SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número1Sufismo y psicologíaLa cultura de las organizaciones índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.1 Fortaleza mar. 2005

 

ARTIGOS

 

A noção de não-consciente dos filósofos e o inconsciente freudiano

 

 

Maurício Henriques Damasceno

Psicólogo, aluno do Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFMG. End.: Av. do Contorno, 2646 sl/ 506 — Funcionários BH/MG., CEP: 30110-80. e-mail: leibnz@hotmail.com

 

 


RESUMO

O texto que se segue não tem absolutamente nenhuma pretensão de trazer à discussão que envolve Psicanálise e Filosofia algum novo ponto. Dito isso, o que propomos é uma leitura sistemática de maneira que algo possa ser compreendido acerca dessa discussão que se arrasta desde o início do século XX. Por tratar-se de uma convergência que comporta grande complexidade e dispersão, optamos por uma forma resumida de apresentação do problema para o fim que nos interessa. Portanto, tomaremos a discussão no contexto da modernidade sem, no entanto, prescindir da evolução do pensamento filosófico antecedente. Esse último terá um estatuto subliminar, uma forma de presença oculta. Sobre o fato de ser esta convergência complexa e relativamente dispersiva, é preciso fazer alguns esclarecimentos. Complexo por ser um espaço transdisciplinar, e por isso, exigir certo conhecimento das duas disciplinas envolvidas. Dispersivo porque tanto a Psicanálise, quando a Filosofia não se encerram em um conjunto teórico definitivo capaz de assegurar algum consenso. Esses dois pontos (complexidade e dispersividade), conferem a esta proposta um caráter introdutório o que justifica nossa opção por uma abordagem generalista, interessada em uma demarcação da problemática de forma mais ampla sem privilegiar essa ou aquela leitura filosófica ou psicanalítica. Tendo em vista esse propósito, tomaremos a noção de não-consciente presente na Filosofia de Plotino, passando brevemente pelos racionalistas Pierre Nicole e Espinoza, chegando finalmente à Filosofia moderna com Kant e Schopenhauer. Nesta primeira parte do trabalho será utilizado como referência principal o livro O Sono Dogmático de Freud produzido por Pierre Raikovic. A segunda parte do trabalho contempla a construção do conceito freudiano, tendo como referência o artigo metapsicológico O Inconsciente de 19151.

Palavras-chave: Psicanálise, Filosofia, inconsciente, não-consciente, consciência.


ABSTRACT

The text that follows isn't claiming a new discussion about Psycho-analysis and Philosophy. What it suggests is a systematic reading in which something can be understood about a debate that lasts since the beginning of the Twentieth Century. Because it's about a convergency with a vaste complexity and dispersion, we chose to summarize the matter's presentation, in order to achieve our goals. Therefore, the debate will start from a modern context without, nevertheless, sparing the preceding philosophy's evolution. This last one will have a subliminar state, being present in a concealing way. Concerning the fact that it's a complex convergency and relatively dispersive, is necessary to enlighten some reasons. Complex because it's an interdisciplinar space, so, it demands some knowledge about the two subjects envolved. Dispersive because neither Psycho-analysis nor Philosophy end in a definite theoric group capable of asserting a consent. These two points (complexity and diversity) accord to this proposal an introdutionary feature which justifies our generalized approach, interested in an extensive problematic delimitation without privileging neither a philosophical nor a psycho-analysis reading. With this purpose, the text will start at the no conscious inkling, present in the Plotinus' philosophy, going shortly through the rationalists Pierre Nicole and Espinoza, ending in the Modern Philosophy of Kant and Schoepehauer. During this first part will be used, as a main reference, the book O Sono Dogmático de Freud produced by Pierre Raikovic. The second part regards the construction of Freud's concept, using as a reference the metapsychological article O Inconsciente from 1915.

Keywords: Psychoanalysis, Philosophy, unconscious, non-conscious, conscience


 

 

De Plotino a Schopenhauer: a noção de não-consciente em uma certa tradição filosófica.

Em seu livro O Sono Dogmático de Freud, Pierre Raikovic propõe uma reflexão sobre a "originalidade" do Inconsciente. Reflexão esta que tomaremos como roteiro por considerá-la eficaz e conveniente ao nosso propósito.

