SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número2Os cursos de psicologia de Minas Gerais e a presença da psicanálise na disciplina psicopatologia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.4 n.2 Fortaleza set. 2004

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Leônia Cavalcante Teixeira

Universidade de Fortaleza Prof. Titular dos cursos de Mestrado, Especialização e Graduação da Universidade de Fortaleza; Dr. em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Ms. em Educação (UFC)

 

 

 

Moacyr Scliar
Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
274 p.

Não é inusitada a relação entre Literatura e Medicina e Moacyr Scliar ocupa, sem dúvida, lugar de destaque em ambos cenários no Brasil. Dedicado à saúde pública, suas preocupações com as políticas, especialmente no que dizem respeito à promoção de saúde e à formação médica como Histórias de um médico em formação (1962). Seus textos literários, endereçados ora aos jovens - O irmão que veio de longe (2002), ora a um público geral interessado por boa literatura, versam, prioritariamente, sobre temáticas ligadas à medicina, ao judaísmo e ao social. Dentre ensaios, contos, crônicas e romances, merecem destaque: A orelha de Van Gogh (1988), Sonhos tropicais (1992), Contos reunidos (1995), A paixão transformada: história da medicina na literatura (1996), A majestade do Xingu (1997), A mulher que escreveu a Bíblia (1999), O centauro do jardim (1980), A guerra do Bom Fim (1972), Mês de cães danados (1977), Olho enigmático (1988), Exército de um homem só (1973), dentre outras obras.

Temas como cultura, identidade, memória e sociedade constituem focos de atenção da pena do escritor. Com Scliar, a medicina se escreve via literatura. Em seus textos, literatura, medicina e judaísmo partilham o mesmo território cartografado por um estilo apurado no exercício da feitura de mais de cinqüenta obras. Scliar discorre acerca de temas que são caros às discussões filosófica, artística, antropológica, médica e psicológica. Questões relacionadas ao tempo, à história, à tradição, à modernidade, ao judaísmo, à exclusão, à morte, às migrações e ao êxodo fluem em sua escritura. O fantástico e o mitológico aparecem dessacralizados. Em seus textos, são delineadas e desconstruídas representações da ciência, da Medicina, da História, do corpo, da doença e do doente, da cidade, da adolescência, do judeu, do louco. A sua obra vem sendo foco de inúmeros trabalhos acadêmicos, podendo ser destacados os escritos de B. Waldman, A . Vaz, L.C. Guimarães, G. Silva, G. Bittencourt, A . Beatriz Miranda, M. Remédios, R. Zilberman e M. Cury, dentre outros autores.

Em 2003, Scliar nos brinda com o livro Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, no qual erudição, estilo e espirituosidade compõem quadros ricos que vão adquirindo tons inesperados que excitam a curiosidade do leitor. Tomando de empréstimo as palavras do autor ao analisar uma suposta dieta melancólica, concordamos com ele quanto à afirmação: "história 'picante' é aquela que as pessoas ouvem de olhos arregalados, boca aberta, salivando até" (p. 139). Nesse sentido, este livro pode ser degustado como um banquete que tonifica o espírito, revigorando-o no embate constante com o sofrimento que nos humaniza.

O desenvolvimento histórico da idéia de melancolia é abordado pelo autor a partir da literatura da antigüidade - de ordem predominantemente fisiológica - , na qual a medicina envereda pelas searas da filosofia considerando os elementos orgânicos - água, ar, terra e fogo - como bases para os estados de saúde e doença. Assim, a melancolia tem origem com a civilização grega, tendo sido Hipócrates (460-375 a.C) o primeiro médico que a tratou como síndrome clínica. Etimologicamente, melancolia deriva de Melaina Chole ou bílis negra: humor que corresponde ao elemento terra. Scliar passeia com desenvoltura pelas concepções de Aristóteles, Areteo da Capadócia e Galeno aspirando, em termos breves, colorir as possibilidades de entendimento da melancolia. É importante ressaltar que as experiências de apatia, tristeza, temor, ódio, desgosto, desconfiança, insatisfação e desejo de morrer foram considerados importantes sintomas, contribuindo para a demarcação do aspecto descritivo que, posteriormente, caracteriza a compreensão da doença mental.

Na idade média, a prevalência teocêntrica envolvia os sentimentos de medo, tristeza e desânimo com o peso demoníaco do pecado e da culpa. Saturno surge no terreno da melancolia como "demônio das antíteses", influenciando o aparecimento ora da preguiça e da apatia, ora da inteligência e do êxtase. O astro da melancolia descende da astrologia árabe, marcando a literatura e a arte antigas e medievais.

