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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.1 Fortaleza mar. 2005

 

ARTIGOS

 

O mal-estar da professora alfabetizadora: contribuições de D. Winnicott

 

 

Nilce da Silva

Cientista Social . Pós-doutorada pela Universidad Paris-Nord. Professora Doutora da FEUSP — USP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar: o papel da instituição escolar. End.: Rua Antonieta Leitão, 209. Ap. 12. Freguesia do Ó. São Paulo. CEP: 02925-160. e-mail: nilce@usp.br

 

 


RESUMO

Este artigo pretende contribuir para a compreensão da subjetividade da alfabetizadora à luz da teoria de Winnicott. Durante o ano de 2004, em escolas públicas e particulares da cidade de São Paulo, por meio de pesquisa qualitativa, sem desprezar alguns dos instrumentos característicos da pesquisa quantitativa, procuramos conhecer a vida de um grupo de professoras alfabetizadoras (das séries iniciais do Ensino Fundamental Regular e de Educação de Jovens e Adultos - EJA) do ponto de vista das suas lembranças - das recordações que outras pessoas do seu círculo social próximo têm de suas vidas — e das interpretações que as mesmas fazem de suas vidas quando pequenas e relacionar esta "memória individual e coletiva" com os aspectos relacionados às representações que as mesmas têm sobre seu desempenho profissional na carreira docente como alfabetizadora. Dos dados coletados e analisados, verificou-se uma tendência em apontar que professoras alfabetizadoras que enquanto bebês tiveram "mães suficientemente boas", no sentido winnicottiano do unitermo, têm maior satisfação no desempenho nas suas carreiras e, inclusive por isto, sofrem menos as conseqüências do stress docente (burnout) na medida em que são mais criativas na sua prática pedagógica e na sua vida cotidiana. Não por isso, deixam de sentir a pressão social quando procuram criar e fazer, sobretudo no âmbito dos sistemas públicos de ensino, que se mostram pouco abertos para o profissional que faz, conduzindo-os à espera doentia das férias, dos feriados e da aposentadoria. Dividimos este artigo nas seguintes partes: a - introdução: das dificuldades de entender a subjetividade; b - os trabalhos que têm sido feitos na área do stress docente; c - o "tipo ideal" da "mãe suficientemente boa"; d - apresentação e análise de dados; e finalmente, apresentamos algumas considerações que podem servir para o debate desta problemática com ênfase na importância do "ato criativo".

Palavras-chave: alfabetizadora, subjetividade, mal-estar docente, Winnicott, criatividade


ABSTRACT

This article intends to contribute for the understanding of the subjectivity of the female primary school teachers based in Winnicott's theory. During the year of 2004, in public and private schools of the city of S. Paulo, by means of qualitative and instruments of the quantitative research, we look for to know the life of a group of female primary school teachers (Regular Basic Teaching Adult Education - EJA) of the point of view of theirs souvenirs - of the memories who other people of their next social circle have of their lives - and of the interpretations that the same ones make of themselves lives when they were children and to relate this "individual and collective memory" with the related aspects the representations that the same ones have on the performance professional in teaching career as female primary school teachers. Of the collected and analyzed data, a trend in also pointing that they, who while babies had had "enough good mothers", in the winnicottiano sense of the expression, have greater satisfaction in the performance in their careers and, for this was verified, suffers little the consequences of teacher burnout in the measure where they are more creative in pedagogical practical and in daily life. Not therefore, they leave to feel the pressure social when they look for to create and to make, over all in the scope of the public systems of education, that if they little show open for the professional who makes, leading them it the unhealthy wait of the vacations, the holidays and the retirement. This article has the following parts: a- the introduction: of the difficulties to understand the subjectivity; b - the works that have been made in the area of stress female primary school teachers; c - the "ideal type" of the "enough good mother"; d - presentation and analysis of data; e finally, we present some considerations that can serve for the debate of this problematic one with emphasis in the importance of the "creative act".

Key-words: female primary school teachers, subjectivity, teacher burnout, Winnicott, creativity


 

 

Introdução: das dificuldades de entender a subjetividade

No momento em que iniciamos a escrita deste artigo, inúmeras questões, do ponto de vista epistemológico pertinentes a esta investigação, reincidentemente, fizeram parte do nosso pensamento. Ou seja, perguntávamos: qual seria o método de pesquisa mais adequado para compreender a subjetividade da professora caso levemos em consideração a infância destas profissionais? Seria pertinente apresentar como hipótese que ser professora, e ainda, ter sucesso (satisfação profissional e pessoal) nesta carreira é variável independente de ter tido "mãe suficientemente boa"? Seria a busca pelo sucesso na carreira docente ou o próprio sucesso prova da superação de uma relação existente na mais tenra infância com a "mãe que não foi suficientemente boa"? Quais as conseqüências desta busca pela criação, pela realização pessoal em termos da saúde mental da professora alfabetizadora, sobretudo nos sistemas públicos paulistas que não estimulam a produção? Ou, ao contrário, o exercício docente sem criatividade seria causa do stress? Além disto, outra preocupação nos acompanhou: qual a relação entre "bem-estar mental" da alfabetizadora e a aprendizagem da língua portuguesa escrita?

Apesar de todas estas questões, decidimos pela publicação deste artigo, especialmente pela natureza, talvez epidêmica e ou endêmica, do foco da investigação — a importância da saúde mental da professora alfabetizadora - para que o mesmo seja alvo de críticas construtivas e que possamos juntos discutir, em âmbito menos restrito, as dificuldades de se compreender, conhecer a subjetividade humana para tentar minimizar o sofrimento de tantos seres humanos conforme nos indicam as pesquisas feitas nesta área.

Colocamo-nos totalmente de acordo com J. L. Crochík (1990) quando afirma que para entender a subjetividade é necessário entender os seus determinantes objetivos e, neste sentido, ainda, acrescenta ele, há que se construir um método para poder acessar este conhecimento. Dito de outro modo, faz-se mister ajustar os métodos existentes na tentativa de compreender a subjetividade humana, e este, dentre outros, tem sido um dos objetivos desta investigação.

Segundo o referido autor,

As leis psicológicas, se é que se pode empregar este termo, são intrinsecamente relacionadas às leis da sociedade e da cultura. Isso não implica que se reduzam umas às outras, pois uma vez que um indivíduo se diferencia, passa a se distinguir da cultura, embora esta continue a exigir dele a adaptação (...) (Crochík, 1990, p. 72).

Procuramos assim, ao solicitar o auxílio do método proposto por Max Weber, sobre o qual falaremos logo adiante, encontrar as marcas da vida social em cada um dos sujeitos desta pesquisa — professoras alfabetizadoras e as representações que estes sujeitos têm de si mesmos.

Quando nos referimos às marcas, referimo-nos desde as marcas corporais que carregamos graças à nossa socialização, tais como: furos nas orelhas, traços de alianças nos dedos, calos em nossas mãos, sorriso "bem feito", "dentição" etc, até as marcas subjetivas que se instalam na "alma" de cada um de nós: desconfiança das pessoas, intransigência, persistência, criatividade, baixa auto-estima, preconceitos, dentre outras.

Neste sentido, dirigimos nosso olhar para a escola enquanto "instituição total" — na concepção de E. Goffman -, pois a mesma marca os indivíduos que por ela passam de diferentes maneiras. Assim, o conceito de "instituição total", apresentado de modo esclarecedor na obra Manicômios, Prisões e Conventos é de suma importância para nossos fins.

