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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.4 no.2 Fortaleza Sept. 2004

 

RELATÓRIO DE PESQUISA

 

Algumas considerações teóricas acerca de uma experiência hospitalar

 

 

Daniela Scheinkman Chatelard

Docente do Instituto Superior de Brasília no Departamento de Psicologia. Pesquisadora e orientadora no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Participante do GT Dispositivos Clínicos em Saúde Mental. Doutorado em Filosofia pela Université de Paris 8. Psicanalista. End.: SHIN - QL 11 Conjunto: 6 Casa: 3 CEP: 71515-765. Lago - Norte Brasília/DF. e-mail: dchatelard@terra.com.br

 

 


RESUMO

A presente pesquisa apresenta como proposta principal pensar a questão da prevenção no âmbito da saúde mental do bebê a partir da experiência com a prática hospitalar, clínica e de pesquisa em psicanálise, observando o par mãe/bebê desde o início gestacional. O dispositivo em nossa prática de observação e intervenção é o Ambulatório Pré-natal e a UTI Neonatal, o Berçário e a Maternidade do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Essa pesquisa foi desenvolvida em parceria com o Departamento de Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia na UNB. O referencial teórico é a psicanálise, referencial que permeou a pesquisa e a supervisão da equipe, norteando nosso estudo, nossa práxis e escuta de uma experiência no âmbito hospitalar. Abordaremos para pensar esta prática a área da primeira infância; dando relevância às elaborações de estudos sobre o vínculo afetivo mãe/bebê e sobre suas interações.

Palavras-chave: práxis; infans; prevenção; pulsão e desejo


ABSTRACT

This study  focuses on the question of prevention in the approach to infant mental health, looking at hospital and clinical experiences and psychoanalytic research involving observation of the mother/infant couple from the onset of gestation. Our practice of observation and intervention was conducted at the University of Brasilia Hospital (HUB) Prenatal Ambulatory Clinic, Neonatal ICU, Nursery and Maternity Ward.  This research was developed in partnership with the Department of Clinical Psychology at the University  of Brasilia Institute of Psychology (UnB-IP).  Psychoanalysis provides the theoretical reference point informing the entire study, including supervision of the research team, and orients our study methods, our praxis and our listening within the hospital setting. The area under consideration for our practice is early childhood; particular emphasis is given to studies concerned with the emotional bond of the mother/infant couple and their interactions.

Keywords: praxis; infans; prevention; drive and desire


 

 

"ISTO QUE CHAMAMOS RECÉM-NASCIDO NÃO EXISTE. A CADA VEZ QUE
EXISTE RECÉM-NASCIDO EXISTEM CUIDADOS MATERNOS, E QUE SEM
CUIDADOS MATERNOS, NÃO EXISTE RECÉM-NASCIDO."
(WINNICOTT, 1940)

A presente pesquisa apresenta como proposta principal pensar a questão da prevenção da saúde mental do bebê a partir da experiência com a prática hospitalar, clínica e de pesquisa em psicanálise, observando o par mãe/bebê desde o início gestacional. O dispositivo em nossa prática de observação e intervenção é o Ambulatório Pré-natal e a UTI Neonatal, o Berçário e a Maternidade do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Essa pesquisa foi desenvolvida em parceria com o Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia na UNB e com o Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise.

As propostas principais dessa pesquisa são permeadas por um trabalho de escuta e circulação da palavra na sala de espera do ambulatório pré-natal com uma dupla de estagiários. Estes acompanham as gestantes com a possibilidade de um atendimento individual e psicoterápico conforme a demanda. Logo após o nascimento do bebê, há um acompanhamento da mãe na enfermaria e do bebê na Unidade Intensiva Neonatal.

Quando acompanham psicologicamente as gestantes, os pesquisadores têm como um dos objetivos principais a prevenção da saúde e o desenvolvimento psíquico do bebê. A possibilidade em dar continuidade a esse atendimento pré-natal, após o nascimento do bebê, é desejável pela equipe principalmente para facilitar os primeiros vínculos afetivos, sobretudo, quando o bebê é separado da mãe na unidade intensiva. Sendo, nosso campo principal, a saúde mental pensada em termos de prevenção no desenvolvimento, na constituição psíquica do bebê e no seu enlace com o Outro primordial, traçaremos algumas considerações teóricas refletidas nas supervisões para servir de suporte e referência em nossa prática. Na área da primeira infância, além de Winnicott dois outros psicanalistas, René Spitz e John Bowlby, desempenharam um papel de particular relevância nas elaborações de estudos sobre o vínculo afetivo mãe/bebê e sobre suas interações. Os olhares e as pesquisas sobre os bebês vêm se modificando ao longo do tempo e atraindo cada vez mais a atenção de profissionais pluridisciplinar.

