SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número1A violência da imagem: estética, feminino e contemporaneidadeSufismo y psicología índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.1 Fortaleza mar. 2005

 

ARTIGOS

 

Antagonismos entre o magistério católico e as conquistas de mulheres católicas a partir da teoria do discurso*

 

 

Marco Antonio Torres

Aluno do Programa de Mestrado em Psicologia Social/UFMG, membro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos e consultor de grupos religiosos da Igreja Católica. End. Rua Iara, 171. Bairro Pompéia. CEP: 30280-370 Belo Horizonte/MG. e-mail: mat@procamig.org.br

 

 


RESUMO

O presente artigo é um estudo teórico que pretende demonstrar a interação entre magistério católico contemporâneo e mulheres católicas, no que se refere ao entendimento sobre a não-concessão do sacerdócio às mesmas. Trabalha-se com a hipótese de que o discurso do magistério promove a discriminação das mulheres e sendo o Brasil um país com alto número de católicos, a esfera sócio-cultural é constantemente informada pelo discurso religioso. A partir dos posicionamentos feministas entre católicas, surge um certo antagonismo aos posicionamentos oficiais da Igreja1. Contudo, o modelo centralizador desta instituição lança mão de estratégias que visam manter a hegemonia do viriarcado cristão. A partir da carta de João Paulo II, ORDINATIO SACERDOTALIS, sobre a exclusividade do sacerdócio aos homens, e de posicionamentos da teologia feminista latino-americana, pretende-se sinalizar algumas articulações entre o pessoal e o coletivo na identidade da mulher católica e alguns obstáculos que elas enfrentam para desfrutarem de sua cidadania dentro do catolicismo.

Palavras-chave: identidade, mulheres, Igreja Católica, cidadania, discriminação


ABSTRACT

The present article is a theoretical study that intends to demonstrate the interaction between contemporary Catholic1 teaching and Catholic women, regarding to the understanding on the non permission of the priesthood to women. This work deals with the hypothesis that the discourse, of the teaching promotes the women's discrimination and being Brazil a country with high number of Catholics, the cultural-societal sphere is constantly informed for the religious discourse. Starting from the feminist positions among Catholic, a certain antagonism appears to the official positions of the Church 2. However, the centralizing model of this institution has used of strategies that seek to maintain the hegemony of the Christianity's male-domination. Starting from John Paul II letter, ORDINATIO SACERDOTALIS, on the exclusiveness men's priesthood , and feminist's positions of the Latin-American t theology, I intend to signal some articulations between the individual and the collective in the Catholic woman's identity and some obstacles that they face for to enjoy your citizenship inside of the Catholicism.

Keywords: social identity, women, Roman Catholic Church, citizenship, discrimination.


 

 

Introdução

Pode-se questionar se cidadania mantém alguma relação com a esfera religiosa, porém seria de uma grande desonestidade intelectual desconsiderar os prejuízos aos direitos civis da mulher causados pelo androcentrismo de tantos discursos religiosos. Por isso, a partir de uma abordagem focando os processos políticos na constituição de identidades sociais, este trabalho analisa o discurso católico em uma de suas vertentes mais tirânicas, aquela que segrega e exclui as mulheres. Ao mesmo tempo, o texto quer demonstrar as resistências e lutas de mulheres católicas e suas conquistas na esfera religiosa, que apesar de parcas, são visíveis por uma percepção mais cuidadosa. A teoria do discurso será o caminho para esta discussão. O presente trabalho se insere numa crescente preocupação sobre as posturas das religiões diante do indivíduo portador de direitos civis conforme analisa Paiva (2003), como o direito ao controle de natalidade através da pílula, ao reconhecimento de novas parcerias maritais, uso de preservativos, etc. Tais posicionamentos afetam em determinada escala políticas públicas e causam sérios danos aos indivíduos. Assim a metodologia fará uso de uma abordagem, sobretudo, psíquico-política.

