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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.5 no.1 Fortaleza Mar. 2005

 

ARTIGOS

 

A violência da imagem: estética, feminino e contemporaneidade

 

 

Junia de VilhenaI; Sergio MedeirosII; Joana de Vilhena NovaesIII

IProfessora da PUC-Rio. Coordenadora do LIPIS —Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. End. Av. Ataulfo de Paiva 135 sl. 613. Leblon, CEP: 22040-020, Rio de Janeiro, RJ. e-mail: vilhena@psi.puc-rio.br
IIEconomista, Psicólogo. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Pesquisador e Psicoterapeuta do Núcleo de Doenças da Beleza do LIPIS —Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. e-mail: s1955medeiros@hotmail.com
IIIDoutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do LIPIS —Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio. End. R. Tenente Márcio Pìnto 183. Gávea. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22451-290. e-mail: joananovaes@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar qual a função psíquica da estética na constituição das subjetividades femininas. Tomando o culto ao corpo e a beleza como paradigmas da contemporaneidade, os autores discutem as implicações psicológicas da histórica associação entre mulher e beleza e os mecanismos de regulação social. A cultura exibe a mulher, permanentemente, como forma de reforçar seus arquétipos. A imagem de mulher se justapõe com a de beleza e, como segundo corolário, à de saúde e juventude. As imagens refletem corpos super trabalhados, sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro ou corpos medicalizados, lutando contra o cansaço, contra o envelhecimento ou mesmo contra a constipação. Implícita está a dinâmica perfeição/imperfeição, buscando atender aos mais antigos desejos do ser humano. Segundo os autores, é precisamente em busca de construir uma forma que o sujeito se manifesta. Diante do vazio, este o recobre com uma estética. Desta forma, chegam à estética como uma função, na realidade uma função dupla: apaziguar a angústia quando recobre o vazio e produzir prazer quando circunscreve o desejo. Os autores concluem que a relação do sujeito feminino com a estética de seu corpo e com olhar do Outro, é da ordem de uma adição. Ser vista é condição sine-qua-non da relação entre o sujeito feminino e o outro, não só para seduzi-lo e dele obter seu amor, mas antes, para através dele, conservar o amor do superego e preservar os ideais do Eu.

Palavras-chave: mulher, beleza, estética, angústia, desejo, regulação social, feiúra


ABSTRACT

The present work investigates what is the designated function of aesthetics in the constitution of feminine subjectivities. Taking the body culture and beauty as paradigms of contemporaneity, the authors discuss the mechanisms of social regulation and the psychological implications of the historical association between women and beauty. According to them modern culture exhibits women, permanently, as a form of reinforcing their archetypes. Woman's image is juxtaposed with that of beauty and, as corollary, to one of health and youth. The images reflect over worked and sexualized bodies, always answering to the desire of the Other. It also shows the extent of the medicalization in which we are constantly struggling against fatigue, aging or even constipation. Implicit, as the authors point out, is the dynamics of perfection/imperfection, one of the oldest struggles in humanity. According to them, it is precisely in search of building up a form that the subject shows its need for an aesthetic. Confronted with the emptiness, he recovers it with aesthetics. That's why they arrive to a definition of aesthetics as a function, actually a double function: to appease the anguish when it recovers the emptiness and to produce pleasure when it bounds the desire. According to them woman's relationship with the aesthetics of her body and with the Other's look, is similar to an addiction. To be viewed, to be looked at, is a sine-qua-non condition of the relationship between the feminine subject and the other, not only to seduce and obtain love, but mostly in order to preserve the love of the superego as well as the the Ego Ideals.

Keywords: woman, beauty, aesthetics, anxious, desire, social regulation, ugliness


 

 

Introdução

Do corpo belo dos deuses, ao corpo high tech das tribos e dos heróis cinematográficos, a associação beleza, saúde, potência e sedução estará sempre presente e não poderá jamais ser desvinculada dos discursos que a produzem e que, por ela, são produzidos. Cuidar do corpo em si, nos afirma a indústria cultural, é indispensável. O binômio saúde-beleza, no qual o segundo termo é o determinante, uma vez que a saúde também possui um padrão estético estabelecido, nos é apresentado como o caminho legítimo e seguro para a felicidade individual. O estudo sobre a concepção e codificação do corpo na cultura moderna revela, então, simultaneamente, que um outro olhar e uma atenção diferenciada estão relacionados às mudanças dos códigos sociais.

As atitudes em relação à feiúra, quer sejam ver-se feio ou atribuir feiúra ao outro, nos mostram mudanças na forma de lidar com o corpo, que por sua vez produzem vínculos sociais até então não evidenciados. Fundamentalmente, a transformação que se deu, em profundidade, foi no âmbito do imaginário corporal, provocando com isso, implicações em nossa percepção e repercutindo em nosso comportamento com relação à feiúra.

No mundo das imagens contemporâneas existem muito mais mulheres do que homens. Nossa cultura exibe a mulher, permanentemente, como forma de reforçar seus arquétipos. Destinada ao público feminino —, identificação com o modelo, ou a um público masculino —, registro da alteridade desejável, menos do que a femininização do mundo, como apontam alguns, esta exposição parece reforçar a idéia de colocar em imagens o objeto de desejo. A mulher representada nas imagens encarna o Outro da nossa cultura (Remaury, 2000).

A imagem de mulher se justapõe com a de beleza e, como segundo corolário, à de saúde e juventude. As imagens refletem corpos super trabalhados, sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro ou corpos medicalizados, lutando contra o cansaço, contra o envelhecimento ou mesmo contra a constipação. Implícita está a dinâmica perfeição/imperfeição, buscando atender aos mais antigos desejos do ser humano, conforme narram os mitos, os elixires e fontes de eterna juventude.

O discurso publicitário seja na área dos cosméticos, seja na da saúde, vai apontar para a mesma vertente. No cenário público, os corpos devem adequar-se à função de durabilidade, à prova de velhice, que antes se esperava das mercadorias. O que é feio, finito, perece e morre... não consome e, indiscutivelmente, ainda não se encontrou um valor mercadológico ou de troca para esse fenômeno.

Beleza exterior e saúde, aparência exterior desagradável e doença, cada vez mais se associam como sinônimos, no tocante às representações do corpo feminino. A questão tradicional, aceitar ou não o corpo recebido, parece ter se transformado em — como mudar o corpo e até que ponto? Convidadas a esculpir seu próprio corpo, como se este tivesse a plasticidade da argila, segundo os ideais fornecidos, as mulheres, freqüentemente, reportam-se a modelos fotográficos como representantes de uma estética da perfeição.

A imagem da mulher na cultura confunde-se com a da beleza. Este é um dos pontos mais enfatizados no discurso sobre a mulher — a mulher pode ser bonita, deve ser bonita — do contrário não será totalmente mulher.

O presente trabalho tem como objetivo abordar a relação observada entre a estética do culto ao corpo, sua função psíquica, e seus efeitos na constituição das subjetividades femininas.

 

Entre telas e olhares

Em A Sociedade do Espetáculo, o filósofo, cineasta e militante político Guy Debord denuncia a onipresença da mídia. Esta, através da exposição excessiva da imagem, falsificaria a experimentação real do mundo posicionando os indivíduos como espectadores, consumidores passivos de imagens. Em suas palavras:

(...) quanto mais ele [o indivíduo] contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo (...) É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte (Debord,1997, p. 24).

Sem sombra de dúvidas, Debord tornou-se ainda mais atual e procedente em sua crítica do que quando a formulou há mais de trinta anos.

