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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.5 no.1 Fortaleza Mar. 2005

 

ARTIGOS

 

Ler e escrever podem custar um mundo: uma década de investimentos para superação da pobreza de letramentos

 

 

Francisco Silva Cavalcante Junior

Ph.D. em Leitura e Escrita pela University of New Hampshire, EUA. Professor titular dos cursos de graduação e mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza. End.: Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Mestrado em Psicologia Av. Washington Soares, 1321, Bloco N, Sala 13 — Bairro Edson Queiroz CEP: 60.811-905, Fortaleza - Ceará. e-mail: cjunior@unifor.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta os dez anos de aplicação do conceito de letramentos no trabalho de um psicólogo educacional, e compartilha ferramentas para superação das privações nas capacidades de leitura e escrita em crianças, jovens e adultos, introduzindo o Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos®. Descreve o Programa de Letramentos desenvolvido por sete anos no município cearense de Itapajé, onde o ato de LER foi mediado e instrumentalizado como catalisador para o re-encontro com a liberdade de ler e escrever e o resgate da autoria de professores e estudantes, em sua mútua relação com as formas de expressão da educação e cultura locais e brasileiras. A prática relatada pretende unir esforços com outras atividades desenvolvidas em 2005, Ano Ibero-americano da Leitura, visando ao "grande salto necessário para construir uma Nação de Cidadãos Leitores", norteado por uma compreensão de "Leitura como uma questão estratégica para a Nação — inclusive para promover inclusão e cidadania", conforme proposta do Ministério da Cultura e Ministério da Educação. Finaliza apresentando reflexões para os gestores das políticas públicas em leitura e escrita no Brasil.

Palavras-chave: letramentos, comunidade, inclusão, psicoeducação, empoderamento


ABSTRACT

This article presents ten years of application of the literacies concept based on the work of an educational psychologist and shares tools for overcoming the privacies in the capacities of reading and writing of children, youth and adults, introducing the (Con)text Method of Multiple Literacies. It describes the Literacies Program developed throughout seven years in the town of Itapajé, in the state of Ceará in Brazil, where the act of Reading was mediated and used as a strengthening process for promoting a reencounter with the freedom to reading and writing, and the rescue of teachers and students authorships, in a mutual relationship with the educational and Brazilian local and national forms of expression. The practice that is here narrated intends to join efforts with other activities developed throughout 2005, the Ibero-american year of Reading, aiming at giving "a high jump needed for promiting a Nation of Readers-Citzens" and based on the understanding of "Reading as an estrategic question for the Brazilian Nation — serving as a way to promote inclusion and citzenship", as stated in the proposal of the Minister of Education and Minister of Culture. It ends with reflections geared towards the public policy makers of reading and writing in Brazil.

Keywords: literacies, ethnography, community, inclusion, psychoeducational, empowerment


 

 

A prática de letramentos, aqui relatada, foi desenvolvida no período entre 1994 e 2004, com o objetivo de fomentar o desejo de ler e escrever em crianças, jovens e adultos, empregando o Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos® numa prática de leitura-escrita do mundo, unindo esforços em vista do "grande salto necessário para construir uma Nação de Cidadãos Leitores" (Vivaleitura, 2005) no Brasil, contribuindo, dessa maneira, para a ampliação da média de leitura nacional, atualmente, de 1,8 livro lido por habitante/ano.

O Programa de Letramentos objetivou capacitar Mentores e Agentes de Letramentos, norteado por uma compreensão de "Leitura como uma questão estratégica para a Nação — inclusive para promover inclusão e cidadania" (Vivaleitura, 2005), resgatando a dimensão social e transformadora da leitura e escrita, melhor dito, o desejo de ler e escrever, a si mesmo e ao mundo, através da liberdade de comunicação e expressão do leitor-escritor para a construção de uma democracia. Esta dimensão ecoa nas palavras do educador Paulo Freire quando ressalta a seriedade deste exercício:

Ler não é passear por cima das palavras, ler é ter uma compreensão profunda do lido, estética, também, do lido, quer dizer, se esse país levasse a sério o exercício da leitura, da palavra associada à leitura do mundo, e com todas as suas implicações, de ordem estética, de boniteza e, também, de liberdade de criação, eu acho que ensinar a ler e escrever, numa perspectiva como essa, faz parte da pedagogia da democracia. (transcrição oral)

O ano de 2005, no Brasil e em outros países ibero-americanos, proclama a importância desse compromisso na promoção da leitura e escrita "como ferramentas de inclusão social e desenvolvimento" (Ilímita, 2005) porquanto é notório que as carências na utilização da leitura e escrita interferem na possibilidade do indivíduo engajar-se plenamente em atividades econômico-políticas e sócio-culturais (Sen, 2000). Neste contexto, lembra Ana Bock (in Cavalcante Jr., 2003), "o país de Paulo Freire precisa se manter pensando a educação de seu povo como uma forma de garantir cidadania e como ferramentas de luta para a intervenção transformadora no mundo" (p. 160).

 

Ler e escrever podem custar um mundo

As capacidades de ler e escrever não estão restritas à mera codificação e decodificação de signos e palavras. Em uma perspectiva plural e social, denominada de letramentos, representa a capacidade humana de realizar uma "leitura diária do mundo — o mundo interior e exterior de cada ser humano — e a composição desses mundos através do uso das múltiplas linguagens de representação de sentidos" (Cavalcante Jr., 2003, p. 26).