As abordagens que usam a análise do discurso ou a teoria do discurso são complexas e variadas conforme descreve Gill (2000/2002). Neste presente artigo são usados conceitos da teoria do discurso da filosofia política propostos por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe conforme a leitura de Torfing (1999). Dentro desta teoria, o discurso deve ser compreendido como as formações discursivas oriundas de práticas lingüísticas e não lingüísticas existentes no catolicismo em relação às mulheres. Discurso indica um conjunto de distintas posições de sujeitos ao redor de um tema. Quando se articula a menstruação da mulher com impureza, na antigüidade, ou a destruição da família, no presente, às conquistas das mulheres, está se criando uma totalidade estruturada a partir de articulações discursivas.

No Brasil, a Igreja Católica Apostólica Romana é uma instituição social que consegue realizar a entrada contínua de informações no campo social, afetando ações de indivíduos e grupos. Diretamente ligadas a esta Igreja temos duas conferências no Brasil: a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil). Contabilizando o número de pessoas ligadas a estas conferências, calcula-se 57.819 membros até o ano de 2000, distribuídos entre padres, diáconos, freiras e frades, sendo que as freiras somam um grupo de 35.600 mulheres (CERIS2, 2003, p. 100). Além destas conferências, existe o laicato, composto por leigos não necessariamente ligados a elas: segundo o senso 2000 do IBGE conforme Cucolo (2002), uma amostragem em 12% de domicílios brasileiros indicava 125 milhões de católicos, numa população estimada em 170 milhões respondendo a 73,5% da população do país. No entanto, não se pode pensar em uma catolicidade unívoca. Ela se constitui complexa e em transformação, como as demais instituições na modernidade (CERIS 2000, p. 9). Por outro lado, pode-se considerar que a modernidade não foi capaz de eclipsar, de maneira integral, a religião no Brasil. No entanto, a secularização provocou uma transformação e reorganização do campo religioso (CERIS, 2000, p. 11). Assim, o discurso produzido pela Igreja sobre as mulheres, torna-se importante na negociação da identidade e dos direitos sociais das mesmas. Paiva (2003) analisa a influência da esfera religiosa na construção da cidadania, demonstrando a dificuldade do catolicismo para constituir-se em terreno propício à cidadania.

Serão analisadas algumas estratégias discursivas do magistério católico para firmar a não ordenação de mulheres por meio da carta apostólica de João Paulo II3, a ORDINATIO SACERDOTALIS4. Aqui deve-se entender que a carta apostólica pode ser compreendida como uma forma lingüística do discurso, no entanto, sua construção é um posicionamento do papado. É um posicionamento contra as conquistas de espaços pelas mulheres que, nos últimos anos, conseguiram sistematizar uma teologia feminista dentro do catolicismo.

Sendo a ordenação sacerdotal negada às mulheres, por serem mulheres, isto é, por pertencimento de sexo, o discurso do papa não permite, na prática, a equivalência de possibilidades existenciais entre homens e mulheres na Igreja. Uma percepção da teologia católica feminista, crítica a certos pontos da doutrina do magistério, irá confrontar-se com este argumento, buscando uma redefinição dos lugares possíveis para as mulheres no catolicismo. Esta percepção diz ser questionável que não houvesse mulheres convocadas por Jesus Cristo, em seu magistério, conforme analisa Reimer, (2001, p. 54). Soma-se a isto a compreensão de que a esfera religiosa confirma e legitima a discriminação das mulheres em outras esferas da vida social.

Entre os elementos discursivos do magistério católico sobre a mulher e as posições tomadas pela teologia feminista católica surge um forte movimento social das mulheres dentro da Igreja. Há um rompimento do silêncio entre as mulheres católicas que se posicionam frente a uma visão machista na Teologia, conforme descreve Moser (2001, p. 96). Assim, emerge a negociação de uma identidade da mulher católica contrária à submissão. Esta negociação também aparece como crítica a um papel definido às mulheres pela maioria dos que formam o magistério católico.