Também para Jean Baudrillard (1970),as narrativas midiáticas se sobrepõem às experiências vividas, produzindo a realidade através de "simulacros". Dando continuidade às denúncias de Adorno e Horkheimer (1985) acerca da indústria cultural e somando-se à crítica de Jameson (1996) sobre a estetização da realidade, Baudrillard denominou de "esquizofrenia cultural" o processo de invenção midiática do real. Para Baudrillard, o que atualmente faria girar a roda do capitalismo, seriam "investimentos libidinais no imaginário".

Acreditamos que estes autores estão a nos dizer que a onipresença da mídia produz uma avalanche de imagens que termina por asfixiar o próprio registro do Imaginário, isto é, a possibilidade criativa do sujeito desejante desenhar uma estética para aquilo que lhe causa. Esta era tarefa exclusiva do indivíduo na cultura literária, outrora predominante.

Com cada vez menos páginas e mais telas, cabe ao sujeito apenas a tarefa menor de escolher o que já foi desenhado, colorido, visto e interpretado pelo discurso imagético do Outro.

A sofisticação tecnológica e dos canais de distribuição têm permitido um fluxo cada vez mais intenso e imediato de imagens. Estas são apresentadas on line o que empresta à narrativa midiática atual um status de Verdade. Assim, a mídia se candidata ao lugar deixado vago pelo Mito, pela Religião e pela Ciência. Entretanto, o lugar da Verdade não é fácil: não há efeito especial que o sustente.

Grosso modo, poderíamos dizer que nossa época de comunicação de massa transforma a sociedade em um "público" — uma palavra-chave que substitui a de "povo" (Certeau 1995, p. 52).

Nesta era das imagens, existir é ser visto, segundo o próprio autor, nada mais restando da realidade senão sua imagem. Mas o que vemos? De onde vemos? E como somos vistos?

A palavra público, contraposta a povo remete-nos, a espectadores, interativos ou não, a espetáculos, festas, enfim à teatralização. Conseqüentemente, remete-nos igualmente, a atores, personagens, modelos e ídolos. Olhar implica também em ser olhado, ver em ser visto, construir uma imagem é também ser afetado por ela.

O discurso publicitário promete o preenchimento do vazio existencial, do qual nenhum sujeito poderá escapar, e a grande cilada seria acreditar que o consumo poderia preencher tal vazio.(Novaes, 2001; 2003)

"Sonhe que faremos o resto (...)" (Certeau, 1995, p. 43), resume de forma exemplar a tentativa de monitorar/controlar o que existe de mais individual no sujeito. É, principalmente, através dos meios de comunicação de massa, com privilégio da televisão, que o Imediato se difunde e se consolida como valor. Numa primeira visada, este é difundido, explicitamente, através da propaganda: a melhor qualidade de um produto traduz-se por sua rápida eficácia. Vivemos sob o império do now!

Em uma segunda observação, mais atenta, percebemos uma aplicação mais sutil e estrutural desta categoria. Este é divulgado, na mídia, não apenas no conteúdo de notícias e peças publicitárias, mas principalmente pela forma como é estruturada a programação televisiva.

No noticiário, por exemplo, notícias ruins são intercaladas com notícias boas e amenidades; a linguagem é a mais simples possível; conteúdos mais complexos são depurados e apresentados de modo panorâmico.

Com esses recursos, o espectador é poupado do trabalho de pensar, de processar as informações recebidas; o mundo em flashes é facilmente deglutível, minimizando-se, assim, a possibilidade de apropriação crítica e seletiva do conteúdo veiculado.

Gradativamente, o jornalismo noturno que, tradicionalmente, contava com um formato mais informativo-descritivo e comentado, assume feições de jornalismo light, mesclando noticiário e variedades. Em linhas gerais, jornais e revistas acompanham essa tendência da TV, recorrendo cada vez mais ao uso de imagens e à simplificação da linguagem de modo a facilitar, aparentemente, a apreensão das mensagens.

Poderíamos dizer que, na contemporaneidade, prevalece a lógica de um jornalismo de impacto com apreensão rápida, panorâmica globalizante do conteúdo, transmitido, sobretudo, através de imagens — única forma de transmissão de conhecimento que pode se adequar à demanda de rapidez e imediatez.

Enfatizemos, porém, que nesse processo, o que se perde é a possibilidade reflexiva do pensamento, ficando-se aprisionado ao fascínio das imagens. (Medeiros & Vilhena, 2004).

Garcia (1999) aponta para duas questões, intimamente entrelaçadas, que se destacam nesse olhar panorâmico sobre a cultura contemporânea. A primeira refere-se aos valores veiculados nessa cultura, ideais de prazer e bem estar imediatos e contínuos. A segunda, ao modo como esses valores são difundidos e apreendidos prioritariamente através de imagens.

De acordo com seu ponto de vista, a consolidação do Imediato como valor, é um dos desdobramentos da lógica da sociedade de consumo. Nesta, o ser é definido pelo ter: para se ser alguém, há que se ter um corpo bem modelado, posição, dinheiro, bens. Os bens adquiridos garantem a inserção social do sujeito e são as insígnias de poder que se tornam definidoras de seu ser e de seu valor.

Numa sociedade altamente competitiva, as estratégias de marketing assumem importância central. Na propaganda, cada produto é associado a um estilo de vida, a um status social, a um ideal subjetivo, a uma "tribo", em contrapartida, a expectativa do consumidor é que com a aquisição daquele produto, ele adquira também aquele padrão corporal, a filiação àquela tribo, aquele status.

Gradativamente, como nos mostra Garcia, a lógica de propaganda e marketing, que rege a circulação de produtos e serviços, ampliou seu campo de atuação, ao incluir o sujeito como "produto-a-ser-divulgado". Em face da crescente competitividade de mercado, não basta ao sujeito ser competente ou interessante, há que se mostrar sua aparência a imagem de competência e interesse.

Num primeiro momento, como bem lembra a autora, o esforço pessoal afigurava-se como o caminho possível para a aquisição dessa imagem: estudo, trabalho, academia eram meios disponíveis para se adequar ao modelo de sucesso, belas formas e bons bens de consumo; havia, portanto, um reconhecimento e uma validação do processo, de um tempo necessário para se alcançar tal modelo, tempo esse durante o qual havia que se lidar com a frustração do sentir-se insuficiente.

No entanto, atenta para o fato de atualmente haver uma mudança sutil mas significativa, referida ao tempo do processo: predomina, agora, a ordem do imediato,com a exigência de se alcançar, ontem, o modelo ideal. Com essa urgência, o processo, antes de se constituir uma trajetória para se atingir uma meta, é vivido como obstáculo a ser superado.

Experimenta-se, então, como sendo quase da ordem do insuportável, o adiamento da satisfação, que seria alcançada ao se atingir a meta idealizada. Todos os meios para se alcançar resultados favoráveis imediatos parecem válidos como refere Garcia.

Numa primeira aproximação, como nos mostra Garcia, os programas televisivos parecem constituir importante fonte de modelos identificatórios, na medida em que crianças, adolescentes e adultos buscam imitar, em seu modo de vestir e em seus trejeitos, os personagens mais difundidos da mídia. No entanto, é preciso considerar como esses modelos são apropriados pelo sujeito; a nosso ver, essa apropriação é, com freqüência, mediada pela fascinação, o que nos permite estabelecer, nesse caso, uma distinção com o processo de identificação propriamente dito.

A autora atenta para o fato de ser preciso enfatizar que o mecanismo de incorporação é marca inegável das patologias narcísicas e, certamente, não pretendemos transportá-lo diretamente ao campo da modelagem subjetiva imposta pelos meios de comunicação. Porém, entende que, no campo do fascínio hipnótico, um fenômeno semelhante, embora parcial, possa ocorrer; supondo que na apropriação fascinada de modelos televisivos, entram em jogo mecanismos muito próximos ao da incorporação, principalmente no que se refere ao efeito de um rebaixamento da possibilidade reflexiva de pensamento.

