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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar e Subj. v.4 n.1 Fortaleza mar. 2004

 

ARTIGOS

 

Marxismo e psicanálise no pensamento de Herbert Marcuse: uma polêmica

 

 

Marilia Mello Pisani

Aluna do Programa de Pós-Graduação do Doutorado do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos. End.: Rod. Washington Luís, Km 235 - Caixa Postal 676. Cep: 13565-905. São Carlos, S.P. e-mail: mariliapizani@hotmail.com

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é mostrar que a interpretação de Marcuse da obra de Freud não pode ser compreendida fora da relação entre a psicanálise freudiana e o marxismo, uma relação que não é nem de oposição, nem de síntese (união), mas dialética - é neste contexto que a teoria freudiana revela toda a sua importância. Para compreendermos a interpretação de Freud realizada por Marcuse, optamos por analisar a crítica de Paul Robinson, segundo a qual Marcuse teria tentado "unir", em Eros e Civilização, Marx e Freud. O trabalho baseado nesta crítica se mostrou muito frutífero, pois permitiu estabelecer uma série de pontuações em relação à interpretação de Marcuse. A fim de argumentarmos contra a leitura de P. Robinson, expusemos as devidas diferenças entre Marcuse e o Revisionismo Neo-freudiano: a interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse só pode ser compreendida dentro do contexto desta crítica - é aqui que ela revela toda a sua particularidade. Marcuse tenta "salvar" a teoria freudiana do psicologismo americano dos anos 50 e 60, apresentando-a como uma teoria essencialmente crítica. Também retomamos, por um lado, os conceitos de "dessublimação repressiva", "mais-repressão" e "princípio de rendimento", formulados por Marcuse em Eros e Civilização, assim como retomamos, por outro, o contexto da "crítica imanente" na qual a interpretação marcuseana se insere e sem a qual não pode ser compreendida.

Palavras-chave: Marcuse, Eros e Civilização, teoria crítica, psicanálise freudiana, marxismo


ABSTRACT

The proposal of this paper is to show that Marcuses'interpretation about Freud's work can not be understood out of relation between the Freudian Psychoanalysis and the Marxism, a relation that is not of opposition neither of synthesis (union), but dialetic - at this context that Freudian Theory reveal its whole importance. To understand the interpretation about Freud achieved by Marcuse, we chose for analyse the Paul Robinson's criticism. According to Robinson's interpretation, Marcuse tried to unite, in Eros and Civilization, Marx and Freud. The work based in that criticism was very productive, because it provides to establish many topics regarding interpretation of Marcuse. To argue against the Robinson's reading, we exposed the proper differences between Marcuse and the Neo-freudian Revisionism, since interpretation of Freudian Theory achieved by Marcuse only can be understood inside the context of criticism to the Revisionism. It is here that it reveals its peculiarity: Marcuse try to save Freudian Theory from american psychologism of fifities and sixties age, showing it like a essentially critical theory. We recovered some concepts such as Repressive Desublimation, Surplus-repression and Performance Principle, formulated by Marcuse, as well as we recovered the context of Immanent Criticism, where is Marcusean interpretation.

Keywords: Marcuse, Eros and Civilization, critical theory, freudin theory, marxism


 

 

Introdução

Pretendemos apresentar neste artigo um trecho da discussão desenvolvida no trabalho de dissertação de mestrado, encerrado no final de 20021, a respeito de uma questão que se mostrou fundamental para a compreensão da obra de Marcuse: a da relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana. No decorrer deste estudo, uma questão se mostrou fundamental para a compreensão da obra de Marcuse: a da relação entre o marxismo e a psicanálise freudiana. A polêmica que esta questão suscita se refere ao estatuto da teoria freudiana e do marxismo na obra Eros e Civilização, uma vez que se encontrou uma variedade de leituras divergentes entre os autores que trataram da questão. Faremos aqui uma tentativa de esclarecê-la, a partir de uma determinada perspectiva que pareceu ser a mais plausível, mas sem a intenção de esgotá-la por completo.

Esta problematização a respeito da relação do marxismo e da psicanálise freudiana2 poderia ser estendida ao conjunto da teoria crítica, uma vez que todos os seus integrantes trataram da questão em diversos textos; mas isto ultrapassaria os limites deste trabalho. Este empreendimento foi realizado por Rouanet, no seu excelente livro Teoria Crítica e Psicanálise, que utilizaremos no decorrer da argumentação.

Nosso objetivo é especificar a relação entre Marx e Freud na obra de Marcuse, o que, por sua vez, permitirá compreender a particularidade da interpretação marcuseana da psicanálise. A tese que se defende é a de que Marcuse não realiza uma "síntese" ou "união" de Marx e de Freud em Eros e Civilização, tal como proposto por Paul Robinson em A Esquerda Freudiana, um livro que, para além de nossas divergências em relação a alguns pontos, contém uma excelente apresentação do pensamento de Marcuse. Segundo Robinson, Marcuse tentou "sintetizar as categorias freudianas e marxistas" (1971, p.161), ou então, "correlacionar a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo" (1971, p.157). Esta afirmação é enganosa, pois elimina toda a mediação e a dialética presentes no pensamento de Marcuse, que constituem a especificidade de sua leitura. A idéia de "síntese" simplificao que é na verdade uma análise complexa e fundamentada, como será possível demonstrar no decorrer da argumentação.

A interpretação da obra de Freud realizada por Marcuse deve ser entendida no contexto da crítica marxista da sociedade de massas contemporânea, mas de um marxismo não ortodoxo. Com o desenvolvimento histórico, Marcuse repensa e questiona os conceitos e concepções do marxismo e, neste processo, a teoria freudiana adquire um papel fundamental. A relação entre o marxismo e a teoria freudiana, na obra de Marcuse, deve ser entendida como sendo dois momentos que se completam e se refutam. Eles se completam na medida em que o marxismo apresenta o processo objetivo de exploração e subjugação do indivíduo, no modo de produção capitalista, desmistificando esse processo social e econômico através da "crítica da economia política" (crítica da razão capitalista): enquanto "linguagem do todo", o marxismo representa o universal. Já a psicanálise representa este processo social na perspectiva do indivíduo, de seu efeito subjetivo, que surge da interação com outros indivíduos e com o meio: ela representa o particular, isto é, a dimensão subjetiva do longo processo de dominação e exploração (dinâmica objetiva) denunciado por Marx.

O marxismo e a psicanálise freudiana expressam os dois lados de um mesmo "fato", duas perspectivas de uma mesma realidade, a realidade do indivíduo "cindido", explorado e alienado. Neste sentido, elas se completam. Enquanto o marxismo apresenta a base social deste processo (a infraestrutura econômica), a psicanálise apresenta a base psíquica correspondente a este processo, que é por ele produzida, ao mesmo tempo em que o mantém e o reproduz. Segundo Marcuse, a psicanálise é "linguagem do particular" na qual o todo é passível de ser reconhecido.

O marxismo e a psicanálise se refutam na medida em que não podem ser unidos numa disciplina totalizante - estas teorias são o "limite negativo" uma da outra, são dois modos de explicar a realidade da sociedade alienada, dois instrumentos de análise cujo uso "é determinado pelas exigências do objeto" (Rouanet, 1989, p.76). A "fusão" do marxismo e da psicanálise constituiria uma traição às intenções críticas dos seus respectivos autores (Rouanet, 1989, p.74). A linha que separa a psicanálise do marxismo só poderia ser abolida através de uma transformação social efetiva, que eliminasse o antagonismo entre o universal e o particular, entre as exigências da sociedade repressiva (de sua manutenção e perpetuação) e as exigências e necessidades individuais - esta separação testemunha um fato empírico, o da real separação entre o indivíduo e a sociedade. A relação do marxismo e da psicanálise, na teoria crítica, deve ser compreendida na relação dialética entre o universal (dimensão social) e o particular (dimensão psíquica), entre o indivíduo e a sociedade.

A relação de Freud e Marx [na teoria crítica] é dialógica e não sistemática. No máximo, são duas falas, que se confirmam, se refutam, se cancelam: dois motivos em contraponto, no interior de uma sinfonia, mais que duas teorias no interior de um sistema (...) sua essência está, justamente, nessa relação dialógica entre Marx e Freud, em que as duas doutrinas funcionam como limites negativos uma da outra, relativizando-se e relativizando qualquer pretensão totalizante (...). (Rouanet, 1989, p.76)

 

A crítica de Paul Robinson

Passemos agora à análise da crítica de Paul Robinson a Marcuse, através da qual poderemos especificar alguns pontos importantes, no que se refere à apreensão da psicanálise freudiana realizada por Marcuse. Vejamos, através da seguinte citação, a argumentação de Robinson em relação a uma possível síntese de Marx e Freud presente na obra de Marcuse:

É minha convicção de que a tática subjacente de Eros e Civilização tinha por finalidade pôr de acordo a teoria freudiana com as categorias do marxismo. (...) Quando se lê e relê Eros e Civilização, fica-se inevitavelmente impressionado pelo modo sistemático como Marcuse transladou as categorias não-históricas e psicológicas do pensamento de Freud para as categorias eminentemente históricas e políticas do marxismo. É precisamente essa síntese de Freud e Marx que pretendo realçar nas páginas seguintes. (Robinson, 1971, 157, grifo nosso)

Esta frase contém os elementos a partir dos quais nossa crítica será dirigida. A argumentação do autor mostra que ele de fato não "percebeu" a relação dialética presente na mediação entre os conceitos, na obra de Marcuse, como será possível demonstrar no decorrer de nossa argumentação.