Tal como nos apresenta Raikovic, o que surpreende não é o fato de Freud recusar posições filosóficas, mas a forma como ele o fazia. Freud pensava a especulação filosófica, uma espécie de delírio sistematizado ou falácia filosofante que ele, Freud, denunciara. De certo modo, a postura de Freud revela sua personalidade arguta, pois estrategicamente falando, acusar os filósofos de "estarem doentes" e ao mesmo tempo ser ele o detentor da cura é genial. A questão é que na evolução de seu pensamento, Freud, descobre que o saber sobre a cura pertence ao próprio "doente". Dito de outra forma, a "cura da doença" nada mais é do que construir um saber sobre si mesmo. No que então se distinguem as "construções" filosóficas e as psicanalíticas? Não são ambas formas sublimatórias de lidar com a pulsão e suas vicissitudes? Neste sentido, qual a diferença entre o empreendimento freudiano e o filosófico se, em ultima instância, tanto um quanto o outro, nada são além de "saberes" sobre si mesmos?

Deixarei de lado certa arrogância freudiana para tomar a filosófica em defesa do próprio Freud. O logocentrismo, na forma de Filosofia da Consciência, era uma ideologia, que aos olhos de Freud, precisava ser afastada de seu "filho problema". Era necessário que Freud tomasse certa distância da intelligencia de sua época, ainda que isto resultasse num dogmatismo. Mas por quê dogmatismo?

A idéia de que a Filosofia desconsiderou os eventos que, no pensamento, escapam à consciência faz dela uma proposta carente. E a Psicanálise veria nesta pretensa carência uma razão a mais para afirmar que a "Metafísica sempre se absteve de ir a fundo na questão do pensamento, que nada fez senão perseguir quimeras" (Raikovic, 1994, p. 14).

Se percorrermos os escritos freudianos, encontraremos algumas passagens em que Freud "admite uma adequação da reflexão filosófica com uma consciência única". Uma delas é citada por Raikovic na leitura que faz de Ma vie et la psychanalyse traduzido por Marie Bonaparte: "(...) desta forma, esbarra-se na contradição dos filósofos que, embora considerando o 'consciente' e o 'psíquico' como idênticos, alegavam não poder representar para si o absurdo do 'inconsciente psíquico'. Mas paciência, a melhor coisa era dar de ombros para esta idiossincrasia dos filósofos" (Freud, 1981).

Ora, sabe-se que embora a Filosofia permanecesse presa à noção virtual do pensamento, as coisas não se deram bem assim. O fato do conceito de Inconsciente não ter a mesma configuração que tem na obra freudiana, não significa que não tenha sido abordado de forma similar. A questão é como Freud entende, e de que lugar vê a problemática que envolve a noção de não-consciente. Uma análise mais detida revela que desde os gregos essa "idéia abstrata" sobre algo que transcende uma percepção mais imediata já se apresentava.

Em Plotino, por exemplo, o tema é tratado sobre a forma de "disposições da alma que acompanham impressões anteriores" e que apesar de conterem lembranças, "não necessariamente estão expostas no presente" e pode ocorrer de a alma "possuir essas disposições" sem delas ter consciência. Não obstante isso, Plotino infere que se a alma puder "conhecer" tais disposições, pode torná-las mais fortes aumentando a possibilidade de reflexão. Ou seja, quando a alma toma conhecimento de uma determinada disposição, ela distingue-se da mesma. Se a alma ignora tal disposição, confunde-se com ela.

Nem mesmo o racionalismo cartesiano justifica a acusação de negligência ao não-consciente. Raikovic (1994) cita um discípulo de Descartes, Pierre Nicole que da provas de uma conduta investigativa sobre as "profundezas" da consciência: "freqüentemente escondemos de nós mesmos aqueles desejos que, ao mesmo tempo, são nossos e reinam em nós, mas fingimos ignorá-los e não vê-los distintamente por medo de sermos obrigados a contradizê-los" (Raikovic, 1994, p. 20)2. Ao comentar as aversões de Cícero e os motivos para ocultá-las, Nicole refere-se a um terceiro mais sutil capaz de perceber no espírito de Cícero um veneno oculto que o próprio desconhecia.