Todavia, ao retratamos o contexto educacional brasileiro (Ioschpe, 2004), ainda são muitos os que experienciam uma pobreza de capacidades (Sen, 2000), a exemplo da privação na capacidade de leitura e escrita, razão necessária e primordial para criação, em 2004, do Programa Fome de Livros que, segundo Galeno Amorim, coordenador da proposta,

(...) é uma iniciativa do governo federal que traduz a Política Nacional de Leitura e Bibliotecas Públicas para os próximos 20 anos. Ele congrega vários ministérios, como Ministério da Cultura, o Ministério da Educação e o Ministério da Ação Social. Além, é claro, governos estaduais, prefeituras, sindicatos, igrejas, ONGs, associações de classe e empresas. Nosso objetivo é zerar o número de municípios brasileiros que não têm bibliotecas públicas (UNESCO, 2004).

Segundo o Prêmio Nobel de Economia em 1998, o indiano Amartya Sen, as privações de acesso à leitura e escrita não apenas impedem indivíduos de viverem melhor, mas, sobretudo, privam-lhes de uma participação mais efetiva em atividades econômicas e políticas. Ele argumenta que,

(...) o analfabetismo pode ser uma barreira formidável à participação em atividades econômicas que requeiram produção segundo especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade (uma exigência sempre crescente no comércio globalizado). De modo semelhante, a participação política pode ser tolhida pela incapacidade de ler jornais ou de comunicar-se por escrito com outros indivíduos envolvidos em atividades políticas. (Sen, 2000, p. 56)

Portanto, ao vislumbrarmos o pleno desenvolvimento da nação brasileira, é imperativo atentarmos para a "eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente a sua condição de agente" (p. 10), e que, no modelo do Desenvolvimento como Liberdade, proposto já no título de uma das obras do economista Sen (2000), cabe-nos "evitar privações como a fome, a subnutrição (...)", premissa que temos trabalhado em nível nacional, a partir de iniciativas anteriores e, mais recentemente, no Programa Fome Zero, "bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão etc" (p. 52), sublinhando-se, destarte, o mérito do recém-criado Programa Fome de Livros.

Todavia, o que da nossa experiência constatamos no Brasil é que a privação da liberdade de expressão, através das múltiplas formas de palavra, não está restrita à classe pobre, aquela que primeiramente vê-se marginalizada do acesso aos bens culturais, no entanto, de maneira curiosa, infiltra-se por todas as classes, de maneiras peculiares e diferenciadas, a despeito da possibilidade social de utilização dos bens disponíveis.

O pobre, diria Schopenhauer (1993),

(...) é limitado por sua pobreza e por suas necessidades; no seu caso o trabalho substitui o saber e ocupa seus pensamentos. Por outro lado, os ricos que são ignorantes vivem apenas para seus prazeres e se parecem ao gado, como podemos notar diariamente. Isto é ainda mais censurável porque não usaram a riqueza e o ócio para aquilo que lhes empresta o mais alto valor.

Novamente, somos remetidos às palavras de Sen (2000), ao afirmar que "mesmo uma pessoa muito rica que seja impedida de se expressar livremente ou de participar de debates e decisões públicas está sendo privada de algo que ela tem motivos para valorizar" (p. 53). Saciar tais fomes de letramentos é preciso; identificá-las e sugerir caminhos mostra-se imprescindível.

Sabemos que, no Brasil, a difusão das práticas de letramentos desponta como uma necessidade urgente para a superação das inúmeras privações da palavra, frutos das pobrezas de capacidades relacionadas à leitura e escrita. Contudo, aprendemos, igualmente, ao longo dos 10 anos de aplicação do Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos®, que, para uma mudança efetivamente sustentável, não é bastante conceder alimentos para cessar a fome imediata por comida; analogamente, não nos parece suficiente criar bibliotecas para suprir a real fome de livros. É preciso, concomitantemente, ensinar e criar contextos para que as funcionalidades e as múltiplas formas de leitura e escrita sejam experienciadas, e, dessa maneira, levar cada sujeito a descobrir o por quê e o como saciar a sua fome particular, tornando-os agentes, "alguém que age e ocasiona mudanças e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos" (Sen, 2000, p. 33), um indivíduo que através da vivência da liberdade de expressão, passa a agir para além das formas e das fôrmas do seu contexto, reconhecendo-se um agente de trans-formação pessoal, relacional e universal (Cavalcante Jr., 2003, 2005).

É uma descrição dessas experiências e repercussões, à partir do Programa de Letramentos nos últimos 10 anos, que passamos a relatar nas páginas seguintes.