O que se nos apresenta como paradoxal na cultura contemporânea, é a promessa/exigência de conquista de satisfação de maneira imediata. A mídia-cultura parece estar sempre afirmando, através de simulacros, que você pode — e pode imediatamente. Definitivamente, como nos lembra Garcia, o processo de constituição do sujeito não é marcado nem pelo instantâneo, nem pelo imediato.

É preciso um longo "aprendizado" para que se instaure o sujeito social. Presos à rede de fascínio da mídia-cultura vivemos um logro, já que mecanismos psíquicos complexos estão imbricados na possibilidade de alcançar o estado de prazer-satisfação; e esses mecanismos, os quais estão atrelados aos processos de socialização, atestam que para se ascender ao social, há que se parcializar a onipotência infantil, própria ao narcisismo primário, onde temos a certeza que podemos: um bebê-criança tem a certeza que, estendendo as mãos, alcançará a lua e parece que, no âmbito da mídia-fascinação, mães e pais crêem que suas filhas tornar-se-ão a Xuxa (ou qualquer outra que ocupe este lugar) vestindo-se e imitando seus trejeitos.

Tomando emprestado o conceito junguiano de "máscara", Augras (apud Novaes, 2003a) irá referi-lo a um dispositivo do qual o sujeito lança mão socialmente para poder identificar-se e, ao mesmo tempo, ser aceito por um determinado grupo social. Dessa forma, a máscara serviria duplamente como instrumento de adequação e dissimulação para os diversos papéis sociais.

Contudo, é necessário cautela. Não há como pensar que o sujeito viva todas estas experiências de forma passiva e acrítica. Neste sentido, nunca é demais relembrar que o discurso do corpo fala das relações internas à sociedade e também nele vai se expressar a busca da felicidade plena. Palco privilegiado dos paradoxos e dos conflitos, o corpo que busca a sua singularidade é o mesmo que tenta negar a diferença e a alteridade.

Como todo culto, como toda moda, o impacto da moda do culto ao corpo sobre a sociedade, só pode ser detectado a partir da compreensão da maneira como seus ditames são interpretados pelos indivíduos que, no interior de diferentes grupos sociais, lhes emprestam significados próprios. Como aponta Strozemberg (1986) o receptor nunca recebe passivamente uma mensagem, mas sempre, necessariamente, a interpreta e reelabora, na medida em que toda a decodificação é uma leitura. A experiência do corpo é sempre modificada pela experiência da Cultura (Novaes & Vilhena, 2003a).

 

Mulher e beleza: uma histórica associação

Até a edição de 1971, o Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Hollanda, atribuía ao significante Beleza, o significado de "qualidade do que é belo; da coisa bela ou agradável; da mulher bela."

Entretanto, o enlaçamento entre o vocábulo beleza e tudo aquilo que se refere ao campo da feminilidade parece tão antigo quanto a civilização. Aliás, a própria palavra pertence ao gênero feminino. Apesar de antiga, no entanto, esta articulação nunca foi trivial. Como causa do Mal ou qualidade essencial, os sentidos produzidos pela mulher bela atravessaram os tempos o que lhe parece assegurar um lugar como ente psíquico imortal. É, no entanto, precisamente da morte que este significante veio nos falar.

Os poemas de Homero e Hesíodo inscreveram na História as narrativas dos povos pré-helênicos. Talvez o episódio mais dramático da pré-história grega tenha sido a invasão dos aqueus que disputaram com dóricos, jônicos e coríntios o controle sobre as terras do Peloponeso e ilhas do Mar Egeu. A Ilíada de Homero conta a história da guerra entre estes povos pelo controle de Ilión — ou Tróia — a cidade mais importante do mundo grego arcaico.

Na abordagem da consciência mítica a disputa por Tróia foi um confronto entre três deusas e uma mortal em torno da beleza. O pomo de ouro que produziu a discórdia deveria ser entregue a mais bela entre Atená, Hera e Afrodite. Esta última, filha das espumas das ondas — provocadas pelo esperma de Crono que se precipitou ao mar quando este foi castrado por seu filho Zeus — , tornou-se a deusa da sedução. Paris, filho do rei de Tróia, deveria julgar qual delas era a mais bela. Hera, prometeu-lhe as terras da Ásia. Atená, ofereceu-lhe a Sabedoria e a vitória em todos os combates. Afrodite, no entanto, foi a vencedora. Para tanto, prometeu à Paris tão somente o amor da mais bela mortal: Helena, esposa de Menelau, o rei de Esparta.

Além de intrigas e guerras, a beleza feminina e o desejo da mulher aparecem como causa da morte, das pragas, das dores e das doenças no mito da Caixa de Pandora. Menos criativa, a tradição judaico-cristã também atribui à mulher os males do mundo. Foi Eva quem primeiro cedeu às tentações do corpo, seduziu Adão e provocou a expulsão do paraíso. Assim, é para a sexualidade feminina que o demônio dirigiu seu olhar, marcando o corpo das filhas de Eva, com o estigma do Mal e da culpa pelo pecado original.

Durante quase toda a Idade Média a beleza feminina é vista como armadilha do pecado, uma tentação do diabo. A beleza da mulher seria assim um embuste, um encobrimento enganoso de uma essência impura, leviana e vil. Tal representação negativa da mulher só encontrava um contra-ponto na Virgem-Maria — a única mulher bela e inocente. É o que nos diz Leclercq em seu artigo A Ordem Feudal.

Eva tinha parte com o Diabo: algumas vezes mesmo, a serpente enrolada envolta da árvore da Vida tinha a mesma cabeça que ela, encantadora. A beleza podia ser, portanto uma armadilha mortífera (...) Nenhuma mulher é bela impunemente nem sedutora inocentemente. A inocuidade da beleza só a Virgem possui (Leclerq, 1990, p.300).

Assim, para o fundamentalismo cristão da Idade Média a mulher bela era o próprio Pecado Original. Sua estética dava forma ao desejo e recobria a angústia da culpa. Este último sentimento, além do horror à castração, talvez nos ajude a compreender o ódio dirigido às representações do feminino, pois nem só de vileza demoníaca tais imagens eram investidas. Com efeito, não raro, a beleza da mulher era atribuída à sua pele, uma superfície a ocultar um interior frio, viscoso e mesmo asqueroso. As representações do feminino marcadas pela morte, pelo asco e pela maldade muito nos faz pensar no assassinato do pai primevo da articulação freudiana. Em Totem e Tabu (Freud, S. 1913/1995a) Freud nos fala do momento mítico em que os irmãos matam e devoram seu pai para terem acesso às mulheres. Parece que os machos da antiga (e da nova) horda não suportaram (e ainda não suportam) a responsabilidade por seu ato de desejo. Aliás, nossa cultura se esforça à exaustão para negar à violência seu status de ato causado pelo desejo. Assim, a autoria intencional, ou o dolo do crime, é transferido ao objeto que foi usurpado ao Pai. Desta forma, a estética feminina também se prestaria à mitigar a angústia da culpa pela perda da proteção paterna. Afinal, "ninguém é sedutora inocentemente".

Na Renascença as representações do feminino não são absolvidas de sua condição culpada e pecaminosa. Entretanto, a beleza da mulher é admitida desde que despojada de sua sensualidade maligna ou esta deve ser apenas um fugidio detalhe, um sorriso no canto dos lábios, como na Madona de Leonardo.