Até aqui (e há que se considerar a enormidade de referências que poderiam ser mencionadas), podemos enumerar alguns pontos que se identificam à proposta freudiana:

1- A distinção entre um processo que ocorre no nível da consciência empírica, e outro que a sobredetermina.

2- O caráter de não imediaticidade das experiências psíquicas dissimuladas.

3- É necessário um terceiro mais sutil para tornar conscientes essas experiências psíquicas dissimuladas.

4- Isso feito, a consciência pode distinguir-se de certas "disposições".

Podemos dizer que para o pesquisador cuidadoso, até aqui não há nenhuma novidade. Dizer que a Psicanálise obriga "A Filosofia" a retificar o fundamento psicológico tradicional sobre o qual havia se constituído é muito mais uma intenção do que um fato. Freud vê na Filosofia um conjunto teórico pretenso de assegurar amplo consenso, desconsiderando a diversidade de disciplinas, áreas temáticas e doutrinas que se cruzam. Nesse sentido, dizer que Schopenhauer e Frege, por serem filósofos, seguem as mesmas tendências é o mesmo que dizer que Psicanálise e Psicologia são a mesma coisa.

Se sairmos em defesa de Freud dizendo que, "especulações" filosóficas que consideram o não consciente são exceções a regra, não daríamos dois passos sem culpa. Segundo Raikovic, todos os nomes do cartesianismo sustentam uma noção de não-consciente que impossibilita definir o pensamento pela consciência exclusivamente, o que fica claro na citação que faz de Espinoza:

Substitui a dicotomia do claro e distinto pela idéia de uma afetação, espontaneamente consciente, a partir da qual pode-se desvendar a idéia adequada que, sozinha, 'exprimira' sua causa. 'Compreender'a essência do corpo exterior, não confundi-la mais com o efeito que este corpo produz sobre nós, enquanto somos afetados por este objeto é um trabalho. Uma idéia adequada corresponde, portanto, não ao conteúdo representativo da idéia, mas a seu conteúdo expressivo (...) esta consciência se encontra limitada a uma posição subordinada e determinável, e que a ordem do não consciente é o seu determinante (Raikovic, 1994, p.16-17).

Contudo, seria de esperar que Freud ignorasse algumas dessas referências, o que, em parte, justificaria sua atitude pirrônica em relação aos filósofos. Mas e Kant? Seria possível no contexto de Viena fim de século, desconhecer o retorno que este faz ao argumento de que a Filosofia já se ocupava, de maneira específica, das questões do não-consciente? Evidente que não. Pois, basta rever o texto de 1920 Além do Princípio do Prazer para identificar as marcas de um kantismo. Freud fala de um mecanismo de proteção que nos organismos mais evoluídos, como o homem, se organiza em "órgãos do sentido" destinados, essencialmente, a receberem "excitações específicas". Esta "proteção redobrada" teria como função seriar o fluxo de excitações "de uma intensidade desmesurada", bem como versar sobre "pequenas quantidades" de excitações. Desta forma, tal como nos mostra Paul Laurent Assoun em seu livro Freud a Filosofia e os Filósofos - numa análise minuciosa do kantismo em Freud — o que vemos é a cristalização genética do sistema consciente numa receptividade sensitiva, o que nos leva à estética transcendental kantiana, já que Kant é o autor da teoria segundo a qual o espaço e o tempo regem universalmente a sensibilidade.

Sobre a questão do não-consciente em Kant, Raikovic afirma que essa assume a forma de distinção entre consciência empírica e consciência transcendental. Para Kant o que é psicologicamente consciente é a consciência empírica (consciência dos fenômenos imanentes), ou seja, das modificações subjetivas do Eu. É o que conhecemos por consciência imediata, que conhece apenas a "afinidade dos fenômenos" mas desconhece o que os determina. As condições dessas "afinidades" correspondem à consciência transcendental (psicologicamente inconsciente), que torna possível a unidade subjetiva da consciência.

Desta forma, assim como em Freud, há em Kant uma prevalência dos processos psicologicamente inconscientes sobre os processos da consciência empírica. Não só prevalência, mas sobredeterimação da consciência transcendental que, apesar de implícita, é condição para consciência empírica. Dito de outra forma, a consciência empírica é da ordem do imediato e, portanto, condicionada à linearidade do tempo. A consciência transcendental é da ordem do mediato e, apesar de não estar condicionada à linearidade do tempo, não está fora dele. Contudo, apesar de determinante, a consciência transcendental, no que se refere a cronologia, numa perspectiva genética, sucede a consciência empírica. A convergência de pensamento é clara, já que a Psicanálise sai da consciência para, através do tempo, alcançar o que funda o consciente que, por "natureza", é inconsciente.

