulheres se posicionam na partilha dos sexos. Freud nos mostra em "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos" que não há representação no inconsciente da dualidade de órgãos pênis/vagina que a diferença anatômica apresenta. Mas, se não há representação psíquica desta diferença, como o sujeito do inconsciente, sujeito da psicanálise, poderá dizer-se homem ou mulher? Esta é uma questão problemática para o sujeito que terá que construir sua identidade sexual, já que ela não é dada pela anatomia. "Disparidade entre apresentação e representação: nem tudo que se faz presente na anatomia se faz representado no psiquismo" (Elia, 1995, p.60).

Não há representação psíquica da diferença anatômica pela representação de seus órgãos, mas há representação psíquica de um operador desta diferença, o falo. O que Freud nos diz é que o que se faz representar no psiquismo não é o pênis ou a vagina, mas um único termo: o falo.

O caráter principal dessa organização genital infantil (...) reside em que, para os dois sexos, um único órgão genital, o órgão masculino, desempenha um papel. Não existe, portanto, um primado genital, mas um primado do falo (Freud, 1923/1987d, p.114)

Entretanto, o falo não é sem relação com o pênis, pois é sob a forma de pênis que uma parte do corpo pode ser percebida como presente ou ausente para a criança. Cabe aqui fazer a distinção entre falo imaginário e falo simbólico. A representação psíquica da diferença anatômica sob a forma imagnária de pênis, corresponde ao falo imginário. Assim, o falo imaginário seria a primeira representação psíquica do operador da diferença sexual, inicialmente sob a forma de pênis. Com a aquisição da linguagem, este operador irá adquirir uma outra função, a de operador simbólico.

Por conta dessa imaginarização do falo na figura do pênis, os homens podem com mais facilidade, crer identificar-se pela via do gozo fálico. Os homens reconhecem-se mais homens por suas performances fálicas e isso está bastante presente no imaginário social: gabam-se do tamanho de seus órgãos, de quantas mulheres "pegaram" ou quantas "deram" naquela noite, etc... O gozo fálico é capitalizável.

Isso começa na escola primária, quando mostram um ao outro seus órgãos, medem-nos e se põem a ver quem mija mais longe - o órgão nem está funcionando no plano estritamente sexual, porém o discurso já advertiu o menino de que é em relação a isso que ele vai se medir (Soler, 1998, p.248).

Portanto, para os homens, a identidade sexual é mais facilmente sustentável, ainda que apenas imaginariamente. O mesmo não acontece com as mulheres. A elas falta este recurso em relação ao qual posssam se medir, identificar-se, visto que o falo não as define positivamente, mas apenas por oposição, isto é, diz o que não são, mas não diz o que são. Esta é a questão estrutural com que têm que se haver as mulheres - como dizer-se mulher, se só há o símbolo do gozo sexual masculino?

"O gozo feminino não identifica uma mulher como mulher", diz Colette Soler (1998, p.249) referindo-se ao fato de uma mulher não se reconhecer pelo número ou intensidade de seus orgasmos. O gozo feminino não é contabilizável, pois não é descontínuo. Lacan, em Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, fala do gozo feminino como "um gozo envolto em sua própia contiguidade" (Lacan, 1966/1998, p.735).

Certamente o gozo fálico é acessível as mulheres, já que não está restrito apenas ao nível sexual, mas também pode-se acumular conquistas fálicas no nível do poder, do dinheiro, propriedades, no nível profissional, etc... Cada vez mais o gozo fálico está acessível às mulheres, desde o início de sua liberação quando começaram a entrar no mercado de trabalho, na política, nos esportes, no exército, elas estão por toda parte...e ,mais, recentemente no comando da maior cidade brasileira e no Tribunal Superior Federal! Entretanto, o problema é que o gozo fálico não as identifica como mulheres e quanto mais elas se apropriam do gozo fálico, mais se perguntam sobre sua feminilidade, pois não é no campo do social que a questão se coloca ou se resolve. É no campo da relação sexual que é preciso se posicionar com relação ao seu próprio sexo e ao desejo, para que se possa situar diante do outro.

Por serem confrontadas pela estrutura, a foraclusão do significante do gozo feminino, não há de fato, para as mulheres, identificação sexuada possível por aquele gozo (gozo fálico), o que tem, como resultado acentuar-se nelas o esforço para se identificar pelo amor (Soler, 1998, p.249).

