SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 issue1Cuidar sim, excluir nãoA violência da imagem: estética, feminino e contemporaneidade author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.5 no.1 Fortaleza Mar. 2005

 

ARTIGOS

 

Linguajares urbanos

 

 

Giovani Souza AndreoliI; Cleci MaraschinII

IMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). End.: Rua Ramiro Barcelos, 2600, Bairro Santana, CEP: 90035-003 — Porto Alegre, RS. email: andreoli@dr.com
IIDoutora pelo em Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS). Docente dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e em Informática na Educação/UFRGS. End.: Rua Ramiro Barcelos, 2600 sala 201d, Bairro Santana, CEP: 90035-003 — Porto Alegre, RS. e-mail: clecimar@orion.ufrgs.br

 

 


RESUMO

O principal objetivo do estudo é propor um entendimento dos grafismos urbanos como uma modalidade de linguajar. Partimos de conceitos da Biologia do Conhecer os quais permitem sustentar que os grafismos urbanos podem ser lidos como uma rede de conversações, já que são produzidos por coordenações de coordenações recorrentes de ações configurando processos coletivizáveis de sentido, potencializando o exercício da autoria. A navegação fotográfica foi o meio de registro das imagens. As coordenações entre as imagens foram auferidas a partir dos referenciais teóricos empregados. Os resultados põem em evidência o caráter conversacional de grafias urbanas evidenciando-se o exercício de autoria, os processos de constituição de interlocutores e os tensionamentos produzidos nesse linguajar.

Palavras-chave: grafismos urbanos, autoria, rede de conversações


ABSTRACT

The principal aim that orientates this study is to produce a reading of street graphism understood as a modality of languaging. We begin using concepts from the Biology of Cognition which permits to sustain that street graphism can be read as a network of conversations, since they're produced by co-ordinations of recurrent co-ordinations of actions, configuring collectivized processes of meaning, empowering the exercise of authorship. Navigating in this network of conversations, photography was used as a means of registering the images. The co-ordinations between images were attained from the theoretical references applied. The results show clearly the conversational character of street graphism evidencing the exercise of authorship, the processes of constituting interlocutors and the tensing produced in that languaging.

Keywords: street graphisms, authorship, network of conversations


 

 

Introdução

O propósito de tomar como objeto de estudo os grafites urbanos pode provocar algum estranhamento por tratar-se de uma produção alvo de controvérsias. Ao mesmo tempo em que moradores, comerciantes e autoridades públicas têm somado esforços para disciplinar, ou mesmo coibir, a ação dos grafiteiros, suas produções insistem em reaparecer nos muros das cidades. Além de controverso, existem poucos estudos desse tipo. Encontramos referências brasileiras (Ramos, 1994; Baitello, 1994; Ayala, 2002) e portuguesa (Marques; Almeida & Antunes, 2000).

Duas são as perguntas mais freqüentes endereçadas a quem se dedica a esse tipo de estudo: É possível diferenciar entre "grafite" e "pichação"? E Por que as pessoas insistem em desenhar nas paredes das cidades? Tomamos inicialmente essas questões no sentido de auxiliar a distinguir o objetivo do presente texto.

O que é interessante nestas perguntas não são suas respostas diretas, mas os motivos pelos quais elas possam ser formuladas. Indicam, ao menos, a curiosidade dos transeuntes em relação ao que se produz e aos produtores dessas marcas. As perguntas anteriores evidenciam que os grafites suscitam a idéia de que existem redes de sentidos diferenciadas convivendo nas cidades. Existem modos de comunicação que não são acessíveis a todos. Produções que se confrontam com os modos hegemônicos de conversar.

A primeira destas duas questões leva a pensar que existe a busca de diferenciação entre as manifestações gráficas urbanas identificável nas características físicas das imagens, que, por fim, ajudariam a proporcionar um consenso entre os que as olham. Essa diferenciação geralmente vem acompanhada de critérios de valor. Na maioria das vezes, nomeia-se "grafite" os que têm uma conotação mais "artística" e "pichação" os que remetem a uma manifestação ideológica. Embora os critérios dessa diferenciação possam ser variados, tais como, a elaboração estética, o conteúdo, o espaço ocupado não há consensos nessas categorias.