Uma instituição total pode ser definida como um lugar, um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada (Goffman, 2003, p.11).

Desta maneira, este tipo de instituição conquista parte do tempo e do interesse dos seus participantes. Quanto mais fechada é a comunicação que a mesma estabelece com o mundo externo, mais próxima da categoria de "instituição total" ela se encontra. O seu fechamento, além dos aspectos físicos propriamente ditos, pode se dar de modo simbólico.

Além disto, os freqüentadores / usuários das "instituições totais" passam por um "desculturamento" por meio de uma longa carreira moral que, antes de tudo, inicia-se pelo rebaixamento, pelo sofrimento, pelas humilhações e pelas mais diversas maneiras de profanação do eu.

De um ponto de vista popular ou naturalista, a carreira do doente mental cai em três fases principais: o período anterior à admissão no hospital, e que denominarei de pré-paciente; o período no hospital, aqui denominado de fase de internamento; o período posterior à alta no hospital que, quando ocorre, será denominado fase de ex-doente (...) (Goffman, 2003, p. 114).

Neste processo, dá-se o abandono do eu. A necessidade de pedir permissão para executar determinadas ações que antes eram realizadas banalmente, tais como, fumar, barbear-se, ir ao banheiro, colocar carta no correio, comprar livros e material de papelaria, contribuem enormemente para a perda do poder de decisão pessoal, fato que perturba a economia de ação exterior e psíquica de um indivíduo, perfeitamente expressas nas palavras de Goffman da seguinte maneira: "A mortificação ou mutilação do eu tendem a incluir aguda tensão psicológica para o indivíduo, mas para um indivíduo desiludido do mundo ou com sentimento de culpa, a mortificação pode promover alívio psicológico (...)". (Goffman, 2003, p. 49).

Ao mesmo tempo em que ocorre esta mortificação, o internado começa a receber instrução formal e informal a respeito do que é denominado por "sistema de privilégios". Ou seja, a instituição possui uma série de "regras da casa" que são conhecidas de maneira informal, depois de muito sofrimento. Tal processo doloroso e humilhante de aprendizado acontece durante a longa carreira moral em que se insere obrigatoriamente o indivíduo que faz parte da "instituição total". Existem diferentes maneiras por meio das quais o indivíduo procura enfrentar esta degradante carreira em que foi iniciado. Assim, de acordo com o referido autor, as pessoas em questão podem enfrentar a tensão moral a que são continuamente submetidas de pelo menos quatro maneiras:

1. Afastamento da situação: preocupa-se apenas com seu corpo.

2. Tática da intransigência: desafia a instituição e não quer participar.

3. Colonização: busca-se o mundo externo na instituição e aproveita o máximo que ela pode dar.

4. Conversão: o internado parece aceitar as regras da instituição.

A auto-estima de um indivíduo que se encontra submetido a uma instituição total é fortemente questionada e avaliada de forma negativa. A questão "se você é inteligente, como é que veio parar aqui?" deixa estas pessoas aturdidas. Neste contexto social, Goffman afirma que sobre um indivíduo circulam as informações que justamente ele gostaria de esconder.

Para tanto, o indivíduo submetido à instituição total tem duas possibilidades de ajustamento: o primário e o secundário.

Nos ajustamentos primários, ele age de acordo com o que esperam dele independentemente se isto lhe custa pouco ou muito. Já no secundário, ele finge que se adequou.

Especialmente com relação ao segundo tipo de ajustamento, Goffman salienta que as regras da instituição devem ser bem conhecidas para que a "simulação" possa ser feita sem nenhum sinal de encenação.

Com o passar do tempo na instituição, dentro daquele indivíduo que foi rejeitado cresce uma enorme rejeição com relação àqueles que o rejeitaram.

Apesar disto, muitas vezes, há o desejo do interno não querer sair da instituição. Tal desejo pode ocorrer por diversos motivos. Dentre eles, podemos destacar o preconceito do qual este indivíduo será portador justamente pelo fato de ter pertencido a esta instituição.

Finalmente, na sua análise, Goffman afirma que os problemas sociais são subjacentes à estrutura de todas as instituições totais.

Partindo das considerações de Goffman, guardadas as devidas proporções, as escolas participantes desta pesquisa têm semelhanças às "instituições totais", a saber:

1. Conquistam grande parte do tempo e interesse de seus participantes;

2. Possuem comunicação fechada — fisicamente e simbolicamente - com o mundo externo;

3. Têm "regras da casa";

4. São espaços em que se conversa justamente sobre determinados assuntos que depreciam seus internos, e que por isso, os mesmos não gostariam de vê-los expostos;

5. Têm sistema de supervisão, inclusive à distância;

6. É o reino da burocracia;

7. Impõem "carreira moral" e desculturamento;

8. Rebaixam a auto-estima do indivíduo;

9. Submetem seus funcionários e alunos à tensão moral;

10. Proporcionam aos mais pobres contato com pessoas mais educadas formalmente;

11. Fazem com que as pessoas ligadas a elas, sintam que perdem tempo;

12. Forçam professores, alunos, comunidade em geral a ajustarem-se a elas;

13. Favorecem a rejeição entre funcionários, professores, alunos etc;

14. Fundam-se nos problemas da sociedade paulistana e dos seus bairros especificamente.

As instituições em que realizamos esta pesquisa — escolas públicas e particulares da cidade de São Paulo - localizam-se nas cinco zonas geográficas da cidade de São Paulo (norte, sul, leste, oeste e centro). Muitas delas se encontram em bairros marcadamente residenciais, com algumas casas de comércio populares, e atendem alunos de baixa renda. Estas escolas, e ainda mais especificamente as pertinentes ao sistema público municipal ou estadual de ensino, conquistam grande parte do tempo dos profissionais que fizeram parte desta pesquisa. Quando se trata de diretores, coordenadores que trabalham em tempo integral, esta exclusividade fica mais evidente, ou (in) questionável. Porém, quando analisamos a vida dos professores, verificamos que os mesmos, em grande parte das vezes, dedicam o dia todo ao sistema de ensino em diferentes estabelecimentos escolares, compondo a sua jornada ou carga de aulas. E assim, mesmo que não estejam na escola, estão dirigindo-se para outra ou corrigindo provas, preenchendo papéis etc. Também não podemos nos esquecer de muitos profissionais que acumulam as funções que exigem jornada integral, como por exemplo, coordenadores, diretores, com a função de professor.

A comunicação com a comunidade externa é marcada basicamente pela separação: comunidade e instituição. Fisicamente, as escolas públicas separam-se da comunidade externa por: portas e enormes portões de ferro, grades, campainhas etc.

Depois dos estudos de Pierre Bourdieu, já é conhecimento consolidado a violência produzida nas escolas.

As escolas públicas em que realizamos esta pesquisa possuem suas "regras da casa". Pudemos coletar depoimentos dos sujeitos deste trabalho que nos forneceram algumas importantes referências: "... eu posso faltar hoje na escola para ir até a (nome de algum lugar) porque eu tenho uma folga, trabalhei na Festa Junina e a gente não ganha nada..."; "... a diretora me deixa fazer um curso... é esta a vantagem de estar nesta minha posição, tem menos controle...", "... eu aproveitei que fui até a Coordenadoria e fiz um mercadinho lá pra casa...", "... vamos dispensar os alunos mais cedo... se tiver aluno conta dia letivo...", "... hoje tem jogo... vou dar o sinal antes...", "só tem aluno até quarta-feira; .quinta, tem poucos e sexta, não tem ninguém...", "...pode jantar e ir embora porque hoje é sexta-feira...", "...você assina este papel como que já tivesse recebido a verba... isto é para facilitar no Tesouro....", "eu já pedi o papel, não tem nada o que fazer, só esperar, tem que ter muita paciência".