Por não haver um significante que inscreva o gozo específico da mulher, o problema da identificação sexuada feminina redobra a questão da identificação que se apresenta para todos os sujeitos. Uma mulher busca identificar-se com outras mulheres, para saber como ser mulher e poder se inscrever na relação com um homem, o que é, em última análise, a solução pseudo-identificatória: ser a mulher de um homem. A operação de identificação feminina passa necessariamente pela relação com o Outro barrado, trata-se de identificar seu ser no desejo do Outro. "Esperar que o amor as institua como uma mulher, eis a que as mulheres estão reduzidas pela estrutura" (Soler, 1998, p.251).

É precisamente neste ponto que se articula a questão feminina com o mal-estar na cultura moderna, onde o discurso vigente é o do capitalista, discurso este que ao foracluir a castração, ignora "as coisas do amor".

 

Capitalismo, psiquiatria, mal-estar: as histéricas desafiam a ciência

Lacan, em Televisão, fala do mal-estar na modernidade como produto do discurso capitalista e da civilização científica, esta última - a ciência - em sua articulação com o discurso universitário2. Ambos estes discursos apresentam-se problemáticos quanto à formação de laços sociais.

É precisamente por foracluir a castração que o discurso do capitalismo foraclui o próprio laço social, promove um curto-circuito do outro, colocando o sujeito em relação não com outros semelhantes, mas com objetos de consumo. O imperativo categórico superegóico do capitalismo que se impõe ao sujeito é: goze ou consuma. Lacan fala mesmo em foraclusão, relações esquizofrenizantes, autismo induzido, falta de lei.

O discurso do capitalismo rejeita a castração com a oferta de objetos que prometem a satisfação absoluta e que estimulam a ilusão de completude. O sujeito freudiano é marcado por uma incompletude estrutural, pela falta de um objeto que o complete - é o que se pode depreender a partir do conceito de pulsão. A inexistência de um objeto capaz de satisfazer, de uma vez por todas, a pulsão, já que o objeto da pulsão está desde sempre perdido, relança infindavelmente o sujeito no encontro com a falta.

É dessa concepção de ser humano como um ser incompleto que nos fala Freud ao nos apresentar sua teoria do complexo de castração.O complexo de castração - masculino e feminino - é o efeito dessa eleição do pênis como órgão cuja função simbólica é o preenchimento da falta. (...) É essa representação imaginária da falta que vai ser completada com o falo imaginário. O falo vem a ser, pois, qualquer coisa que preencha essa falta a nível do imaginário (Garcia-Roza, 1983, p.220).

Pela mediação deste falo imaginário o sujeito visa escamotear a falta, visa à totalização, à homogeinização e ao apagamento da diferença, já que esta o remete a castração. Pela instauração deste recurso, a falicização, o sujeito pode crer-se completo, auto-suficiente, autônomo. Este é precisamente o modelo de indivíduo da cultura liberal - capitalista.

A economia de consumo capitalista vale-se deste constante esforço humano para disfarçar a falta, oferecendo-lhe falos substitutivos: carros, cartões de crédito, roupas... É o que vemos constantemente veiculado na mídia - a promessa de completude, de nada lhe faltar, se você tiver isto ou aquilo, de felicidade plena: "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta". Não há espaço para tristezas ou qualquer infelicidade, pois o sujeito deprimido não consome.

O marketing das medicações psiquiátricas parece seguir neste ponto a mesma lógica dos produtos de consumo do capitalismo3. Um exemplo paradigmático é "a pílula da felicidade", como vulgarmente é conhecido o Prozac, que promete acabar com as mazelas do sofrimento humano, sem que o sujeito nada precise saber sobre o que lhe acomete, isto é, o recalcado, o desejo inconsciente. A psiquiatria parece atravessada pelo ideário capitalista e valida este ideário com o poder de seu estatuto de ciência. Faz isso ao tomar como doença qualquer mal -estar, como o mal-humor, por exemplo4. Promove assim uma dessubjetivação, ao tentar suprimir do homem o traço marcante de sua subjetividade: a capacidade de se afetar.