É importante destacar que, desde o início de seu livro, logo na primeira frase do prefácio, Marcuse diz que as categorias psicológicas do pensamento de Freud, são em si mesmas, categorias políticas e históricas, o que torna a idéia exposta por Robinson do "translado das categorias" no mínimo suspeita. Vejamos o que diz Marcuse:

Este ensaio emprega categorias psicológicas porque elas se converteram em categorias políticas. A fronteira tradicional entre a psicologia, de um lado, e a política e filosofia social de outro, tornou-se obsoleta em virtude da condição do homem na era presente: os processos psíquicos anteriormente autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela (...) sua existência pública. (Marcuse, 1999b, p.25, grifo nosso)

Robinson argumenta ainda que a fim de transformar o que eram categorias essencialmente não-históricas da teoria freudiana, em categorias históricas, Marcuse introduziu "numerosas e importantes distinções históricas e sociológicas", o que o habilitou a "correlacionar a teoria psicanalítica com os pressupostos do marxismo" (Robinson, 1971, p.157). Ele refere-se aos conceitos de "mais-repressão" e "princípio de rendimento": estes conceitos estariam correlacionados às noções de "mais-valia", "alienação" e "reificação" do marxismo. Estes conceitos referem-se ao destino da "repressão" e ao conteúdo do "princípio de realidade", sob a vigência do capitalismo monopolista. Robinson acusa Marcuse de cometer o mesmo "erro" do "revisionismo neo-freudiano", por ele criticado no epílogo de Eros e Civilização.

A questão que se impõe é: Marcuse introduz na teoria freudiana conteúdos históricos e sociológicos exteriores a ela? Se este não for o caso, como se explicam os conceitos de "mais-repressão" e "princípio de desempenho"?

Para tentar esclarecer estas questões, retomaremos a crítica de Marcuse ao revisionismo neo-freudiano, através da qual poderemos comparar sua argumentação crítica em relação ao revisionismo com o próprio desenvolvimento dos seus conceitos; em seguida, serão especificados os conceitos de "mais-repressão" e de "princípio de rendimento".

 

A crítica ao Revisionismo Neofreudiano

A fim de ilustrar sua crítica ao revisionismo, Marcuse retoma a oposição entre as concepções de "amor", expostas por Fromm e por Freud. Dessa forma, ele pretende mostrar que a análise revisionista introduz, de fora da própria psicanálise, concepções que lhe são estranhas, atenuando o conflito do indivíduo com a sociedade. Segundo Fromm:

O verdadeiro amor é enraizado na produtividade e pode, conseqüentemente ser chamado de "amor produtivo". Sua essência é a mesma, quer se trate do amor da mãe pelo filho, de nosso amor pelos seres humanos ou do amor erótico entre dois indivíduos (...). Pode-se dizer que certos elementos são característicos de todas as formas de amor produtivo. Estes são a solicitude, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento. (Fromm apud. Marcuse, 1963, p.227, grifo nosso)

Para Marcuse, essa "formulação ideológica" do revisionismo opõe-se substancialmente à análise crítica de Freud - vejamos o que este diz:

Nós não podemos nos dissimular [do fato de que] o comportamento amoroso dos homens, no seio de nosso mundo civilizado atual, é inteiramente impregnado do caráter de impotência psíquica. As correntes de ternura e sensualidade se acham raramente confundidas nos seres humanos cultivados; quase sempre, o homem vê sua atividade sexual atenuada pelo respeito da mulher e só exerce toda a sua potência quando ele se encontra frente a um objeto sexual de tipo inferior. (Freud apud. Marcuse, 1963, p.227, grifo nosso)

Marcuse procura chamar a atenção para o fato de que o revisionismo aceita as premissas fundamentais da sociedade alienada. Enquanto na teoria freudiana, o "amor" aparece como destrutivo, oposto ao trabalho e à produtividade e só sendo possível enquanto "amor inibido quanto ao seu alvo", ou seja, como essencialmente antagônico com a sociedade (essa sociedade!), no revisionismo, o "amor" não aparece em conflito com esta, mas ao contrário, o amor se "funde numa grande harmonia" com a produtividade, a felicidade, o respeito e a saúde psíquica. Para o revisionismo, a "felicidade produtiva", a "solicitude", a "realização produtiva da personalidade", a criatividade, a "responsabilidade", o "amor pelo próximo", a "personalidade autônoma", são todas premissas que podem se realizar no interior mesmo desta sociedade. Esta crítica de Marcuse se estende também à maneira pela qual os revisionistas tratam da questão da teoria e da terapia psicanalítica, uma vez que esta reflete uma posição conformista.

A contradição entre a teoria e a terapia diz respeito a uma contradição presente na própria teoria freudiana, no que se refere à finalidade da terapia quanto à possibilidade de "cura" do "paciente": enquanto a teoria acusa a sociedade de não permitir ao indivíduo nem a satisfação de suas pulsões, nem a felicidade, a terapia propõe "curar" o indivíduo, adaptá-lo, para que ele possa continuar vivendo nesta mesma realidade que o tornou doente. Evitando os conceitos mais especulativos de Freud, aqueles que não são sujeitos à verificação clínica (como a "pulsão de morte", a hipótese da horda primitiva, o assassinato do pai) e redefinindo aqueles que, segundo Marcuse, são os mais explosivos (o papel da teoria da sexualidade, o papel do inconsciente, a importância da infância e do passado filogenético no desenvolvimento do indivíduo, entre outros), os revisionistas eliminam o conflito irreconciliável entre o indivíduo e a sociedade, o que garante o sucesso da terapia, isto é, a adaptação bem sucedida e a resignação frente à realidade injusta. Segundo eles, o "objetivo mais elevado da terapia" é o ótimo desenvolvimento das potencialidades da pessoa, o que resulta na plena realização de sua individualidade. A terapia adapta o indivíduo a uma realidade injusta, de modo que ele consiga suportar a sua existência infeliz e mesmo achar que é feliz, sem o ser de fato: as escolas revisionistas "assimilaram esta contradição entre a teoria e a terapia" (Marcuse, 1963, p.214).

Os revisionistas definem as possibilidades de satisfação e desenvolvimento individual, a partir de "promessas" oferecidas no próprio interior da sociedade que as nega, como se estas pudessem ser realizadas "pelo poder do pensamento positivo, frente ao qual a crítica revisionista sucumbe" (Marcuse, 1963, p.226). Segundo Marcuse, este seria o grande "erro" da psicanálise revisionista: "esta filosofia dirige sua crítica aos fenômenos de superfície, enquanto aceita as premissas fundamentais da sociedade criticada" (Marcuse, 1963, p.225) - ela elimina da teoria psicanalítica, a "teoria das pulsões" e, com isso, a oposição entre a necessidade de gratificação pulsional (promessa de felicidade) e a realidade da repressão (sociedade alienada), entre o indivíduo e a sociedade, assim como elimina do marxismo a luta de classes, "privando tanto o freudismo quanto o marxismo de seu conteúdo" (Rouanet, 1989, p.50).

A psicanálise elucida a experiência universal que sobrevive na experiência individual. Nesta medida, e somente nesta medida, a psicanálise pode romper a reificação nas quais as relações humanas estão petrificadas. (Marcuse, 1963, p.220)

A oposição entre o indivíduo e a sociedade na teoria freudiana, indica a existência de uma relação antagônica entre as necessidades individuais e sociais (entre o universal e o particular) que não pode ser abolida no plano do pensamento, num remanejamento da própria teoria - tal como realizada pelo revisionismo neofreudiano - mas somente através de uma transformação efetiva da sociedade: esta oposição é o reflexo de uma realidade também contraditória (afinal o indivíduo representa o universal). A citação a seguir, de Adorno, elucida a maneira como a teoria crítica compreende a singularidade das contribuições da teoria freudiana:

No revisionismo, a "questão política" referente à transformação da sociedade se torna uma "questão moral": "confrontados com o dilema entre alterar o freudismo ou a realidade, preferiram alterar o freudismo" (Rouanet, 1989, p.222). O "pessimismo" freudiano implica uma recusa em compartilhar esta realidade opressiva e causadora de doenças psíquicas (neuroses, perversões, etc.) e sofrimento humano (angústia, melancolia), elementos tão presentes para Freud na terapia. Neste sentido

(...) a questão de Freud: os valores superiores da cultura não terão sido realizados a um custo excessivo para os indivíduos?, deveria ser considerada mais seriamente para impedir os filósofos psicanalistas de pregarem estes valores sem revelar seu conteúdo proibido, sem mostrar que eles foram recusados ao indivíduo. (Marcuse, 1963, p.226-227)

Segundo Marcuse, o problema não está nas premissas que o revisionismo proclama, mas na realidade que é incompatível com a realização destas. Falta-lhes a crítica dessa realidade, uma crítica que apreenda essa realidade mesma como falsa, como ideológica. A principal diferença entre, de um lado, o período atual (sociedade de massas contemporânea) e, de outro, o passado (período liberal) é que, neste último, a aceitação da realidade repressiva (tal como se apresenta em Freud) era justificada pelo fato de esta ser uma realidade de "penúria", na qual a repressão das pulsões se fazia necessária para que o trabalho fosse possível e, com ele, a satisfação das necessidades básicas. Enquanto isso, no atual contexto histórico, frente à possibilidade real de eliminação de luta pela existência propiciada pelo desenvolvimento técnico alcançado, existe a aceitação de uma realidade que se apresenta como não repressiva, apesar de constituída pela repressão. Isto é: ocorre a obliteração do sofrimento, ou nos termos de Marcuse, a "dessublimação repressiva" dos conteúdos denunciadores e opositores ("negativos") da realidade. A seguir, faremos uma breve apresentação deste conceito tão importante no pensamento de Marcuse e, mais à frente, continuaremos a discussão com Robinson.