É a época do Renascimento que conquista Scliar. Como ele escreve: "o relógio mexeu com a cultura" (p. 13), marcando o compasso de novas ordens temporais e espaciais. Uma nova cartografia existencial se constrói esfumaçando os espaços artístico e geográfico, possibilitando a ultrapassagem de fronteiras, lançando a metáfora do labirinto como defrontamento com o enigma da dúvida.

O autor reconstrói, no item "O mundo como labirinto, o mundo como paradoxo, o mundo como realidade oculta, o mundo (...)", aspectos literários com fineza poética, deixando-se acompanhar por pensadores como Norbert Elias, Gramsci e Schumpeter, bem como pelos escritores Juan de Mena, Goethe, Gérard de Nerval e Paul Celan. A seguir, a alusão à peste ilustra a desenvoltura do autor ao lidar com o campo da saúde pública - traço marcante em toda sua obra. O texto não é marcado pelo olhar de um cientista ou pesquisador, mas recheado de análises metafóricas que iluminam a complexidade do sofrimento humano. À visão organicista somam-se referências enriquecedoras ao mito, à religião, à lenda, ao folclore, enfim, ao saber dos poetas. Ao tratar a lepra e a sífilis, Scliar aborda-as do campo da antropologia da doença, as vicissitudes de estar enfermo em termos sociais e culturais: as doenças têm sentido, elas demandam sentido aos que padecem e àqueles que se propõem a compreende-la. A doença não existe per si. Ela se constrói imersa na profusão simbólica de um recorte espaço-temporal. É nesse sentido que Scliar se dedica ao que chama de "Pequena história da melancolia" (p. 74), ressaltando que é com o homem renascentista que a acedia - ou "melancolia profunda" (p. 74) - passa a não ser concebida como pecado capital, apresentando conotações tanto de tristeza, como de criação artística e intelectual. A melancolia como doença passa a ser enfatizada: "De outra parte, e como doença, a melancolia escapa ao estreito círculo da teologia e passa a ser abundantemente estudada, tanto por médicos como por pensadores, no contexto do interesse pela mente característico do século XVI, o século que vê o nascimento da palavra 'psicologia'" (p. 76).

Aos poucos, Scliar vai desenhando os trajetos da melancolia entre Filosofia, Medicina e Religião, esboçando a complexidade do tema que, na atualidade, tende a ser expurgada da hegemônica leitura organicista da depressão.

Relacionada aos humores, às qualidades, às paixões, às divindades e mitos, à bruxaria, à astrologia e ao folclore, percebemos que a semântica do corpo se fazia ver pela pluridimensionalidade de olhares a ele dirigidos.

Doença? Não havia consenso a respeito. De um lado estavam os adeptos do conceito galênico: melancolia é um distúrbio dos humores. (...) De outro lado, estavam aqueles que, como Vives, seguiam Aristóteles: melancolia é uma admirável condição da mente. Cornelius Agrippa, filósofo e médico fascinado pelas ciências ocultas, garantia que a melancolia estava associada à capacidade de prever o futuro. (...)A melancolia também podia estar associada às paixões.(p. 79).

No tópico "A melancolia na arte e na literatura" (p. 81), Scliar aborda a influência da "epidemia da melancolia" (p. 81) renascentista na arte, especialmente, na arte pictórica. O mundo de Dürer, nas palavras de Benjamin, lembradas por Scliar, "faz-se através das coisas e não das palavras" (p. 85). Albrecht Dürer apresenta os temas da memória, do tempo, do sono, da tristeza, da imobilidade, do isolamento, da sabedoria do espaço, do pensamento, da morte e do luto.

Após discorrer sobre tais temas, Scliar contextualiza a melancolia na Modernidade "como uma péssima notícia, muito pior do que na Idade Média, quando ao melancólico sempre restava a alternativa de tornar-se monge, recolhido ao silêncio de sua cela, ainda que correndo o risco da acedia. A situação agora é diferente. Pessoas de gênio, sobretudo aquelas com suporte material (como os artistas amparados por ricos patrocinadores), podem achar que a melancolia é uma qualidade do espírito; para os outros, ela não passa de excesso de uma substância negra, viscosa, excesso que a sociedade não está disposta a tolerar. Como não está disposta a tolerar a loucura."(p. 94). A nau dos loucos indica a época do encerramento, segundo Foucault, e marca a era dos alienistas, responsáveis em garantir a distância da loucura da sociedade. As obras de Bosch, Bruegel, Dürer e Bouts são tocadas por Scliar, já que afloram representações da morte ligadas à doença. A Inquisição no mundo ibérico e o Santo Ofício no Brasil positivam a culpa como experiência ligada à melancolia.