Pode-se objetar contra esse paralelo, já que o mesmo foi apresentado de forma bastante introdutória, mas há que se considerar que entre o aprender a filosofar e o tratamento analítico, existe um elemento comum e essencial: o tempo que permite revelar à consciência o que de alguma forma lhe escapava.

Outra objeção possível é de que o tratamento psicanalítico tem como prerrogativa fundamental à presença do analista, objeção que traz certos problemas sobre início da técnica. A presença inexorável de um terceiro mediador nos leva a perguntar como Freud teria, sem um terceiro, fundado uma técnica que dele não pode prescindir? Para quem não se convence de que teria sido Fliess o responsável por esta tarefa, fica um problema que obriga a Psicanálise a repensar seu ato de fundação já que uma auto-análise em nada se distinguiria de uma experiência filosofante.

Para legitimar a de Freud (auto-análise), só uma solução: aquela que consiste em admitir que o entendimento do promotor da Psicanálise devia responder, não mais a um entendimento discursivo, ou seja, humano, mas a um entendimento intuitivo, divino, um 'intellectus archetypus'...Tornar clara, sem o auxílio de um terceiro, sua própria dinâmica inconsciente, tal como esta é definida por Freud, seria a tarefa de um entendimento apto a pensar juntos os contraditórios; o que é impossível a um entendimento humano (Raikovic, 1996, p.18).

Conforme o próprio autor nos mostra, a "saída" para esta conjectura embaraçosa seria o "desvendamento do inconsciente por uma única consciência individual", o que ressoa como solução de compromisso com uma determinada proposição kantiana. Em um esforço irrestrito para pensar as condições do entendimento, Kant é levado a pensar num mundo em que o fenômeno não mais derivaria de uma "causalidade mecânica", forma que ele acreditava operar o entendimento discursivo humano. De modo que, com isto, ver-se-ia dissipada a diferença númeno e fenômeno (consciência e inconsciente), o que tornaria possível, a partir do trabalho de uma única consciência, a reflexão da consciência sobre si. Para Kant, o entendimento discursivo (humano) apóia-se na apreensão das partes para conceber o todo sendo, desta forma, as partes a causação do todo. Na exegése que faz Raikovic, a "fórmula" kantiana é aplicada como condição de possibilidade do inconsciente em Freud:

As partes do todo aqui constituem aquilo que a Psicanálise capta através da sucessão dos fragmentos do discurso do paciente, e o todo, a globalidade da vida psíquica que é determinada pelo inconsciente (...) para um entendimento que fosse intuitivo e marchasse ao contrario, isto é, de um todo - que pode fazer o objeto de uma 'apercepção'- para as partes, poderia realmente dar-se o caso de uma figura onde o inconsciente (o todo) se deixaria apreender por uma consciência única, uma vez que a dimensão desta, constituída pelas partes do todo, permitiria apreender de forma não mediata aquilo que as uniria entre si (Raikovic, 1996, p.18).

Talvez não seja uma estratégia confiável encerrar numa mesma compreensão o Inconsciente tal como Freud o pensou e o inconsciente como Todo. Esta noção de inconsciente tem mais relação com a idéia de "círculo dos círculos" do que com a forma a qual Freud utiliza para cunhar seu conceito. De qualquer maneira, o problema esta colocado: como justificar uma auto-análise em Freud? Seja como for, a solução kantiana de um intellectus archetypus, no que se refere à Psicanálise, não parece ser adequada, pois além de negligenciar toda a dimensão da transferência no "desvelamento" do Inconsciente, atribui ao conceito de Inconsciente um estatuto que ele não tem, o de Ontológico.

Embora essa questão mereça considerável atenção, por motivos metodológicos3, seguiremos com o propósito de enumerar as "relações" entre Psicanálise e Filosofia sobre a problemática do não-consciente.