Com relação à supervisão e ainda à burocracia, podemos dizer que estes processos reinam no sistema público de ensino. Já, quanto à "carreira moral" dos professores, ser professora em escolas públicas, no âmbito desta pesquisa, da forma como Goffman explicita, promove um rebaixamento da auto-estima dos seus profissionais.

De um modo geral, a carreira moral do professor inicia com a posição de "eventual". Ou seja, ele substitui os professores que faltam. Observamos que os professores efetivos ou adjuntos não cultivam o hábito, na maioria das vezes, de avisarem aos eventuais das suas faltas, e muito menos de falar-lhes alguma informação sobre o processo de ensino propriamente dito da classe em que serão "substitutos". Desta forma, o eventual está na escola sem saber em que ano, em que classe e em que disciplina irá atuar. Vê-se apenas obrigado a "entrar" numa sala e substituir.

Neste cotidiano, o eventual já é humilhado pela própria situação de surpresa em que se encontra. Em seguida, como não sabe o que vai fazer, geralmente, não se sente seguro com o tipo de atividade que pretende desenvolver com os alunos. Estes, por sua vez, desprezam a presença deste eventual, causando-lhe diversos constrangimentos.

Geralmente, este profissional é menosprezado nos comentários de seus colegas. Além disto, sua remuneração é pior, assim, na ascensão de sua carreira moral, o eventual decide prestar concurso de ingresso na carreira. Passa, então por uma série de pressões. É alvo de comentários, sobretudo se ele não passar no concurso. Com relação a concursos, hoje, o município de São Paulo tem uma seqüência deles: o de ingresso adjunto, o de acesso efetivo, o de acesso de professor para coordenador, o de ingresso para coordenador etc.

Nas escolas em que realizamos o trabalho de campo, constatou-se que algumas funções são símbolos de prestígio na carreira moral do professor, como por exemplo: auxiliar de período, professor da sala de leitura, professor da sala de informática, dentre outras. Para conseguir uma destas posições, o docente deve conhecer bem as regras da casa. O tradicional desprezo aos professores dos primeiros anos de Ensino Fundamental se mantém, sobremaneira, se estes são professores alfabetizadores de jovens e adultos.

Deste modo, podemos afirmar que este trabalho, que tem como objetivo compreender um pequeno aspecto das Ciências da Educação, encontra-se na fronteira de, pelo menos, duas áreas do saber: a Sociologia e a Psicanálise. Isto porque, além dos motivos epistemológicos apresentados anteriormente, dirigimos às professoras alfabetizadoras um olhar que tem como objetivo conhecer problemas coletivos, da ordem da saúde pública.

Por isso, em primeiro lugar, recorremos aos principais estudos que têm sido feitos no exterior e no Brasil acerca das doenças mentais profissionais e do mal-estar docente especificamente. Em seguida, apresentamos o método que utilizamos nesta investigação — auxiliado pelo conceito de "tipo ideal" de Max Weber, embasados na teoria de D. Winnicott e, finalmente, apresentamos nossas considerações finais.

Vejamos as pesquisas que têm sido feitas acerca da relação entre doenças mentais e trabalho e, neste sentido, o stress docente.

 

Os trabalhos que têm sido feitos na área do stress docente

A obra A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho de C. Dejours é um dos primeiros livros que trata da relação bem-estar/saúde mental e trabalho. Apesar deste não tratar especificamente da profissão docente, alguns pontos deste livro merecem ser destacados tendo em vista os objetivos deste artigo, pois o mesmo divulga aquilo que, no afrontamento do homem com o desenvolvimento do seu trabalho, põe em perigo a sua mente, a sua "sanidade".

No século XIX, a palavra de ordem que se referia à minimização dos efeitos negativos do trabalho à saúde mental do trabalhador era: a redução da jornada de trabalho, não obstante à preocupação com o trabalho em locais insalubres e do trabalho de mulheres e crianças.

Apenas no final deste século e em meados do século XX, surgem as primeiras leis no sentido das aposentadorias, de indenizações, dentre outras. Observe que interessante esta passagem: "Albert Thomas, em 1916, reduz a jornada de trabalho para 8 horas por dia e constata o efeito paradoxal desta medida, sobre a produção (...) que aumenta!" (Dejours, 1982, p. 21).

De um modo geral, nestes séculos inicia-se a preocupação com os efeitos nocivos do trabalho sobre o corpo físico do trabalhador e luta-se por melhores condições de trabalho neste sentido. Hoje, a luta pela sanidade mental do trabalhador está iniciada. Porém, conforme nos alerta Dejours, muitos e muitos trabalhadores (e acrescentamos professores e professoras) se calam com medo de perderem seus postos de trabalho por serem chamados de "desequilibrados mentais" e outros sinônimos que estigmatizam.

Seja em relação à prática médica ou à pesquisa a respeito da saúde, uma primeira observação se impõe de imediato. A reticência maciça em falar da doença e do sofrimento. Quando se está doente, tenta-se esconder o fato dos outros, mas também da família e dos vizinhos. É somente após longas voltas que se chega, às vezes, a atingir a vivência da doença, que se confirma como vergonhosa. (Dejours, 1982, p. 29)

Como se sabe, faz parte do conhecimento de senso comum que o mal-estar mental é ligado à falta de vontade daquele que o tem e ainda associado à vagabundagem, ao corpo mole e à mente fraca, e assim, o doente mental esconde-se para que não seja estigmatizado e aumenta ainda mais o seu problema: "Tal é o paradoxo do sistema que dilui as diferenças, cria o anonimato e o intercâmbio enquanto individualiza o homem frente ao sofrimento". (Dejours, 1982, p. 39)

Ainda para este pensador, o sofrimento psíquico dos trabalhadores, com o tempo, constituem-se por sensação de "indignidade", de "desqualificação", de "vivência depressiva" e a certeza de que não há possibilidade de minimizar este sofrimento, pois há total dependência entre trabalhador e mercado de trabalho.

Um sentimento que acompanha este sofrimento é o "medo" que, segundo o emérito professor francês, está presente em todos os tipos de profissão. A saber: medo dos acidentes de trabalho (quedas, tombos, fraturas...); medo das doenças profissionais (DOR, LER, perda da audição, envenenamento por substâncias tóxicas...); medo da competitividade; medo das exigências intelectuais e sociais; medo das críticas de seus "clientes", pares e superiores; medo da ignorância e da falta de preparo; todos estes acompanhados por grande tensão nervosa. Há que se acrescentar ainda que as relações sociais estabelecidas no ambiente de trabalho ultrapassam o plano profissional e alcançam aspectos pessoais dos trabalhadores, fazendo com que "colegas de trabalho" configurem-se apenas como concorrentes e, por isso, "lutam entre si", "massacram-se" e não melhoram suas condições de trabalho efetivamente.