 

O Magistério Católico e o privilégio aos homens

O magistério católico é formado exclusivamente por homens. Diferencia-se de outros magistérios por estarem diretamente ligados à autoridade do papa. Para ser membro do magistério na Igreja Católica é preciso aceder ao posto de pastor, ou seja, se tornar bispo. Para ser bispo é preciso ser padre e, antes de ser padre, é preciso ser diácono; portanto há rituais iniciáticos e uma rígida hierarquia que marca a possibilidade de ascensão funcional. No entanto, todo ensinamento terá que ser ratificado pelo papa. A organização eclesiástica distingue três tarefas do magistério, a saber: governar, ensinar e santificar (Documentos Pontifícios, 1996, p. 5). O projeto católico do magistério prevê a construção de um modelo interpretativo de tal forma totalizador e de tal maneira portador de verdade que não supõe erros, equívocos. Isto aparece claramente no texto da carta Ordinatio Sacerdotalis que se encerra como sentença e não como consideração, admoestação, orientação, etc. Para os que compartilham desse modelo, cada palavra ou ação do magistério é baseada na pessoa de Jesus Cristo, nos ensinamentos dos apóstolos e na tradição dos primeiros padres da Igreja. Desta forma, o projeto se legitima, já que se funda na tradição como portadora de valor em si, assim como sustenta um mito fundante, na figura de Jesus, que, para os crentes, é suficiente como referência de valor e credibilidade. A Teologia que opõe a este modelo também é baseada nos mesmos fundamentos, porém com diferentes interpretações. Assim, temos diferentes posicionamentos acerca da mulher no discurso católico, sendo mais forte no campo da hegemonia o discurso do viriarcado. Tais posicionamentos não se limitam ao campo religioso.

Há valores religiosos que resultam ser norteadores para a formação de visões de mundo específicas, ou seja, traduzem exigências às quais os atores se vêem obrigados a seguir e que levam a uma ação determinada, para usar a concepção weberiana de ação orientada por valor, quando a ação não tem sentido no resultado, mas sim, na sua própria especificidade e obedece a um mandato que o ator sente dirigido a ele. (Paiva, 2003, p. 27).

 

O não lugar da mulher e sua busca de mobilidade nos espaços de poder

O magistério católico afirma que Jesus não teve mulheres entre seus apóstolos, argumento para sustentar a sua não ordenção (Documentos Pontifícios, 1996, p. 6). O sexismo da Igreja consiste, justamente, em excluir pessoas de possibilidades existenciais apenas pelo critério sexual: aqui se pode reconhecer, portanto, o viés de gênero em suas práticas institucionais, que procura escamotear uma profunda desigualdade de poder entre os sexos.

O texto do documento Ordinatio Sacerdotalis procura definir o lugar da mulher, justificando que a ausência da ordenação não diminui sua dignidade: "a não admissão das mulheres à ordenação sacerdotal não pode significar uma sua menor dignidade nem uma discriminação a seu respeito, mas a observância fiel de uma disposição que se deve atribuir à sabedoria do Senhor do universo" (Documentos Pontifícios, 1996, p. 9). Aqui percebe-se uma autodefesa da instituição às acusações de discriminação, pois são posições que impedem o acesso da mulher ao magistério. Contudo, recusa-se a visão feminista crescente que busca conferir à mulher oportunidades iguais àquelas disponibilizadas aos homens. Ao mesmo tempo, justifica-se que esta posição deve-se manter assim por determinação divina e não reconhece as contingências de uma sociedade historicamente machista, portanto, procura-se escamotear, por estratégias discursivas, uma produção histórica, datada. À identidade da mulher é reservado um papel de auxiliar, desqualificando-a enquanto pessoa humana. Isto é grave, pois sustenta uma possibilidade de cognição social que inferioriza a mulher e reforça o machismo ainda presente na sociedade.

No entanto, a partir de um forte movimento de mulheres teólogas, biblistas, filósofas, antropólogas, entre outras, na Igreja Católica, uma leitura ressalta o protagonismo das mulheres na história da Igreja. No início elas estariam presentes entre os apóstolos de Jesus e mesmo no magistério cristão até o século XIII. Esta participação não é relatada com mais clareza devido ao caráter androcêntrico das fontes cristãs como crítica. Historicamente se articularam sentidos dentro da Igreja que negam a presença das mulheres entre os apóstolos em momentos da vida Jesus, como a última ceia. É comum em muitas residências a representação desta passagem sem a presença de nenhuma mulher ou criança.