Como vimos em nossa apresentação anterior acerca do belo renascentista, este faz um resgate do belo clássico. Assim, também na Renascença, bela é a harmonia das formas, o equilíbrio das proporções e, sobretudo a pureza das idéias que são representadas. Desta forma, as representações do feminino, para serem belas devem ser harmônicas, mas, sobretudo, puras e inocentes como os anjos e as crianças. Assim, na Renascença, bela é a mulher casta e infantilizada. A pintura renascentista imortalizou tal concepção ingênua acerca da beleza feminina representando a mulher bela em cenas bucólicas, em jardins, pomares, em meio a flores e frutos, por vezes nua, porém, tão desprovida de sensualidade quanto os decorativos putti. Talvez As Graças de Rubens representem a mais significativa ilustração barroca deste ideal de beleza.

O Iluminismo, a expansão do Protestantismo, a revolução científica e a ascensão da Burguesia sacudiram os séculos XVII, XVIII e XIX criando uma nova superestrutura para as sociedades européias. Entretanto, e apesar do radicalismo das transformações, as representações da mulher bela permaneceram comprometidos com os ideais antigos. Se no barroco renascentista era preciso exorcizar a sedução demoníaca, na Modernidade era a maternidade que possibilitava uma representação positiva e bela ao feminino.

Apesar de considerar a mulher como "um ser de razão", Kant (1993) reafirmou também sua "incapacidade civil" e sua "dependência natural" como um ser de razão, as mulheres deveriam ser livres em suas escolhas. Porém, exatamente por serem dotadas de razão suas escolhas, naturalmente, a conduziriam ao lugar de reprodutoras da espécie. Tal lugar se delimitaria pelos espaços reservados da família.

Hegel também se apoiou na Razão em sua defesa de uma divisão entre as esferas públicas e privada. A esta última estavam destinadas as mulheres. Aos homens caberiam as atividades universais, os assuntos da política e do Estado, a produção do saber científico e o trabalho social. Da família, do amor e da harmonia se incumbiriam as mulheres.

Talvez possamos atribuir à Declaração dos Direitos do Homem e ao Contrato Social de Rousseau a condição de paradigmas da Modernidade. Fiel ao ideal romântico, o Contrato Social pensa o casamento como uma união fundada no amor e na liberdade de escolha dos cônjuges. O sentido de tal união seria a busca da "felicidade compartilhada".

Entretanto, é a partir da publicação de Émile que Rousseau estabelece um outro paradigma: a virtude do amor materno como ideal de feminilidade.Apesar da primeira edição remontar a 1762, o livro de Rousseau ainda é atual sob vários aspectos. Na concepção do autor, a mulher é um ser não inteiramente inserido na cultura, o que muito nos faz lembrar da formulação lacaniana acerca da mulher e seu gozo para além do significante. Para Rousseau, a natureza teria dotado as mulheres de uma voracidade sexual incapaz de ser atendida pelos homens. E aqui nos lembramos de Freud e a perversão polimórfica da infância e da mulher "inculta média". Os homens poderiam submeter seus apetites à Razão enquanto as mulheres necessitariam da imposição do pudor e da vergonha para deterem seus impulsos. Assim, é a razão dos homens que deve triunfar, pois sem a educação e a disciplina, o pudor natural das mulheres não seria suficiente para domesticar-lhes a têmpera e submetê-las às leis da cultura. Desta forma, o casamento, a maternidade e o lugar de rainha-do-lar representam os ideais culturais que, atingidos, legitimariam a posição social das mulheres. Assim, para estas, a certidão de casamento e de nascimento de seus filhos, serviam como um atestado de civilizada, um passaporte para a Cultura.

O ideal de beleza feminina retrata, então, esta mulher socializada. O recato, a doçura, a fragilidade e a submissão serão as características enaltecidas pela estética da Modernidade. Aos olhos do Iluminismo, a beleza vil e demoníaca da Idade Média foi domesticada.

Beleza infinita, enorme doçura, natureza selvagem, essência enigmática e precário domínio da Razão são as características que parecem compor as representações do feminino na era Moderna. Encontramos em Baudelaire uma apreciação acerca da mulher que confirma nossas conclusões. Nas palavras do crítico e poeta oitocentista:

O ser que é, para a maioria dos homens, a fonte das mais vivas e mesmo — admitamo-lo para vergonha das volúpias filosóficas — dos mais duradouros prazeres; o ser para o qual, ou em benefício do qual, tendem todos os seus esforços; esse ser terrível e incomunicável como Deus (com a diferença que o infinito não se comunica porque cegaria ou esmagaria o finito, enquanto o ser de que falamos só é incompreensível por nada ter a comunicar, talvez); esse ser em quem Joseph de Maistre via um belo animal (...) É antes uma divindade, um astro que preside todas as concepções do cérebro masculino, é uma reverberação de todos os encantos da natureza condensados num único ser; é o objeto da admiração e da curiosidade mais viva que o quadro da vida possa oferecer ao contemplador. É uma espécie de ídolo, estúpido talvez, mas deslumbrante, enfeitiçador, que mantém os destinos e as vontades suspensas a seus olhares (Baudelaire, 1869/1996, p. 53-54).

 

Mas como será que isto se atualiza na contemporaneidade?

Nahoum (1987) identifica dois fatos históricos que considera terem sido fundamentais para a transformação da imagem social do corpo. O primeiro deles refere-se à difusão da técnica de feitura dos espelhos, conseqüentemente ampliando a sua utilização nas habitações1. O segundo estaria relacionado à educação que os nossos sentidos receberam, na qual a visão assumiu um papel preponderante no que diz respeito à representação corporal. Tal fato acabou por constituir um aspecto essencial para a construção moderna das formas de atenção com o corpo, além de forjar a percepção que adquirimos em relação ao mesmo.

Nas palavras de Nahoum, "Como viver num corpo que não se vê? Como mirar sua celulite na água do poço? Seu queixo duplo, no fundo de uma panela de barro? Como construir uma imagem corporal tendo por espelho os olhos do outro?" (1987 p. 23).

Na medida em que se elegeu o sentido da visão como privilegiado dentre os demais, favoreceu-se a emergência de determinados sentimentos como o pudor, que surgia como representante de um tipo de subjetividade que estava sendo forjada. O desenvolvimento do sentimento de pudor contribuiu na educação do olhar sobre o corpo.

De acordo com Nahoum (1987), o pudor, enquanto sentimento da vida moderna, surge como uma demanda psicológica resultante da interiorização das distâncias sociais e figura juntamente com um elenco de constrangimentos subjetivos relativos à esfera moral. Esses constrangimentos, ao mesmo tempo em que reivindicam práticas de civilidade, também exigem uma constante auto-regulação e disciplinização do comportamento e dos modos2, de tal forma que é esperado do sujeito que tenha uma conduta: modesta, descente, discreta, prudente, honesta, amável e nobre de espírito.

É interessante notar, segundo a autora, a presença do que intitula como uma "arte paradoxal" — se por um lado observamos características como ocultamento e restrição no âmbito corporal, ambos provenientes de um código de auto-regulação e monitoramento, por outro vemos tratar-se da exibição desse silenciamento. A exibição do silenciamento do corpo, em si, já é uma linguagem na qual constam signos e sinais. Da mesma forma, a expressão do pudor também denota uma linguagem e um trabalho que são próprios e referentes ao corpo.

Contrariamente ao que acontece com o grupo dos homens, no universo feminino a rigidez é de tal ordem que não há justificativa possível para o não atendimento dos imperativos da beleza. Enquanto no universo masculino o desvio com relação ao padrão de beleza está vinculado à falta de tempo, em função do ritmo atribulado da vida profissional, para as mulheres, não cultivar a beleza é falta de vaidade — um qualitativo depreciativo da moral.

Observamos assim que tanto a valoração como a sedução da imagem masculina dá-se a partir de conquistas sociais e econômicas. O embelezamento feminino, entretanto, está fortemente ancorado na utilização de inúmeros artifícios.