O sofrimento deixa de ser subjetivo e ganha objetividade no corpo, a dessubjetivação corresponde à biologização. Ao biologizar o sofrimento, pode, conseqüentemente, medicalizá-lo e seria ingênuo não reconhecer as razões de mercado que contribuem para tanto.

A objetividade parece ser a tônica dos manuais de psiquiatria que se transformaram em livros puramente descritivos, "tomados pela preocupação de se constituir uma língua comum entre psiquiatras de todo o mundo, como um esperanto que pudesse terminar com o malentedido próprio à comunicação"(Quinet, 1999). Os manuais de psiquiatra, ao suprimir o conceito de doenças, substituindo-as por transtornos, tornaram-se a-teóricos5, isto é, não produzem nenhum saber sobre a dinâmica dos males que afetam o sujeito.

"Fundar uma prática de diagnóstico baseada no consenso estatístico de termos relativos a transtornos, que, por conseguinte, devem ser eliminados com medicamentos, é abandonar a clínica feita propriamente de sinais e sintomas que remetem a uma estrutura, que no caso, é a estrutura do próprio sujeito"(Quinet, comunicação pessoal, 13 de agosto de 1999). A biologização, a objetivação do sofrimento no corpo e a conseqüente dessubjetivação, correspondem à objetificação do sujeito. Este não é mais sujeito de seu próprio sofrimento, como aquele que pode produzir um saber sobre ele, mas objeto acometido passivamente por um transtorno, cuja verdade está em seu corpo e a única que pode dizer algo sobre ela é a ciência, a psiquiatria.

O discurso do capitalismo, Lacan (1969-1970/1992) o deduz como uma modificação do discurso do mestre pelos efeitos da ciência. O discurso da ciência é o que mais se aproxima do discurso da histérica, é o que nos diz Lacan em Televisão. Em ambos, o que move o sujeito é o desejo de saber e há uma produção de saber. No discurso da histérica, o agente, o que move o discurso, é o sujeito da interrogação (no caso, a histérica) que interroga o mestre (analista) sobre seu desejo e o faz querer saber e produzir um saber. Na produção científica, vemos também um sujeito interrogando ou interrogado por uma questão e produzindo um saber. Entretanto, o que difere nos dois discursos é o lugar da verdade. A verdade colocada na ciência, neste discurso, suprime a verdade do sujeito, a verdade fica num lugar vazio.

A partir destes elementos, presentes na lógica de funcionamento dos discursos, pode-se ver como a psiquiatria é atravessada em sua prática pelos discursos universitário e capitalista: o agente, o que move o discurso, é o capital6; há a tentativa de negar a castração com a oferta de medicamentos que prometem extinguir a falta e a verdade, por sua vez, não está do lado do sujeito, mas sim da ciência.

O discurso da histérica questiona o mestre, dirige-lhe uma indagação e exige uma resposta, uma produção de saber, não da ciência, mas do mestre (analista ou doutor). O discurso da histérica não pode existir fora do laço social e, apontando para a castração, questiona a lógica dos discursos universitário e capitalista.

A saída verdadeiramente revoluconária estaria no avanço que produz o discurso da histérica (...) O discurso da histérica tem seu valor revolucionário, porque aponta para a castração: "Quero um homem que saiba fazer amor" (Lacan, 1992[1969-70]:193) (Ribeiro, 1999, p.169).

O discurso da histérica não remete exclusivamente a esta estrutura clínica, no entanto, as histéricas são mais freqüentemente porta-voz deste discurso e não é à toa que ele foi deduzido da relação dos "sujeitos histéricos" com o analista.

Vemos assim que os "sujeitos histéricos" são os que podem, com mais frequência, questionar a prática medicalizante/biologizante da psiquiatria biológica, fruto da aliança dos discursos capitalista e científico, ainda presente nas instituições psiquiátricas.

Este questionamento pode se fazer tanto pela via do discurso, quanto pela via do próprio corpo. A ciência, com seu saber, desloca a verdade do campo da fala do sujeito para o corpo, um corpo fragmentado e dessexualizado. A categoria de corpo com que trabalha a ciência é, obviamente, a de "corpo biológico", desconsiderando o "corpo erógeno", isto é, o corpo erotizado, investido libidinalmente . No entanto, é neste "corpo erógeno" que a histérica produz seu sintoma, como já nos mostrava Freud há mais de um século, quando demonstrou que as paralisias histéricas não correspondiam à anatomia, mas à representação psíquica do corpo, ao investimento libidinal na região paralisada.