O filósofo que encerra a navegação por essa convergência é Schopenhauer. Freud o cita várias vezes (precisamente quinze citações), o que provoca acusações de plágio por parte de alguns epistemólogos. De fato, as semelhanças são marcantes e não deixam dúvidas sobre o contato de Freud com passagens de O Mundo como Vontade e como Representação.

Em o Ego e o Isso, texto de 1923, Freud denomina o Eu como racional e tendo como tarefa primordial a manutenção da integridade individual. O Eu ver-se-ia impelido a mediar interesses pulsionais e atos propriamente ditos, assumindo assim um estatuto de "guardião" interessado na "conservação" do Eu insistentemente negligenciada pelo Isso.

Em Schopenhauer o termo "conservação" é imprescindível para definir as funções do intelecto: "o intelecto tem por função natural cuidar da 'conservação' (grifo nosso) do indivíduo, uma tarefa que, em geral, lhe é difícil de cumprir. Essa passagem do quarto livro de O Mundo como Vontade e Representação (Schopenhauer, 2001) indica que a necessidade de conservação da individualidade é animada por aquilo que há de mais racional no indivíduo, ao passo que, em Freud a preservação se manifesta pelo desdobramento de uma estratégia defensiva. Essa idéia: de um "intelecto que tem por função cuidar da conservação" (Schopenhauer, 2001, p. 306), conduz diretamente à inferência de um elemento cujo qual causava ao intelecto uma necessidade de defesa.

Em seu livro, Schopenhauer escreve sobre coisas que desejamos ou tememos e que não são, muitas vezes, conhecidas por nós:

Podemos acalentar um desejo por muitos anos sem confessá-lo para nós, sem mesmo chegar a ter dele uma clara consciência, é que sua revelação parece perigosa para nosso amor próprio, para a boa opinião que precisamos ter de nós mesmos, mas tão logo o desejo se concretize, a alegria sentida nos ensina, não sem alguma confusão, que havíamos desejado aquele acontecimento com todas as nossas forças: seria o caso, por exemplo, da morte de um parente próximo de quem somos herdeiros (Schopenhauer, 2001, p. 388).

É, portanto, de uma objetividade da vontade que trata Schopenhauer. Um impulso cego que num esforço misterioso e surdo, à revelia da apropriação do intelecto, insurge de forma inesperada. Nesse sentido, pode-se pensar a noção de não-consciente em Schopenhauer como um predicado universal da vontade, uma forma que não se individualiza em nenhum objeto determinado. A vontade prescinde da necessidade de fazer-se representar por um objeto. É a partir da emergência de uma individualidade humana, o mais elevado grau da "objetividade da vontade" que surge o mundo como representação que por sua vez deve, em última instância, servir aos propósitos da vontade. Logo, a consciência como um dos processos de objetivação da vontade, o mais elevado de todos, é conseqüência de uma "peripécia" da vontade que se muniu de um facho de luz.

 

O inconsciente freudiano

Se na primeira parte desenvolvemos uma noção filosófica que admite manifestações que transcendem a percepção empírica, uma espécie de ente que age sorrateiramente no umbral da consciência, nesta segunda, todo o caráter misterioso, inefável e ilógico da lugar a uma formulação sistemática. O Inconsciente freudiano é um topos psíquico que contém um conjunto de representações não presentes de forma efetiva no campo da consciência. A definição de um conceito sistemático obriga-nos a abandonar a idéia, cara a maioria dos filósofos, de que processos psíquicos conscientes tem prevalência sobre qualquer outro modo de funcionamento psíquico. Por outro lado, pensar a prevalência dos processos inconscientes sobre qualquer outro modo de funcionamento psíquico, como pretendem certos psicanalistas, é abdicar da possibilidade de compreender o texto freudiano em sua essência. Trata-se de um sistema cujo modo de funcionamento comporta três aspectos fundamentais: tópico, dinâmico e econômico. Seu funcionamento depende, necessariamente, de um trabalho recíproco.

Em geral, um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais se interpõe uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi 'reprimido'4, devendo permanecer inconscientes. Se, porém, passar por este teste, entrará na segunda fase e, subseqüentemente, pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a consciência (...) Pode agora, sob certas condições, torna-se um objeto da consciência sem qualquer resistência especial (Freud, 1915/1996, p.165-217).