Ao fazer um breve panorama histórico, lembramos que nos anos "1940-1950 a influência de Kanner com o autismo infantil, e as primeiras descrições das depressões do bebê (Anna Freud, Dorothy Burlingham, René Spitz, John Bowlby, J. Robertson)... é o momento em que se concede ao bebê, enfim, oficialmente o direito à vida psíquica, se é obrigado a conceder-lhe o que aí está inerente, quer dizer, o 'direito' ao sofrimento" (GOLSE, 2003, p.14). Conclui Golse que há toda uma busca ao retorno das origens e não apenas à vida corporal. Existe corpo sim, mas também se deve considerar o pensamento e a linguagem na qual o contexto familiar, social e cultural se entrelaça em suas experiências.

Sabe-se e compreende-se por meio de uma literatura cada vez mais afinada e especializada na área da primeira infância, de zero a três anos, o crescente interesse nessa etapa nascente do humano que envolve vários profissionais oriundos de diversas formações. A fase referida anteriormente exige um cuidado e uma atenção especial não somente à díade mãe/bebê, mas também aos cuidadores.

Assim, profissionais da área de saúde, educação, a Unicef e a recente criada Associação de Estudos sobre o bebê, estão dirigindo cada vez mais uma atenção maior a essa fase do desenvolvimento humano. Fase que exige e envolve todo um cuidado aos cuidadores, às mães, aos pais, aos avós e, também, uma atenção especial aos diversos profissionais nas maternidades, nos berçários e nas creches. As políticas sociais têm voltado sua atenção para a prevenção nos cuidados entre a díade mãe/bebê ainda no período pré-natal, sabe-se que as políticas de saúde, educação são ainda precárias nesse período crucial do pré-natal em que muitos obstáculos, problemas e traumas poderiam ser evitados, prevenidos ou, ao menos, diminuídos após o nascimento do recém-nascido.

O que se pode esperar de um profissional da área de psicologia ante a clínica dos bebês prematuros? Ou seja, antes dos sujeitos advirem, ainda não constituídos subjetivamente e totalmente dependentes do desejo do Outro para sobreviver e viver. Para isso, informo alguns elementos bem peculiares dessa prática que foram implantados por mim e pela equipe de estagiários que coordeno e supervisiono no HUB e no serviço neonatal. Para que o psicólogo não corra o risco de cair em um sistema fechado e já pronto, como é o caso de serviços hospitalares em que enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos, residentes e internos já têm de antemão seus lugares definidos, o psicólogo, por sua vez, deverá encontrar e "inventar" um lugar para sua escuta e para sua fala, um lugar a partir do qual seu desejo possa operar. Nas supervisões, uma questão insiste em retornar: mas quem é afinal nosso paciente? A equipe? A mãe, os pais, ou o bebê?

Tentamos a partir da questão abordada anteriormente trazer elementos peculiares dessa práxis que pudessem nos orientar em torno dessa temática, sobretudo nas observações mãe/bebê e nas intervenções com gestante de alto risco que pudessem dar à luz a um bebê prematuro. Na clínica com os bebês assim como na psicanálise de crianças pequenas, parti-se da tese de que esse pequeno ser está ainda se constituindo enquanto sujeito; seu inconsciente está formado-se a partir do tesouro de significantes vindo de um Outro que a ele preexiste. O tempo do recalque originário em bebês ainda não se deu na psicanálise de crianças e a sua idade situa e orienta-nos, ou seja, se a criança está no tempo pré-edipiano ou passando pelo Édipo ou já tendo por ele passado. Sabe-se da importância dessa passagem na estrutura do sujeito que está advindo e as repercussões dessa experiência em sua subjetividade. Nessa passagem crucial, se dá a fundação do recalque originário em cima das primeiras inscrições mnésicas, primeiros sinais perceptivos que fundam o aparelho psíquico e seu inconsciente. Ao seguir esse referencial, pode-se pensar na mãe como nossa paciente ou, ao menos, como protagonista em que uma intervenção preventiva se fará possível na relação com seu bebê ou no caso de um nascimento prematuro ou de um aborto espontâneo.