 

A "Dessublimação Repressiva"

O conceito de "dessublimação repressiva" permite compreender a dinâmica da sociedade contemporânea que, por um lado, possibilita uma maior "liberdade" e satisfação das necessidades, ao mesmo tempo em que, por outro lado, essa "liberdade" atua como um poderoso instrumento de dominação, sendo absorvida pelo sistema, adquirindo a função de manipulação e controle dos indivíduos, de suas consciências, de seus desejos e necessidades.

A "sublimação", tal como Freud definiu, corresponde ao processo psíquico pelo qual as pulsões sexuais ("parciais") perdem sua meta sexual imediata e se satisfazem em objetos não diretamente sexuais: é a capacidade de trocar uma meta originariamente sexual por uma outra meta, não exatamente sexual, mas aparentada a ela (Laplanche & Pontalis, 2001, p.495). Ela conduz a uma "dessexualização". A "sublimação" é uma das vicissitudes das pulsões e representa a restrição quanto à possibilidade de satisfação pulsional imposta pelo choque com o mundo exterior. A vida em sociedade só é possível a partir da "sublimação", a partir do adiamento da satisfação pulsional, sem o que não seriam possíveis as relações entre as pessoas como a família e a amizade, pois estas dependem de inibição dos fins sexuais imediatos (apesar desta não ser descrita por Freud como sublimação, mas como muito perto dela), nem haveria o trabalho social, o progresso, a investigação intelectual e a criação artística.

Segundo Marcuse, essas grandes realizações da humanidade possibilitadas pela "sublimação", como a arte, a literatura, a religião, a ciência, a filosofia e a música, representam uma recusa em aceitar a realidade injusta, o "princípio de realidade" que impõe a modificação repressiva das pulsões. Na arte, sobrevive a imagem de um mundo diferente, a denúncia e a necessidade de libertação - ela "conserva a consciência infeliz do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as esperanças não concretizadas e as promessas traídas." (Marcuse, 1969, p.73-74, grifo nosso). A "sublimação" cria imagens irreconciliáveis com o "princípio de realidade" repressivo, que se expressa na arte como um "poder negativo", isto é, uma recusa em aceitar este "princípio de realidade".

O processo de "sublimação" das pulsões, necessário para que o sujeito se torne apto a viver em sociedade, se desenvolve com a resolução do complexo de Édipo, através do qual se impõe a adaptação do sujeito ao "princípio de realidade", assim como o abandono do "princípio de prazer" e das possibilidades de satisfação pulsional. Neste processo, há o abandono da sexualidade polimórfica, o estabelecimento da sexualidade genital através da sublimação das "pulsões sexuais parciais" e a formação do "superego" e do "ideal de ego". Neste sentido, o complexo de Édipo "desempenha papel fundamental na estrutura da personalidade e na orientação do desejo humano" (Laplanche & Pontalis, 2001, p.77). O "superego" surge com o estabelecimento do processo de "sublimação" e conduz à internalização das imposições e restrições sociais e à introjeção das exigências do "princípio de realidade", representadas pelos pais. No conflito entre as tendências de amor e ódio para com o pai, como representante da sociedade, formam-se a consciência, a autonomia e a compreensão individuais, necessárias para a produção artística. Portanto, o "conflito" é o elemento central para a formação da consciência e autonomia individual. Na medida em que a "sublimação" se apresenta como uma imposição da sociedade, ela preserva a consciência da repressão e, portanto, a revolta das pulsões contra o "princípio de realidade" repressivo.

A "dessublimação", ao contrário, elimina toda consciência dos antagonismos e dos conflitos, enfraquecendo a revolta das pulsões e a rebelião por um novo "princípio de realidade": nesta sociedade, os conflitos insolúveis se tornam controláveis - "o psiquiatra cuida dos Dons Juans, Romeus, Hamlets, Faustos, da mesma forma como cuida de Édipo - ele os cura." (Marcuse, 1969, p.98). O conflito entre o desejo de satisfação pulsional e a sua realização, entre o indivíduo e a sociedade, é obscurecido a partir de uma dominação mais intensa e repressiva, uma vez que a própria sociedade controla os desejos (as necessidades) e o objeto desses desejos (as mercadorias).

No processo de "dessublimação", a satisfação mediata proporcionada pela "sublimação", a partir da qual se abria a possibilidade da tomada de consciência da experiência da repressão, é substituída por satisfação imediata, que obscurece essa consciência: esse imediatismo é incentivado por uma organização social que produz bens de consumo em larga escala, para satisfazer as necessidades desses bens que ela mesma produziu (tanto as necessidades quanto os bens!). Na "sociedade de consumo", as possibilidades de "sublimação" (adiamento da satisfação) são limitadas: há uma "[redução] da necessidade de sublimação" (Marcuse, 1963, p.87).

No mecanismo mental, a tensão entre o que é desejado e o que é permitido parece consideravelmente reduzida; o princípio de realidade não parece mais exigir a transformação [repressiva] e dolorosa das pulsões. O indivíduo deve adaptar-se a um mundo que parece não exigir a negação de suas necessidades mais íntimas - um mundo que não é essencialmente hostil. (Marcuse, 1963, p.84)

Na sociedade industrial avançada, é justamente a "força subversiva" presente na "sublimação" que é eliminada pelo "processo da racionalidade tecnológica": a racionalidade do sistema - sua máxima eficiência, produtividade e eficácia - tornam todo protesto insensato e irracional, uma vez que satisfaz efetivamente as necessidades materiais dos indivíduos - esta é a "base material da dominação ideológica". A dominação é justificada por uma sociedade que "satisfaz" - assim seu desenvolvimento aparece como "racional". Há uma absorção da ideologia pela realidade, na qual os conteúdos ideais de conceitos como "felicidade" e "liberdade" parecem poder realizar-se efetivamente. Mais do que isso, essa sociedade produz as próprias necessidades desses indivíduos, "produzindo satisfação real, embora no plano da fruição manipulada":

A criação de necessidades repressivas tornou-se há muito parte do trabalho socialmente necessário; necessário no sentido de que, sem ele, o modo de produção estabelecido não poderia ser mantido. Não estão em jogo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da dominação ideológica. (Marcuse apud. Maar, 1998, p.69)

Este processo de "unificação dos conteúdos antagônicos" atinge todas as esferas da sociedade, que são transformadas em elementos de manutenção do sistema de dominação: elas se tornam momentos do processo de produção na reprodução do sistema. A ética, o trabalho, a sexualidade, a cultura e mesmo a esfera pulsional tornam-se elementos de "afirmação", elas perdem o conteúdo de oposição que caracterizou as fases anteriores do desenvolvimento da sociedade, aquele conteúdo transcendente a partir do qual a sociedade era negada, questionada e denunciada. Este sistema "produz as [próprias] condições sociais - culturais-materiais - de reprodução do capital" (Maar, 2002, p.92). Nesta sociedade,

(...) o controle se exerce além da dimensão estritamente econômica: agora o capital exerce seu jugo no conjunto da sociedade capitalista. A obstrução da manifestação das contradições do capitalismo se estabelece mediante uma política de controle estatal da economia e uma cultura de massas nos termos das sociedades consumistas modernas. (Maar, 1998, p.64)

A análise da transformação da "cultura" na sociedade capitalista totalitária realizada pela teoria crítica resultou no conceito de "indústria cultural" em Adorno e Horkheimer e no conceito de "cultura afirmativa" em Marcuse: este processo representa, entre outros, a transformação dos objetos culturais em "bens culturais" (no sentido de bens de consumo). Neste processo, a cultura perde o conteúdo negativo que representava sua denúncia contra a sociedade. A cultura (assim como todas as outras esferas que compõem a vida social) passou por esse processo de aplanamento (unidimensionalização) dos seus conteúdos antagônicos: ela adquiriu um "caráter afirmativo", uma função social na reprodução do modo de produção vigente.

O poder absorvente da sociedade esgota a dimensão [transcendente] pela assimilação de seu conteúdo antagônico. No domínio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem pacificamente, sem indiferença. (Marcuse, 1969, p.73, grifo nosso).

A dinâmica fundamental para a compreensão do atual contexto da dominação na sociedade de massas contemporânea (que se apresenta obscurecida pela racionalidade do sistema) refere-se à inversão entre "valores de uso" e "valores de troca". O "círculo de coesão progressiva" (Maar, 2000, p.88) que "prende" os sujeitos na sociedade de consumo de massas é determinado a partir de uma "intervenção no plano das necessidades": nesta sociedade há produção de necessidades, assim como dos bens para satisfação destas necessidades produzidas. A manipulação se dá através da produção incessante de mercadorias que não possuem, em si mesmas, "valor de uso" efetivo, mas apenas um "valor de uso" aparente, isto é, um "valor de troca" - ocorre a produção de "valores de troca" como se fossem "valores de uso": "seu valor é um valor que se apresenta como de uso, sem sê-lo - e assim jamais é satisfeito." (Maar, 2002, 93). Esse "valor de troca" tornado necessidade é o fetiche, em torno do qual a sociedade se constrói e se reproduz.

O elevado nível de vida no domínio do grande capital é restritivo, no sentido sociológico do termo: as mercadorias e os serviços que os indivíduos compram manipulam suas necessidades e petrificam suas faculdades. Em troca dos bens de consumo que enriquecem suas vidas, os indivíduos não vendem apenas seu trabalho, mas também seu tempo livre. (Marcuse, 1963, p.94)

A produção de necessidades e a manipulação da consciência, que lhe é concomitante, ocorrem (como já dito) no próprio processo de trabalho, tal como ele se encontra constituído - enquanto trabalho alienado, reprodutor do próprio processo de trabalho e do modo de produzir. O processo de trabalho possui um papel "formador" e reprodutor do sistema de dominação, sendo ele destinado à realização de "valor de troca" e à produção de necessidade de "valor de troca" - fins exteriores à satisfação das "verdadeiras necessidades" e à felicidade dos indivíduos. Esta análise de Marcuse enfatiza a estreita ligação entre o trabalho e a produção de necessidades (tal como nas formulações de Marx), na medida em que as necessidades humanas são históricas e, por isso, determinadas de acordo com a forma que o trabalho assume historicamente. Neste sentido, abre-se a perspectiva para uma distinção entre as "verdadeiras" e "falsas" necessidades, que revela a intervenção e manipulação da sociedade nos próprios sujeitos.