O discurso, do qual os documentos pontifícios são apenas parte, vão articulando um sentido para a exclusão das mulheres de vários modos, até mesmo elogiando-as.

Ao nomear a participação das mulheres, na carta intitulada Mulieris Dignitatem, João Paulo II menciona as seguintes funções para as mesmas: "trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja" (Documentos Pontifícios, 1996, p. 9).

Primeiro cita o martírio, a capacidade de dar a vida, doar-se, depois cita a virgindade, ou seja, mais que tarefa, o papel de manter-se virgem é um controle da sexualidade feminina, que pode ser exercitada somente no casamento. Finalmente situa a mulher como restrita ao espaço da casa, mães de família, cuidando dos filhos. Em nenhum momento se reconhece sua atuação em outros espaços, como no mundo do trabalho, na política, na ciência, etc. Há um silêncio profundo sobre a atuação das mulheres católicas nas diversas áreas sociais. Há estudos apontando que as mulheres exercem o ministério de ensinar em diversos lugares onde não há padres conforme conclui Sabatine, Sobrinho, Jordão, Santos Filho e Amado (2000, p. 703). Tal posição é tendenciosa e não migra a mulher do lugar em que ela já se encontra, ou seja, de um trabalho menos valorizado e pouco visualizado na esfera social. Acaba ratificando o que a não concessão do sacerdócio às mulheres sinaliza: impedimento para funções que somente os homens seriam capazes de executar.

Ao final do documento é levantada uma constatação interessante, pois se reconhece que existem manifestações na Igreja contrárias a este ensinamento. O próprio documento demonstra duas questões: que tais posições do magistério não conseguem unanimidade entre católicos e a real função a que ele serve, ou seja, minar conquistas das mulheres na esfera religiosa, como segue na citação abaixo.

Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia atualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal (Documentos Pontifícios, 1996, p. 10).

O silêncio sobre quais seriam estes diversos lugares seria intencional? Aqui o discurso abre uma lacuna para evitar um confronto. Com isto busca regular à revelia de outras posições, contrárias, não nomeadas. Porém quais lugares seriam estes senão dentro da própria Igreja?

 

A Teologia Feminista como oposição à doutrina do magistério, um dos lugares onde parece brotar o desejo pela democracia na Igreja Católica

Moser (2001), teólogo católico, escreve de maneira ampla um livro sobre a sexualidade, nomeando três novas faces que contribuíram e questionaram as concepções sobre sexualidade na Igreja Católica. São elas: a sociocultural, a feminina e a político-ideológica. Pela face sócio-cultural não poderíamos falar de direitos humanos universais se abstraíssemos de alguns seres humanos estes direitos, outorgados seja pelo Estado ou qualquer outra instituição humana.. Pela face feminina a exclusão das mulheres da função de padre na Igreja Católica, coloca a Igreja em clara discordância com o Estado, ao menos nos países que de se definem como democráticos e reconhecem a equivalência de direitos, ou possibilidades, entre homens e mulheres. Pela face político-ideológica permite "a instituição conquistar e preservar seu poder mediante expedientes alienantes" (Moser, 2001, p. 100).

A face feminina, articulada com as anteriores, oferece um panorama sintetizador das conquistas femininas na Igreja através da denúncia que faz. Com isto aponta justamente alguns dos diversos lugares, mencionados na Ordinatio Sacerdotalis, onde a palavra do magistério é colocada como discutível.

Na Teologia Católica5 latino-americana, somente na década de setenta, percebemos alguns passos direcionados a discutir e assimilar os direitos e possibilidades da mulher, continuando a análise de Moser, (2001). Esta discussão começa atrasada em relação à discussão na sociedade moderna. Podemos pensar que este atraso em uma instituição como a Igreja Católica funciona como obstáculo para que o tema avance no campo social, onde é inegável a influência do catolicismo se levarmos em conta os dados da população católica no Brasil.