Certamente existem muitas diferenças entre as marcas gráficas urbanas. Mas não é intenção desse texto propor critérios para sua classificação, por esse motivo falamos em uma categoria bastante ampla de "grafismos urbanos" ao invés de grafite ou de pichação. Campos (1989) já havia assinalado a dificuldade dessa categorização sendo necessário, para esse intento, levar em conta os jogos de negociação entre muitos consensos. Concordando com o autor, o propósito desse estudo é analisar a possibilidade de entender os grafismos encontrados nos muros das cidades como uma modalidade de linguajar e não buscar compilar características para aceitar sua legitimidade existencial.

A segunda questão pode ser mais interessante na direção do estudo que fazemos. Não tanto no sentido de dar conta dos motivos individuais pelos quais alguns cidadãos insistem em desenhar ou escrever nos muros das cidades, mas, talvez, porque esses mesmos cidadãos insistem em afirmar outros modos de comunicação. Interessa-nos saber se é possível identificar processos conversacionais entre os grafismos urbanos e não, tão especificamente, motivos pelos quais se fundamentaria essa produção. São razões comunicativas que nos impulsionam a pesquisar. Interessa estudar as possibilidades de conexões nas redes de sentidos que se produzem entre os grafismos e a analisar se essas mesmas redes são capazes de fazer emergir exercícios de autoria.

 

Grafismos como coordenações de ações

Os grafismos urbanos podem ser tomados como produções — produtos — como rastros de gestos: riscos, caligrafias, desenhos, letras artesanais, tatuagens distinguidos por observadores transeuntes de logradouros públicos em seus deslocamentos pela cidade. Nosso intuito é poder mapear relações (conversacionais) em sua concretude material.

A comunicação, para Maturana e Varela (2001), não pode ser descrita como uma transferência de informações entre agentes. Para os autores, isso apenas denota sua aparência externa, não explicando seu processo constitutivo. "Existe comunicação cada vez que há coordenação comportamental em um domínio de acoplamento estrutural" (Maturana & Varela, 2001, p. 218). A recursividade das coordenações de ações pode produzir congruências — sentidos mais ou menos estáveis — nunca acabados, sempre em contínua reconstrução. Aquilo que pode ser entendido como transmissão de informação é, para esses autores, a partilha de um domínio consensual resultante de um intenso exercício de convivência.

As redes de conversação diferem estruturalmente de acordo com o tipo de coordenações de ações que estabelecem. São redes heterogêneas, constituídas pelos sujeitos, pelas tecnologias, pelas práticas, pelos consensos e pelos conflitos emergentes dessas mesmas coordenações.

As redes operam como matrizes identificatórias/classificatórias. Estar sujeito a ou ser sujeito de uma rede de conversações implica em uma relação de semelhança, de filiação, identificação com tal rede. Implica também na aceitação da validade da estrutura de coordenações de ações e consensos que aí operam.

Uma gama muito ampla de atividades nas quais existem coordenações recorrentes de ação podem ser consideradas como linguajares. Dentro dessa perspectiva podemos pensar que se nos grafismos urbanos (a) existe o exercício de coordenações de ações e (b) se essas coordenações forem recorrentes a ponto de constituir sentidos partilhados, os grafismos podem ser concebidos como um linguajar.

Tem-se conhecimento de que os produtores dessas marcas, que aqui denominaremos de grafistas, compartilham de um vocabulário próprio. No trabalho referido acima (Marques; Almeida & Antunes, 2000) existe um glossário com algumas dessas expressões. Vamos utilizar algumas delas no transcurso do texto, mas nossa atenção se focara em um exercício de leitura das produções gráficas propriamente ditas. Um conversar visual que se produz no espaço publico.