Referindo-se ao recém-nascido, sabe-se que, com a perda do natural e a entrada na cultura, o homem é doravante submetido à ordem da ética. No artigo Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud explica o movimento de apagamento e assim, de distanciamento do sujeito com a Coisa, das Ding (o Outro primordial). Esta experiência concerne à saída do gozo primeiro sem fissura do infans para aceder ao universo simbólico. Evidencia-se nesse movimento de distanciamento com a Coisa primordial, a dimensão ética com o impossível do gozo pleno. O fracasso que se dá no movimento alucinatório quando na ausência do objeto inaugura o funcionamento como tal do aparelho psíquico e se inicia aí a formação das primeiras inscrições mnêmicas no aparelho psíquico. É a noção trazida por Freud na Carta 52 (1896) de Niederschrift: "O traço começa a se tornar escrita" (FREUD, 1987, p. 254) e estas inscrições primeiras serão, no só-depois, retranscritas. É aí uma experiência dolorosa, mas necessária ao sujeito para entrar na linguagem: o grito que presentifica a ausência do objeto. A dor, o desprazer que se desprendem do puro princípio do prazer. Nesse contexto, abordar-se-á a questão da ética na psicanálise em relação à ética aristotélica. Do ideal em busca de um Bem Supremo aristotélico, Lacan faz desse ideal um irreal ao introduzir aí seu registro do real. O termo do real vem em um movimento de revolucionar o debate em torno da moral, do bem, da ética. Da Real e da verdade; esses dois últimos termos são caros a Lacan, em que ele afirma que do lado do real há uma ficção em oposição à realidade. O fictício não é uma mentira, mas a ficção simbólica que o infans vai fazer nessa condição de ser faltante e, por isso, na condição de falasser, isto indica como o real vai se articular à palavra, ao simbólico por meio da ficção. Como do falso, do falsus, surge a verdade. A verdade fictícia que é criada quando na passagem do ser ontológico ao ser falante. Percebe-se nesta passagem do natural à cultura, como da phýsis, sendo àquilo que brota, comparece o lógos — a expressão do pensamento e da linguagem do ser. A linguagem é a condição do inconsciente nessa estrutura discursiva que enlaça o sujeito no campo do Outro. Desse modo, pensar a ética em razão da prática tanto hospitalar quanto privada é importante para a psicanálise.

Na prática com o infans então, podemos nos remeter à primeira experiência de satisfação descrita por Freud; ao nascer, o ser só pode viver se tomamos conta dele, se o Outro ocupa-se dele: esse outro que Freud chamou de Nebenmensch, o próximo, aquele que se situa ao lado de. O texto do pensamento freudiano, Projeto para uma psicologia científica (1895), coloca no centro da experiência de satisfaçãoBefriedigungserlebnis — um personagem extremamente importante para o bebê, personagem responsável pela organização do desejo, o Nebenmensch cuja tradução do alemão precisamente seria Nebem: ao lado de e Mensch: homem ou ser humano, ou seja, o ser humano que está ao lado. Freud chama de força auxiliar — helfende Macht — cuja tradução se aproximaria de uma primeira potência ou força, aquele que trouxe ao bebê a primeira satisfação (assim como o desprazer); o despertar do conhecimento é dado graças à percepção do outro, do alheio a partir do qual a criança pode reconhecer os traços visuais, os gestos, os movimentos. Essa percepção pode ser associada à imagem e à forma do objeto, isto possibilitou a primeira experiência. O Nebenmensch sendo esse humano que se situa ao lado de possui um papel fundamental no despertar perceptivo do bêbe. Com a experiência da ação específica, o organismo é convocado a se inscrever no universo da linguagem; essa experiência permite ao bebê passar do registro de puras necessidades ao registro da demanda. O bebê recebe o alimento, mas recebe também a palavra, experiência que se inicia com o grito, com o descarregar da tensão, do desespero inicial. A evolução do pensamento freudiano nessa época nos ensina que no campo do Outro qualquer coisa é expulsa em torno desse primeiro exterior expulsado que se orienta a via subjetiva do sujeito.