Com relação aos trabalhos que se aproximam dos "intelectuais", antes de falarmos propriamente da profissão da professora alfabetizadora, destacamos a seguinte passagem de Dejours, extremamente significativa para os fins deste artigo:

Devem-se levar em consideração três componentes da relação homem-organização do trabalho: a fadiga, que faz com que o aparelho mental perca sua versatilidade; o sistema frustração-agressividade reativa, que deixa sem saída uma parte da energia pulsional; a organização do trabalho, como correia de transmissão de uma vontade externa, que se opõe aos investimentos das pulsões às sublimações. O defeito crônico de uma vida mental sem saída mantido pela organização do trabalho, tem provavelmente um efeito que favorece as descompensações psiconeuróticas. (Dejours, 1982, p. 39)

Para compreendermos a atual situação das professoras alfabetizadoras, além das valiosas contribuições de Dejours, vejamos também a obra do professor Codo que tem se destacado no Brasil nos estudos sobre a profissão docente.

Segundo W. Codo:

Já se viu que o professor faz muito mais do que as condições de trabalho permitem; já se viu que comparece no tecido social compondo o futuro de milhares e milhares de jovens que antes dele sequer poderiam sonhar. Mas existe um outro professor habitando nossas lembranças: Um homem, uma mulher cansados, abatidos, sem mais vontade de ensinar, um professor que desistiu, que entrou em burnout (Codo, 2002, p. 137).

Segundo este estudioso, tal situação atinge das pessoas encarregadas de cuidar. Neste sentido, os professores que "cuidam" podem se encontrar na "síndrome de burnout" que significa literalmente: perder o fogo, perder energia, queimar para fora..., ou ainda, de um modo mais contextualizado, professores em burnout não vêem sentido em seu trabalho, as coisas do mundo profissional não lhe importam mais e qualquer esforço parece-lhes inútil no sentido de mudar a direção dos fatos e da própria vida.

De um modo mais preciso, temos a definição de Helga H. Reinhold:

O burnout (consumir-se em chamas) é um tipo especial de stress ocupacional que se caracteriza por profundo sentimento de frustração e exaustão em relação ao trabalho desempenhado, sentimento que aos poucos pode estender-se a todas as áreas da vida de uma pessoa (...) O burnout é um risco ocupacional a que estão expostas especialmente as pessoas que trabalham em profissões de ajuda, as quais têm como traço em comum os contatos interpessoais muito intensos — como acontece com os professores. (...) é uma erosão gradual, e freqüentemente imperceptível no início, de energia e disposição, como conseqüência de um stress crônico prolongando, ou melhor, de uma incapacidade crônica para controlar o stress (....) (in Lipp, 2002, p. 64 e 65).

Codo pergunta-se: Por que os (as) professores (as) desistem? E para responder a tal questão recorre à teoria do desamparo de Seligman "a qual advoga que aprendemos a não responder, ou que nossas respostas não são capazes de nos livrar de encrencas, que tanto faz responder assim ou assado" (in Codo, 2000, p. 239).

Nas palavras do autor:

Um trabalhador que entra em burnout assume uma posição de frieza frente a seus clientes, não se deixando envolver com seus problemas e dificuldades. As relações interpessoais são cortadas, como já, a relação torna-se desprovida de calor humano. "Isso acrescido de uma grande irritabilidade por parte do profissional..." o ensino e a aprendizagem tornam-se inviável. "Por outro lado, o professor torna-se incapaz do mínimo de empatia necessária para a transmissão do conhecimento e, de outro, ele sofre: ansiedade, melancolia, baixa auto-estima, sentimento de exaustão, física e emocional..." (Codo, 2002, p. 242).

Além desta referência em termos nacionais para a compreensão do stress docente há que lembrar as contribuições de José Moura Gonçalves Filho quando o mesmo consegue articular, de modo exemplar, marxismo e psicanálise.

Nesta interlocução, Gonçalves Filho apresenta a humilhação social como um problema político e a define como angústia disparada por um problema de desigualdade de classe social; sobretudo quando se trabalha com migrantes que têm, tiveram e continuarão a ter seu passado roubado ou esquecido pela situação social, pois ao partirem de suas cidades natais, deixam retratos, objetos herdados. Vêem-se assim, espoliados do seu passado, além da miserabilidade econômica e social em que na maioria das vezes se encontram.

Com relação a esta "espoliação" do passado; há que se destacar a polêmica "tradicional" versus "moderno" que acompanha a História da Educação no Brasil referente à Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, muito bem especificada por Mortatti (2000), quando os professores e as professoras alfabetizadoras despojam-se de seu modo de ensinar para adaptar-se ao que é "bom" e "moderno". Ainda que de passagem, há que se destacar a importância deste livro para a compreensão da temática em questão, tendo em vista a absoluta ausência de estudos históricos sobre temáticas pertinentes ao ensino das primeiras letras. Assim, nos quatro momentos históricos marcantes apresentados por esta professora, um deles, o mais atual, espoliou muito das professoras alfabetizadoras, chegando mesmo a destruí-las como pessoas. A saber:

No primeiro momento, "sobressai-se a disputa entre os partidários do então novo e revolucionário "método João de Deus" para o ensino da leitura baseado na palavração e os partidários dos então tradicionais métodos sintéticos — soletração e silabação — em que se baseiam as primeiras cartilhas produzidas por brasileiros..." (Mortatti, 2000, p. 25).

O segundo momento se caracteriza por uma acirrada disputa entre partidários do então novo e revolucionário método analítico para o ensino da leitura e os que continuam a defender os ainda tradicionais métodos sintéticos — especialmente a silabação (...) (Mortatti, 2000, p. 25).

No terceiro momento, observa-se, a partir de aproximadamente 1920, uma disputa inicial entre defensores do "método misto (analítico-sintético ou sintético-analítico) e partidários do tradicional método analítico, com diluição gradativa do tom de combate dos momentos anteriores e tendência crescente de relativização da importância do método" (Mortatti, 2000, p. 26).

E finalmente, o quarto período ao qual pertencem os sujeitos desta pesquisa:

O quarto momento se caracteriza por uma disputa que passa a se destacar a partir, aproximadamente, do final da década de 1970: entre partidários da "revolução conceitual" proposta pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro, de que resulta o chamado construtivismo, e entre os defensores — velados e muitas vezes silenciosos, mas persistentes e atuantes — dos tradicionais métodos (sobretudo o misto), das tradicionais cartilhas e do tradicional diagnóstico do nível de maturidade com fins de classificação dos alfabetizado (Mortatti, 2000, p. 26 e 27).

Em suma, tolhe-se a possibilidade de construção cultural por meio da privação econômica, e nós acrescentamos, em uma linguagem winnicottiana, tira-se a possibilidade de criar, requisito fundamental para a saúde mental.

Do nosso ponto de vista, o professor, sobretudo dos anos iniciais da escolarização e especialmente os que trabalham nas escolas públicas, percebem que são apenas "força muscular de baixo preço" para vender para o Estado ou para as instituições privadas de ensino, e assim, por não serem considerados consumidores por excelência, não consentem a sua própria existência.

Toda esta classe de professores faz um grande esforço para que a sua dignidade seja mantida, não por isto, sentem-se invisíveis muitas vezes e não possuem a palavra autorizada, ingrediente decisivo na realização da vida humana. Vivem assim uma contínua necessidade de não desagradar. Tal desconforto advém do fato de vivermos numa sociedade ideologicamente organizada de modo a desconsiderar a palavra de alguns sujeitos, aqueles que não têm poder aquisitivo. Nas palavras de Paulo Freire:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras com que os homens transformam o mundo. Existir humanamente, pronunciar o mundo, é modificá-lo. (...) Não é no silêncio que os homens e mulheres fazem, mas na palavra, no trabalho, na reflexão-ação. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens (Freire, 1987, p. 78).