Afirmar que os grafismos se produzem em um domínio consensual de ações, como propõe a Biologia do Conhecer, não significa que não haja antagonismos, disputas no interior do domínio. Um domínio consensual propõe a pertença a uma rede de sentidos tão heterogênea e difusa como qualquer outra. A consensualidade se dá no retorno, produto resultante da recursão das ações, o que acaba conferindo graus de estabilidade. Os domínios consensuais resultam de práticas, de exercícios, não são estruturas previamente estabelecidas. São coletivos, mas podem produzir efeitos singulares: no exercício de um protagonismo autoral (na maioria dos casos, um grafista produz series de trabalhos no intuito de ser reconhecido, apesar de permanecer anônimo).

O exercício de um protagonismo no interior do domínio consensual — que estamos chamando de autoria (Maraschin, 2000) — implica não somente em uma identificação, mas, sobretudo, em uma produção de diferença. O jogo identificação/diferenciação constitui o autor e constitui, no mesmo ato, o leitor dessa autoria, seu reconhecimento.

Nenhuma autoria e passível de ser exercida fora de uma rede de conversações que institui o próprio autor, já que essa diferença que ele produz deve ser reconhecida nessa mesma rede. Trata-se de um exercício de alteridade no interior da rede de conversações. No caso da rede de conversações aqui analisada, trata-se de uma autoria sem individualidade, uma autoria impessoal porque dada a conhecer e reconhecida pelas próprias obras.

A autoria consiste em um modo de viver no linguajar. Para Maturana (1997) os sentidos não se produzem na interioridade corporal — ainda que dependam dela e existam através dela — mas sim na dinâmica relacional. As idéias emergem de uma rede de conversações onde as marcas não são um sistema de signos que as representam, mas nós de coordenações de coordenações consensuais de ação e têm sentidos ou significados nas condutas e emoções que coordenam. Disso se conclui que não é trivial conviver em diferentes domínios relacionais, ou seja, produzimos sentidos diferenciados ao vivermos em distintos domínios de relação. O "ruído" não é algo externo ao processo de linguajar, mas é o motivo pelo qual a dinâmica relacional se produz. Conversamos para produzir coordenações de coordenações consensuais de ação. É por essa razão que podemos definir a autoria como a produção de uma diferença em uma rede de sentidos. Efeito de uma posição de sujeito capaz de estranhar, questionar, refletir sobre o conversar e nele encontrar diferença, descontinuidade, ruptura, muito ao contrário de um eficiente "decodificador" de idéias que busca a identidade, a semelhança.

O estudo que aqui apresentamos objetiva investigar o linguajar em um domínio de relação no qual participam sujeitos que constituem uma contingência própria: os que marcam espaços públicos. Para tanto, é analisada a produção gráfica existente nesses espaços.

 

Navegação fotográfica

O percurso no domínio dos grafismos urbanos foi mais amplo do que aqui se apresenta. Iniciou-se percorrendo as ruas de bairros centrais da cidade de Porto Alegre, contatando não somente os grafistas como também pessoas ou grupos com os quais desenvolvem parcerias e convivências (Ongs, Secretarias de Cultura), acompanhando ou participando de eventos. Como dispositivos de registro do material empírico, organizou-se um sítio na Internet com imagens fotográficas e escritas: recortes de falas ou entrevistas semi-estruturadas; reproduções e anotações a respeito das produções gráficas pessoais (cadernos de notas dos grafistas). Procurou-se desenvolver as observações com um mínimo de categorizações prévias (classes de sujeitos e divisões do material visual) e fizemos questão de contatar apenas grafistas dispostos a participar da pesquisa.

A navegação foi o meio de abordagem eficaz diante de um conjunto de imagens tão heterogêneas quanto dispersas. A navegação e os encontros possibilitaram perceber que o conversar oral sobre as grafias urbanas com seus produtores apresentava limites. Ocorreram encontros onde, a despeito das trocas de idéias através da fala ser a atividade central, as trocas paralelas de pequenas imagens eram sempre mais atrativas para a maioria dos grafistas. A melhor estratégia comunicativa constituiu-se nas trocas gráficas. O que levou a considerar que essa conversação transcende o conhecimento das gírias que se compartilham, fortalecendo a idéia de que existe também um conversar que se produz no plano da interação gráfica propriamente dita e que talvez seja essa muito significativa. É para essa segunda perspectiva que se orienta esse texto.