Deste modo, vê-se que o tratamento das histéricas constitui o grande desafio desta modalidade de ciência, a psiquiatria biológica, que se propõem a tratar um corpo deserotizado, suprimindo a fala do sujeito. As histéricas constituiriam, assim, o limite desta pretensão.

A deserotização, a dessexualização, correspondem à foraclusão da castração no discurso do capitalismo:"A foraclusão do laço social no discurso do capitalista é consequência direta da foraclusão da castração, que é o suporte da libido, das "coisas do amor"(Ribeiro, 1999, p.173). Lacan diz: "toda ordem, todo discurso que se apresenta no capitalismo deixa de lado o que nós chamaremos simplesmente as coisas do amor" (Lacan, 1960-1970/1992, p.46).

Cabe, neste ponto, uma indagação sobre a posição das mulheres e das histéricas em uma sociedade onde reina um discurso que "deixa de lado as coisas do amor", pois este é o ponto de convergência que une estas duas categorias, mulheres e histéricas, e as coloca no cerne do mal-estar na cultura e, mais especificamente, na psiquiatria, a saber: a erotização.

Colette Soler (1998) tece algumas considerações acerca dos efeitos de uma cultura científico-capitalista sobre as mulheres e as histéricas. Ela nos lembra que Lacan frisou, há 25 anos, que as repercussões da ciência em nosso mundo se presentificariam no plano dos laços sociais, por um efeito de universalização. Vivemos claramente esse efeito em nossa era de globalização - um mundo globalizado, essa é a meta do novo milênio. Vemos aí a tendência à totalização, à unidade, ao apagamento das diferenças. Soler nos fala ainda de um outro efeito, "mais notável ainda", o que ela chama de "efeito unissex", que retira da expressão usada nas vestimentas em que, "com efeito, a diferença sexual mais do que se manifestar, às vezes se encobre"(Soler, 1998, p.267). Em nome da igualdade de homens e mulheres, reduzem-se os sujeitos ao trabalhador universal. Este efeito de universalização e unissexualização é corroborado pela ciência moderna, que toma o sujeito em sua definição cartesiana, onde a diferença sexual é ignorada.

Joel Birman, (1999), fala sobre esse efeito de dessexualização na cultura, principalmente européia e americana, e suas consequências para esta forma de se relacionar com o mundo que denominamos histeria. Os processos sociais de normatização do sexual levam à deserotização, à dessexualização dos sujeitos e dos laços sociais. Nas culturas americana e européia, isto parece ser mais pregnante, enquanto no Brasil a erotização ainda está mais presente, por conta de alguns traços marcantes de nossa cultura - traços histéricos, por assim dizer. Por exemplo, a presença viva, em nosso país, das tradições religiosas africanas com seus rituais de possessão, festas, dança e músicas produzem relações ricas do sujeito com seu corpo e gestual, contribuindo para instauração de formas complexas de histericização e erotização da experiência corporal.

A cultura brasileira não carrega na mesma medida, os traços de puritanismo das culturas européia e norte-americana, isto se faz notar em diversos aspectos da nossa cultura onde reina a sensualidade, como por exemplo: no vestuário, na música, na dança e na importância atribuída ao corpo e suas formas e ao próprio gozo sexual.

Trata-se aqui dos aspectos positivos da histericização, de uma positividade da histeria. Birman (1999) fundamenta-se no próprio Freud, quando ele, a partir do mecanismo do recalque, em O Recalcamento, coloca as diferenças entre as estruturas da histeria, neurose obsessiva e fobia. Freud sustenta que, na histeria, seria possível um acesso mais direto ao desejo e que, nesta estrutura, o desejo mantém uma relação viva com o corpo erógeno. Portanto, há na histeria uma maior perenidade do desejo. "A histeria seria a forma pela qual o desejo se materializaria literalmente no sujeito"(Birman, 1998, p.207). O própio Lacan dizia que "a histérica (...) é o inconsciente em exercício (...)"(Lacan, 1969-1970/1992, p.89).