 

Incursões de 1994 a 2004

Denominado de Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos® e fundamentado nos pressupostos estéticos e experienciais dos processos de leitura e escrita (Rosenblatt, 1978/1994, 1938/1995), o esboço desta proposta teve início em 1994, no Programa de Doutorado em Leitura e Escrita da University of New Hampshire (Cavalcante Jr., 1998), permanecendo em constante atualização através de pesquisas acadêmicas (Araújo, 2003; Cavalcante Jr., 2001, 2003; D'aguiar, 2003; de Paula, 2003; Rodrigues, 2003; Silva E., 2002). Constitui-se como uma prática psicoeducativa libertadora de empoderamento humano, que através das múltiplas formas de expressão estética da palavra — dança, escrita, música, pintura, teatro, dentre outras — visa resgatar os potenciais oprimidos no ser humano, para a sua livre comunicação e expressão de idéias, pensamentos e sentimentos, capacitando-o como agente de transformação pessoal, relacional e universal. O Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos® consolidou-se, ao longo dos últimos dez anos (Cavalcante Jr., 2005), como o caminho que, no Brasil, introduziu um discurso em favor da pluralidade dos letramentos (Soares, 2003a), inaugurando uma prática adequada ao desvelar dos vários talentos, potenciais e habilidades culturalmente desconhecidos/oprimidos no ser humano, norteada pela compreensão de empoderamento como um processo de "revelação dos potenciais de uma pessoa, através da reflexão coletiva e diálogo contínuo, onde as diferenças cedem espaço para propósitos e objetivos comuns — conseqüentemente, transformando vidas" (Delgado-Gaitan, 1996. p.11).

Programa Educação para a Vida

Em 1997, o Método passou a ser aplicado nas Vilas Olímpicas de Fortaleza, com jovens e adultos residentes nos bairros de Castelão, Conjunto Ceará, Genibaú e Messejana (Cavalcante Jr. e Pereira, 1998). Em uma parceria firmada entre a Secretaria da Cultura e do Desporto do Estado do Ceará e a Fundação Demócrito Rocha, desenvolveu-se o Programa Educação para a Vida, experiência pioneira no Estado, onde o jornal, compreendido como um veículo psicoeducativo para a (re)elaboração e discussão de questões próprias ao indivíduo em sua comunidade, tornou-se instrumento de conscientização, empoderamento e inclusão social. Empregando o Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos®, este Programa realizou treinamento e capacitação de supervisores e professores do ensino médio e fundamental, em diferentes bairros da região metropolitana de Fortaleza e municípios cearenses, com o objetivo de aplicar e multiplicar a experiência libertadora em Círculos de Letramentos (Cavalcante Jr. e Pereira, 1998).

Tendo como vetor primordial um conceito de apropriação e uso social para a leitura-escrita (letramentos) que transcende o mero entendimento de alfabetização funcional e concebe a educação como um processo, amplo e dinâmico para a construção do conhecimento, através do resgate e valorização das múltiplas experiências do sujeito para significar seus mundos e cultura, o Programa Educação para a Vida capacitou 75 docentes, e, multiplicado no entusiasmo de novos facilitadores, alcançou diretamente 8000 estudantes que, na dinâmica do Método, serviam-se do jornal como estímulo evocativo, instrumento provocador de reflexões, leituras, composições e recriações de mundo, numa perspectiva de construção da subjetividade através da palavra (Touraine, 1999), "incluindo a arte, improvisação, movimento, música, som e escrita" (Cavalcante Jr. & Pereira, 1998, p. 322).

Círculos de Letramentos em Itapajé (1998-2004)

Viajando além das fronteiras urbanas, a experiência visitou lugares distantes, encontrando, em muitos deles, solo fértil para florescer transformações, a exemplo de Itapajé (Braga, 1999; Secretaria Municipal de Educação de Itapajé, 2004), município localizado na zona Norte do Estado do Ceará, com 41 mil habitantes que têm no artesanato, agropecuária e na fruticultura suas principais atividades econômicas, cujo "o setor educacional do Município é administrado pela Secretaria Municipal de Educação (...) que no ano de 2001 atendeu a 10343 alunos" (Silva F., 2002, p. 5); contando, em 2002, com 59 escolas públicas municipais, 04 estaduais e 03 particulares (Prefeitura Municipal de Itapajé, 2003). Nessa localidade, a vivência dos Círculos de Letramentos completou, em 2004, um ciclo de sete anos com atividades desenvolvidas autônoma-experiencialmente por facilitadores da própria comunidade — denominados de mentores — que transformaram o envolvimento da realidade local com práticas sociais e pessoais da leitura-escrita do mundo; novas estratégias de letramentos que, por exemplo, permitiram essa comunidade organizar e publicar suas histórias de vida, contos, poesias, cartilhas, relatórios, distribuídas como textos-base para o uso e discussões nas escolas municipais (Escola Municipal Zeca Paraíba, 2004; Escola Municipal Bastos Filho, 2004; Escola Municipal Josefa Forte da Silva, 2004; Escola Municipal Joaquim Raimundo Xavier, 2004) .

Nesse caminho para a construção diária da educação, as experiências de cada sujeito foram participadas em vivências de conscientização (Freire, 1994), mediadas pelo ambiente sem julgamentos sustentado pelo Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos®, onde resgatou-se a força e o sentido da palavra (Touraine, 1999) que confronta o sujeito consigo mesmo, em sua realidade interior de poder para tornar-se ator do e no mundo. Trata-se, portanto, de um instrumento que envolve o sujeito, utilizando estratégias complexas de leitura-escrita, nas dimensões intra-subjetiva (pessoal), inter-subjetiva (relacional) e trans-subjetiva (universal) (Cavalcante Jr., 2003; 2005).