Ao refletir a clínica com os bebês sob esse prisma anteriormente apresentado, respaldado em Freud e Lacan, como poderíamos pensar nessa práxis com o infans e que diz respeito à ética do surgimento do sujeito do inconsciente se este ainda está se constituindo? Sendo uma práxis interdisciplinar, poder-se pensar no papel e na escuta do psicanalista como sendo àquele Outro que se situaria ao lado de, para que de seus reflexos ainda precários possa surgir uma esperança de sujeito? O psicanalista espera pelo sujeito. O desejo do psicanalista engendra uma posição ética particular daquilo que ele está escutando do sofrimento do paciente. Essa ética exige tempo. "É preciso tempo para se fazer ser" (LACAN, 1970/2001, p. 426); é preciso tempo para que "o inconsciente se articule daquilo que do ser vem ao dizer" (LACAN, 1970/2001, p. 426). O ser que desde o momento que rompe com o natural e ingressa na cultura rompe com a homéostase e caminha para a morte, o ser para morte.

Justamente aí, relembrando Heidegger acerca de temas da vida e da morte, esse movimento faz perceber, diz Lacan, a relação com a existência e a não-existência, isto é, com o aparecimento daquilo que não existe ainda, mas que já são, mesmo assim, temas ligados à existência do sujeito e aos horizontes que sua experiência lhe traz, quanto às questões da origem, do sexo e da morte. Aqui se encontra a atividade mítica empregada pela criança que em um tempo posterior e em um movimento retroativo participará de sua estrutura. A criação mítica da criança a prepara para seu funcionamento estrutural. Dessa ligação mítica, primária ao objeto de amor, a criança funda um primeiro logro intersubjetivo. Nas diversas tentativas de simbolizar o imaginário e os efeitos de permutações e metamorfoses surgidas nessas maneiras de simbolizar o imaginário, a criança entra em um sistema de significantes e linguagem. O sujeito entra em um sistema de discurso cuja dinâmica em seu duplo movimento sincrônico e diacrônico remaneja a fixação de uma ficção mítica pela instalação de um sintoma criado e surgido nesse lugar de existência de um vazio estrutural. Ex-sistência que insiste em comparecer na compulsão à repetição e nos sintomas. A existência do sintoma cai justo em um locus marcado por uma inexistência. Desse mito, resta um real cujo operador simbólico, o funcionamento da linguagem, fará seu contraponto.

Nessa tentativa em articular prática e teoria na clínica da primeira infância, queremos inserir na ética da psicanálise o particular dessa escuta em um sujeito ainda a advir em sua temporalidade. A locução futuro anterior significa que, em um só-depois, um sentido é dado ao anterior. Só-depois um remanejamento simbólico é possível daquilo que fora antecipado no passado. Tempo antecipado que deixará suas marcas indeléveis no só-depois, deixará marcas no ser do tempo, no incessante movimento do devir de um sujeito em relação à sua ética, à sua singularidade e ao seu desejo na transmissão de um saber a ser sempre reinventado e redescoberto.

 

Referências

Freud, S. (1987). Carta 52, 06 de dezembro de 1896 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol 1). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Golse, B. (2003). O bebê hoje, novos dados, esperanças e frustrações. In Sobre a psicoterapia pais-bebê: Narratividade, filiação e transmissão (Coleção 1ª Infância) (pp. 14-14) São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lacan, J. (2001). Radiophonie. In J. Lacan, Autres ecrits. Paris: Editions du Seuil. (Originalmente publicado em 1970)         [ Links ]

Lacan, J. (1994). Le séminaire: Livre 4: La relation d'objet. Paris: Editions du Seuil. (Originalmente publicado em 1956/1957)         [ Links ]

Scheinkman Chatelard, D. (2002). O desejo do psicanalista ante a clínica de bebês prematuros. Stylus: Revista de Psicanálise da Associação Fóruns do Campo Lacaniano, (4), 102-102         [ Links ]

Scheinkman Chatelard, D. (2003). Da Ética do Desejo. In Ética linguagem e sofrimento (pp. 39-41). Brasília, DF: ABRAFIPP.         [ Links ]

Scheinkman Chatelard, D. (2004). A foice do tempo. Stylus: Revista de Psicanálise da Associação Fóruns do Campo Lacaniano, (8), 23-23         [ Links ]

 

 

Recebido em 09 de junho de 2004
Aceito em 25 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004

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