Enquanto a beleza masculina é associada a traços agressivos e exagerados — vistos como sinônimos de virilidade, as expectativas sociais diante da beleza feminina, colocam-na no lugar de ícone dessa cultura de atenções corporais. Como parâmetros de beleza masculina, temos alguns exemplos trazendo seus traços mais significativos, são eles: sobrancelhas cerradas, linha do maxilar bem delineada, nariz acentuado (padrão italiano) e membros avantajados.

Já a construção de uma bela imagem feminina, inclui dois aspectos respectivamente: o esforço inerente à sua modelagem e o dispêndio financeiro e de tempo, ambos inerentes ao consumo dos tratamentos voltados para esta área. Nas mulheres, a beleza vem na forma de trabalho sobre o corpo — ser bela cansa e dói. Portanto, mais importante que ganhar dinheiro é estar em forma: seca, sarada, definida.

Em função do anterior, a feiúra adquire um peso dramático na estética feminina, uma vez que o seu antagônico é fruto de constante obstinação e perseverança. A beleza da mulher deve ser apreciada nos detalhes, um mero descuido, um simples desleixo e pronto, já é suficiente para a feiúra nela aparecer. Um simples descascado no esmalte, uma maquiagem fora do tom, uma depilação por fazer, o uso de uma roupa fora das últimas tendências da moda ou uma raiz mal feita, já são aspectos suficientes para emergirem duras críticas à sua imagem.

Objeto de maior regulação social, o corpo feminino é, por conseguinte, contido ao máximo em suas ações. Como fruto disso, espera-se que toda essa contenção resulte, simultaneamente, em uma corporalidade delicada, um comportamento polido e em um gestual estudado minuciosamente em seus movimentos.

Entretanto, o corpo ideal não diz respeito somente ao controle do peso e das medidas, revela também funções psicológicas e morais. A feiúra caracteriza, em um só tempo, uma ruptura estética e psíquica, da qual decorre a perda da auto-estima. Vale lembrar, que a dimensão ética é também rompida, pois deixar-se feia é interpretado como má conduta pessoal, podendo resultar na exclusão do grupo social. Portanto, mudar seu corpo é mudar sua vida e as intervenções estéticas decorrentes deste processo traduzem-se em gratificações sociais.

 

A função da estética no aparelho psíquico

No capítulo II de O Mal Estar na Civilização Freud (1930/1995b) se interroga acerca da natureza e origem da beleza. Apesar de lamentar que a Psicanálise "pouco encontrou a dizer sobre a beleza" o autor afirma que "parece certo sua derivação do campo do sentimento sexual".

Ainda neste capítulo, Freud marcará o lugar de enigma que lhe parece reservado para a Estética. Em suas palavras: "A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la" (p. 90).

O paradoxo da beleza para a vida anímica dos indivíduos continua a intrigar Freud quando o criador da Psicanálise se interroga sobre as fontes da felicidade.

(...) podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento — a beleza das formas e dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. (...) A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuamente intoxicante (Freud, 1930/1995b, p. 90).

No capítulo III da referida obra, Freud prossegue sua especulação marcando a dicotomia que parece atravessar o significante beleza. Neste momento a polarização identificada por Freud opõe a "reverência" a beleza que se espera do homem civilizado, à não "lucratividade" dos objetos estéticos.

Gostaríamos então de nos propor a dar seguimento às interrogações de Freud e a elas somarmos as nossas. O que é esta coisa inútil sem a qual não podemos passar?

Acreditamos que os trechos que grifamos no texto freudiano poderiam fornecer um bom começo para encaminharmos nossa inquietude.

Seria então verdade que atitude estética, pouca proteção ao sofrimento ofereceria? O que poderíamos pensar acerca da qualidade peculiar — tenuamente intoxicante — da fruição da beleza?

De nossas dúvidas emerge uma certeza: talvez a beleza, não possua um valor-de-uso e seu valor-de-troca, apenas indiretamente, manifeste-se; porém, sua participação na vida anímica dos indivíduos é desde sempre.

Queremos, pois, afirmar que, consoantes com o que nos informa a História da Arte e a Antropologia, a Estética parece ter a idade da civilização.

As pinturas rupestres sugerem que o movimento em direção a uma estética é contemporâneo ao paleolítico o que a faz tão antiga quanto o Homem de Neanderthal, nosso criativo ancestral que decorava as paredes de sua caverna européia, 350.000 anos antes de havermos aprendido a escrever.

De fato, a busca por uma forma, uma cor, um símbolo ou um adorno parece ser da ordem do humano, o que nos leva a afirmar que a estética é desde sempre.

Naturalmente, o atravessamento do sujeito pela estética não é uma prerrogativa dos antigos. Para não nos estendermos demais, passemos logo ao tema mais caro e precioso à psicanálise: a linguagem.

Não nos deteremos aqui na ordenação sintática dos idiomas, um dos mais valiosos objetos estéticos da humanidade. Seguindo Lacan, iremos direto ao átomo da linguagem, isto é, o signo lingüístico (Lacan, 1957-1958/1999). Nele, é o significante que possui uma forma, uma estética visual e acústica. E por ser uma forma, não lhe poderia faltar o vazio. E por ser assim, uma forma vazia, o significante pode assumir, representar e determinar múltiplos significados.

Como nos ensinou Lacan, é no leito metonímico que os significantes deslizarão, formando metáforas e criando uma forma, uma estética para o discurso. É, pois, nesta estética que devemos buscar o sentido, ou então, a poesia não existe; e também a oração, o parecer, a proclamação...

Assim, podemos afirmar o que já se anuncia como óbvio: a linguagem possui uma estética.

Ora, se o Inconsciente é estruturado como uma linguagem, teria ele também uma estética?

Para respondermos a esta indagação parece-nos oportuno convocar a angústia que nada mais é do que o horror do Real; o terror que desperta tudo que não possa ser nomeado, simbolizado e não o pode, exatamente por não possuir uma forma, um contorno, um perímetro, uma feição que o represente.

Assim, é precisamente em busca de construir uma forma que o sujeito se manifesta. Diante do vazio, nós o recobrimos com uma estética. E quando é uma estética que se nos apresenta, nós a preenchemos com uma essência presumida, criada ou alucinada.

Desta forma, chegamos à estética como uma função, na realidade uma função dupla: apaziguar a angústia quando recobre o vazio e produzir prazer quando circunscreve o desejo (Medeiros, 2000).

É desta primeira função que estamos tratando, quando afirmamos que a estética é desde sempre. A civilização não pode dispensar uma forma — bela ou trágica — devido a sua função apaziguadora da angústia. Agora, não mais poderemos considerá-la inútil também.

Já a função, "tenuamente intoxicante" da beleza parece ser da ordem do prazer. De fato, a qualidade intoxicante, descrita por Freud, lembra-nos uma outra descrição: sua definição sobre o desejo.

No capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos, Freud nos fala da busca de uma identidade perceptiva com a vivência de satisfação.

(...) O bebê faminto grita ou dá pontapés, inerme. Mas a situação permanece inalterada, pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma força que produza um impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente em ação. Só pode haver mudança, quando, de uma maneira ou de outra (no caso do bebê, através do auxílio externo), chega-se a uma "vivência de satisfação" que põe fim ao estímulo interno. Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a imagem mnênica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma completa catexia da percepção.(Freud,1900/1995c, p. 594-595).

Como se pode ler no trecho destacado, a esta busca, Freud deu o nome de desejo. E o que se poderia dizer do "reaparecimento da percepção" como realização do desejo? O termo parece referir-se a repetição da mesma percepção anterior. Sem dúvida, estamos no campo da alucinação. Juntando os termos, temos que o desejo é uma reconstrução alucinada da "vivência de satisfação". E o que seria esta "vivência de satisfação"?.