Segundo Moser percebemos três etapas desta discussão na citada teologia. A primeira etapa caracteriza-se pela inserção de questões da mulher no discurso teológico, na década de setenta. A segunda revela teólogas, na década de oitenta, que denunciam o caráter androcêntrico, patriarcal e racional do discurso teológico. Em 1985 ocorre em Petrópolis o Primeiro Encontro de Teólogas no Brasil, seguido pelo primeiro encontro para toda América Latina no ano seguinte em Buenos Aires. Na década de noventa temos a Teologia Feminista se constituindo como "mediação de gênero na Teologia" (Moser, 2001, p. 97), superando uma concepção binária de homens versus mulheres, para uma concepção que reconhece para além das diferenças de sexo, o machismo na sociedade e na teologia católica. Surge de forma sistemática a compreensão "que homens e mulheres são seres socialmente construídos e não determinados biologicamente" (Moser, 2001, p. 98).

 

A permanência dos antagonismos

Nesta análise pode-se perceber formações identitárias de gênero como uma mediação teológica do discurso no catolicismo. O movimento de católicas feministas colocou em xeque um discurso hegemônico e androcêntrico sobre o lugar da mulher. O questionamento sobre a não ordenação surge apenas como ancoragem para uma discussão bem maior, ligada ao papel da mulher no exercício do poder. Há um confronto entre magistério e Teologia Feminista. Dentro da teoria do discurso podemos compreender esta configuração como própria das lutas dos novos movimentos sociais no campo da hegemonia.

O conceito de hegemonia gramisciano, redefinido por Laclau (1990/2000) e na análise que Torfing (1999) faz da teoria do discurso é extremamente útil para reconhecer as estratégias de resistência dentro das instituições sociais. Quando mulheres católicas se reúnem para defenderem suas posições diante do modelo patriarcal do catolicismo, estão articulando argumentos sociais e históricos que permitam sua autonomia na esfera religiosa. As mulheres criam um sentido de legitimidade de seus posicionamentos através das articulações que demonstram o viés machista do catolicismo. Este antagonismo pode criar um sentido em alguns momentos, para que se possa recusar ou questionar o discurso do magistério católico. Não é um dado que mulheres sejam apenas mães de famílias ou virgens mártires, isto é parte de uma contingência histórica. Ainda poder-se-ia considerar que a maternidade é um condicionador da mulher, mas o modo de entender o cuidado dos filhos é uma contingência sócio-histórica.

São as lutas entre as diversas posições de sujeitos ao redor de um sentido, que podemos compreender como o campo da hegemonia. A organização do consentimento para aceitar ou rechaçar pessoas por pertença a um determinado sexo biológico seria o processo aqui denominado hegemonia. Para este consentimento ser organizado é necessária a articulação de um discurso, ou de discursos que se misturam, criando um sentido específico para a exclusão imposta às mulheres na Igreja. No pensamento de Antonio Grasmisci estas articulações se dão na esfera da cultura, não como esfera autônoma, mas como lugar onde acontece a vida social. Por sua vez, a vida social é produto da ação dos homens, em que consciência e vontade aparecem como elementos fundamentais na transformação do social conforme indica Barret (1996). Portanto, o conceito de hegemonia refere-se ao político, a ações do homem na distribuição do poder entre os sujeitos. Portanto, percebemos na relação de certas mulheres com o magistério a subordinação de consciências por formações hegemônicas e a insurreição dessas mesmas consciências dentro da hegemonia. Os sujeitos podem ser agentes das transformações sociais, não meras vítimas ou beneficiários das ações de outros. Os sujeitos serão suportes do discurso. Ao mesmo tempo em podem transformá-lo através de novas articulações. Neste sentido, os encontros das mulheres teólogas e a sistematização de uma Teologia feminista são conquistas de posições da mulher dentro do campo da hegemonia.

Hegemonia poderia ser definida como "processos pelos quais se criam formas subordinadas de consciência, sem recurso à violência ou à coerção" (Barret, 1990, p. 238). Assim até mesmo mulheres passam a condenar a si ou a outras por estarem perpassadas por um discurso com traços machistas. Uma mesma pessoa, ou grupo social, pode trazer estas duas posições, condenando posturas machistas e defendendo a autoridade do magistério católico. Posições antagônicas poderão existir entre grupos, sujeitos e até numa mesma consciência.