Entretanto, para pensar a histeria em sua positividade, como "eixo constitutivo do desejo", é preciso seguir os passos teóricos de Joel Birman, para desfazer o que ele chama de "elo mortífero" da histeria com o masoquismo.

É preciso evocar, logo de início, que esse elo mortífero entre a histeria e o masoquismo aparece muito cedo na obra de Freud. O discurso freudiano construiu uma imagem das mulheres caracterizada pela passividade, pelo masoquismo e pela inveja do pênis. Assim, a despeito do fato de Freud não ter assinalado a singularidade psíquica das mulheres, desde o início de seu percurso, na medida em que representou o Édipo feminino segundo o modelo masculino, deu-lhes, no entanto, um rosto negativo que perrmaneceu ao longo de sua obra (Birman, 1999, p.205).

O conceito de sublimação é fundamental, para desfazer esse "elo mortífero"da histeria e da mulher em geral com o masoquismo e a infelicidade. É, também, o conceito de sublimação que evidencia, na teoria freudiana, a implicação da mulher com o mal-estar na cultura.

 

A mulher e o mal-estar na civilização: de sintoma a Eros

Em O Mal-Estar na Civilização, quando Freud faz a oposição civilização x desejo, ele coloca a mulher em posição de desvantagem em relação ao homem, para lidar com os efeitos da dessexualização exigida pela civilização, por conta de uma menor capacidade de sublimação.

Neste ensaio, Freud questiona-se sobre o desconforto do homem/indivíduo na civilização e credita este desconforto ao fato da civilização impor sacrifícios, sobretudo à agressividade e à sexualidade. Os membros do grupo devem restringir-se em suas possibilidades instintivas de satisfação, quanto à agressividade e à sexualidade, a favor do grupo, em troca de proteção.

O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém - novamente a mesma exceção - à mercê da força bruta (...) a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos (Freud, 1930/1987b, p.102).

Freud alerta para o fato de que não se pode, impunemente, privar de satisfação um instinto: "Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso" (Freud, 1930/1987b, p.104).

Pois bem, a civilização exige modificações nas disposições instintivas, caracterizando o que Freud chamou de "tarefa econômica de nossas vidas", isto é, uma modificação da economia libidinal. Nesta tarefa, o mecanismo de sublimação desempenha papel fundamental, pois permite desviar um instinto de seu objetivo sexual para outros fins. É neste ponto que Freud coloca as mulheres em desvantagem em relação aos homens, já que lhes atribui uma capacidade menor de sublimação, reforçando o elo do feminino com o masoquismo e a infelicidade a que estariam condenadas as mulheres na cultura.

Joel Birman (1999) indica o caminho para desfazer este "mal-entendido" da questão da sublimação feminina, mostrando a necessidade de nos deslocarmos da primeira para a segunda teoria freudiana acerca do conceito de sublimação. Na primeira teoria, sublimar implicava a dessexualização da pulsão. Isto é, na sublimação havia a mudança de alvo (objetivo), mas não havia mudança de objeto. Já na segunda teoria da sublimação, é possível o investimento em novos objetos, que permitiriam a manutenção da erotização, ou seja, a sublimação não necesariamente implica a dessexualização. Assim, "é possível pensar que pode existir, ao mesmo tempo, erotização e sublimação no registro psíquico da feminilidade" (Birman, 1999, p.211).

Isso permite nos desvencilharmos da "negatividade" que foi imposta pelo discurso Freudiano às mulheres na cultura e resgatarmos a "positividade" de sua inserção, pois o discurso Freudiano sobre as mulheres não se reduz a esta negatividade, ele lhe presta uma homenagem, ao colocar a mulher como representante de Eros na cultura.

A partir da seguinte citação de Freud, podemos problematizar a relação entre a mulher, a civilização, a sublimação e Eros:

As mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua influência retardante e coibidora - as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram os fundamentos da civilização pelas reivindicações de seu amor. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual. O trabalho da civilização tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confontando os homens com tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executar sublimações instintivas de que as mulheres são pouco capazes (Freud, 1930/1987b, p.109).

Pode-se ver, na citação acima, que Freud coloca o amor e as mulheres na origem e nos fundamentos da civilização, juntamente com a necessidade:

A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual - a mulher - e a mulher em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada - seu filho. Eros e Ananke (amor e necessidade) se tornaram os pais também da civilização humana (Freud, 1930/1987b, p.106).