Essa distinção entre "verdadeiras" e "falsas" necessidades (que se encontra tanto em Marcuse quanto em Adorno) torna possível a crítica ao atual modo de produção, que produz necessidades com o objetivo de manutenção do sistema de controle e dominação. As "falsas" necessidades referem-se àquelas que são geradas no curso do processo de trabalho, a fim de manter este mesmo processo. Duas citações são interessantes para esclarecer esta questão das "falsas" necessidades:

'Falsas' são aquelas [necessidades] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares (...): as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. (...) A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades. (Marcuse, 1969, p.26)

É preciso advertir que necessidades 'falsas' não são falsas necessidades, mas verdadeiras necessidades, embora 'falsas' no sentido de serem imposições de um certo modo de produzir aos homens que, eles próprios, produzem conforme este modo de produzir e produziram o próprio modo de produzir o qual impõe suas necessidades a eles como se fossem deles. As necessidades são produzidas no processo de reprodução social do modo de produção. (Maar, 1999, p.66-67)

As "verdadeiras" necessidades são aquelas que, tendo sido saciadas as necessidades básicas à sobrevivência do indivíduo (necessidade de comer, beber, vestir-se e abrigar-se), desenvolvem-se livremente, e têm como propósito, a própria vida, ou seja, um fim nãoexterior ao indivíduo. Na medida em que essas necessidades básicas não são satisfeitas universalmente para todos os indivíduos, o atendimento às necessidades secundárias ("falsas") apresenta-se como uma injustiça, uma denúncia à irracionalidade deste modo de produção. A distinção entre "verdadeiras" e "falsas" necessidades só pode ser feita historicamente, de acordo com as possibilidades objetivas, uma vez que "a satisfação universal das necessidades vitais e suavização progressiva da labuta e pobreza sejam padrões universalmente válidos", em um determinado momento histórico: a própria sociedade deve oferecer os critérios para esta distinção (Marcuse, 1969, p.26). A citação a seguir de Adorno é significativa, no que se refere a esta questão:

Não seria possível, por exemplo, decretar abstratamente que todos os homens precisam ter o que comer, enquanto as forças produtivas não fossem suficientes para a satisfação das necessidades primitivas de todos. Contudo, quando numa sociedade (...) aqui e agora, em face da abundância de bens existentes (...) da mesma maneira existe a fome, então isto exige a intervenção nas relações de produção. Esta exigência brota da situação, de sua análise em todas as dimensões, sem que, para isto, se precisasse da universalidade e da necessidade de uma representação de valor. (Adorno apud. Maar, 2000, p.104)

Nesta sociedade o reforço do controle sobre as consciências permite o relaxamento nos tabus sexuais. A libertação da sexualidade, permitida e incentivada atualmente não se opõe à sociedade que estendeu seu controle sobre o indivíduo: ocorre a "dessublimação da sexualidade". A sexualidade, que até então ainda era mantida sob forte tabu, foi integrada ao sistema de dominação e agora a sua libertação se tornou elemento de coesão social. Entretanto, há uma "aparente" libertação, pois ela continua presa aos moldes da sociedade repressiva - neste sentido, ela sofre um processo de dessublimação repressiva. Apesar da "dessublimação" corresponder a um processo de "ressexualização", ela não produz um aumento de satisfação e prazer, pois não houve uma transformação nas relações de trabalho nem na estrutura de dominação e controle que mantém esta sociedade. Neste sentido, esta libertação atua como uma força a mais na manutenção do sistema.

A liberação repressiva da sexualidade se dá numa forma que não se opõe ao "princípio de realidade" vigente, mas o mantém: ao invés de haver um restabelecimento na libido polimórfica e da energia erótica de Eros (características da sexualidade não "sublimada") há uma intensificação da sexualidade genital repressiva. A sexualidade, tal como se encontra determinada atualmente, difere essencialmente da força "explosiva" característica da sexualidade descrita por Freud. Nesse processo de "liberação", ela foi integrada ao processo de trabalho, à propaganda e aos meios de comunicação de massas, apresentando-se como mais uma mercadoria - com "valor de troca" e não de uso:

Sem deixar de ser um instrumento de trabalho, o corpo tem permissão para exibir suas características sexuais no mundo do trabalho (...). Esta é uma das realizações originais da sociedade industrial - tornada possível com a redução da sujeira e do trabalho pesado; pela disponibilidade de roupas baratas e atraentes, cultivo da beleza e higiene física, (...) etc. As escriturárias e balconistas sensuais, o chefe de seção e as superintendentes atraentes e viris são mercadorias altamente comercializáveis (...). (Marcuse, 1969, p.84)

Numa realidade como esta, o trabalho da teoria crítica é "desfazer a falsa consciência" (a "consciência feliz"), desmistificando essa realidade que oblitera a repressão. Os conceitos que a teoria freudiana utiliza refletem as contradições da realidade e são uma violenta acusação contra esta. A sexualidade, tal como definida por Freud, "exige" uma satisfação que vai muito além da que é permitida efetivamente e, neste sentido, ela implica a negação do atual "princípio de realidade". As reivindicações de gratificação da "sexualidade" (que segundo Marcuse é um conceito central para a crítica da sociedade atual) estão em clara oposição com sua realização efetiva (as tendências "sado-masoquistas", a neurose e a perversão entre outras, são definidas por Freud como uma recusa da sexualidade em aceitar as imposições do "princípio de realidade" repressivo).

A oposição entre sexualidade e trabalho revela o "papel crítico" da teoria freudiana, assim como o abismo entre a realidade da repressão e a possibilidade de satisfação na sociedade repressiva atual. Enquanto isso, a possibilidade de um "amor produtivo", proposta pelo revisionismo, elimina esta oposição estabelecida por Freud, como se, no atual "princípio de realidade", a realização individual e a felicidade fossem possíveis sem uma alteração em sua estrutura, nas relações de produção. Segundo Marcuse, quando definidas no interior de um todo repressivo, a satisfação e a felicidade só são possíveis se interiorizadas e espiritualizadas, ao contrário da definição de Freud, que une a felicidade com a "real" satisfação pulsional (conduzindo à idéia de uma felicidade material). A redução do papel da sexualidade pelo revisionismo3 elimina a "função social da sexualidade", o conflito entre o indivíduo e a sociedade, assim como a própria crítica desta sociedade.

Em uma sociedade repressiva, a felicidade individual e o autodesenvolvimento produtivo estão em contradição com a sociedade: se eles são definidos como valores a se realizar no interior desta sociedade, tornam-se eles mesmos repressivos. (Marcuse, 1963, p.212)

De maneira oposta aos revisionistas, que propõem a "cura" individual sem uma intervenção mais profunda no âmbito do modo de produção, na teoria crítica o trabalho aparece como uma categoria central: toda mudança no sentido da emancipação, para se realizar efetivamente, deve resultar na transformação das relações de trabalho. A possibilidade da transformação social deve conduzir à transformação das condições de trabalho, das relações de produção, enquanto uma condição necessária: somente assim esta transformação terá, como fim, a emancipação humana, possibilitando aos indivíduos se libertarem das condições opressivas de dominação e do "círculo de coesão progressiva" que opera através da manipulação das necessidades.

As necessidades humanas, como necessidades históricas, seriam transformadas em conseqüência de uma transformação no processo de trabalho e assim se tornariam necessidades "verdadeiramente humanas", cujo fim não seria exterior aos indivíduos (a manutenção de um modo de produzir), mas seriam eles próprios. O livro Eros e Civilização só pode ser compreendido a partir deste contexto: a idéia, proposta por Marcuse, de uma "sublimação não-repressiva" parece ingênua quando desvinculada do surgimento de uma sociedade em que as relações de trabalho tenham sido transformadas. Segundo Maar, para Marcuse

(...) é inútil intervir somente no plano cultural dos alvos, das idéias, da educação, sem fazer simultaneamente a sua crítica, apresentando os mesmos como sendo resultantes do processo de consagração do domínio de um modo de produção. O projeto emancipatório de Marcuse é um exemplo acabado de visão materialista e histórica. É preciso ir mais a fundo por intermédio da mudança das relações de trabalho, da alteração do modo de produção que instituiu a ditadura do valor, de uma formação historicamente condicionada à valorização capitalista. (Maar, 1998, p.70)

Esta perspectiva está ausente da "crítica" revisionista, uma vez que ela deixa intactas as bases em que o sistema se funda, limitando-se à crítica dos fenômenos de superfície. A particularidade da apreensão da teoria freudiana pela teoria crítica deve ser vista a partir do contexto da análise e crítica da sociedade industrial avançada. É neste contexto que a teoria freudiana revela a sua "força". Na medida em que ela apresenta o conteúdo da satisfação negada aos indivíduos e a impossibilidade de sua realização na sociedade (esta sociedade, tal como se apresenta organizada) ela conduz à imagem de um outro "princípio de realidade", assim como à denúncia da aparente satisfação e conciliação permitidas, nesta sociedade repressiva. Portanto, ela é de grande interesse para a teoria crítica.