Rememorando o início deste processo, a primeira-dama e secretária municipal de educação de Itapajé, Maria Luiza Mesquita da Silva Braga, comenta que:

Ao assumir a Secretaria de Educação do Município de Itapajé, deparei-me com uma situação de descaso para com o ensino público municipal, o que me levou a entender que era urgente tomar medidas eficientes para dar início a um processo de reversão (...) Nesta caminhada de parceria com professores e demais profissionais responsáveis pela orientação do ensino no Município, delimitei a filosofia de todo o trabalho educacional a ser desenvolvido: uma educação qualificada e funcional para a vida prática do aluno, dentro de um clima de prazer, respeito e autonomia. Com fundamento nesse princípio, descobri uma proposta revolucionária que condizia na íntegra com esta filosofia: [Método] (Con)texto de Letramentos Múltiplos. A proposta do letramento veio fortalecer as expectativas e acelerar o processo de resgate da auto-estima de todos: alunos e professores — compartilhando o prazer de compor e recompor o mundo através de múltiplas formas — [conforme] afirma Anita, professora da rede pública de ensino deste Município, fazendo com que o ambiente escolar seja mais alegre e descontraído. Então, a presença de julgamentos, próprios das práticas avaliativas, foi dando lugar ao incentivo e valorização do potencial de cada aluno e de cada professor (...) O sucesso que até hoje já alcançamos é fruto de um trabalho conjunto em defesa de uma proposta que leva em conta a pessoa toda, com suas peculiaridades, avanços e limitações. Portanto, essa experiência é narrada com essa dualidade, eu-nós, no decorrer de todo o trabalho, como de fato acontece na prática. (Braga, 1999, p. 7-8)

Esta mudança nos propósitos da educação municipal de Itapajé não aconteceu por acaso ou descontextualizada, na verdade, foi incluída num encadeamento maior de sonhar e fazer "uma escola pública, gratuita e de boa qualidade para todos os itapajeenses" (Secretaria Municipal de Educação de Itapajé, 2004, p. 6). Atravessado por uma ampla discussão do projeto de planos, cargos e salários, a construção do projeto pedagógico (Prefeitura Municipal de Itapajé, 1997), formação de conselhos escolares, habilitação dos professores e o projeto de capacitação permanente, o Programa de Letramentos em Itapajé teve início em março de 1998.

Recorrentemente aludido pelos professores municipais como um marco fundamental no processo formativo docente, a introdução do conceito de letramento no cenário educativo local foi a base onde se assentaram as mudanças futuras:

Desenvolvido pelo professor Francisco Cavalcante Junior, e aplicado no Município já durante o ano de 1998, este método que, de acordo com professores da Escola João Sales Bastos, 'nos fez reconhecer que somos leitores desde o momento em que nos entendemos como pessoas', preconiza que 'diferentemente da experiência vivida por muitos, na educação tradicional, nos Círculos de Letramentos, aos participantes não se dizem quais ferramentas utilizar, nem como utilizá-las. A eles é pedido apenas que resgatem uma ferramenta de dentro de si que seja capaz de expressar as suas idéias e sentimentos com prazer (...) Dos trinta participantes [iniciais], numa segunda fase, sete se propuseram a continuar difundindo o método nas escolas e na comunidade de Itapajé (...) No início de 1999, essas setes professoras se consideraram empoderadas para assumirem um novo desafio através da constituição dos seus próprios Círculos de Letramentos (...) Na terceira e última fase desenvolvida em 2000, novas professoras foram integradas como facilitadoras de letramentos, totalizando 31 facilitadores. Cada facilitador(a) assumiu a responsabilidade pelo acompanhamento em serviço de dez professore(a)s, compreendendo um universo de 310 professores, o que correspondia à totalidade de professores da educação infantil e ensino fundamental naquele município. (Secretaria Municipal de Educação de Itapajé, 2004, p. 60)

Inicialmente, o projeto, que começou com sete círculos, hoje, conta com 315, tendo a participação de jovens e adultos que não são professores. "Através do Círculo, já foram publicados vários livretos de poesias, narrativas pessoais e mesmo de ficção, escritos pelos integrantes do próprio projeto" (Feira reune comunidade estudantil, 2004a, p.14).

Com o Programa de Letramentos, reflete a secretária de educação,

(...) professores e alunos [foram] construindo um novo perfil de leitores e produtores de textos, descobrindo seu potencial criativo estimulado pelo uso do jornal dentro da metodologia do letramento que propõe uma leitura como resgate da auto-estima, do reascender o gosto pela leitura como uma forma de fazer a 'leitura crítica do mundo ao lado da leitura crítica da palavra'. (Braga, 1999, p. 27)

O resgate da leitura-escrita no cotidiano de professores e alunos foi apenas o primeiro momento de conquistas necessárias e criativas que estariam por vir (Braga, 1999):

A linguagem neste projeto passou a ter muito mais utilidade do que antes. As várias formas de comunicação e capacidade que alunos e professores vêm detectando em si mesmos, fazem da linguagem algo muito mais poderoso na construção da aprendizagem, em relação ao que anteriormente era percebido. Utilizar a linguagem para estabelecer relações de aprendizagem, de convivência, de construção e reconstrução do saber, é trazer à tona a riqueza normalmente não reconhecida e não explorada. Rubem Alves ensina que 'é através da linguagem que os processos mentais, as várias inteligências se revelam'. (p. 28)

Da experiência nos processos educacionais em Itapajé, vivido nos últimos sete anos, o educador Francisco Carlos Bezerra e Silva afirma que os projetos político-pedagógicos em cada escola do Município "dizem da intencionalidade de fazer da escola um lugar de sustentação e potencialização da vida em seu sentido mais pleno" (Jornada reflete sobre leitura e escrita para o aprendizado, 2004, p. 8), firme na autoria da palavra-mundo proposta por Paulo Freire (1994).