Em relação ao mapeamento dos grafismos urbanos utilizou-se com estratégia principal o registro fotográfico (Achutti, 1997). Foram escolhidos alguns bairros centrais da cidade, onde a concentração de grafismos urbanos é maior. Pensamos que mais vale observar os mesmos lugares ao longo de certo tempo, acompanhando mudanças nas interações, do que tentar abranger um espaço maior da cidade. Mantivemos esse processo de navegação e de registro fotográfico em torno de 18 meses.

 

Uma rede de conversação capaz de fazer emergir autorias

Através do registro fotográfico realizado foi possível verificar uma espécie de rede interativa que se constitui em diferentes planos da composição gráfica. Em relação aos suportes físicos, ou às superfícies sobre as quais tais imagens estão dispostas, distinguimos três planos de composição de grafismos2.

Cabe aclarar que dentro da perspectiva teórica eleita os suportes não são meros receptáculos das produções, participando na constituição dos sentidos. Podemos considerá-los como diferentes sistemas de "mídias" como chamou Pross (1971).

Os "grafismos anatômicos" muito comuns entre os grafistas são imagens dispostas sobre o próprio corpo (tatuagens) ou adornos em vestimentas (estampas em serigrafia ou pintura livre) são. Essas marcas acoplam-se a própria corporeidade configurando sentidos identitários de pertença. Usam-nas como um "cultivo de estilos", reafirmando a pertença ao domínio consensual ou, como referem os que se identificam com o movimento do hip-hop, a determinada "posse".

Os "grafismos portáteis" servem para trocas de material e de referências entre os produtores de imagens, sejam originais ou cópias. Os grafistas organizam coleções de imagens em mostruários para interação e trocas. Funcionam como um repositório de memórias e de referências de estilo. Embora se constituam na maioria das vezes como arquivos pessoais — esboços, treinamento de formas, exercícios, colagens - são "abertos" ao coletivo, pois se compõem de referências gráficas variadas, contendo desenhos de outros grafistas, cartões, adesivos, fotografias, imagens (de revistas, jornais, etc.). Tais mostruários funcionam como redes interativas de auto e hetero-formação, uma vez que cada grafista pode conservar um histórico de sua produção como pode operar trocas com outros grafistas, incorporando e difundindo estilos e formas.

As "grafias urbanas", sobre as superfícies da cidade, campo de uma conversação de maior abrangência, no qual os grafismos ganham um endereçamento para além das possíveis intenções de quem o produz. Tomemos essas últimas marcas como foco da analise.

 

 

Coordenações entre grafismos urbanos

Caminhos de um vir-a-ser autoral

Uma primeira análise desse conversar revela, com já descreve o trabalho de Marques; Almeida e Antunes (2000), a predominância de uma espécie de "egocentrismo anônimo". Os espaços públicos são convocados como testemunhas de uma produção auto-referente que insiste em sua reapresentação, incorporando pequenas mudanças, mas principalmente explorando a ousadia nos locais escolhidos. Mas um egocentrismo anônimo porque impessoal, pois não se trata do reconhecimento de uma identidade autoral individual ou jurídica, mas de uma autoria que se impõe por uma assinatura ou por uma recorrência da produção gráfica.

Os nomes podem exemplificar essa posição autoral. Existem nomes singulares (os quais são chamados de "tags") e de grupos (chamados "crews") que funcionam como testemunhas das autorias singulares ou coletivas. As letras com formatos estilizados (ditas "letters") possuem estilos diferentes, os grafistas exploram a cor, o formato, o tamanho. Formas que configuram autorias e identidades grupais, tais como a diferenciação entre "iniciados" e "entendidos".

 

 

Existe uma espécie de co-inspiração entre as assinaturas produzidas a partir de imitações, re-apropriações. Tanto é assim que podemos encontrar semelhanças entre os grafismos atuais e os dos anos 60 feitos em Nova Iorque, ainda que letras produzidas em cada localidade sejam diferentes em sua composição particular.

As personagens são mais uma forma de auto-referência. Geralmente possuem traços e proporções caricaturais. Além de veículo da expressão das idiossincrasias do estilo próprio de um grafista, as personagens humanóides ainda podem ser uma amostra de preferências estéticas de auto-imagem, singular ou coletiva, naquilo que está retratado.