 

A Crítica Imanente

Voltemos agora à questão que suscitou este debate: saber se Marcuse introduz concepções exteriores à psicanálise, a fim de historicizá-la, tal como afirma P. Robinson. Nós nos propusemos a explicar esta questão a partir da crítica de Marcuse à escola revisionista, segundo a qual estes psicanalistas revisionistas teriam introduzido concepções sociológicas e históricas exteriores à psicanálise. Retomemos uma citação de Marcuse a respeito do assunto:

As conseqüências [da interpretação revisionista] da teoria freudiana são muito graves. O aperfeiçoamento revisionista da teoria freudiana, e sobretudo a adição de fatores culturais e sociais, consagra uma pintura falsa da civilização, e particularmente da sociedade atual. Ao reduzirem a extensão e a profundidade do conflito, os revisionistas proclamam uma solução falsa, mas fácil. (Marcuse, 1963, p.217)

Diferentemente da leitura revisionista da teoria freudiana, a interpretação de Marcuse não pretende introduzir fatores exteriores à psicanálise: ele analisa como as transformações históricas afetam a psicanálise "imanentemente", sem recorrer a pressupostos exteriores. A partir desta análise imanente, ele faz a crítica da realidade através da psicanálise, assim como a crítica da própria psicanálise.

O tipo de interpretação que recorre a pressupostos exteriores ao objeto implica a crença em um "curso emancipatório para a civilização, a ser apreendido por trás da sociedade em sua forma vigente" (Maar, 2002, p.4), como se houvesse uma essência própria à sociedade que a conduz rumo a um futuro promissor e da qual ela teria apenas se desviado, sendo que a "correção" desta realidade se daria a partir de uma ação exterior ao modo de produção, uma ação com implicação moral e "intenção libertária" - trata-se aqui de um esquema "idealista" de interpretação. A citação que segue mostra que, no revisionismo, o desenvolvimento das potencialidades humanas poderia ser atingido através de uma ação exterior aos próprios fatos que bloqueiam o desenvolvimento destas (com a ajuda da terapia psicanalítica revisionista), como se essas potencialidades pudessem ser desenvolvidas apenas por um esforço individual.

A finalidade da escola cultural excede a mera habilidade do homem a submeter-se às restrições da sua sociedade; na medida em que é possível, procura libertá-lo de suas exigências irracionais e torná-lo mais capacitado para desenvolver suas potencialidades (...). (Thompson apud. Marcuse, 1963, p.225, grifo nosso)

Entretanto, o esquema revisionista é ao mesmo tempo "positivista", na medida em que toma a realidade dada como ponto de partida, sem questioná-la em seus fundamentos. Ele aceita as premissas desta sociedade sem mostrar que esta impede, pela sua estrutura em termos de modo de produção, a realização de suas premissas. Vejamos a citação de Fromm:

[A pessoa que atingiu uma] robustez e integridade interiores (...) terá segurança, discernimento e objetividade que a tornarão menos vulnerável às variações de fortuna e opiniões de outros e, em muitas áreas, fomentará sua capacidade para o trabalho construtivo. (Fromm apud. Marcuse, 1963, p.226, grifo nosso)

Nesta citação, aparece claramente esta "aceitação da realidade" como ponto de partida da análise: a idéia de um "trabalho construtivo" denuncia o conformismo revisionista e uma cegueira frente a uma realidade em que o trabalho é "trabalho determinado", "alienado": ele é ao mesmo tempo "produtor de riqueza" e "reprodutor de miséria" - esta relação é obliterada e só prevalece a primeira. A interpretação revisionista sugere a possibilidade de uma nova sociedade sem a necessidade de uma alteração no modo de produção e, portanto, na própria configuração do trabalho. Eles continuam pregando as premissas em que esta sociedade alienada se sustenta: trabalho e produtividade. A direção destrutiva da nossa sociedade é definida em termos de "produtividade destrutiva", que se desviou da "produtividade construtiva" para a qual a sociedade deve se dirigir (Thompson apud. Marcuse, 1963, p.216). A noção de "produtividade" e suas implicações no interior da sociedade alienada não são questionadas. O revisionismo subestima a influência do meio sobre a formação do indivíduo e sua consciência. Pode-se dizer que pertence a um modo de interpretação "idealista-positivo" (Maar, 2002, p.8).

[Fromm] fala da realização produtiva da personalidade, da solicitude, da responsabilidade e do respeito ao próximo - como se o homem pudesse realmente praticar tudo isso e ficar são e cheio de 'bem-estar' em uma sociedade que o próprio Fromm descreveu como de uma total alienação. (Marcuse, 1963, p.223)

Já a interpretação de Marcuse é "crítica imanente": "o ponto de partida para se apreenderem as contradições é o efetivo processo de reprodução da realidade material vigente" (Maar, 2002, p.4). Os referenciais normativos referentes ao objeto analisado emergem da própria realidade, a partir de suas mediações, tendo em vista a produção social em sua forma alienada: eles se referem à contradição entre, de um lado, a "produtividade anunciada" (possibilidade) e, de outro, a "efetivamente realizada (realidade socialmente imposta)" (Maar, 2002, p.7). Isto implica a negação daqueles elementos que sustentam o sistema alienante e suas premissas:

Ou se definem, a 'personalidade' e a 'individualidade' em termos de suas possibilidades no interior da civilização existente, e, neste caso, sua realização equivale, para a grande maioria, a uma adaptação bem sucedida [tal como faz o revisionismo], ou então se define nos termos de um conteúdo que exceda os limites [estabelecidos] e que compreenda as potencialidades socialmente negadas à personalidade, e, neste caso, sua realização implicaria a transgressão da civilização estabelecida e modos radicalmente novos de 'personalidade' incompatíveis com os modos existentes. (Marcuse, 1963, p.223)

Marcuse propõe um total rompimento com a forma alienada de sociedade e suas premissas: nestes termos, a teoria freudiana fornece elementos para a crítica desta sociedade, uma vez que seus conceitos revelam as contradições reais da sociedade alienada. O estabelecimento da oposição entre o indivíduo e a sociedade, entre a necessidade de gratificação pulsional e as necessidades da sociedade repressiva, desmistifica uma realidade que se mantém pela aparência de uma harmonia. Enquanto o revisionismo introduz conceitos exteriores à psicanálise, conceitos representativos da ideologia da sociedade alienada, a fim de buscar uma saída para o impasse da infelicidade na civilização, Marcuse reafirma a importância desta relação estabelecida por Freud (infelicidade e civilização), uma vez que ela ainda se mantém, apesar de obscurecida pela realidade ideológica: ele desenvolve os conceitos críticos da própria teoria freudiana para além do limite histórico do período em que foram formulados.

A diferença entre as posições freudianas e revisionistas aparece bem marcada nesta citação de Marcuse (os termos em aspas correspondem a frases de K. Horney):

Os conceitos biológicos de Freud vão muito além da ideologia e seus reflexos: sua recusa de tratar uma sociedade reificada como uma "rede crescente de experiências inter-pessoais" e um indivíduo alienado como uma "personalidade total" corresponde à realidade e contém o verdadeiro conceito desta realidade. Se [Freud] se impede de considerar esta existência inumana como um aspecto negativo passageiro de uma humanidade que caminha para a frente, ele é mais humano que os críticos tolerantes que estigmatizam sua inumana frieza. Freud não crê facilmente que a "direção básica do organismo seja para a frente". (Marcuse, 1963, p.220)

Em Freud, o destino trágico da civilização, seu "pessimismo", reflete a sociedade tal como ele a vê, em sua negatividade, e não uma realidade idealizada. Seu realismo representa um modo de "crítica imanente", ao apresentar esta sociedade como realidade "danificada" (alienada), contraditória aos interesses do indivíduo: essas contradições reais da sociedade aparecem em sua análise do indivíduo. Freud não parte de uma realidade pressuposta idealmente; ele parte da realidade tal como ela se apresenta. A análise do indivíduo em Freud não pressupõe referenciais normativos, mas surge da própria mediação social.

 

"Mais-Repressão" e "Princípio de Rendimento": a crítica a Freud

Para P. Robinson, os conceitos "mais-repressão" e "princípio de rendimento" representariam a tentativa de Marcuse de identificar ecorrelacionar a psicanálise freudiana com o marxismo. Estes dois conceitos teriam sido desenvolvidos com o objetivo de introduzir concepções históricas e sociológicas nas concepções a-históricas da psicanálise freudiana e, assim, adequá-las ao historicismo marxista (Robinson, 1971, p.157).

De fato, esses conceitos formulados por Marcuse pretendem dar conta das transformações históricas ocorridas no "princípio de realidade", mas isto não implica que ele esteja introduzindo, de fora da teoria freudiana, as concepções históricas e sociológicas. Marcuse "atualiza" as concepções freudianas de "repressão" e "princípio de realidade", tendo em vista as transformações que estas sofreram neste novo contexto que é o capitalismo organizado (monopolista). Sua análise parte do indivíduo em condições historicamente diferentes daquelas analisadas por Freud: a interpretação da teoria freudiana realizada por Marcuse não pretende "corrigi-la" (pois isto só seria possível em uma realidade "corrigida", transformada) e sim mostrar a atualidade da crítica freudiana.

Apesar das transformações históricas que afetaram o objeto da psicanálise - o indivíduo, Marcuse afirma que os conceitos freudianos ainda se mantêm relevantes na compreensão da realidade, uma vez que sua acusação à civilização não foi ultrapassada por um novo estágio de organização social: os processos e conflitos psíquicos que a teoria freudiana descreve não desapareceram - eles continuam existindo, mas agora eles se dão de forma diferente e devem ser analisados tendo em vista esse fato.