Freud parece sugerir o seio materno, a primeira amamentação (ao menos como um exemplo). Entretanto, em tal momento tão primitivo da existência humana o mundo externo não é diferente de uma percepção interna e assim, a "vivência de satisfação" seria, ela também, uma alucinação. É neste mundo do Narcisismo Primário, do Eu-Prazer que o desejo se inscreve como uma alucinação.

E aqui voltamos para a Estética, mais precisamente, para sua segunda função, cuja existência presumimos.

Se o desejo é uma alucinação com o prazer, se o verbo desejar é intransitivo, pois seu objeto não existe, como saímos do delírio?

De fato não saímos propriamente. Parece que, na ausência do objeto, nós o criamos imaginariamente. É isto o que queremos dizer com a afirmação de que o objeto da pulsão que fundamenta o desejo —é uma estética. Nossa afirmação, porém, não vai além do que Freud estabeleceu. Também para ele o objeto da "moção psíquica" é uma estética: a "imagem mnêmica da percepção da "vivência de satisfação".

Consubstanciar o desejo, dar uma forma a ele, circunscrevê-lo; parece ser esta a causa do sentimento "tenuemente intoxicante" presente na beleza. A Estética proporcionaria assim, a agradável ilusão de existência do objeto da pulsão. Esta seria sua segunda função: produzir prazer.

 

A estética como adicção

Apontamos no início deste artigo o grande envolvimento do sujeito feminino com a estética de seu corpo. O lugar do corpo na vida psíquica das mulheres, de fato, não é nada trivial. Ele é o palco e o cenário que descortina um drama tão antigo e arrebatador quanto as epopéias. Não por acaso foi a beleza de uma mulher, a causa da Ilíada, do destino dos Argonautas e do triunfo de Ulisses em sua Odisséia.

Mas se o corpo é o palco deste drama onde o sujeito feminino interpreta sua inquietação diante das vicissitudes da beleza, quem estaria na platéia? Para quem ele representaria sua dor? De quem ele teria prazer em ouvir aplausos?

Desde já nos ocorre um texto que Freud escreveu em 1925 e que muito nos tem auxiliado neste artigo, seu título já oferece um valioso suporte para nossas reflexões: Algumas Conseqüências Psíquicas da Diferença Anatômica Entre os Sexos (1925/1995d). Nesse artigo Freud reafirma a importância do anatômico para a construção do aparelho psíquico e de suas instâncias, particularmente, o superego. Aliás, a influência da anatomia sobre o psiquismo já estava presente em 1914 no texto introdutório ao narcisismo, nas conferências sobre a psicanálise e nos trabalhos acerca da sexualidade. De fato, desde os primeiros estudos sobre a histeria, a anatomia já se apresenta como destino, ao menos na obra de Freud.

Antes que mais de um leitor se inquiete, apressamo-nos a esclarecer que não pretendemos defender uma leitura biologizante do pensamento freudiano. Qualquer um que se aventure nessa direção terá por destino um distanciamento radical dos conceitos fundamentais da psicanálise. E o engano de tal aventureiro teria sido tomar a palavra anatômica em seu sentido estrito e, sobretudo, como uma evidência do predomínio da ciência médica na construção do edifício teórico da psicanálise. De fato, um grande equívoco, provavelmente cometido pela busca de indícios e pormenores que resultaram na perda de perspectiva para se observar as dimensões da edificação.

É inegável que o termo anatomia pertença as ciências biomédicas. Ele está relacionado ao estudo da forma e da localização dos tecidos e estruturas orgânicas. A descrição anatômica discorre sobre aquilo que é visto. É, precisamente, nesse sentido, que a diferença anatômica entre os sexos produz efeitos psíquicos. No início apenas um sexo é percebido. Assim, quanto Freud nos fala em complexo de castração ou inveja do pênis ele está se referindo à ferida narcísica vivida pelas mulheres em decorrência da não visibilidade de seu sexo. E aqui encontramos uma decorrência que nos é particularmente valiosa: o narcisismo primário, estruturante do Eu Ideal e matriz organizadora do Ideal do Eu, está relacionado a uma forma; é implicado por uma estética. Mas, disso já sabíamos pela formulação lacaniana acerca do estádio do espelho. O que se nos apresenta como novo é a forma, a estética como destino feminino, isto é: há um entrelaçamento entre a estética e a mulher desde o início de sua constituição psíquica e tal relação que é tão antiga quanto a formação de seus ideais, participa da construção de seu superego (Medeiros, 2005).

A forma que lhe falta irá determinar uma super-valorização compensatória, de tudo aquilo que é visível. Como já nos havia ensinado Jacqueline Lanouzière (2003), o olhar materno se desloca do pênis do filho para o corpo inteiro da filha. É este olhar, amoroso e narcísico, pleno de paixão e desejo que incorporado, se transforma em um espelho interno para quem o sujeito feminino gostaria de sempre mostrar sua melhor imagem.

É aprisionada neste espelho em busca da imagem perfeita e do amor sem mácula que encontraremos a mulher que adoeceu em sua beleza. As outras, buscarão uma solução melhor: projetarão nos olhos do Outro, ao menos uma parte deste espelho.

Talvez agora possamos dizer quem constitui a audiência do teatro feminino. No balcão nobre da histeria está o olhar da mãe, para quem, um drama de traições e intrigas é representado. Na platéia da contemporaneidade, está a mídia, a exigir um espetáculo massificado e falsificado. Nas galerias, olhares masculinos desejantes, oferecem aplausos verdadeiros, entusiasmados e abundantes.

É conhecida por todos a enorme paixão pelo palco que as grandes atrizes confessam. O interesse do sujeito feminino não é menor. Ser vista é a dissolução do complexo de castração. É o desfiladeiro que contorna o Rochedo. Ser vista é o correlato feminino do mandamento superegóico que impõe aos homens o ser fálico (Medeiros, 2003).

Mas atender ao superego não é tarefa fácil. É preciso atendê-lo sempre, oferecer-lhe todos os sacrifícios, entregar-lhe a maior parte da colheita, o sangue da mais bela virgem, enfim, é preciso recorrer a magia para tentar proteger-se da culpa inexorável que punirá a todos bem antes do Juízo Final.

Entre os recursos mágicos estão os comportamentos aditivos. Tão mais mágicos quanto menos tóxicos. É para atender ao mandamento superegóico de ser vista que o sujeito feminino em geral, e a mulher histérica, em particular, tornaram-se dependentes do Outro, mais precisamente, de seu olhar.

A psiquiatria nos fala de transtorno e compulsão alimentares. Pensamos que a causa da compulsão não está no alimento ou em sua recusa, mas naquilo que somado ao corpo ou dele subtraído, provocará o olhar do outro. Desta forma, o objeto mágico capaz de atender ao superego é uma estética que capture definitivamente o olhar cumprindo assim o mandamento de ser vista. Como este objetivo sempre fracassa, pois não há uma droga da beleza definitiva, nem mesmo no mundo encantado da mídia, o sujeito feminino vive insatisfeito com sua estética e transfere ao corpo a punição superegóica.

Ser vista é a condição sine qua non da relação entre o sujeito feminino e o outro. Não só para seduzi-lo e dele obter seu amor, mas antes, para através dele, conservar o amor do superego e preservar os ideais do Eu. Assim, a relação entre o sujeito feminino e a estética, apresenta também o duplo propósito que atribuímos a esta: produzir o desejo em seu olhar narcísico e no campo do outro; e mitigar a angústia do desamparo absoluto que um rompimento com o superego produziria.