As posições de sujeitos, dentro da teoria do discurso, se refere a conquistas de lugares sociais, aos avanços e recuos dos sujeitos individuais e coletivos nas formações hegemônicas. Esta noção de conquista de posição, dentro do conceito de hegemonia, são formulações feitas por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a partir da leitura de textos do pensador político Antonio Gramsci. O avanço destas posições está relacionado à idéia de Antonio Gramsci dos combates em trincheiras; cada soldado conquista uma nova posição, saindo de vez enquanto, de sua posição para outra trincheira à frente Contudo não pode se expor demasiadamente ao inimigo ou será alvejado. É neste movimento de aparecer e se esconder que ocorrem as conquistas de posições dos sujeitos. A cada momento, a posição do soldado nas trincheiras é diferente. O conjunto destas diferentes posições pode ser compreendido como uma totalidade de sua ação no campo de batalha. O campo de batalha seria o discurso, no qual diversas posições de sujeitos irão articular sentidos e posições dentro da hegemonia. Algumas mulheres e homens caminham mais a frente em posturas questionadoras do machismo na Igreja, porém o caráter conservador do atual pontificado nestas questões, não permitiram avanços significativos. Se algo mudou foi fruto da resistência de mulheres e homens que passaram a discutir e apoiar a Teologia Feminista como legítima. Este apoio revela uma conquista de poder das mulheres na Igreja e um processo sobretudo psíquico-político, pois cria condições de um campo cognitivo para as próprias mulheres questionarem sua submissão.

O confronto entre estas posições instaura a possibilidade de perceber no catolicismo algumas tendências democráticas. É um confronto que deixa explícito os antagonismos internos do catolicismo e um forte debate político sobre a distribuição do poder entre homens e mulheres. O reconhecimento da necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos, apenas reservam ao mundo moderno o desafio de criar e manter a ordem democrática conforme assevera Mouffe (1996). Este desafio está presente no catolicismo. Não foi frutífera, na modernidade, a tentativa do magistério em dar uma formatação fixa à identidade da mulher. Houve a constituição de uma identidade política através das católicas feministas.

Em 2001, outro documento aparece para conter uma nova tentativa de iniciar o processo de preparação de mulheres à ordenação sacerdotal na Igreja. O papa aprovou uma notificação no dia 14 de setembro de 2001, feita por cardeais de Roma, afirmando não ser lícito "preparar mulheres para o diaconato" (SEDOC, 2001, p. 317) pois este seria o primeiro passo para um possível ingresso nas etapas que conduzem ao magistério. Tais indicadores parecem sustentar a tese defendida até agora, de que há estratégias de alijamento de mulheres dos cargos de maior prestígio funcional no interior do organograma da Igreja Católica. Tal alijamento é claro, porém, o que se quer demonstrar aqui é outra coisa, ou seja, que tal processo é sobretudo político e se algo de divino nele exista, poderia ser as lutas políticas destas mulheres.

Embora as mulheres possam receber escasso reconhecimento pelo seu papel nas esferas em que podem atuar, as práticas de explícita exclusão dos lugares de magistério parecem apontar para uma margem muito pequena de ascensão funcional na rede de poder, que permanece compartilhada apenas pelos membros do sexo masculino. No entanto, instaura uma problemática, mostrando que existe uma mobilidade da mulher que nas últimas décadas escapa deste lugar de submissão ao magistério.

Percebemos que as mulheres católicas, pela mediação de uma teologia feminista, estão imersas na tensão dos movimentos sociais modernos, sem um lugar identitário fixo, conforme Prado e Souza (2001). As construções discursivas das mulheres forjam sentidos que funcionam como articulações discursivas temporárias para os sujeitos sociais. Isto aparece nas três etapas da inserção das mulheres no campo teológico. Porém, diante da oposição do magistério há que se redefinir pelo discurso as posições das mulheres no catolicismo, por elas e pelos demais. Este conflito não tem sinais de desfecho, apenas possibilidades de construir novos contornos discursivos para as mulheres e para os homens dentro e ao redor das comunidades cristãs católicas.