(...) segundo Freud, os processos e conflitos psíquicos fundamentais não são 'históricos', limitados a um período ou a uma estrutura social precisos - eles são universais, 'eternos', fatais. Portanto, esses processos não podem desaparecer e esses conflitos não podem ser resolvidos - eles devem continuar dominando sob outras formas, que correspondem a outros conteúdos e os exprimem. (Marcuse, 1998a, p.95)

A análise da sociedade contemporânea através do instrumento da teoria freudiana implica, para Marcuse, a crítica deste instrumento (Rouanet, 1989, p.76-77). Não somente a teoria freudiana, mas também o marxismo participa desta lógica (o texto Sobre o Conceito de Negação da Dialética é exemplar deste processo de "crítica imanente" ao marxismo). A teoria freudiana possui um "limite histórico" enquanto instrumento de análise e crítica da sociedade, de que os conceitos formulados por Marcuse pretendem dar conta, a fim de melhor compreender e criticar o novo contexto histórico e as transformações da sociedade.

Este limite refere-se à ambigüidade presente na psicanálise freudiana entre, de um lado, a crítica avassaladora da civilização (cujas imposições são fonte de sofrimento humano) e, de outro lado, a conclusão de que este sofrimento é inevitável: a psicanálise "dobra-se diante do princípio de realidade", sendo, ao mesmo tempo, "crítica da ilusão" e "perpetuadora da falsa consciência": "Ao mesmo tempo em que mostra que a infelicidade é produto da cultura, Freud postula a infelicidade como condição inerente à vida social" (Rouanet, 1989, p.94). Esta ambigüidade também está expressa na contradição entre a teoria e a terapia psicanalítica, como já foi demonstrado anteriormente. Neste sentido, a crítica da psicanálise freudiana realizada por Marcuse dirige-se àqueles elementos presentes nela que refletem a aceitação da realidade como única possível - este seria o elemento estático da teoria. Esta "extrapolação" da teoria freudiana realizada por Marcuse não contradiz os pressupostos desta, uma vez que seus conceitos permitem uma abordagem histórica. Marcuse realiza uma crítica imanente aos próprios conceitos freudianos, como aparece claramente nesta citação a seguir:

O caráter 'não-histórico' dos conceitos freudianos contém assim os elementos de seu contrário: devemos encontrar sua substância histórica, não juntando alguns fatores sociológicos (como o fazem as escolas neo-freudianas 'culturalistas'), mas explicitando seu próprio conteúdo. Neste sentido, a discussão que segue é uma 'extrapolação' que deriva das noções teóricas freudianas e de proposições que estão contidas numa forma reificada, na qual os processos históricos aparecem como naturais (biológicos). (Marcuse, 1963, p.42)

Para compreendermos a crítica de Marcuse à teoria freudiana, devemos retomar a polêmica referente ao estatuto do conceito de "princípio de realidade" nos dois autores: este conceito se apresenta de modo diferente em Freud e em Marcuse. Segundo Marcuse, o "mundo exterior é, em todas as suas etapas, uma organização socio-histórica da realidade que influi sobre as estruturas mentais por intermédio de agentes e agências sociais", modificando-as (1963, p.41). O "princípio de realidade" em Marcuse é histórico e dialético.

Cada forma do princípio de realidade se concretiza num sistema de instituições e de relações sociais, de leis e de valores que transmitem e impõem as 'modificações' necessárias [às pulsões]. Este 'aparelho' do princípio de realidade é diferente nas diversas etapas da civilização. (Marcuse, 1963, p.44)

Esta perspectiva está ausente da teoria freudiana, pois ela toma a realidade como estática. Freud hipostasiou a realidade histórica, o que o levou a concluir por uma imutabilidade da organização social e pelo conflito eterno entre o indivíduo e a sociedade: a infelicidade torna-se um mal necessário, uma vez que não haveria possibilidade de uma transformação da sociedade. O "princípio de realidade" é apreendido por Freud como imutável, como único modo de ser da civilização. Para Marcuse esse elemento estático da teoria freudiana representa a realidade reificada, a realidade da opressão e da dominação; e uma vez que o mundo sempre esteve organizado como dominação, este fato histórico toma a especificidade de um "fato biológico universal".

O conceito freudiano de princípio de realidade suprime o fato [de que o mundo exterior é um mundo histórico], transformando contingências históricas em necessidades biológicas: sua análise da transformação repressiva das [pulsões] sob a influência do princípio de realidade generalizado partiria de uma forma histórica da realidade, para chegar à realidade pura e simples. (Marcuse, 1963, p.41)

Marcuse afirma que a diferenciação entre "vicissitudes biológicas" e "vicissitudes sócio-históricas" está ausente em Freud e podemos dizer que os conceitos de "mais repressão" e "princípio de rendimento" pretendem dar conta desta última. Mas isto não significa que a "história" esteja ausente das formulações de Freud: o fato de ele hipostasiar as vicissitudes históricas em fatos biológicos, em tomar por único o "princípio de realidade", significa que ele apreendeu o real desenvolvimento da civilização até hoje, essencialmente oposto ao "princípio de prazer" e às demandas de gratificação pulsional - nesse sentido sua teoria diz muito mais a respeito da realidade do que o historicismo presente no revisionismo neo-freudiano.

O conflito irreconciliável, estabelecido por Freud, entre a "sexualidade" e a "civilização" revela a profundidade da incompatibilidade entre os desejos de satisfação pulsional e a realidade repressiva; mais do que isso, neste conflito reside a "feroz acusação" de Freud contra a civilização, uma vez que revela a dominação subjacente ao desenvolvimento da civilização.

O conflito entre sexualidade e civilização se desenvolve ao mesmo tempo em que a dominação. Sob o reino do princípio de rendimento, o corpo e o espírito são transformados em instrumento de trabalho alienado. (Marcuse, 1963, p.51)

De acordo com a teoria freudianao conflito entre a necessidade de satisfação pulsional e a realidade se deve ao fato de a luta pela existência se situar num mundo muito pobre para que estas necessidades pulsionais sejam satisfeitas: elas são abandonadas em troca de segurança e garantia de sobrevivência. A organização repressiva das pulsões se impõe como fundamental para a sobrevivência do indivíduo, uma vez que a energia necessária para o trabalho socialmente útil (trabalho penoso e doloroso) provém das pulsões - mais especificamente das "pulsões de vida", pois o corpo "polimórficamente" sexual se nega à sua utilização como instrumento de trabalho árduo, na sua busca pelo prazer. As "vicissitudes das pulsões" (descritas por Freud em Pulsões e Destino das Pulsões) revelam a organização repressiva das "pulsões de vida" na civilização: a sexualidade deixa de ser polimórfica e passa a se centralizar em um único órgão (sexualidade genital); o objeto sexual limita-se a um único parceiro do sexo oposto; o prazer sexual restringe-se à procriação. As "pulsões de morte" também fornecem energia para o trabalho, mas estas são menos sublimadas e, portanto, mais satisfeitas na sociedade do que Eros.

Neste processo, o indivíduo está pronto para atuar como um instrumento de trabalho (alienado) a partir da dessexualização quase total do corpo: a organização repressiva das pulsões aparece como uma imposição da sociedade e uma necessidade para o progresso na civilização. Freud argumentou que o indivíduo não teria, por si só, abandonado as possibilidades de satisfação e optado pelo trabalho penoso. O estabelecimento da oposição entre sexualidade e civilização (trabalho) revela que o progresso foi repressão, pois ele impõe cada vez mais a restrição do prazer, tendo em vista a manutenção do trabalho social.

A hipótese freudiana do desenvolvimento da civilização a partir da "horda primitiva", apesar de não ser demonstrável antropologicamente, vale pelo "valor simbólico" que representa, uma vez que ela desvenda a dominação do homem pelo homem e o sofrimento que esse desenvolvimento implicou até hoje - a civilização se desenvolveu como "dominação organizada". O "pai primitivo" (símbolo maior de todos os pais "menores" que se encontram hoje na civilização) é o representante paradigmático da imposição de restrições à vida pulsional (do "princípio de realidade"), uma vez que impediu seus filhos do acesso ao prazer - tomando as mulheres do grupo para si e impondo o tabu do incesto. Assim os filhos estariam livres para atuar como instrumento de trabalho, garantindo a sobrevivência da espécie. Temos aqui o símbolo da primeira dominação, imposta à satisfação pulsional pelo interesse do progresso na civilização, que se revela, ao mesmo tempo, como um progresso na dominação.

Entretanto, houve uma mudança decisiva na sociedade contemporânea que torna falso o argumento freudiano da inevitabilidade do conflito entre "princípio de prazer" e "princípio de realidade", entre "sexualidade" e "civilização". Esta mudança decisiva refere-se ao surgimento de uma sociedade em que a possibilidade de eliminação da luta pela existência (trabalho) está dada, pelo atual estágio de desenvolvimento técnico atingido pela civilização: nunca antes, na história, esta possibilidade esteve tão presente. A "mecanização" da produção possibilitaria uma diminuição significativa na necessidade de trabalhar e, no entanto, as pessoas trabalham mais do que nunca. Parece que quanto mais a sociedade se aproxima da possibilidade de eliminar, ou, pelo menos, diminuir significativamente a necessidade de restrição à satisfação pulsional (devido à energia desviada para o trabalho social), mais esta é aumentada e reforçada - o trabalho não aparece mais como uma necessidade na manutenção da sociedade, mas como uma imposição na manutenção da dominação. Todas as "forças" são utilizadas para que as pessoas não percebam que trabalham sem a necessidade de fazê-lo, que sua vida sexual é significativamente debilitada neste processo, que sua liberdade se restringe à escolha de opções predeterminadas, que suas atitudes, necessidades e desejos são "produzidas" por um aparato que se movimente em função de sua própria reprodução e não percebem a dominação presente na aparente libertação.