Para definir um sistema inconsciente Freud faz uma diferenciação entre representação de coisa e representação de palavra. As representações de palavra, ligadas a um signo lingüístico, constituem aquilo que Freud chamará de sistema Pré-consciente/consciente. As representações de coisa, sem registro de signo lingüístico, constituem o Inconsciente. Além disso, Freud atribui ao sistema inconsciente características fundamentais que não estão presentes no sistema consciente. Passemos a elas, de forma esquemática, tal como Freud nos apresenta;

1. No núcleo inconsciente, representações pulsionais que procuram descarregar sua catexia coexistem isentas de contradição. Implica dizer que, conteúdos aparentemente incompatíveis podem, simultaneamente, torna-se ativos sem, no entanto, cancelar ou reduzir o outro.

2. Esse sistema não comporta negação, dúvida, certeza ou qualquer processo que implique escolhas5, tudo isso é introduzido pelo trabalho de censura. No inconsciente, só existem conteúdos com mais ou menos catexias.

3. As catexias inconscientes tem maior mobilidade, ou seja, circulam mais livremente. Isso se da por deslocamento (uma idéia cede a outra sua quota de catexia) e condensação (uma idéia pode apropriar-se de catexias de varias outras idéias). É exatamente esse movimento que Freud chamará de Processos Psíquicos Primários.

4. Os processos inconscientes não são ordenados no tempo e nem se alteram com a passagem deste. A referência temporal é um trabalho da consciência.

5. Os processos inconscientes dispensam pouca atenção à realidade.

Essa distinção entre características de um e outro sistema guarda considerável importância no escopo da metapsicologia freudiana, pois se encarrega de marcar a diferença do objeto psicológico e psicanalítico. Em seu artigo Das unbewusste de 1915, Freud divide-se entre duas hipóteses sobre a relação entre os dois sistemas. Numa primeira hipótese, chamada de dupla inscrição, a representação ao passar para outro sistema, recebe uma inscrição paralelamente à inscrição original. Numa outra hipótese, denominada funcional, ocorre que a mesma representação sofre, por parte de cada sistema, um investimento diferente, ou seja, muda de estado conforme o sistema que a abriga.

A hipótese da dupla inscrição (topográfica), da lugar a uma hipótese funcional (econômica). Freud irá supor que cada sistema psíquico possui uma energia de investimento específica, de maneira que ao passar de um sistema para o outro, a representação sofre um desinvestimento por parte de um, e um investimento por parte de outro. Isso implica dizer que não há uma dupla inscrição da representação, mas uma mudança funcional que supõe a eliminação do estado anterior.

Obviamente, não é sem problemas que Freud constrói o conceito. A presença de um certo "idealismo" em Freud é combatida por vários estudiosos da Psicanálise. De maneira que a distinção entre o conceito pensado por Freud e a forma como é tomado atualmente é enorme. Para pensar como o Eu se constitui, Freud estabelece mecanismos responsáveis pela identificação do corpo a um outro. Em Freud, a identificação é entendida como um processo ativo, o que sugere uma "instância psíquica" dotada de iniciativa, "se identifica" a alguma coisa. O problema de se pensar desde o início um "agente" qualquer é que a origem do sujeito psíquico passa a ser concebida no âmbito de um auto-engendramento e da atividade. O que nos levaria a uma espécie de motivação inata que conduz o processo de identificação. Essa mudança de discurso não seria suficiente para distinguir o conceito freudiano da noção de não-consciente da Filosofia. Entretanto, é possível pensar a partir de pesquisas mais atuais que o Inconsciente se forma a partir de restos não traduzidos de mensagens que, por não haver linguagem, não podem ser traduzidas. Esses restos não traduzidos constituem, ao mesmo tempo, o objeto fonte da pulsão - uma espécie de "ruído sexual" - e o Inconsciente, sistema onde esse ruído (representação de coisa) não cessa de tentar buscar inscrição (representação de palavra).

A questão da alteridade é retomada, de forma bastante fecunda, por alguns exegetas de Freud. Em Laplanche, por exemplo, o Inconsciente é produzido pela ação invasiva do adulto sobre um corpo. É a própria sexualidade inconsciente do adulto que constitui aquilo que Laplanche irá chamar de "mensagens enigmáticas" que terão que se traduzidas pelo bebê. Entretanto, isso implicaria pensar um "corpo" capaz de traduzir e, portanto, munido desde o início de uma propriedade ativa.