Esta situação de "ilegitimidade de fala", exterior ao indivíduo, ao longo da carreira do magistério, provoca-lhe uma constante desilusão e desencantamento da realidade o que obviamente o conduzirá ao burnout.

Estamos de pleno acordo com estas afirmações, porém gostaríamos de acrescentar com a análise dos dados que coletamos que há certa predisposição deste ou daquele indivíduo para dirigir-se ao magistério e esta, ao encontrar-se com este ambiente degradante, provoca o burnout. Ou seja, gostaríamos de levantar a hipótese de que indivíduos que não tiveram a "mãe suficientemente boa" são mais suscetíveis a dirigirem-se ao magistério, justamente, porque as condições externas oferecidas por esta profissão fazem com que as mesmas permaneçam no estado modelo adquirido no princípio da vida, estabelecido na relação mãe-bebê. E, além disto, acrescentamos, ainda que como uma tendência, que as professoras alfabetizadoras, que apesar de tudo, lutam para obter o "sucesso" profissional, sofrem de um outro tipo de stress ou burnout: "as relações pedagógicas que estabelecem na modernidade líquida".

Dos dados coletados, há que se ressaltar que as relações pedagógicas — professor / conhecimento / aluno — que temos observado na cidade de São Paulo, obedecem aos princípios da "modernidade líquida" apresentados por Bauman. Ou seja, estas relações:

• Movem-se como fluidos, escorrem e esvaem-se. Exemplos: a - Salas de aula dos primeiros anos do ensino fundamental que tiveram, em apenas um ano, até nove professores, de modo que se impossibilitou uma relação entre professor e aluno; b-Alunos e pais de alunos que não sabiam nem mesmo o nome de suas professoras; c-Professores, que devido a inúmeros fatores, não sabiam mais do que o nome de dois ou três alunos de sua classe, e que a cada ano mudavam de escola;

• São sem engajamento tanto das professoras como dos alunos e pais de alunos envolvidos. Exemplos: professores que desejam explicitamente "livrarem-se" de seus alunos, e por outro lado, alunos que desejam que a professora desapareça;

• Têm na fuga, astúcia, desvio e evitação seus maiores instrumentos. Exemplos: professores, em sala de aula, que fingem não ouvir ao chamado de um aluno; alunos que não atendem aos chamados dos seus professores; total desvio da atenção dos alunos pelo que é dito pelo professor, e, na mesma direção, professores que não escutam seus alunos, apenas dirigem a atenção àqueles que atrapalham as aulas, aos que "choram baixinho", ou são prostrados; o ignorar é atitude básica, professores que faltam e não avisam aos seus alunos do fato e vive-versa;

• Têm a "liberdade" como um ideal e uma máxima. Em nome deste valor: professores faltam quando querem sem dar satisfação, os alunos também; professores ministram ou não ministram aula, marcam prova para um dia e na hora da prova, sem maiores explicações, adiam a tarefa para outro dia; alunos que faltam às atividades programadas e pouco se importam com o professor ou colegas que os esperam; professores que submetem alunos a exercícios, provas... e jamais as devolvem, ou as devolvem sem correção; alunos que jamais sabem se haverá uma tarefa para ser feita neste ou naquele dia;

• São compostas por professoras e alunos deixados e abandonados às suas energias. E assim, encontramos alunos que querem aprender e procuram aprender de diferentes maneiras e em diferentes lugares, e muitas vezes, não encontram solução para este desejo; e também, professores que desejam ensinar, porém, custa-lhes convencer a classe a isto e não encontram apoio na própria escola em que lecionam ou em órgãos superiores;

• Encontram-se, pelos motivos acima apresentados, desintegradas; ou seja, não chegam a atingir o status de relação pedagógica;

• São compostas por partes que, como não são consumidoras vorazes, provavelmente pela falta de recursos materiais, auto-depreciam-se, auto-recriminam-se por ser aluno desta escolar, por ser professora deste local; e finalmente,

• São compostas por professores e alunos com identidade de palimpsesto: esquecem-se facilmente dos seus compromissos e daquilo que foi combinado.

Basicamente, estas características que encontramos em trabalho de campo, fazem com que a relação pedagógica seja apenas um "vir a ser" e que assim, conseqüentemente, o aprendizado não encontra condições de ocorrer. Questionamos: O que fazer? Terá perdido a escola o seu papel de ensinar? Passará o aluno oito, 10 anos em uma escola e não conseguirá dominar a língua portuguesa escrita como instrumento de cidadania?

Encontramos alguns "pontos luminosos" para responder a estas questões na teoria do psicanalista inglês D. Winnicott sobre a qual trataremos a seguir.

 

O "tipo ideal" da "mãe suficientemente boa"

Faz parte do conhecimento básico de estudantes, professores e pesquisadores das Ciências Sociais a associação entre o nome do sociólogo alemão Max Weber à formulação de um conceito básico para a análise da sociedade: o tipo ideal.

Segundo G. Cohn, "tipo ideal" é:

(...) Recurso metodológico para ensejar a orientação do cientista no interior da inesgotável variedade de fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinados traços da realidade (...) Por isso mesmo esses tipos ideais necessitam ser construídos no pensamento do pesquisador, existem no plano das idéias sobre os fenômenos. Assim concebido, esse conceito de 'tipo ideal' não é senão a forma assumida no plano metodológico pela mesma "vocação para o exagero", pois corresponde ao pressuposto de que a realidade social só pode ser conhecida quando aqueles traços seus que interessam intensamente ao pesquisador são metodicamente exagerados, para em seguida se poderem formular com clareza as questões relevantes sobre as relações entre os fenômenos observados (Cohn, 1982, p. 8).

A partir destas considerações, ousamos construir o "tipo ideal de mãe suficientemente boa" à luz das obras do psicanalista inglês D. Winnicott.

Segundo, D. Winnicott, a mãe, para que permita o pleno desenvolvimento de seu filho não pode ser cruel, mesmo que sob o disfarce da proteção que limita ou ainda sob pretextos educacionais e da civilidade, sob ameaças veladas, que aniquilam a alma e têm preços emocionais muito altos. A mãe também não pode ser figura ausente ou inexistente: aquela que nunca pode ou que nunca está, a que abandona ou ainda a displicente que deixa seus filhos ao sabor dos acontecimentos sem introduzi-los no mundo que os rodeia.

Para este autor, a mãe precisa ser "suficientemente boa", que seria um meio termo entre a "mãe que sempre sabe", "que sempre está", "que sempre pode e faz" e ou a "mãe que nunca está", "que nunca pode" e "nunca faz". Ou seja, seria uma mãe que cuida, que tem desvelo pelos seus filhos e que, ao mesmo tempo, permite-lhes ser independentes dela, se constituírem como pessoas diferentes do que ela é e, assim, matá-la simbolicamente. Ou seja, é a mãe que permite que seu filho não seja tudo aquilo que ela é à sua imagem e semelhança, e sim, uma pessoa diferente, com gostos diferentes, dona de si própria.

Para o referido psicanalista inglês, esta relação entre mãe e filho é um instante muito significativo para todo o desenvolvimento da criança, pois a marcará por toda a sua vida.