O "recalque suplementar" relativo ao interesse de dominação é o que Marcuse chama de "mais-repressão" e o "princípio de realidade" correspondente à sociedade que impõe a "mais-repressão", a fim de manter a dominação frente à real possibilidade de eliminação do trabalho árduo (alienado), chama-se "princípio de rendimento". Esses conceitos pretendem "elucidar a extensão e os limites da repressão dominante na civilização contemporânea", que deve ser descrita "com a ajuda do 'princípio de realidade' específico que rege o desenvolvimento desta civilização" (1963, p.49-50).

Através de toda a história da civilização, a coação [pulsional] imposta pela penúria foi aumentada por coações impostas pela repartição, hierarquizada, da penúria e do trabalho: os interesses de dominação acrescentam um recalque suplementar à organização das [pulsões], sob o reino do 'princípio de realidade'. O princípio de prazer não foi destronado unicamente porque ele trabalhava contra o progresso, mas também porque ele trabalhava contra uma civilização na qual o progresso assegura a sobrevivência da dominação e do trabalho. (Marcuse, 1963, p.46, grifo nosso)

Os conceitos formulados por Marcuse só alcançam sua plena significação quando colocados em termos de "critérios objetivos": a possibilidade de medida do nível de repressão e, portanto, de diferenciação entre repressão e "mais-repressão", numa determinada etapa da civilização, só pode ser feita quando tomada em relação às possibilidades de libertação presentes nela. A "mais-repressão" representa uma realidade na qual o elevado grau de repressão se estabelece em uma etapa da civilização, na qual

(...) a necessidade de renúncia e de trabalho é consideravelmente reduzida pelo progresso material e intelectual, na qual a civilização poderia realmente oferecer uma liberação considerável da energia [pulsional] consagrada à dominação e ao trabalho. A extensão e a profundidade da repressão [pulsional] só alcançam sua plena significação quando comparadas com a extensão de liberdade possível, em um determinado momento histórico. (Marcuse, 1963, p.85, grifo nosso)

O argumento da penúria que justificou a necessidade de repressão, a dominação e o trabalho árduo, durante tanto tempo, não valem mais numa sociedade em que a pobreza e a miséria resultam da sua distribuição hierárquica. Esta é a irracionalidade subjacente à racionalidade em torno da qual esta sociedade se organiza, que só pode ser demonstrada quando se compara a "possibilidade de libertação" com a "realidade da repressão" inerente a esta sociedade. Nesta sociedade, haveria a possibilidade de liberar o indivíduo dos encargos do trabalho árduo, o que contestaria o fatalismo da oposição entre sexualidade e civilização, felicidade e civilização, "princípio de prazer" e "princípio de realidade". O argumento de Freud se torna inválido em uma sociedade na qual a satisfação material é, em grande parte, saciada através da produção incessante de bens de consumo.

A pobreza que reina em vastas zonas do mundo não tem mais, como causa principal, a pobreza dos recursos humanos e naturais, mas a maneira como são distribuídas e utilizadas. Esta diferença é talvez sem importância para a política e os políticos, mas é de uma importância capital para uma teoria da civilização que faz derivar a necessidade de repressão da desproporção 'natural' e perpétua entre os desejos humanos e o meio no qual eles devem ser satisfeitos. (Marcuse, 1963, p.88)

Mas este argumento de Freud é inválido, ao mesmo tempo em que revela a profundidade de suas "acusações". É inválido na medida em que a necessidade do conflito entre "princípio de prazer" e "princípio de realidade" é agora questionável, tendo em vista que a possibilidade de eliminação do trabalho poderia resultar numa libertação das "pulsões" da necessidade de sua limitação repressiva (no sentido da "mais-repressão" imposta pelo interesse da dominação). De outro lado, ele continua a revelar a dominação e o controle social e político, subjacente ao desenvolvimento da sociedade.

Na sociedade atual, a luta pela existência é mantida - apesar de todas as condições objetivas para a sua eliminação (ou pelo menos diminuição significativa) - através da constante dominação e manipulação dos indivíduos, para que eles não percebam a irracionalidade presente nesta organização social - ocorre a "racionalização da dominação".

Os métodos de dominação se transformaram: eles se tornaram cada vez mais tecnológicos, produtivos, e mesmo aproveitáveis para os objetos de dominação; portanto, nos setores mais avançados da sociedade industrial, as pessoas foram presas ao sistema de dominação e se reconciliaram com ele num grau sem precedentes. (Marcuse, 1963, p.10)

A obsolescência dos conceitos freudianos refere-se apenas aos mecanismos pelos quais os processos e conflitos psíquicos se dão no indivíduo, na sociedade atual. A teoria freudiana, que desvendou a dominação inerente ao desenvolvimento e ao progresso da civilização, continua valendo apesar das transformações históricas ocorridas: este desenvolvimento não eliminou as relações de dominação e as imposições e renúncias por parte da sociedade.

Ao denunciar sem concessões que o homem sofre numa sociedade repressiva, ao predizer que, com o progresso da civilização, aumenta a culpa, que a morte e a destruição ameaçarão sempre mais eficazmente as pulsões de vida, Freud lançou uma acusação que foi corroborada, desde então, pelas câmaras de gás e campos de concentração, pelos métodos de tortura praticados nas guerras coloniais e nas operações policiais, pela habilidade com que os homens se preparam para uma 'vida' subterrânea. Não é culpa da psicanálise que ela seja impotente para combater esse desenvolvimento (...). A verdade da psicanálise consiste em manter fidelidade às suas hipóteses mais provocadoras. (Marcuse, 1998a, p.109-110)

 

Conclusão

Tentaremos fazer agora um apanhado das colocações expostas até aqui, a fim de termos uma visão mais geral de nossas posições e ver até onde elas nos conduziram.

A obra de Marcuse Eros e Civilização não pode ser compreendida fora do contexto teórico ao qual ela pertence. Marcuse tem um objetivo específico, que somente em referência ao contexto geral de seu pensamento é possível esclarecer. O pensamento de Marcuse (assim como da teoria crítica de modo geral), possui uma preocupação central que o liga a toda a tradição da história da filosofia: a preocupação com a "felicidade" humana. No entanto, a noção de felicidade é redefinida, tendo em vista o novo contexto histórico surgido com o desenvolvimento capitalista.

A questão da felicidade deve ser analisada tendo em vista a existência da possibilidade real de libertação da luta pela existência, proporcionada pelo nível elevado de desenvolvimento atingido pelas forças produtivas. É aqui que a teoria freudiana se vê questionada, na medida em que ela afirma a impossibilidade da felicidade na civilização. A noção de felicidade em Marcuse se refere a uma "felicidade material, objetiva e universal": somente estando livre da luta pela existência e que as necessidades básicas de sobrevivência tenham sido saciadas, pode o indivíduo ser feliz; mais do que isso, somente quando esta possibilidade é dada universalmente, para todos os indivíduos, ela é de fato uma felicidade "verdadeira".

Para Marcuse, a questão da felicidade só pode ser posta no atual estágio de desenvolvimento técnico atingido pela sociedade. Por isso, ele retoma a teoria freudiana e põe em questão a relação estabelecida por Freud entre infelicidade e civilização. As distinções estabelecidas por Marcuse entre "verdadeiras" e "falsas" necessidades e interesses, "verdadeira" e "falsa" felicidade, "mais-repressão" e "repressão", representam uma tentativa em tornar visível a contradição, presente na sociedade contemporânea, entre a possibilidade anunciada de felicidade e a realidade de sua não realização. Marcuse apreende os fatos da realidade em sua posição, dentro do processo de manutenção do sistema opressivo; isto é, em sua posição na perpetuação desta contradição.

Com o conceito de "dessublimação repressiva", Marcuse caracteriza a sociedade de massas contemporânea. Este conceito representa a dinâmica da sociedade que, por um lado, possibilita maior liberdade e satisfação das necessidades e, por outro, esta liberdade atua como dominação, pois impede que os indivíduos "vejam" seu mecanismo real. Nesta sociedade, a produção incessante de mercadorias está aliada à produção de necessidades (que são, portanto, "falsas" necessidades, pois não pertencem ao próprio indivíduo, mas à manutenção de um determinado modo de produção): assim, estabelece-se um "círculo de coesão progressiva", através da produção de mercadorias que não possuem, em si mesmas, um valor de uso real, mas ilusório, pois não correspondem às necessidades efetivas dos indivíduos (e sim às necessidades produzidas).

É neste contexto que a obra de Marcuse adquire seu significado singular. Podemos perceber essa particularidade através da sua crítica ao revisionismo neofreudiano: é aqui que Marcuse "marca" sua posição em relação às várias interpretações já realizadas do pensamento de Freud, assim como tenta resgatar a "função crítica" da teoria freudiana.

Para Marcuse, a interpretação da teoria freudiana realizada pelo revisionismo omite a contribuição fundamental de Freud para a teoria social contemporânea: a sua "função crítica". Na tentativa de resolver a oposição estabelecida por Freud, entre felicidade e civilização, (entre indivíduo e sociedade) os revisionistas propõem uma solução individual ("uma solução falsa, mas fácil"); ou seja, para eles, o indivíduo pode desenvolver suas potencialidades e ser feliz na sociedade tal como está - eles eliminam toda oposição entre indivíduo e sociedade. A idéia de um "trabalho construtivo" (desenvolvida no capítulo dois deste trabalho), implica na possibilidade do trabalho, tal como ele se encontra, proporcionar prazer: esta posição reflete um conformismo, pois omite o fato de que, nesta sociedade, o trabalho é determinado, é trabalho alienado e que possui uma posição central no processo de manutenção do sistema de dominação.