Scliar toca o tema da melancolia a partir da várias temáticas, como a culpa, a identidade, os médicos judaicos, a dietética, o cérebro, a festa, a máscara, o riso, o sarcasmo, o humor, a avareza, a especulação e o método, a utopia, a premonição, as viagens e as transformações geográficas. Dentre tantas voltas em torno da questão, os estímulos intelectual e erótico e as mobilidades espaço-temporais possibilitadas pelos deslocamentos geográficos atraem o autor na construção dos argumentos do título do livro. O item "Por falar em descobrimentos: a melancolia portuguesa" (p. 145) se ocupa em desenvolver a importância dos empreendimentos marítimos de Portugal, impulsionados por uma idéia de prazer relacionada ao tráfico e à indústria. Nas palavras de Scliar:

povo em busca de afirmação, vivendo num país pequeno e à sombra de um vizinho poderoso, os lusos buscaram no comércio transoceânico e na colonização de regiões distantes uma forma de subsistência e também de auto-afirmação nacional, empreendimento que envolvia cristianização e comércio de especiarias: 'Jesus e pimenta', nas palavras de Oliveira Martins. Jesus e pimenta: o espiritual e o material, o inefável e o picante. Uma combinação que moveu muitas frotas oceano afora. Foi uma epopéia admirável, em termos de arrojo, de coragem, de persistência (p.145-146).

A nostalgia , como explicita o autor, constitui um ingrediente na cultura portuguesa. Assim, nostalgia e esperança marcam a colonização do Brasil.

A "melancólica psique portuguesa" (p.150) contamina a recente cultura brasileira desde seus primórdios. Na segunda parte de livro, Scliar inicia suas reflexões sobre "A melancolia chegando ao trópico com a alusão às "doenças viajando em navios"(p. 170), focalizando obras como as de Paulo Prado (1869-1943) - Retrato de Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira -, Gilberto Freyre - Casa-Grande & senzala -, Sérgio Buarque de Holanda - Raízes do Brasil - e Caio Prado Jr. - História econômica do Brasil. Esses livros são iluminados pelo desnudamento a que submetem o país, abordando a tristeza portuguesa, indígena e negra, bem como "mais tristezas" (p. 199) com os emigrantes. A partir de meados do século XIX, a tristeza toma corpo nas mudanças do sistema agrícola para o industrial, nas contradições do crescimento urbano refletidas na ideologia do pessimismo e no ufanismo. Os antídotos para a tristeza brasileira são lembrados pelo autor por meio da festa, da cachaça, da cordialidade, do humor e da malandragem. No país do carnaval e do futebol - "canibalizados pelo processo de antropofagia" (p. 206) - a "transgressão risonha" (p. 209) mostra-se frutífera de tipos como o meliante e o batedor de carteiras.

A passagem que o autor constrói entre as elaborações que vem tecendo e o item "melancolia na literatura brasileira: Machado de Assis e Lima Barreto" (p. 212) é rápida, aflorando que a leitura fluente da primeira parte do livro - apesar da extensa quantidade de informações históricas - ressalta sua qualidade. Parece-me que as elaborações sobre a melancolia na literatura brasileira podem suscitar maior aprofundamento do autor, embora ressalte que ele destina olhar atento a Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Clarice Lispector.É por esses autores que Scliar a ponta ser possível traçar o trajeto, cheio de rodeios e desvios, da melancolia européia ao Brasil, "um país chamado Brasil, descoberto por navegadores vindos de um país onde a melancolia tinha uma versão própria, a saudade" (p. 243).

Como indica o autor, o terceiro momento da melancolia ocorre no Brasil: "Havia motivo para tristeza. Não um motivo racial ou constitucional, como pretendia Prado, mas um motivo social, histórico: o genocídio indígena, a escravatura negra, as pestilências, a pobreza."(p. 244).

A finalização do livro nos convida a continuar a acalentar o tema da melancolia, tentando não prendê-la nos parâmetros da biomedicina, mas a esses aproximando a beleza da melancolia inscrita pelo saber dos poetas, filósofos e médicos que vêem a Medicina como arte.

O livro Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil representa um marco na produção teórica sobre a melancolia, podendo iluminar a complexidade do sofrimento melancólico, marcante no discurso e na singularidade de quem padece. Os olhares poético e médico de Scliar fertilizam o solo, muitas vezes árido demais, de compreensão do mal-estar que marca o humano, abrindo searas nas quais a radicalidade da experiência do sofrimento tenha lugar primordial, denotando a não fácil apreensão do espírito em classificações nosográficas.

 

 

Recebido em 18 de junho de 2004
Aceito em 30 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004

Creative Commons License