Quando a criança é apenas um bebê, a primeira relação que ela estabelece com a sua mãe se constitui em torno da amamentação. Nas primeiras semanas deste ato, o bebê pensa que ele é o próprio seio da mãe, pois quando mama, a sua satisfação é total, é uterina, ou seja, é de completude e satisfação. Aos poucos, com o distanciamento da mãe e todo o processo de desenvolvimento neurológico sofrido pelo bebê, ele começa a perceber que o seio materno não está sempre à sua disposição dele e que, portanto, o seio da mãe não é ele, bebê. Esta distância, que pouco a pouco se constrói entre mãe e bebê, origina determinadas condições que foram definidas por Winnicott pelo conceito de "espaço transicional ou de criação", ou ainda, "espaço potencial".

Na medida em que o bebê percebe que ele não é a mãe e que, entre ele e a mãe, existe um "espaço" — físico e temporal — ou ainda que a mãe é realidade exterior a ele — o bebê precisa preencher esta distância que o separa da mãe por "algo" que diminua a sua angústia pela espera do seio materno. Para preencher este espaço, o bebê precisa "inventar", colocar algum "substituto" da mãe enquanto a aguarda, ou seja, ele precisa criar para não sofrer. E assim, o bebê, enquanto a mãe não vem, contenta-se com uma mamadeira, com uma chupeta, com um paninho ou mesmo com o seu dedo.

Estes objetos que se encontram entre a espera do bebê pela mãe e a chegada da mãe — objetos que minimizam a angústia — foram chamados por Winnicott de "objetos transicionais", e o despertar da criatividade para a solução da angústia da separação, foi conceituado como "fenômenos transicionais".

Há que se entender que os "objetos transicionais" não pertencem totalmente à realidade interior do bebê, porém nela influenciam diretamente; nem pertencem à realidade exterior, ou seja, situam-se em uma área intermediária.

Segundo Winnicott, esta situação de ilusão - quando o bebê pensa que o seio da mãe é ele mesmo — e a situação de desilusão — quando a criança percebe que o seio da mãe não está sempre à disposição, e que não é ela (a criança) — repete-se na relação que o ser humano estabelece ao longo da vida entre seu eu interior e a realidade exterior a ele. E sendo assim, para que este ser humano não sucumba, faz-se mister criar. Só assim, um diálogo interno poderá ocorrer, situação que fará cada ser humano tranqüilizar-se frente à eterna questão que nos acompanha: Quem sou eu?

Neste sentido, pode-se inferir que uma mãe cruel ou ainda extremamente permissiva não possibilita ao seu filho o ato criativo e assim, pouco a pouco, constituir-se enquanto eu (self). A primeira não permite a tentativa de criação, pois não existe o estado de satisfação e fusão plena, jamais proporcionado na relação mãe e filho. A segunda, sempre está e não permite que seu filho crie, ou faça de objetos comuns objetos transicionais, gerados na necessidade de preencher a ausência materna.

Estas mães, por não permitirem que seus filhos se constituam de maneira autônoma, criadores e realizadores, favorecem o desenvolvimento de pessoas com auto-estima reduzidas, que não são capazes de gostar de si próprias, pois não são si próprias (falso self), são pessoas que precisam agradar a própria mãe e não a si mesmas.

Segundo Winnicott, nem tudo está perdido para estas pessoas, já que muitas situações colocadas pela vida podem oferecer condições para que a criança, jovem e ou adulto, que não se descolou da imagem materna, constituam-se como seres independentes, senhores de si, de seus desejos, das realizações destes e ainda da responsabilidade advinda de tornar-se uno.

Feitas estas considerações acerca da teoria de Winnicott e tendo como base metodológica o "tipo ideal" weberiano, apresentamos:

1- Tipo ideal da mãe suficientemente boa (Conforme Winnicott, 2002, 2001 e 1990):

• Mãe que pôde oferecer o peito ao seu filho até a idade de aproximadamente dois anos;

• Mãe que sentia prazer ao amamentar seu filho;

• Mãe que contou com a participação efetiva do marido nos primeiros meses do nascimento do bebê;

• Mãe que não esqueceu de si mesma quando seu bebê nasceu;

• Mãe que respeitou a presença dos objetos transicionais de seu filho.

2- Tipo ideal de mãe que não foi suficientemente boa (Conforme Winnicott, 2002, 2001 e 1990):

• Não pôde amamentar seu filho até dois anos de idade;

• Mãe que não pôde amamentar seu filho;

• Mãe que apenas ofereceu a mamadeira;

• Mãe que não pôde sentir prazer em amamentar seu filho;

• Mãe que deixava seu filho chorar por longos períodos antes de mamar;

• Mãe que não esperava seu filho se queixar de fome e já amamentava;

• Mãe que não contava com apoio do parceiro;

• Mãe que precisa dividir sua atenção com os demais filhos;

• Mãe que não pôde viver em ambiente tranqüilo neste período;

• Mãe que esqueceu de si mesma para tomar conta do seu filho;

• Mãe que não respeitou a presença dos "objetos transicionais" de seu filho.

A partir de agora, analisaremos os dados coletados tendo como parâmetro metodológico os "tipos ideais" apresentados.

 

Apresentação e análise de dados

Além das observações sistemáticas que realizamos em salas de aula dos primeiros anos do Ensino Fundamental em escolas municipais e estaduais da cidade de São Paulo; da coleta de depoimentos de professoras alfabetizadoras; aplicamos 80 questionários em diferentes escolas das cinco regiões geográficas da cidade de modo aleatório; sendo que 20 em escolas particulares, 30 em escolas públicas estaduais e 30 em escolas municipais. Cabe ressaltar que esta coleta de dados garante o anonimato a todos os envolvidos no estudo.

O referido instrumento de coleta de dados quantitativa foi composto, basicamente, por três partes: I-Lembranças dos primeiros anos de vida; II-Vida docente como alfabetizadora; III-Vida pessoal atual. O mesmo consistiu em uma série de questões com alternativas fechadas e uma (outras respostas) que dava possibilidade para manifestação mais livre das representações das professoras sobre sua infância, vida profissional e pessoal.

Depois dos questionários preenchidos, fizemos tabelas com uma, duas e três entradas em que levamos em consideração diferentes variáveis, com a finalidade de verificarmos as relações estabelecidas entre os diferentes indicadores presentes neste processo e para verificar a possibilidade da existência de tendência entre a mais tenra infância da professora alfabetizadora — basicamente a relação que a mesma teve com sua mãe; a representação da prática docente pela professora, e finalmente; a representação do seu estado geral de bem-estar como pessoa.

Muitos dos dados coletados mostraram-se interessantes para o debate. Apresentamos a seguir parte do tratamento dos dados que fizemos.

1. Em torno de 70% dos sujeitos desta pesquisa afirmaram ter confiança quando realizam seu trabalho em sala de aula em alguns aspectos e em outros não.

2. Aproximadamente, 40% dos entrevistados mudariam de profissão, sendo que pelo menos 10 pessoas escreveram ao lado da questão um reparo: "caso houvesse oportunidade".

3. Em torno de 80% das entrevistadas já faltou ao trabalho por apresentar um dos sintomas físicos apresentados para elas (náuseas, formigamentos, tonturas, insônia, taquicardia etc).

4. A maior parte das professoras, em torno de 70% que afirmaram ter tido na infância um "bichinho de pelúcia, bonequinha, paninho... que não largava, especialmente quando estava triste", associa sua prática de magistério a uma metáfora positiva.

5. Em torno de 90% das alfabetizadoras que mamaram no peito de suas mães até um ano de idade, e que, cujas mães declaravam ter prazer neste cuidado, não precisou procurar nenhum recurso da área terapêutica antes dos 12 anos de idade.