Por fim, gostaríamos de concluir este tópico, propondo que a relação do sujeito feminino com a estética de seu corpo e com o olhar do Outro, é da ordem de uma adição, uma dependência, que suave ou aguda agrupamos sob o nome de Doenças da Beleza (Medeiros, 2005).

 

As representações do feminino nos tempos atuais

Não há dúvidas quanto ao alcance da emancipação feminina para a vida da coletividade humana. Se os homens abandonaram a horda primitiva e fundaram a civilização para ter acesso às mulheres ficamos instigados a especular acerca do que estaria a se passar com esta quando aquilo que a causou já não é mais objeto.

Freud parece concordar com a afirmação de Schilling que atribui à fome e ao amor o papel de motor da vida. Entretanto acreditamos também haver uma relação causal entre estes dois termos. De fato, a pré-história da humanidade, como nos é contada pela Mitologia e pela Religião, aponta o desejo pela mulher como causa da fome ou do trabalho para assegurar a sobrevivência. Assim, o preço que os homens pagaram pelo seu desejo não foi baixo, a perda do pai primevo ou divino colocou-nos no desamparo da castração. A posse da mulher surge então como uma tentativa de reparação, um falo que restitui a abundância do Jardim do Éden.

Foi, portanto, para ter a mulher, sustentar sua posse e organizá-la que os homens se subjugaram à lei do pai morto. Assim, a estruturação da sociedade humana, em seus primórdios, se confunde com a organização da posse da mulher. Aliás, é desta regulação que nos fala o totemismo com o tabu do incesto, marcando a atualidade daquelas normas. Na realidade, muito mais do que um vestígio da sociedade totêmica, a interdição ao incesto fundou e sustenta a civilização humana. Desta forma, a cultura e a sociedade pressupõem uma determinada estrutura de apropriação dos objetos com a mulher ocupando o lugar de objeto primordial. Tal lugar, com certeza não foi contestado até a Modernidade. Bem ao contrário. Como vimos, o Iluminismo confirmou a posição de objeto atribuída à mulher. Um lugar tão sofisticado quanto o pensamento de Kant, Rousseau ou Hegel puderam elaborar, porém, ainda assim, um lugar de objeto.

Entretanto, o século XX parece ter rompido com a tradição dos outros 60 séculos de nossa história.

O encurtamento do ciclo de reprodução do capital pressionou a expansão das forças produtivas. A incorporação ao processo econômico de novas fontes de energia, como o petróleo e a eletricidade e de novos materiais, como o aço e o concreto, permitiram rápidas mudanças no padrão tecnológico dos instrumentos de trabalho. A força de trabalho, no entanto, estava limitada ao crescimento populacional. Os incentivos à natalidade não poderiam expandir a mão-de-obra na intensidade e velocidade requeridos. Desta forma, nas economias onde o Capitalismo havia assumido o poder político e se tornado dominante, também sua ideologia tornara-se parte do tecido social. E para tecê-lo, uma nova ética se fazia necessária. Esta contemplava a incorporação das mulheres às forças produtivas. Inicialmente, como um exército industrial de reserva para conter uma escalada dos salários que pudesse abortar o novo ciclo de reprodução do Capital. Porém, a expansão econômica mais vigorosa, a partir do new deal e do pós-Guerra, incorporou, definitivamente as mulheres na força de trabalho.

Entretanto, a ética iluminista, protestante, burguesa e hegeliana atribuía o status de cidadão a todos encarregados da produção. O acesso à cidadania, retirou a posição feminina do lugar de objeto. As mulheres, agora úteis ao processo produtivo, não mais poderiam ser objetos, belos, destinados, exclusivamente, à fruição estética. Kant já havia nos assegurado que belo é o que nada mais pode ser... As mulheres tornaram-se então sujeitos, segundo a lei, a moral e o mercado.

Interpretação interessante acerca da liberação do corpo nos fornece Rodrigues (1986). Segundo o autor existe um segundo ato na história do corpo moderno. A constatação de que este corpo não poderá atender, integralmente, às exigências da lógica capitalista — o lucro e a acumulação. Como este corpo esgota-se relativamente cedo para a produção, substituímo-lo pelas máquinas e, "libera-se" o corpo. O sonho da liberação corporal da fadiga das máquinas e do trabalho, utopia contemporânea das direitas e das esquerdas, como aponta o autor, foi proposto e engendrado por esta mesma classe dominante. Para é fundamental entendê-lo para podermos falar em corpo liberado.

Inadequado para as fábricas para que servirá o corpo moderno? Não mais um corpo-ferramenta, o novo corpo deverá servir de suporte e escoamento para a produção de todos os bens oferecidos por esta sociedade de fartura — o corpo-consumidor.

E qual identidade a cultura atribui a este novo ator? Com qual imagem o discurso do Outro edificou este sujeito?

As representações do ideal cultural de feminilidade falam sobre diferentes sujeitos. Pensamos, no entanto, em, pelo menos, três representações sociais do feminino. Afrodite, a deusa da beleza e sedução tornou-se ainda mais atual e constitui a imagem estética predominante, ou mesmo, exclusiva, no discurso da mídia. Pensamos em Marilyn Monroe, a Vênus platinada, como o ícone mais difundido desta representação. Interessante é pensar que o arquétipo da deusa grega está presente desde sua alcunha. Trata-se de uma subjetivação paradoxal que reafirma o antigo lugar de objeto estético acrescido, porém, de um elogio erótico a um corpo idealizado e desumanizado. Outro ícone das representações do feminino é aquele que se derivou da Princesa Diana. Como uma Cinderela da contemporaneidade, a bela plebéia conquistou seu príncipe. Este, no entanto, não era encantado...Lady Di foi então buscar em outro lugar, algo para lhe causar. Tornou-se, assim, uma metáfora do movimento que vai do objeto ao sujeito. Recontando o conto medieval, sem, no entanto, desfazer-se da estética, isto é, não ser princesa não implica ser bruxa, parece ser a mensagem tranqüilizadora que seduziu as mulheres de sua geração. Também encantou os sujeitos femininos ao dizer não ao marido, ainda que este tivesse um cetro de Rei.

Por fim, porém, muito longe de abordar toda a multiplicidade de representações do feminino na contemporaneidade, destacamos o personagem Tenente Ripley da série cinematográfica Alien. Ela é, positivamente, uma mulher que não se assusta com baratas(sic!) Além desta peculiaridade incomum de sua coragem, a Tenente Ripley é o único elemento ético da tripulação, seu inimigo — além do monstro — é a ganância e insensatez da companhia de pesquisas científicas. Seu maior aliado não é um homem, mas um andróide, de forma masculina que dá sua vida para salvá-la. A Tenente Ripley se veste como homem, tem a valentia de John Wayne, porém, seu poder de fogo faz o cowboy parecer um palito de fósforo. No entanto, seu espírito maternal, a leva a optar por salvar a menininha desamparada, perdendo assim a oportunidade de destruir o 8º passageiro. E no último episódio da série, a Tenente Ripley tem uma gravidez indesejada: ela foi violentada pela ganância dos homens que a fecundaram com o esperma do monstro.

Achamos que esta ficção cinematográfica estrelada por Sigourney Weaver apresenta um sincretismo das várias representações do feminino: bela, forte, fálica, desamparada, abandonada, vítima da falta de ética dos homens, maternal, castrada e, sobretudo, alguém que trás, em suas entranhas, a destruição, o horror,o mal e a morte. De Afrodite sedutora à Betty Fridman, a Tenente Ripley tem de todas um pouco e termina sua história como Eva ou Pandora: trazendo a morte em suas vísceras e a destruição em seu desejo. Afinal as representações da contemporaneidade talvez não sejam tão atuais assim.