Ao tentar ultrapassar uma teoria do "autocentramento", Laplanche acaba retomando o que sua proposta pretendia criticar. Como pensar uma capacidade tradutiva que antecede a própria formação do Eu? Pressupor uma instância tradutora revela o caráter aporético da perspectiva laplancheana. Verbos como introjetar, projetar, forcluir e traduzir sugerem um centro de iniciativas incompatível com o período que antecede a formação de uma instância egoíca. Um empreendimento dessa ordem aproximaria o objeto da Psicanálise de uma prerrogativa metafísica: há algo que antecede a formação do Eu capaz de identificar-se a um determinado objeto.

Essa modesta apresentação pretende-se suficiente para diferenciar a noção de não-consciente (idéia abstrata), da descrição de um sistema que se organiza em torno de representações de coisa e palavra (conceito fundamental). Não um Nous, nem um sujeito transcendental que avalize essas operações psíquicas. Embora a explicação psicanalítica revele certas contradições, pelo menos da forma como a analisamos, seu projeto distingue-se amplamente de uma noção filosófica de não-consciente. Entretanto, essa distinção não encerra o debate. Ela o estabelece preservando a particularidade de um campo e do outro. Discursos que transpassam sem sobreposição, revelam a contribuição que um diálogo de gigantes pode produzir.

 

Referências

Assoun, P. L. (1978). Freud, a filosofia e os filósofos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1978.         [ Links ]

Carvalho, P. C. (2000). O problema da identificação em Freud. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1996). O Inconsciente (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. 14). (pp.165-217). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1915).         [ Links ]

Freud, S. (1981). Ma vie et la psychanalise (M. Bonaparte, Trad.) Paris: Gallimard.         [ Links ]

Garcia-Roza, L. A. (2003). Freud e o inconsciente (18a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Laplanche, J. (1988). A Pulsão de morte. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Raikovic, P. (1994). O sono dogmático de Freud: Kant, Schopenhauer, Freud. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Schopenhauer, A. (2001). O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

 

 

Recebido em 17 de novembro de 2004
Aceito em 07 de dezembro de 2005
Revisado em 20 de fevereiro de 2005

 

 

Notas

1 Serve dizer que, tendo em vista que nossa proposta, embora sistemática, é também introdutória, algumas referências caras ao tema serão preteridas. É o caso, por exemplo, das contribuições de Nietzsche sobre o tema. Entretanto, optamos por seguir, criteriosamente, o percurso feito por Raikovic: Plotino (Filosofia antiga), Espinosa e Pierre Nicole (Filosofia Racionalista) e finalmente, Kant e Schopenhauer (Filosofia moderna). A Filosofia romântica, sobretudo a alemã com seu Sturn und Drang, também poderia servir para ilustrar uma relação entre o tema e a investigação filosófica, entretanto, como já mencionamos, ficaremos com a seqüência de Pierre Raikovic dando ao leitor uma pequena amostra de nossa dificuldade, ao ousarmos falar de um tema tão amplo em tão poucas linhas.
2 Citação feita por Raikovic, sobre o livro Essais de morale, de P. Nicole.
3 Entenda-se por "motivos metodológicos" nossa dificuldade de resolver essa "aporia" neste momento. Torna-se necessário escolher entre uma tarefa e outra. Considerando que ambas demandam considerável aplicação, optamos por seguir aquela cuja qual já estamos envolvidos, qual seja: a noção de não-consciente em certos filósofos e o inconsciente (objeto de conhecimento) freudiano.
4 Em alemão Unterdrückung que em um sentido mais amplo, designa um tipo de operação psíquica que livra a consciência de conteúdos desagradáveis. Não é nosso mérito conjecturar problemas de tradução e, portanto, seguiremos a tradução da edição que utilizamos, colocando em notas como essa o termo em alemão.
5 Em algumas passagens, Freud atribui ao inconsciente essa propriedade o que nos leva a um problema lógico: como algo que não conhece a contradição pode fazer escolhas? Entretanto, o uso do termo parece ser mais uma dificuldade de lidar com a definição do conceito, do que um uso sistemático do mesmo.

Creative Commons License