6. Aproximadamente 84% das alfabetizadoras que afirmaram ter sido bebês "trabalhosos" para suas mães apontam como metáfora relativa à sua prática docente a imagem de "uma pessoa que se esforça nadando e morre na areia" ou "de um remador de escravo para muitos senhores", "de um pequeno peixe que se perdeu do seu grupo", "de uma pessoa que caiu no mar e não sabe nadar".

7. 80% das alfabetizadoras que assinalaram as seguintes alternativas a respeito de sua infância: O leite da minha mãe secou muito rápido; Minha mãe passou muito mal depois da gravidez (teve alguma doença, complicação após parto, depressão...); Minha mãe me deixava chorar por longos períodos; Minha mãe fazia de tudo para eu não chorar; Minha mãe não pôde me amamentar, seu leite secou logo; Minha mãe teve que trabalhar logo depois que eu nasci eu não pôde me amamentar; Minha mãe era uma mulher muito ocupada com meus irmãos quando eu nasci; Minha mãe brigava muito com meu pai e não conseguia ter calma ao meu lado; Meu pai não estava ao meu lado nem do lado da minha mãe quando eu nasci, afirmaram apresentar hoje mais de três sintomas dos especificados no questionário.

Percebe-se que os dados coletados, mesmo que preliminares, apresentam uma tendência em mostrar que professoras alfabetizadoras que tiveram "mãe suficientemente boa" possuem uma prática docente e cotidiana mais satisfatória.

Além disto, verifica-se a tendência de que o descontentamento pela profissão existe em boa parte dos sujeitos pesquisados. Na medida em que não colocamos como alternativa na questão sobre a permanência ou não na profissão a seguinte alternativa "Mudaria de profissão caso surgisse uma oportunidade", e esta resposta apareceu espontaneamente em diferentes questionários, há que se desconfiar que este índice pudesse ser maior tendo em vista a falha contida no instrumento.

E finalmente, os sintomas físicos enumerados para os professores constituem-se como motivo de falta dos mesmos em seus trabalhos.

Apresentadas estas relações, pretendemos agora fazer algumas considerações a respeito da prática da alfabetizadora em sala de aula, da sua formação inicial ou em serviço e da relação que os seus alunos poderão estabelecer com o mundo das letras mediante processo sistemático de alfabetização na escola. Ressaltamos, neste sentido, que a professora alfabetizadora é uma das figuras mais importantes na carreira moral — conforme explicitado anteriormente - de um aluno na escola. Ou seja, a relação entre professora, aluno e saber, neste caso, poderá imprimir um modo de relacionar-se com o conhecimento que seu aluno irá adquirir neste momento e que poderá permanecer ao longo de sua vida escolar. E ainda acrescentamos a seguinte questão: Se a tendência afirmada acima com relação às professoras alfabetizadoras, ou seja, se a mesma se confirmar na continuidade desta pesquisa, questionamos: Quais as contribuições que D. Winnicott nos apresenta no sentido de fazer com que muitas das professoras que não se sentem bem mentalmente (e fisicamente) ao realizar seu trabalho possam sentir-se bem?

 

Considerações finais

Entendemos que o aprendizado da língua portuguesa não ocorre de maneira satisfatória, dentre outros inúmeros fatores, devido à situação subjetiva em que se encontra a professora alfabetizadora.

Um destes fatores forma-se no bojo do momento social em que vivemos.

Para tanto, servimo-nos da obra do sociólogo Z. Bauman, mais especificamente do conceito de "modernidade líquida" que ele desenvolve. Para ele, nos tempos em que vivemos:

Os fluidos se movem facilmente. Eles 'fluem', 'escorrem', 'esvaem-se', 'respingam', 'transbordam', 'vazam', 'inundam', 'borrifam', 'pingam', são 'filtrados', 'destilados'; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos — contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho (...) Associamos 'leveza' ou 'ausência de peso' à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos (Bauman, 2001, p. 8).

Neste sentido, ele nos alerta para o fato de vivermos no fim da era do engajamento mútuo entre supervisores e supervisados, capital e trabalho, líderes e seguidores, e, acrescentamos alfabetizadoras e alfabetizandos.

Sendo assim, nestas relações humanas, as principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de arcar com os custos, como procuramos apresentar no decorrer deste texto.

Percebemos claramente que tendo como pano de fundo esta "modernidade", a relação pedagógica, que dada a sua importância para o aprendizado, especialmente da escrita da língua materna, torna-se essencialmente e profundamente prejudicada. Apenas estes pressupostos poderiam nos levar à compreensão de boa parte do conhecido "fracasso escolar" no aprendizado da língua portuguesa escrita por uma cifra enorme de crianças, jovens e adultos.

Neste contexto, a escola, assim como as demais instituições sociais, não têm mais definido claramente, e talvez nem explicitamente, as estratégias de ação social esperadas dos indivíduos, mesmo porque, a escola tinha seu funcionamento garantido quando o Estado Nacional tinha a sua importância explícita.

As duas tarefas derivavam do mesmo grande empreendimento da revolução moderna: a construção do Estado e da Nação — a substituição de um mosaico de comunidades locais pelo novo estreitamento integrado sistema do Estado-Nação, da 'sociedade imaginária. E as duas requeriam um confronto direto, face a face, de todos os seus agentes (...) Construir o Estado moderno consistia em substituir as velhas lealdades ao estilo do cidadão para com a totalidade abstrata e distante da nação e das leis da terra (...) A construção da nova ordem requeira administradores e professores. (...) Não é mais o caso; pelo menos é cada vez menos o caso. Os nossos são tempos de desengajamento. (Bauman, 2003, p. 114 e 115)

Dito de outro modo, o aluno que está em momento de alfabetização é, muitas vezes, deixado à sua própria sorte frente a uma liberdade sem precedentes que também faz com que o aluno encontre-se altamente impotente, sem ter a quem recorrer. Os alunos, alfabetizandos neste caso, encontram-se por sua própria conta e risco e contam apenas com suas próprias energias.

Ainda de acordo com Bauman, nesta direção, o fracasso por não aprender a ler e a escrever em língua portuguesa encontra solução na biografia de cada um dos nossos alunos. Há assim, um estado de auto-exame minucioso, auto-recriminação, e auto-depreciação permanentes, e assim também de ansiedade contínua, em que apenas o consumir desvairadamente parece satisfazer.

Não queremos nos alongar na exposição do contexto em que se insere a relação pedagógica hoje, entretanto, não podemos deixar de mencionar a existência de esforços empreendidos por diferentes sujeitos para "manter à distância" o 'outro', o diferente, o estranho e o estrangeiro, e a decisão de evitar a necessidade de comunicação, de negociação e compromisso mútuo, não são a única resposta concebível à incerteza existencial enraizada na nova fragilidade ou fluidez dos laços sociais.

Em suma,

São poucos os portos seguros da fé, que se situam a grandes intervalos, e a maior parte do tempo a fé flutua sem âncora, buscando em vão enseadas protegidas das tempestades. Todos aprendemos às nossas próprias custas que mesmo os planos mais cuidadosos e elaborados têm a desagradável tendência de frustrar-se e produzir resultados muito distantes do esperado; que nossos ingentes esforços de 'pôr ordem nas coisas' freqüentemente resultam em mais caos, desordem e confusão; e que nosso trabalho para eliminar o acidente e a contingência é pouco mais que um jogo de azar. (Bauman, 2001, p. 156)

Assim, o pequeno aluno dos anos iniciais da escolarização não encontra — na maior parte das vezes — um eixo seguro em sua professora por razões da nova configuração social que se apresenta. Vive-se a política da precarização: precariedade da existência social.