 

Conclusão

Talvez não seja incorreto dizer que nos encontramos face a diferentes discursos. Na modernidade, a estética encontra-se vinculada a diversas formas de sociabilidade, impondo sua ordem como uma instância reguladora que abarca um número, cada vez maior, de contextos e formas sociais.

Observamos, ainda, que o controle exercido através da fiscalização de um olhar minucioso sobre a aparência e com o aval da ciência, contribui para regulamentar diferenças e determinar padrões estéticos, em termos daquilo que é próprio e impróprio, adequado ou inadequado, normal ou anormal. Como bem sugere Durif (1990) "o corpo torna-se álibi de sua própria imagem" (p.15). Esse controle da aparência traduz-se, não somente na atribuição de características estéticas, mas as investem de julgamentos morais e significados sociais.

Em trabalhos anteriores apontamos como a imagem da mulher permanece sempre associada à de beleza, saúde e fertilidade, reduzindo-a muitas vezes, a ser um corpo. Beleza é capital como já apontavam os contos de fadas —, A Bela Adormecida e as produções cinematográficas — Os homens preferem as louras. E ao falar em produções cinematográficas, Gilda não pode deixar de ser mencionada —, assim como a célebre frase de Rita Hayworth: "Todos os homens que conheci dormiram com Gilda e acordaram comigo!"

Interrogando-se a respeito do ideal feminino de emancipação, Perrot (1984) analisa historicamente as conquistas femininas e sugere, de forma irônica, mas categórica, que estamos vivendo uma ditadura bem mais severa do que todas até então vivenciadas pelas mulheres.

O autor considera os diversos procedimentos de produção e manutenção do bom aspecto do corpo feminino, entraves bem maiores na vida das mulheres do que os fardos que deflagraram a queima de soutiens em praça pública ou mesmo o discurso médico atestando o mal que os espartilhos causavam.

Segundo Perrot, com a maior exposição do corpo as atenções sobre a pele intensificam-se, assim como a rotina de cuidados com a aparência física. Para designar essa tentativa frenética de reformatação e adequação das formas, Perrot cunhou o termo ortopedia mental. O termo descreve com uma precisão jocosa, uma ordem ainda mais tirânica que as já conhecidas formas que levaram à subserviência feminina.

Nada mais cruel do que lutar com um inimigo implacável e inexorável. Contra ação do tempo as mulheres lutam, tentando manter-se sempre jovens e belas. Frenéticas e enlouquecidas consumindo compulsivamente toda sorte de produtos que prometam retardar o seu envelhecimento e manter sua beleza, essas mulheres lutam contra si, perdendo-se no espelho a procura de si mesmas. Se antes as roupas as aprisionava, agora se aprisionam no corpo - na justeza das próprias medidas.

Visto assim, o terror que se abate sobre a feiúra traz uma série de prejuízos sociais, físicos e psicológicos, produzindo, desta maneira, um conjunto de inquietações que se manifestam com relação ao sujeito e ao seu próprio corpo. Em função dos cânones estéticos, o feio e, sobretudo a mulher feia, vive uma tensão constante entre o constrangimento psicológico e as exigências simbólicas, tendo a própria anatomia como sua pior algoz..(Novaes & Vilhena,2003b).

Como lugar de inscrições de significados, o corpo precisa ser lido e interpretado, pois encarna a lei social. Reiterando o que foi mencionado acima, o corpo é então compreendido como uma exteriorização do interior psíquico do sujeito, fazendo, dessa maneira, a fronteira entre individual e social. Amplamente inserido no regime de signos sociais, o corpo cresce em sua expressividade tornando-se um lugar privilegiado, no qual se intensifica o controle social, já que na modernidade, o controle sobre o indivíduo tornou-se mais sutil.

Rodin disse certa vez (apud Medeiros, 2005) que não era a beleza que faltava aos nossos olhos, mas estes é que falhariam em não percebê-la. Interessante pensar na feiúra como uma "falha" do olhar. A feiúra não seria então a falta de beleza e sim a incapacidade de percebê-la. Talvez o artista nos ajude a compreender o estranho fenômeno do horror e da discriminação que se atribui a tudo que possa ser designado como feio.

Retornando a Freud, lembremo-nos que para o autor a beleza era um atributo derivado do sexual. "O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade... Beleza e atração são, originalmente, atributos do objeto sexual" (Freud 1930/1995b, p.90)

Assim, para Freud, beleza e atração seriam atributos idênticos e referidos ao objeto do desejo sexual. Conforme afirmamos anteriormente o conflito edípico lança o sujeito numa relação com o falo, um conflito que apresentará duas possibilidades: alguns imaginarão tê-lo, outros suporão sê-lo.

Freud se deteve na dinâmica da posse do falo, tê-lo, imaginariamente, como pênis seria constitutivo do superego masculino, e tê-lo simbolicamente, como um filho, seria a saída feminina "o desejo apaziguado de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um bebê e de um marido, que possui um pênis" (Freud, 1931/1995e, p.285).

Lacan e seus seguidores introduziram a dinâmica do ser o falo. Medeiros (2000), citando Alain Miller dirá: "Exatamente por não possuir um pênis, o suporte imaginário do falo, a menina conclui o Édipo por onde começou, isto é, procurando colocar-se como completude do desejo do outro. O falo que não foi para sua mãe permanecerá como causa de sua subjetivação" (p. 45).

Ora, sabemos que ninguém sai inteiramente castrado no conflito edípico, O sujeito neurótico, seria então aquele que fantasia ter ou ser, ter o falo ou ser o objeto de desejo. A negação dessas duas possibilidades estabeleceria o sujeito castrado. O campo do feminino, como vimos, é instituído pelo ser o objeto, ser aquilo que provoca o desejo. Por outro lado, como assegura Freud, "belo é o que atrai o olhar".

Ora se "beleza e atração são idênticos" e o sujeito feminino é aquele que se define por exercer a atração, então ser bela é uma condição e uma imposição para tal posição subjetiva. O horror e a discriminação dirigidos à mulher designada como feia decorre da castração que se mostra com a queda da máscara do desejo. O escultor tem razão, não é a beleza que falta aos nossos olhos e sim o desejo que se ausenta de nosso olhar.

E, finalmente, se a subjetividade feminina se constrói sobre os pilares do desejo, a busca pela beleza através de qualquer processo cultural que estabeleça uma estética sócio-histórica definida como bela produzirá uma "nova identidade". Esta será justo aquela reclamada pela subjetividade feminina: ser mulher.

A aparência passa então a ser o que de mais particular, único e singular o indivíduo possui. Paradoxalmente, o que há de mais íntimo, pessoal e com maior atribuição de valor social, está na superfície do sujeito — na pele. Se, como vimos anteriormente, a medicina associada à tecnologia científica, determina os contornos do corpo que são posteriormente valorados socialmente, então aí reside uma contradição, no sentido de que a busca é coletiva e não pessoal, assim como nada tem de particular e específica, ao contrário, perde-se num padrão.

Contudo, há algo que sempre escapa nesta busca coletiva e que personaliza este universal: o singular de cada um e o sentido que cada sujeito empresta a este "coletivo".

 

Referências

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Recebido em 02 de novembro de 2004
Aceito em 11 de janeiro de 2005
Revisado em 20 de fevereiro de 2005

 

 

Notas

1 O uso de espelhos era restrito a uma elite até o começo do século XVIII. Somente no século XX sua utilização passou a ser maciça nas classes populares, sendo um objeto banal de se encontrar entre os utensílios/mobiliário doméstico.
2 Datam deste período os primeiros manuais de boas maneiras. Para cada situação bem marcada — verdadeiras cartografias do bom comportamento em público.

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