O problema da interpretação revisionista estaria na ausência de crítica da realidade. Seu modo de interpretação é "idealista-positivo": é idealista porque supõe que a sociedade "caminha para frente", rumo ao seu curso emancipatório; e é positivista porque não questiona os fundamentos desta sociedade, tomando a realidade como ponto de partida para sua interpretação - eles aceitam as premissas em que esta sociedade se baseia, sem mostrar que a própria sociedade impede a realização destas.

Já Marcuse apresenta a realidade a partir de suas contradições: da confrontação entre a possibilidade de realização das premissas enunciadas e a não realização dessas premissas - esta é a "crítica imanente". Ele propõe um rompimento com as premissas em que esta sociedade se sustenta (por exemplo, "trabalho", "produtividade", "responsabilidade", "felicidade", "liberdade", entre outras), fazendo sua crítica e mostrando a posição dessas premissas na manutenção e perpetuação da dominação. É preciso apontar para o fato de que a realização destas premissas é determinada por um modo de produzir que impõe aos indivíduos a forma e o conteúdo de seus desejos e necessidades. Para ele, é preciso desmistificar a "falsa consciência", a "consciência reificada". que aceita acriticamente o destino que lhe é determinado. A teoria precisa de conceitos críticos, que apresentem as possibilidades que são negadas aos indivíduos e que desfaçam a aceitação da "má realidade". Os indivíduos precisam "ver" as contradições que foram obscurecidas na aparente harmonia da "sociedade unidimensional".

É aqui que a teoria freudiana revela toda a sua "força": ela fornece elementos para romper com a aceitação desta forma alienada de sociedade, ao colocar em questão os fundamentos da mesma.

A teoria freudiana se refere a uma concepção de indivíduo e de civilização que possibilita sua utilização enquanto um instrumento de análise e de crítica da sociedade. O "pessimismo freudiano" reflete uma postura essencialmente crítica de Freud para com o processo civilizatório. Partindo da perspectiva individual, analisando o sofrimento, a angústia, a infelicidade e as várias doenças psíquicas, Freud chega à conclusão de que esse sofrimento é causado por uma civilização que nega, pela sua própria estrutura e organização, a satisfação e a felicidade aos indivíduos. Ele descobriu, na análise da "doença individual", a "doença geral" da civilização. Ele preserva em suas concepções e conceitos a realidade tal como ela se apresenta e não uma realidade idealizada. O indivíduo em Freud é infeliz, reprimido, não possui autonomia, sendo determinado, tanto num nível filogenético (história da espécie), quanto ontogenético (história individual).

Este "realismo pessimista" (ou "pessimismo crítico") de Freud permite romper com a "cegueira" frente a uma realidade opressiva, que se apresenta como harmônica. Ao afirmar a oposição entre a satisfação das necessidades e desejos individuais e as exigências da sociedade, Freud apresenta a realidade tal como ele a vê: em sua forma alienada.

Entretanto, Freud aceita o destino inevitável da oposição entre felicidade e civilização - e aqui a teoria freudiana se vê questionada com as transformações da sociedade industrial. A interpretação de Marcuse da teoria freudiana implica na crítica desse conteúdo "estático", presente em seus fundamentos. Esta crítica permite que Marcuse apresente as contradições dessa nova forma assumida pela sociedade capitalista; ele aponta para as possibilidades de libertação que lhe são intrínsecas e que são reais. Essa crítica constitui uma démarche fundamental na obra Eros e Civilização.

Marcuse afirma que as categorias freudianas que definem o psiquismo e a sociedade, assim como a relação entre ambos, não se sustenta mais na nova configuração da sociedade. A noção de conflito é central em Freud, tanto no que se refere à formação psíquica individual, quanto na relação entre as exigências de satisfação pulsional e a sociedade. Este conflito foi contido pela sociedade "unidimensional", pela sua capacidade de integrar as forças antagônicas e a negação. As categorias freudianas tornaram-se "obsoletas" na realidade atual. Entretanto, esta "obsolescência" das categorias freudianas revela uma maior repressão e não maior liberdade. Se a teoria freudiana não pode mais explicar, a partir de seus próprios conceitos, como se dá a relação entre o indivíduo e a sociedade, é porque essa sociedade se transformou.

A crítica de Marcuse à teoria freudiana não pretende "corrigi-la", mas mostrar que a "obsolescência" de suas concepções reflete um movimento real da sociedade. O que significa que as categorias freudianas se tornaram "obsoletas"? Significa que elas foram ultrapassadas, que elas caíram em desuso e que não conseguem mais esclarecer os fatos psíquicos tais como eles se dão, na atual organização social. Entretanto, isto não significa que os processos descritos por Freud tenham desaparecido: ele criou uma teoria da constituição psíquica universal. Se os processos não se dão mais da mesma forma descrita por ele, no entanto, eles não desapareceram: continuam existindo, mas sob outras formas e conteúdos, pois a sociedade não eliminou a oposição entre o indivíduo e a civilização.

Ocorreu uma "obsolescência empírica" dos conceitos freudianos: eles não possibilitam mais compreender a realidade social, pois esta foi transformada. Todavia, eles guardam a "verdadeira" imagem do processo civilizatório, essencialmente oposto à felicidade e às necessidades individuais.

Insistimos sobre a importância da relação entre o marxismo e a teoria freudiana, para a compreensão do pensamento de Marcuse. Negamos a crítica de P. Robinson, segundo o qual Marcuse tentara "unir" Marx e Freud em Eros e Civilização. Retomaremos aqui nossos argumentos.

Marcuse não tenta unir Marx e Freud em Eros e Civilização. Primeiramente porque ele não busca formular uma teoria totalizadora: não basta "corrigir" estas teorias tornadas obsoletas para que elas apreendam a realidade transformada. Esta "correção" só seria possível, se a realidade mesma fosse transformada. O marxismo e a teoria freudiana funcionam como dois instrumentos de análise e crítica da sociedade contemporânea, pois cada qual apresenta o processo de exploração e alienação de uma perspectiva: o marxismo, a partir da perspectiva universal e, a psicanálise, a partir da perspectiva particular. Não há como eliminar esta oposição entre o particular e o universal através de uma teoria "melhor", pois esta oposição reflete uma realidade contraditória, na qual a oposição entre indivíduo e sociedade é mantida: ela não foi eliminada, mas apenas obscurecida.

Neste sentido, dizer que Marcuse tenta unir Marx e Freud é um grande erro, pois elimina a relação de oposição entre indivíduo e sociedade que é insistentemente afirmada por ele, tendo em vista que ele pretende criticar a "sociedade unidimensional", uma sociedade que absorve os antagonismos e contradições. É por isso que ele retoma a teoria freudiana - nela esta oposição é mantida.

Entretanto, seria um engano afirmar que as duas teorias possuem o mesmo estatuto no pensamento de Marcuse. Ele é um pensador marxista (não ortodoxo), que viu, na teoria freudiana, a possibilidade de repensar o próprio marxismo (ortodoxo), introduzindo neste uma preocupação com o indivíduo: aqui a teoria freudiana lhe fornece o suporte teórico. Mas, para se tornar uma teoria "crítica", a teoria freudiana precisa ser questionada e este processo se dá através da crítica imanente aos seus conceitos, tendo em vista as transformações históricas ocorridas - esta crítica elucida o "movimento" desses conceitos.

A teoria freudiana possibilita o objetivo de "crítica" somente decifrando a dialética histórica de seus conceitos: assim ela pode dar origem a algo de novo e sua crítica à civilização pode se tornar construtiva - ao contrário da interpretação revisionista, que imobiliza a sua "função crítica". Essa "função crítica" da teoria freudiana está na denúncia do elo entre infelicidade e civilização: na medida em que os revisionistas afirmam a possibilidade da felicidade na civilização (nesta civilização) e não questionam os seus fundamentos, eles tornam-se ideológicos.

Freud foi um crítico feroz da civilização, pois ele tinha consciência do vínculo que une progresso e infelicidade. Se ele afirma a infelicidade como uma condição necessária da civilização, é porque ele é muito mais humano do que aqueles que crêem na possibilidade da felicidade se realizar nesta sociedade. Se a felicidade for concebida apenas individualmente, ela é falsa. A felicidade, para Marcuse, é uma condição que só pode ser concebida quando todos os indivíduos tiverem acesso às riquezas produzidas pela "sociedade da abundância" e não apenas um grupo restrito de pessoas, e, sobretudo, quando a produção desta riqueza não estiver mais vinculada ao aumento da exploração e da miséria, à destruição do meio e dos seres humanos.

A "utopia" marcuseana, formulada em Eros e Civilização, pretende afirmar as possibilidades de liberdade e felicidade existentes na civilização, que se encontram obstruídas pelo sistema de dominação: ele quer que os indivíduos "vejam" a irracionalidade do desenvolvimento da civilização, escondida na aparente racionalidade.

 

Referências

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Recebido em 26 de novembro de 2003
Aceito em 10 de dezembro de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2004

 

 

Notas

1 Pisani, Marilia (2003) Marcuse e Freud: uma interpretação polêmica - um estudo de "Eros e Civilização" (dissertação de mestrado). São Carlos: Ufscar.
2 A teoria crítica se interessa sobretudo pela "teoria freudiana da cultura", desenvolvida a partir dos anos 20, quando Freud introduz o conceito de "pulsão de morte", pois ela revela a profunda relação que une o desenvolvimento social e a constituição psíquica dos indivíduos.
3 Podemos ver a redução do papel da sexualidade pelos revisionistas nessa citação de K. Horney: "Os problemas sexuais, ainda que eles possam prevalecer, às vezes, no quadro dos sintomas, não são mais considerados como o centro dinâmico das neuroses. As perturbações sexuais são, antes, o efeito do que a causa da estrutura de caráter neurótica. De outro lado, os problemas morais ganham em importância" (Horney apud. Marcuse, 1963, p.231)

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