Para Bauman, a única maneira de sobreviver nesta sociedade é justamente a possibilidade de CRIAR. É neste ponto que retomamos a importância da obra de Winnicott, pois este defende que a "mãe suficientemente boa" é aquela que dá condições para que seu bebê crie para suportar as desilusões que encontra na vida. E hoje, acrescentamos nós, frente à "modernidade líquida", as concepções de Winnicott são de fato importantíssimas, e elas nos permitem afirmar que alfabetizadoras que sobrevivem graças à sua criatividade, que pode ser conseqüência de ter tido uma "mãe suficientemente boa", dentre outras possibilidades da vida, torna-se a professora "suficientemente boa" capaz de ensinar e fazer com que seu aluno relacione-se bem com a língua portuguesa.

Dito de outro modo, o aluno não tem dificuldades para aprender, dentre outras condições, deve estabelecer relação pedagógica com uma professora que rejeitou a identidade de palimpsesto, identidade esta que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar e que assumiu responsabilidades perante seus alunos, responsabilidade estas em nível de prestar cuidados a eles, ou na linguagem winnicottiana, de maternagem, posição política que, claramente, está contrária à nova ordem do capitalismo mundial.

A realidade atual, na escola ou fora dela, faz com que as ilusões dos indivíduos sejam sacrificadas e estes deixem de assumir a possibilidade de vencerem algum obstáculo: eu posso aprender, eu sou capaz de vencer.

Na medida em que esta sociedade vive intensamente a ausência materna, falta daquele que cuida, temos instalado em nosso meio a "neurose" coletiva desta ausência e a teoria de Winnicott, sobretudo os conceitos de "espaço de criação", "fenômenos transicionais" e "objetos transicionais" são de grande importância.

Para o referido autor, "espaço de criação" é um conceito que pretende explicar a relação "mãe" e "bebê" e mais amplamente significa a compreensão da relação que as pessoas estabelecem com a realidade exterior a elas.

Frente a esta exposição e aos dados que coletamos e a estas considerações, faz-se urgente, para que se promova o aprendizado da língua portuguesa escrita uma Pedagogia capaz de preparar os indivíduos para o sucesso, para a superação de obstáculos, para que não sejamos pessoas vivas sem ilusões, incapazes de criar e anestesiados. Esta construção do aprendizado do sucesso será um processo doloroso, sobretudo porque os dias de hoje são sombrios e a ironia é traço social internalizado, porém, se quisermos nos manter alfabetizadores vivos, precisamos criar e superar estes desafios.

Uma das sugestões que fazemos para contribuir com este problema pessoal e social ao mesmo tempo, é a implantação de "espaços de criação" não só para os alunos em situação de aprendizado da leitura e da escrita, mas também, para as professoras alfabetizadoras para que estas sejam ouvidas, e assim, poderão se ouvir, tornando-se capazes de encontrar caminhos para sua formação, ou ainda, para iludir-se, no sentido winnicottiano do termo, e alçar seu próprio vôo por meio do ato da criação, sentindo-se em uma comunidade.

Por isto, pretendemos, na continuidade desta pesquisa — 2005 — com caráter definitivamente de ação-formação—intervenção, além do que já temos debatido acerca da temática alfabetização na perspectiva winnicottiana junto com os sujeitos desta pesquisa, continuar a difundir informações no meio docente acerca das questões levantadas neste texto e ainda das diferentes possibilidades para superar esta identidade pouco saudável construída, hipoteticamente, desde o nascimento, por estas alfabetizadoras. Ou seja, é importante para a professora conhecer a si mesma e no caso específico do stress perceber as modificações que podem acontecer consigo e encontrar instrumentos para lidar com elas. Dito de outro modo, as alfabetizadoras — e demais professores, acrescentamos — precisam observar as diversas fases pelas quais podem passar: a-Idealismo (energia e entusiasmo ilimitados); b-Realismo (percepção do idealismo inicial); c-Estagnação e frustração (fase de fadiga crônica e irritabilidade constante); d-Apatia e burnout total (sensação de desespero, fracasso, perda da auto-estima, sentimento de vazio e solidão) e e-Fenômeno Fênix (o renascer das cinzas, o momento da criação). (Cf., Reinhold, in LIPP, 2002, p. 66).

Ou seja, o ato criativo é da maior importância neste contexto. A criatividade precisa encontrar seu espaço, seu estilo em cada uma das pessoas. Ouvir a intuição, escutar-se a si mesmo são atitudes necessárias.

Quando uma pessoa é aberta à vida, sem preconceitos, e receptiva às novas experiências, quando ela é capaz de reintegrar-se, de amadurecer e crescer espiritualmente, ela terá condições para criar. Cada um poderá então selecionar intuitivamente, livremente, entre as várias áreas de interesse, aquelas que correspondam às suas reais necessidades e potencialidades, e se sentirá motivado a buscar na linguagem artística, também certas ordenações que expressem seus sentimentos. Por sua vez, as ordenações manifestas nas formas criadas haverão de revelar as ordenações íntimas da personalidade, em visões talvez desconhecidas antes de terem sido articuladas através dos processos de criação. Deste modo, o fazer criativo sempre se desdobra numa simultânea exteriorização e interiorização da experiência de vida, numa compreensão maior de si próprio e numa constante abertura de novas perspectivas do ser. Reflete o sentido do desenvolvimento da personalidade como um todo, da pessoa vivendo mais plenamente a sua vida. É o que constitui essencialmente a motivação criativa de alguém. Este incentivo ao mesmo tempo se renova e aponta certos rumos que se abrem à imaginação (Ostrower, 1990, p. 251).

Assim, a promoção de situações com caráter formativo em que estas professoras possam criar e, quem sabe, alterar o modo de se relacionarem com a profissão e com a vida, continuarão a ser oferecidas pelo Grupo Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Escolar e Social (www.projetoacolhendo.ubbi.com.br) com a finalidade última de minimizar o sofrimento destas profissionais e dos seus alunos. Isto porque, temos como pressuposto o anseio de homens e mulheres, apresentado por Bauman na sua obra "Comunidade: a Busca por Segurança no Mundo Atual", por uma comunidade em que os sentimentos de liberdade e segurança possam ser conciliados, apesar do desgaste intrínseco a este processo.

Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta de segurança, qualidade fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que habitamos é cada vez menos capaz de oferecer e mais relutante em prometer. Mas a comunidade continua teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se desmancha, porque a maneira como o mundo nos estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de uma realização; em lugar de ser mitigada, nossa insegurança aumenta, e assim continuamos sonhando, tentando e fracassando (...) Somos todos interdependentes neste nosso mundo que rapidamente se globaliza, e devido a essa interdependência nenhum de nós pode ser o senhor o seu destino por si mesmo. Há tarefas que cada um enfrenta, mas com as quais não pode lidar individualmente. (...) Aqui na realização de tais tarefas, é que a comunidade mais faz falta; mas também aqui reside a chance de que a comunidade venha a se realizar. Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa dos nossos direitos (Bauman, 2003, p. 129, 133 e 134).

 

Referências

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Recebido em 17 de novembro de 2004
Aceito em 18 de janeiro de 2005
Revisado em 23 de fevereiro de 2005

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