É nesse horizonte que o Método (Con)texto de Letramentos Múltiplos® abarca a leitura-escrita como ferramentas complexas para a construção e expressão de um mundo interior e exterior do sujeito (Touraine, 1999). No exemplo de Itapajé, a partir do treinamento inicial de um grupo de professores municipais, a leitura-escrita foi apropriada em diferentes projetos e adaptada às prioridades de cada contexto: na Escola Joaquim Raimundo Xavier, chama a atenção os projetos "Cuidando da Leitura e da escrita" e "Conhecendo e Aprendendo a Cuidar da nossa Serra"; na Escola Josefa Forte da Silva, os alunos participaram do projeto "Primeiras Letras" com o jornal Ler com Alegria, ao mesmo tempo em que realizam um trabalho sobre os cuidados para a preservação da Caatinga; na Escola Prudêncio Pereira Passos as propostas atendem quatro eixos de atuação — água, fonte da vida; o cuidado com o lixo; o resgate da cultura local; e, a cultura da banana — no projeto "Escola e Comunidade Desenvolvendo uma Cultura Sustentável"; na Escola Capitão Manoel Pinto de Mesquita, destaca-se o projeto Eu sou CidadãoAmigos da Leitura com estudantes da 3ª e 4ª séries; na Escola Roque Silva Mota, com o projeto "Ler Mais para Aprender Melhor" de estudantes da 5ª e 8.ª séries, onde textos informativos, poesias, músicas, lendas e mensagens são produzidas (Jornada reflete sobre leitura e escrita para o aprendizado, 2004b, p. 8).

Outras atividades, nas esferas pedagógicas, artísticas, esportivas, políticas, culturais, ecológicas, comunitárias, poderiam ser nomeadas (Secretaria Municipal de Educação de Itapajé, 2004), todas, entretanto, elegeram, em comum, a leitura-escrita do mundo como viga-mestra de suas realizações, demonstrando que,

Na escola também se aprende a utilizar outros instrumentos que possibilitam o convívio entre os homens de maneira saudável (...) nela também se adquire uma das ferramentas-chave para o exercício democrático: o domínio da leitura-escrita. Itapajé, nos últimos anos, tem avançado aceleradamente (...) com ações intensivas de educação para jovens e adultos. (Vida e Educação, 2004, p. 15)

É importante, ainda, ressaltar que a efetivação de um novo processo de acompanhamento pedagógico fez parte do sucesso da experiência em Itapajé:

Os professores contam ainda com o apoio diário dos mentores da educação, um grupo de professores que interagem com a prática dos colegas no sentido de oferecer um 'feed-back' permanente e auxiliar na avaliação sistemática da prática do ensino. Cabe aos mentores a tarefa de assistir às aulas ministradas pelos seus professores mentorados e discutir com os mesmos o crescimento alcançado e a identificação das necessidades de superação. (Silva F., 2002, p. 10)

Anteriormente,

(...) o modelo até então conhecido era o da supervisão escolar, ou seja, técnicos da Secretaria Municipal visitando as escolas e tentando dar orientação diante das fraquezas percebidas. Esse modelo já não mais servia diante de um processo descentralizado e participativo. Surgiu então a Mentoria, um sistema de acompanhamento mais direto e direcionado. O termo Mentoria veio da Grécia antiga, da figura homérica de Mentor, o conselheiro da corte de Ulisses. Ele foi escolhido por significar um acompanhamento parceiro onde um companheiro de jornada pudesse ser o responsável por observações e diálogos com o professor em busca dos valores contidos na sua prática. (Secretaria Municipal de Educação de Itapajé, 2004, p. 71)

Essa discussão recebeu um novo fôlego com o curso Quando os aprendizes avaliam, dividido em sessões promovidas aos sábados e intercaladas com atividades de campo, nas próprias escolas, ministrado pela professora norte-americana, Jane Hansen que, vindo ao Brasil em estudos para a Universidade de New Hampshire (EUA), selecionou o município de Itapajé para discutir suas teorias com os educadores. Alguns meses mais tarde, um artigo originalmente publicado em inglês pela Profa. Hansen (2002), intitulado 'Um projeto de desenvolvimento de professores: uma experiência de trocas culturais no Brasil', apresentava um resumo das suas experiências:

Em fevereiro de 2000 eu vivi e dei aulas por 3 semanas em Itapajé, uma pequena cidade nas montanhas do Ceará, um estado que fica no Nordeste do Brasil (...) Minha estadia em Itapajé aconteceu graças a Francisco Cavalcante Jr., um professor de Fortaleza (...) Francisco estudou na Universidade de New Hampshire onde obteve o seu Ph.D., quando eu ainda era professora lá. Depois de seu retorno ao Brasil, ele conheceu e ficou impressionado com Luizinha Braga, a adorável e visionária Luizinha Braga, superintendente da educação em Itapajé (Secretária da Educação, usando a etiqueta brasileira). Francisco me convidou para dar este curso (...) Eu aprendi sobre a importância dos escritores serem capazes de falar sobre o que podem fazer e sobre a capacidade dos professores de ensinarem seus estudantes a fazerem isto, o que é uma tarefa difícil freqüentemente. Com prática, este hábito de observar o que os outros fazem bem feito se torna um hábito — tanto para estudantes quanto para professores. Este tipo de avaliação pode manter o espírito dos escritores (...) Sem falar que eu nunca antes tive um curso como um plano de desenvolvimento municipal criado pelo administrador das mudanças curriculares. Com essa administradora e com os professores da minha classe aprendi algo muito importante e pretendo com isto mudar algumas regras do meu trabalho como professor-educador (p. 462, tradução nossa).