As exigências da civilização desviam os interesses dos homens da família e da vida sexual, dos quais as mulheres se encarregam . Não só as mulheres se encarregam destes interesses como são os únicos dos quais podem se encarregar, dada a sua capacidade deficitária de sublimação.

A feminilidade efetivamente ocupava o pólo oposto ao da sublimação, no seio da Kultur. Podemos compreender os mal-entenditos que essas formulações suscitam: Freud parecia falar das mulheres, ao mesmo tempo, em sua função no seio da Kultur e do ponto de vista da economia de seu próprio psiquismo inconsciente. Assim, dizer que elas possuiam uma capacidade limitada de sublimação equivalia a dizer que eram forçadas a desempenhar, na distribuição de poder no seio da Kultur, esse papel ambíguo: simultaneamente irredutível e resto da Kultur como processo de sublimação (Assoun, 1993, p.163).

A mulher, ao mesmo tempo que é o sustentáculo da civilização, está excluída de seus benefícios; ao mesmo tempo que garante o vínculo fundamental entre os homens, como mãe e objeto de seus desejos, tem que pagar o preço do processo que instaura. "A mulher, ao se ver assim relegada ao segundo plano pelas exigências da civilização, adota para com esta uma atitude hostil" (Freud, 1930/1987b, p.109). Ela representa, assim, a própria ambivalência entre Eros e Anake, entre amor e necessidade, como fundadores do processo civilizatório. É exatamente quando se coloca a relação contraditória entre amor e civilização, que a figura da mulher é evocada por Freud. É neste sentido que podemos pensar a mulher como sintoma da cultura, na construção do texto Freudiano.

A mulher pode ser pensada, neste sentido, como espelho, lugar onde se refletia o mal-estar da civilização. Entretanto, "se é por isso que ela padece, é também através disso que ela dá à Kultur sua feição característica. (...) Em outras palavras, a mulher não é apenas um sintoma da Kultur: nela, há um certo destino da Kultur que se articula e que ela permite nomear" (Assoun, 1993, p.165-166).

Ainda segundo Assoun, a mulher tinha para Freud um efeito positivo fundamental na cultura, o que ele nomeia como "antídoto contra a massa": "Arrancando o homem da ligação com a massa, ela permitiria superar as divisões" (Freud, 1921/1987e, p.169).

Freud diz que "o amor homosexual é muito mais compatível com os laços com a massa" e observa que "nos grandes grupos artificiais, a igreja e o exército, não há lugar para a mulher como objeto sexual" (Freud, 1921/1987e, p.177).

Segundo Assoun, Freud coloca duas possibilidades para o processo de socialização: a união dos homens em torno de um Homem idealizado, ou seja, pelo Ideal do Líder; e a ligação do homem à mulher, pela via de Eros. No primeiro caso, trata-se do amor ao Pai, que possibilita os homens agruparem-se para se opor a outros grupos e, no segundo caso, o amor pela mulher os faz convergir no Eros.

O amor pelas mulheres rompe os vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistemas de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização (Freud, 1921/1987e, p.177 ).

Podemos pensar que o amor pela mulher permite superar as diferenças, pois para o homem, amar a mulher é amar o Outro, isto é, amar a própria diferença, já que ela não cabe toda na ordem fálica. Há na mulher algo que essa lógica fálica não consegue nomear e, portanto, ela aponta para uma outra lógica, "não-toda" fálica. "Por um lado, ela é igual ao homem, podendo-se espelhar nele a partir deste traço distintivo do falo inserindo-se na ordem fálica; por outro lado, tem algo de totalmente diferente, para além do falo" (Quinet, 1995, p17). Lacan radicaliza: "Na dialética falocêntrica, ela representa o Outro absoluto" (Lacan, 1966/1988, p.741).

 

Conclusão

Para concluir, faz-se necessário articular a questão-motor deste trabalho - o "incômodo", o mal-estar, causado pelas mulheres nas instituições psiquiátricas.