 

 

A dificuldade de acesso ao local ocupado pelo grafismo é outro elemento que caracteriza as intervenções. Trata-se de uma forma específica de ocupação no espaço que pode operar como um símbolo da ousadia, destreza e/ou originalidade, portanto de distinção de uma autoria que se afirma ao testar novos limites. Há diferentes sentidos em se romper limites de acesso: nos locais altos, cercados, ou em situações tais como grafar sobre veículos em uso, como ônibus ou viaturas de polícia, afirma-se a agilidade, a velocidade e a ousadia ao executar a tarefa, em geral buscando com isso garantir maior visibilidade à grafia.

A ação de "alcançar as alturas", "burlar os muros e cercas" e "fazer-se o mais visível com o máximo de riscos" funciona como categoria distintiva de autoria frente às outras. Cada conquista está visível ao sinalizar uma ultrapassagem das "marcas" próprias.

Constituindo alteridades

Todo exercício de autoria pressupõe um endereçamento. Embora possamos pensar que tal endereçamento seja também anônimo ou impessoal existem indicações que poderiam sinalizar o lugar dessa alteridade, ou o destino desejado de recepção das grafias produzidas. As frases constituem-se grafismos muito freqüentes e que podem dar visibilidade aos possíveis destinatários. De modo geral, são escritas em português embora não seja incomum o uso de inglês e, mais raramente, latim e outras línguas. Assim como nos nomes, as frases encontram na repetição, no local de exposição ou, ainda, no inusitado de sua mensagem a potencialidade produção de sentido e a constituição de destinatários. As frases estão relacionadas a diferentes ideologias, atitudes e/ou modos de vida.

 

 

 

 

Além do endereçamento anônimo — aos passantes — existem outros nos quais a alteridade é tencionada entre diferentes grupos de grafistas. Esse linguajar visual toma os grafismos existentes, produzindo intervenções sobre intervenções. O embate é visível nas próprias grafias por meio das frases sobrepostas (o que ocorre com muita freqüência, por exemplo, nas contraposições de expressões das tribos neonazista e punk, formulando embates ideológicos e/ou identitários). Embora não tenhamos o propósito, neste texto de analisar os confrontos existentes entre diferentes movimentos sociais e culturais que utilizam as grafias urbanas como modo de expressão identifica-se, pelas marcas gráficas registradas, a heterogeneidade de grupos e suas contraposições. Os grafismos urbanos são muito mais heterogêneos do que à referência comumente feita de se constituírem como um elemento do movimento hip-hop.

 

 

Os exemplos acima evidenciam coordenações de ações do grafar cuja recursão pode se desenvolver tanto na consensualidade do empreendimento comum (seja no conteúdo das mensagens, na composição estética); quanto na tensão, na demonstração de agressividade pela existência de ofensas e/ou sobreposições invasivas.

 

 

Linguajares urbanos

Se o virtuosismo, o egocentrismo e a ousadia podem ser marcas dos grafismos urbanos (Marques; Almeida & Antunes, 2000) este trabalho tornou possível pensar que neste contexto se institui um exercício da função autor, uma autoria que emerge na especificidade dessa circunstância marcada pela impessoalidade. Autoria que se produz ao insistir em operações de distinção que podem ser observadas na busca de um estilo próprio e de um reconhecimento do trajeto percorrido. Mesmo que haja tendências à repetição de imagens típicas ou de estratégias, compondo sujeitos coletivos, o estilo específico de cada autoria tende a ser diferenciado entre os demais. A originalidade é valorizada entre produtores de grafismos urbanos como uma evidência de atitude ousada e competência na criação. Neste sentido, atribuída tanto à elaboração técnica quanto à espontaneidade do traço.

Nesse vir-a-ser grafista existe a experimentação e criação de elementos de estilo. Além dos anteriormente referidos, cabe mencionar o uso freqüente do rolinho ao invés do "clássico" spray, na Região Sul do país. A alteração de instrumentos, pelo custo elevado do spray, faz com que possam ser experimentadas e criadas outras possibilidades de in(terven)ção.