As transformações em Itapajé não apenas tornaram-se visíveis na intimidade do cotidiano escolar, no aumento das matrículas, na capacitação permanente dos professores (Prefeitura Municipal de Itapajé, 1999), na compreensão de que "a avaliação não seja vista como um momento estanque cuja finalidade seja a de premiar ou punir, com notas ou conceitos, (...) mas que seja um processo contínuo de orientação à ação educativa" (Prefeitura Municipal de Itapajé, 2004, p. 11), nos indicadores decrescentes de evasão escolar, e nos vários projetos (leitura comunitária, folclore e resgate histórico, ecologia e sustentabilidade) que se espalham pelas comunidades, mas, também, em importantes distinções de avaliações nacionais.

Entre 2001-2003, a Fundação ABRINQ acompanhou e avaliou, dentro do Programa Prefeito Amigo da Criança, a gestão de 1542 municípios inicialmente inscritos, os quais, três anos depois, apenas 126 foram premiados em todo Brasil com o Selo da Fundação ABRINQ, 30 deles no Nordeste, dentre os quais 11 no Ceará, e um deles foi Itapajé (Fundação ABRINQ, 2004). Em 2002, dos 180 municípios cearenses inscritos no Prêmio Selo UNICEF Município Aprovado, apenas 34 (num universo de 184 localidades) foram laureados pelo seu empenho em melhorar a saúde e educação de crianças e adolescentes, entre os agraciados, o trabalho do município de Itapajé. Em 2004, na sua 3ª edição, o Selo UNICEF, com 161 inscrições, concedeu o prêmio a 54 municípios, novamente, Itapajé estava presente na lista dos contemplados (SELO UNICEF, 2004).

 

Quando a felicidade poderia ser o indicador

Conhecimento teórico-metodológico, aliado ao investimento pessoal e disposição financeira, são palavras-chave para os resultados obtidos no Programa de Letramentos em Itapajé. Em 2004, retornamos àquele município a convite da Secretária de Educação, Luizinha Braga, eu, a Profa. Jane Hansen, docente da Universidade de Virginia (EUA), e o Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo-educador da Universidade de Campinas — UNICAMP, para participarmos da VII Feira do Mangará — a celebração anual com todos os professores municipais e mostra pública de seus trabalhos realizados com os estudantes —, encerrando, também, um ciclo de 8 anos na gestão administrativa municipal. Em um ginásio esportivo, repleto de estandes com centenas de produções de professores e estudantes das escolas públicas de Itapajé, Carlos Brandão revela confidências, "eu só vi algo parecido com isso em Porto Alegre" (transcrição oral), e Jane Hansen (2005) escreveu:

A empolgação vista nas professoras e professores com os seus próprios letramentos conduziram-lhes a um interesse maior por suas profissões. Podemos resumir em uma simples frase: quando os professores estão felizes, muitos benefícios eles trazem para os seus estudantes e o principal de todos: os estudantes são felizes. Professores satisfeitos procuram criar salas de aula na qual os alunos sentem-se felizes. (p. 4)

Estas palavras fizeram-me lembrar de palavras proferidas por Jane Hansen (2004), uma semana antes do evento em Itapajé, durante uma palestra por ela ministrada na Universidade de Fortaleza:

Antes de sair dos Estados Unidos para o Brasil, um dos meus estudantes-colaboradores da pesquisa, um jovem do equivalente à oitava série do ensino fundamental no Brasil, aconselhou-me sobre o que dizer nesta palestra para brasileiros. Ele me disse: 'Diga aos professores que eles tenham a certeza de que seus alunos são felizes'. E eu acrescento aos pensamentos do Fernando, 'Diga aos professores que tenham a certeza de que eles são felizes'. Finalmente, eu sugiro a nós pesquisadores, 'precisamos ter a certeza de que nós somos felizes'. (transcrição oral, tradução nossa)

A felicidade estampada nos sorrisos de gestores, professores e estudantes presentes à Feira do Mangará, e captada pela sensibilidade de Jane Hansen, talvez, fosse satisfatório para expressar o valor e o impacto do empreendimento de menos de uma década. Mas sabemos que ainda são poucos — exceto alguns economistas de vanguarda e o governo butanês (Centre for Bhutan Studies, 2004) — aqueles capazes de perceber a felicidade como indicador necessário e razoável, e, não sem razão, afirma Hansen (2005), "os gestores federais honram o trabalham quantitativo" (p. 2). Dessa maneira, abaixo, passamos a descrever alguns fatos que melhor podem saciar a tendência objetiva de alguns, e, facilmente, serão comprovados por qualquer visitante que se dirija às escolas de Itapajé.

Inicialmente, localizada em uma pequena sala comercial na praça principal da cidade, a biblioteca pública municipal ganhou, em 2004, um espaço amplo e privilegiado na cidade. Agora, localizada na entrada do novo prédio da Secretaria Municipal de Educação, encontra-se repleta de livros, limpos e organizados nas prateleiras, em uma sala arejada e bem iluminada, com estudantes lendo e escrevendo, mesmo nas férias de dezembro, como pudemos presenciar. Um canto especial da biblioteca, em homenagem a Jane Hansen, é reservado ao acervo de livros pedagógicos de apoio ao professor.