Em toda instituição total, a mulher causa mal-estar, como já indicava Freud ao apontar que, na igreja e no exército, não há lugar para mulher como objeto sexual. Não haveria de ser diferente na instituição psiquiátrica, enquanto uma instituição total. Para esses grupos das instituções totais se manterem coesos, é necessário o apagamento das diferenças subjetivas, gerando um efeito de massificação. A mulher é justamente o "antídoto contra a massa". São grupos que se mantêm unidos em torno da figura idealizante do pai e que se regem pela lógica fálica, pois bem, a mulher é justamente o elemento que, de dentro da ordem fálica, aponta para o que lhe escapa.

A lógica fálica é imperante no discurso capitalista, discurso que atravessa a ciência e reina nas instituições psiquiátricas. A mulher encarna o furo desse discurso, na medida em que ela não cabe toda na ordem fálica. A mulher é o que escapa à dimensão normativa sempre presente no discurso científico, portanto, ela causa mal-estar ao tocar na ferida da ciência. Esse mal-estar se traduz em incômodo em quem trata, perturbação nas enfermarias, onde a mulher, dado o seu ponto comum com a histeria, exerce esse papel questionador do discurso capitalista e da ciência, de forma bastante demandante, querelante, desafiadora.

O atravessamento das instituições psiquiátricas, e da psiquiatria (especialmente em sua versão biológica), pelo discurso capitalista, em aliança com o discurso científico/universitário, tem sérias consequências para esta prática médica, que passa a se orientar pela lógica destes discursos: o que move seu discurso, sua prática, suas pesquisas, é o capital. A verdade não está do lado do sujeito, mas do lado da ciência e alienada no corpo, sem que o sujeito possa dizer dela, constituindo-se assim como um discurso de supressão do sujeito. A castração é negada com a oferta de medicações milagrosas que prometem a extinção da falta, a felicidade plena e pretendem dar conta de todo e qualquer sofrimento humano.

Não devendo assujeitar-se nem, ao discurso universitário, nem ao discurso capitalista, a ciência - eis a tarefa que cabe aos cientistas - deve corresponder à estrutura do discurso de que mais se aproxima: o discurso da histérica. No caso da psiquiatria, isto significa que o avanço na ciência aqui deve ser motivado pelo sujeito patológico, sofredor, sujeito da esquize que se manifesta na clínica. É preciso que o agente das neurociências seja o sujeito da clínica que, ao interpelar, com seu pathos, o mestre cientista, o faça produzir o saber, mesmo sabendo que este saber não dará conta de todo o real em jogo na verdade de sofrimento subjetivo (Quinet, Comunicação pessoal, 13 de Agosto de 1999).

No capitalismo, a foraclusão da castração exclui "as coisas do amor", leva à extinção dos laços sociais, à dessexualização. O mesmo parece acontecer no campo da psiquiatria biológica, onde o corpo é dessexualizado e tratado unicamente como o que podemos chamar de "corpo biológico", em oposição ao "corpo erógeno" da histérica.

Este corpo dessexualizado é "objetificado" e, assim como no capitalismo, o corpo é tratado como máquina, os corpos são altamente "setorizados" e os níveis desta ou daquela substância devem ser ajustados, tudo funcionando como uma grande engrenagem.

A dessexualização atingiu, assim, níveis tais, que a histeria se tornou pura negatividade, ou ainda, reivindicação fálica permanente. (...) tudo isso modifica de maneira radical o modo de ser da histeria em sua materialidade psíquica. Com a normalização do erotismo, ela perdeu sua potencialidade expressiva nos níveis do corpo e da linguagem e se tranformou justamente em seu contrário, para, finalmente, revestir os rostos da morte. As depressões incuráveis, as dissociações de massa e até mesmo as novas modalidades de patologia, ditas borderline, constituem os flagelos e os terrores que a dessexualização da histeria engendrou, por meio da normalização do erotismo (Birman, 1999, p.216).