Mas o exercício de uma autoria produz, no mesmo ato, um endereçamento, um interlocutor. Tal endereçamento de interlocução, como foi possível evidenciar, pode ser remetido a diferentes agentes: a sociedade como um agente anônimo; a grupos específicos, a outros grafistas.

A conversação urbana travada a partir dos grafismos revela outras e mesmas conversações. A própria condição de existência da intervenção gráfica tende a confrontar e a reiterar os ritmos estabelecidos no território urbano. Neste sentido, os grafismos podem ser lidos como tentativas de desaceleração, já que se interpõem nas passagens, nas vias. Por outro lado, em vista da necessidade freqüente de uma execução rápida do trabalho, exatamente por se tratar de uma intervenção que desafia a legalidade instituída, a aceleração igualmente tende a caracterizá-los (trabalhar rápido, sair correndo). Ambos os ritmos intervêm na produção e na fruição dos grafismos urbanos.

Outra importante marca temporal das grafias urbanas é sua efemeridade. O fato de se trabalhar em espaços abertos pressupõe tanto uma inevitabilidade da deterioração por exposição aos elementos climáticos; quanto da intervenção alheia — proprietários dos suportes; outros grafistas. Um espaço sempre aberto a outras intervenções.

Pelo exposto, cremos ter sido possível evidenciar a existência de coordenações de ações recorrentes capazes de constituir exercícios de linguagem em um domínio consensual com estruturação própria que garante certas especificidades. As características recursividade, expansividade, invasividade e inventividade são operações reiteradas na produção das imagens dos grafistas. Mas, além disso, foi possível flagrar movimentos de autoria e de endereçamento capazes de ampliar a rede conversacional para além dos participantes do próprio domínio. Tal movimento de abertura revela-se tencionado pelas relações publico/privado; autoria/anonimato e legalidade/ilegalidade.

 

Referências

Achutti, L. E. R. (1997). Fotoetnografia: Um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre, RS: Palmarinca.         [ Links ]

Andreoli, S.G. (2004). Grafismos urbanos: Composições, olhares e conversações. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.         [ Links ]

Ayala, S. (2002). Graffiti & movimento. Cadernos Ponto & Vírgula, 47,34-40.         [ Links ]

Baitello Junior, N. (1994). Grafite e transgressão: Metassistemas com autonomia máxima. In C. M. A. Ramos, Grafite, pichação & cia (pp. 9-10). São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Campos, M. C. M. (1989). Grafite: Traço, rapto, impacto. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Maraschin, C. (2000). Tecnologias e o exercício da função autor (pp. 35-44). In Anais, 7. Seminário Internacional de Alfabetização e Educação Científica, 2000, Ijuí, RS. Ijuí, RS: Ed. UNIJUÍ.         [ Links ]

Marques, F., Almeida, R., & Antunes, P. (2000). Traços falantes: A cultura dos jovens graffiters. In J. M. Pais. Traços e riscos de vida: Uma abordagem qualitativa a modos de vida juvenis (pp. 173-211). Lisboa, Portugal: Âmbar.         [ Links ]

Maturana, H. (1997). A ontologia da realidade. Belo Horizonte, MG: UFMG.         [ Links ]

Maturana, H. (2001). Cognição, ciência e vida cotidiana (C. Magro & V. Paredes, Trads.) Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG.         [ Links ]

Maturana, H., & Varela, F. (2001). A árvore do conhecimento: As bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.         [ Links ]

Pross, H. (1971). Medienforschung. Darmstadt: Carl Habel.         [ Links ]

Ramos, C. M. A. (1994). Grafite, pichação & cia. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

 

 

Recebido em 13 de novembro de 2004
Aceito em 27 de janeiro de 2005
Revisado em 20 de fevereiro de 2005

 

 

Notas

1 O presente artigo foi escrito a partir da Dissertação de Mestrado intitulada Grafismos urbanos: composições, olhares e conversações defendida pelo primeiro autor e orientada pela segunda (Andreoli, 2004).
2 Existe um quarto plano — sítios da Internet — que não entrarão em nossa análise.

Creative Commons License