Além da biblioteca pública central, cada escola criou a sua minibiblioteca, tomando emprestado livros da primeira e, sobretudo, construindo o seu próprio acervo de publicações, dentre os quais cartilhas ou livretos publicados pelos próprios estudantes e professores. Livros com ilustrações coloridas, fotocopiados em papel especial, somam dezenas de diferentes títulos produzidos pelas várias iniciativas das escolas na região; jornais escolares com patrocínios de comerciantes locais canalizam outras produções, e, até mesmo, um programa na rádio foi criado para que as crianças lessem textos, poesias e estórias para os membros da sua comunidade. Na Escola Antônio Pinto de Oliveira, relatou-nos seu diretor, Custódio Teixeira, que, em 2000, somente 125 livros, mensalmente, eram solicitados para empréstimos. Em 2004, após o envolvimento da comunidade escolar em práticas de leitura-escrita, a minibiblioteca tornou-se referência naquela localidade, com o número de empréstimos na faixa de 425 livros por mês, contando, apenas, com 450 volumes disponíveis.

 

Considerações finais

A título de breve síntese, um olhar criterioso sobre as razões do sucesso do programa aqui relatado, leva-nos a pontuar algumas questões que julgamos merecer a atenção dos gestores da Leitura e da Escrita, principalmente no ano em que, no Brasil, lançamos o Programa Fome de Livros. Os chamados, abaixo relacionados, vêm por mim sendo colecionados ao longo da experiência nesta prática de letramentos:

1. É sabido que, tanto no Brasil como em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, a ênfase das políticas públicas recai exclusivamente sobre a Leitura (Hansen, 2005), negligenciando a relação interdependente entre escrita e leitura (Graves, 2004). Todavia, ao lermos um livro, somos também compositores de novos sentidos que precisam ganhar espaço de expressão através da escrita. É preciso, por conseguinte, criar incentivos para que professores e estudantes compartilhem e publiquem os seus escritos, mesmo que artesanalmente; as bibliotecas escolares, nessa perspectiva, poderiam participar da função pedagógica e política da leitura-escrita, ao disponibilizar o acesso aos bens culturais e a organização e produção de novos textos.

2. Não se educam leitores somente com um acervo expressivo em bibliotecas públicas. O leitor decide ler um livro quando tem fome de ler. É preciso, concomitantemente, provocar esta fome tanto de leitura, como de escrita, garantindo a existência de livros que, efetivamente, possam saciar a fome particular do leitor. E, mais uma vez, que esta fome seja suficiente para gerar alimentos, ou seja, provocar novos livros, mesmo que numa arte simples, para que outros possam ler. Essa rede de trocas e reações mútuas funciona como estímulo para novos leitores-escritores.

3. Somente um professor leitor-escritor (de Paula, 2003) consegue testemunhar o prazer dessas ações para os seus estudantes. Penso que ninguém faria um curso de natação com um professor que não sabe nadar, ou ter aulas de direção com quem já não dirige há muito. Por que, então, muitos pretendem ensinar a ler e escrever sem quase nunca lerem um livro e, muito raramente, escrito um texto? Graves (2004) adverte: "o professor faz a maior de todas as diferenças do que qualquer metodologia" (p. 89). Não basta, portanto, saber sobre métodos sem que o professor seja a vivência cotidiana dessas teorias.

4. Da mesma forma que precisamos comer frutas e proteínas para sustentar o nosso corpo, nós, professores, precisamos, diariamente, alimentarmo-nos com livros e escritos, de maneira que o hábito possa gerar impactos por si mesmo. Alguns poucos minutos (não são horas) por dia são necessários para se construir o prazer de ler e escrever. E o mesmo exercício precisa também encontrar, em sala de aula, tempo para ler e escrever diariamente: o estudante, incentivado pelo modelo do professor, compreende, inicialmente, que ler e escrever são importantes. Quando, finalmente, ele descobre a satisfação da leitura-escrita, horas serão desejadas para saborear, lentamente, cada palavra lida ou escrita.

5. Pensamos, muitas vezes, que sabemos qual é a fome de nossos estudantes, e, procuramos, ingenuamente, empurrá-los, "goela abaixo", o alimento que julgamos ser o melhor. Comeríamos pasta de amendoim com pão integral, todos os dias? Mesmo que estivesse prescrito nas melhores cartilhas nutricionais? Precisamos, antes de tudo, descobrir de que têm fome os nossos estudantes, e, posteriormente, com muita singeleza, vamos adicionando novos alimentos para que o seu apetite aumente e ele sinta o desejo de ler os clássicos, por exemplo. Não adiante impor. Quem não tem fome, não come, vomita. Os resultados todos nós, professores, sabemos quais são: desinteresse, cópias de resumos, baixo rendimento, evasão etc. Portanto, a liberdade de escolha do estudante é o caminho para que possamos apresentá-los a outros gêneros e tipos de texto.

6. Na proposta de letramentos múltiplos (Cavalcante Jr., 2001, 2003) aqui apresentada, ler e escrever não se restringem às representações em letras. Lemos e escrevemos, também, com imagens, movimentos, sons e outras múltiplas formas de linguagem. Livros são estímulos, mas, a experiência vivida, no dia-a-dia, também representa uma leitura possível; lemos contos e crônicas, mas, ainda, existem mapas, cores, equações, esculturas, vidas para serem lidas e recriadas.