Aqui faz-se necessário resgatar ponto comum das histéricas com as mulheres, qual seja: o movimento de erotização, de valorização do outro, da importância dos laços sociais para os sujeitos assim estruturados, para situar sua insersão nas instituições psiquiátricas. Proponho pensarmos, para finalizar, se as mulheres não estariam funcionando como sintoma em nossas instituições psiquiátricas? Sintoma, aqui entendido, como aquilo que denuncia que algo não vai bem na economia desejante, "essa coisinha que estraga o cenário e atesta que isso não funciona, e que não se pode escondê-lo" (Assoun, 1993, p.155). Não estariam as mulheres, em especial as histéricas, encarnando o limite de impossibilidade de tratar do humano nesta perspectiva deserotizada? Não estariam estes sujeitos, berrando com seu inconsciente, o fracasso da pretenção de universalização, homogenização, apagamento das diferenças? Não teriam as mulheres e as histéricas, com seu "antídoto contra a massa", uma função de resistência a essa tendência de dessubjetivação? Penso que esse é o ponto crucial do mal-estar que causam nas instituições psiquiátricas, dado o seu atravessamento pelos discursos capitalista, em comunhão com o discurso científico/universitário.

Vale ressaltar que esta modalidade de ciência, a psiquiatria biológica, está sendo tomada neste trabalho como exemplo paradigmático de uma forma de tratar o humano em uma perspectiva onde o sujeito é apagado, onde os laços sociais não são valorizados, onde o corpo é dessexualizado, onde a verdade está do lado da ciência e não do sujeito. Essa prática pode, do mesmo modo, ser posta em ação por aqueles que não são adeptos desta psiquiatria, mas que não se deixam afetar pelos sujeitos que atendem, muitas vezes, em cinco minutos, por aqueles que tratam corpos e não sujeitos e se julgam detentores da verdade do sofrimento do outro, aliás, que outro? Essas práticas retratam uma realidade ainda bastante presente em nossas instituições psiquiátricas.

Por último, é preciso resgatarmos o aspecto absolutamente positivo desta característica que as mulheres, representando o Eros, imprimem na cultura - a valorização dos laços sociais - pois isso as coloca como ponto de resistência ao discurso capitalista e aponta para o papel revolucionário, e, por isso, gerador de mal-estar, que a mulher pode ter na instiuição psiquiátrica.

A psicanálise, como prática e discurso que se faz cada vez mais presente nas instituições psiquiátricas, não pode estar alheia a tais questões.Trata-se da incidência política dos analistas nas instituições.

 

Referências

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Recebido em 08 de junho de 2003
Aceito em 24 de junho de 2003
Revisado em 22 de julho de 2003

 

 

NOTAS

1 É necessário fazer a diferença entre medicar e medicalizar. Este último termo expressa uma prática que toma os males que nos afetam unicamente em sua perspectiva orgânica, desconsiderando sua determinação inconsciente.
2 Na teoria dos quatro discursos, Lacan descreve quatro formas de as pessoas se relacionarem: governar, educar, fazer desejar e psicanalisar. Ele propõe para descrever estas quatro formas de relacionamento, quatro discursos, já que os laços sociais se dão pela linguagem. São estes, respectivamente: o discurso do mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso do analista. A partir da formalização destas quatro formas de se relacionar em quatro discursos, pode-se pensar a relação que há entre o agente (o que move o discurso), o outro, a produção e o lugar da verdade em cada um deles.(São estes os quatro termos do discurso).
3 A professora Jane Russo, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desenvolve uma pesquisa sobre o tema abordado neste artigo, na qual rastreou reportagens e propagandas da revista Veja da década de oitenta que corroboram esta afirmação.
4 No ano 2000 uma reportagem, no jornal de maior circulação do Rio de Janeiro, O Globo, dizia que mal-humor pode ser doença.
5 Na introdução do DSM III, classificação psiquiátrica da década de oitenta, consta a observação que se trata de um manual a-teórico.
6 As pesquisas em psiquiatria são financiadas pelos grandes laboratórios que, por sua vez, precisam do nome das universidades para validarem e darem credibilidade a suas "descobertas". A lógica dessas descobertas fala por si só: com a manipulação de moléculas em laboratórios chega-se a determinados compostos, esses compostos são testados pelos psiquiátras que verificam se há efeitos interessantes para a clínica. Caso a verificação seja positiva, os laboratórios patrocinam conferências, livros, encartes, etc... falando sobre a importância de se divulgar determinada síndrome. A estratégia dos laboratórios é não só divulgar o remédio, mas a própria doença. Se, por um lado, a ciência avança e pessoas se beneficiam com as pesquisas, por outo, não podemos desconhecer as implicações político-sociais dessa manobra: a produção cultural de novas formas de sofrimento. Isto caracteriza também uma inversão do procedimento: a medicação determinando o diagnóstico.

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