O texto por fim trata-se de um esforço empreendido por um homem, também religioso de formação, porém sensível às demandas do movimento internacional de mulheres. Sobretudo quer reconhecer e denunciar a manutenção de tais estratégias que mantêm o assujeitamento dessa parcela que é reconhecida como pertencendo à comunidade dos cristãos, mas que não acede a todas as benesses e encargos que implicam em público reconhecimento de suas capacidades e capacitações para o exercício do magistério.

 

Referências

Barret, Michèle (1996). Ideologia, política e hegemonia: De Gramsci a Laclau e Mouffe. In S. Zizek, Um mapa da ideologia (pp. 235-264). Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (2000). Tendências atuais do catolicismo: Um estudo em seis regiões metropolitanas: Relatório de pesquisa. Recuperado em: 3 fev. 2005: http://www.ceris.org.br/download/relfinalcatolicismo.pdf .         [ Links ]

Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (2003). Anuário católico do Brasil. Rio de Janeiro: Autor.         [ Links ]

Cucolo, E. (2002). Católicos perdem espaço para evangélicos e sem religião, diz censo. Folha de São Paulo. Recuperado em 26 ago. 2003: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u50661.shl .         [ Links ]

Documentos Pontifícios 268 (1996). Sacerdócio de mulheres? Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Laclau, E. (2000). Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo (2a ed.). Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión. (Originalmente publicado em 1990).         [ Links ]

Moser, A. (2001). O enigma da esfinge: A sexualidade. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Mouffe, C. (1996). Introdução: Para um pluralismo combativo. In C. Mouffe, O regresso do político (pp. 11-19). Lisboa, Portugal: Gradiva.         [ Links ]

Paiva, A. R. (2003). Católico, protestante, cidadão: Uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: IUPERJ.         [ Links ]

Prado, M. A. M., & Souza, T. R. P. (2001). Diferenciações e indiferenciações nas formações identitárias: Ambigüidades discursivas nos estudos contemporâneos. Aletheia, 13, 97-109.         [ Links ]

Reimer, I. R. (2001). A lógica do mercado e a transgressão de mulheres: Uma visão teológico-cultural a partir dos evangelhos. Estudos Bíblicos, 69, 50-60.         [ Links ]

Sabatine, F., Costa Sobrinho, J. B., Jordão, Neila M. A. Santos Filho, G., & Amado, S. M. (2000). Sacerdócio da mulher na Igreja Católica: Entraves e perspectivas. Fragmentos de Cultura, 10 (4), 703-720.         [ Links ]

Santa Sé (2001). Ordenação diaconal das mulheres: Notificação. SEDOC, 34 (289), 317.         [ Links ]

Torfing, J. (1999). Intellectual developmente. In J. Torfing, Newhheories of discourse: Laclau, Mouffe and Zizek (pp. 11-80). Malden, Massachusetts: Blackwell Publishers.         [ Links ]

 

 

Recebido em 14 de dezembro de 2004
Aceito em 12 de janeiro de 2005
Revisado em 20 de fevereiro de 2005

 

 

* Este texto foi produzido sob a orientação do Professor Marco Aurélio Máximo Prado e Professora Karin Ellen von Smigay, ambos professores do programa de Pós-Graduação da UFMG.

Notas

1 Toda vez que o texto se referir a Igreja, quer dizer Igreja Católica.
2 Every time that the text to refer the Church, this means Catholic Church.
2 O Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS) é uma sociedade civil sem fins lucrativos, filantrópica, de assistência social e promoção cultural, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro, RJ, fundado em 1º de outubro de 1962 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) (Art. 1º dos Estatutos do CERIS).
3 Segundo o Direito Canônico, compêndio das leis católicas, o papa é o máximo legislador, juiz e governante da Igreja Católica.
4 Para a análise do texto Ordinatio Sacerdotalis será usada à publicação Documentos Pontifícios 268 da Editora Vozes. Por isto a citação do texto em questão, entre outros, será feita por meio da publicação citada.
5 A Teologia Católica se liga aos diversos pensadores da Igreja e não necessariamente ao Magistério Católico. No entanto, para se fazer doutrina, ela precisa ser proclamada pelo Papa como ensinamento válido.

Creative Commons License