7. O escritor precisa receber reações do seu leitor. A criação de uma comunidade de leitores e escritores é fundamental para que a fome de leitura e escrita nunca chegue à inanição. Leitores e escritores servem de incentivo uns aos outros. Essas comunidades, por nós denominadas de Círculos de Letramentos, devem e podem ser criadas dentro e fora das escolas. Professores, estudantes, familiares e membros da comunidade geral assumem o compromisso de incentivar, tanto oralmente como através da escrita, as práticas de letramentos do seu grupo ou comunidade.

8. A biblioteca é o local mais visível, amplo e atrativo nas escolas dos países desenvolvidos (Hansen, 2001). Geralmente localizada na entrada, ou no centro da escola, é ampla, arejada, esteticamente convidativa e repleta de livros e atividades que promovem, diariamente, a leitura e a escrita. Estas funções são desenvolvidas por bibliotecários, amantes dos livros e exemplos de leitores-escritores, que encantam os seus estudantes com aulas provocadoras do desejo de ler e escrever. Para um salto significativo no Brasil, as bibliotecas escolares não podem ficar restritas à menor sala da escola, quase sempre um depósito escuro e empoeirado de livros, funcionando somente quando a "pessoa responsável" está presente, portadora da chave que abre os cadeados da porta. Uma biblioteca precisa estar aberta, em todos os turnos de funcionamento da escola, inclusive nos finais de semana, e contar com bibliotecários capacitados como agentes do prazer de ler e escrever.

9. A avaliação é o centro do ensino da escrita (Hansen, 1996, 1998), representando o momento de valorização do conteúdo escrito que encoraja o escritor a ampliar e editar o seu texto inicial, promovendo, continuamente, o aperfeiçoamento da arte de escrever. Estes princípios não conseguem ser alcançados com a utilização de instrumentos punitivos de avaliação ou cujo objetivo é o da memorização imediata de informações, a exemplo de provas com uma única resposta ou fichas de leitura que são encartadas, no final dos livros, por muitas editoras brasileiras. Práticas de uma avaliação significativa vêm sendo propostas por diferentes pesquisadores da escrita e da leitura, como a Profa. Jane Hansen (op. cit.) que dedicou 20 anos de sua carreira ao estudo da avaliação por portfólios e outros instrumentos que valorizam as experiências, o tempo e o ritmo de cada estudante.

10. Não existe uma única e eficaz forma para se aprender a ler e a escrever. Cada um descobre, com a sua experiência diária, os seus instrumentos e recursos mais significativos, para tornarem a leitura e a escrita presentes, cotidianamente, em suas vidas. Quando a leitura e a escrita são vistas como um processo a ser construído — diferentemente de um produto desejado — onde prazer, liberdade e descoberta estão presentes, não faz sentido considerar, por exemplo, variáveis como um tempo previamente determinado ou quaisquer tentativas de padronização/medição da subjetividade profundamente implicada na constituição pessoal de uma relação estética (sentida) com a palavra. Como um artista, o leitor-escritor não consegue viver com receitas, prazos ou regras impostas, estratégias que funcionam como inibidoras de sua criatividade. A liberdade de expressão é o caminho trilhado por aqueles que fazem da leitura e da escrita uma arte de comunicação da palavra.

Por fim, sabemos que os custos da perseverança do analfabetismo em um país superam, em muito, os gastos com os investimentos em programas de leitura e escrita: ler e escrever podem custar um mundo quando não existem políticas públicas e professores leitores-escritores formando novas gerações leitoras e escritoras.

É desse prisma que louvamos a campanha ibero-americana para dedicar o ano de 2005 à leitura-escrita, e, mais ainda, o governo brasileiro, na iniciativa do Programa Fome de Livros. Contudo, não é possível esquecer que o livro, como fonte de alimento, não será capaz de impulsionar, no leitor, o desejo de buscar novas fontes de leitura, compondo sentidospor meio da sua escrita. Em outras palavras, faz-se necessário que programas de leitura e escrita sejam capazes de auxiliar o leitor ou a leitora a descobrirem a funcionalidade da leitura-escrita em suas vidas; "já não basta aprender a ler e escrever, é necessário mais que isso para ir além da alfabetização funcional", afirma Magda Soares (2003), complementando que "letrar é mais que alfabetizar, é ensinar a ler e escrever dentro de um contexto onde a escrita e a leitura tenham sentido e façam parte da vida do aluno" (p. 2).

O exemplo de uma prática bem sucedida no município cearense de Itapajé, teve início com o desejo da Secretária de Educação em torna-se, ela mesma, leitora-escritora — o que, mais tarde, registrou em sua obra (Braga, 1999). Sua empolgação diante do seu processo de transformação emergente contagiou os professores municipais. Estes que, por sua vez, influenciaram os estudantes que, também em casa, tornaram-se agentes de leitura-escrita dos seus familiares.

Uma fome coletiva por livros e publicações passou a ser vivida em Itapajé. Só resta-nos esperar que os novos gestores deste município não privem seus leitores-escritores dos seus alimentos tão desejados.

 

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Recebido em 26 de janeiro de 2005
Aceito em 03 de fevereiro de 2005
Revisado em 23 de fevereiro de 2005

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