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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.2 Fortaleza set. 2005

 

ARTIGOS

 

A escuta analítica no espaço público

 

 

Tania Coelho dos SantosI; Rachel Gomes Amin FreitasII

IPós-doutorado no Département de Psychanalyse de Paris VIII. Coordenadora do programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Coordenadora do Núcleo Séphora de Pesquisa/UFRJ. Membro da EBP escola filiada à Associação Muncial de Psicanálise Membro da Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental. End. R. Professor Júlio Lohman 430, Bairro do Joá. Rio de Janeiro CEP: 22611-170. e-mail: taniacs@openlink.com.br
IIPsicanalista. Membro Aderente da seção Rio de Janeiro da Escola Brasilera de Psicanálise Coordenadora do Projeto de Extensão do Nucleo Sephora: Diagnóstico e tratamento psicanalítico de menores em situação de risco social/Vara de Infância e Juventude de Terezópolis. End. Rua Yamat, 23, Cobertura 01, Aguões. Teresópolis, Rio de Janeiro CEP: 25963-000. e-mail: rachelamin@uol.com.br

 

 


RESUMO

Apresentamos uma comparação preliminar, baseada numa experiência analítica em prática privada e outra que se desenrola na Vara da Infãncia e da Juventude de Terezópolis sobre a função paterna, a linguagem pública e a língua privada. Refletimos sobre a incidência do significante paterno, no caso de dois adolescentes afetados por um sintoma homossexual. Esse significante tem o efeito de vincular a linguagem pública, as significações recebidas, e a linguagem privada. Colocamos em evidência a diferença entre os contextos sociais desses adolescentes.

Plavras-chave: função paterna, homossexualidade na adolescência, linguagem pública e privada, prática privada e em instituições.


ABSTRACT

We start by comparing the psychoanalytic experience as a private practice, and as an institutional practice. Than we considere the differences between the way a father, makes the link betwen public and private langage in two different cases. They are both teenagers that relate a homossexual symptom. They belong to very differents social contexts, and we try to describe the link betwen their public and private langage, as differents collectives experiences.

Keywords: father fonction, homossexuality in teen agers, public and private language, private and institucional practice.


 

 

Esse artigo é uma reflexão acerca da função paterna. Não se trata apenas de tematizar os efeitos do seu declínio na sexualidade e nos laços sociais, mas de comparar a incidência dessa função nos extratos sociais médios - ditos educados, habitantes do território legalizado da cidade1 - e na população que vive em comunidades marginalizadas, tais como as favelas. Também não oferecemos um estudo exaustivo, com dados estatísticos e uma amostra suficientemente ampla, à altura do problema proposto. Trata-se de um estudo preliminar baseado em algumas observações e comparações oriundas do exercício da psicanálise em prática privada, e da escuta analítica no espaço institucional. O princípio dessa elaboração é a distinção efetuada por Jacques Lacan em seu Seminário XX (1972-1973/1999), entre a maneira masculina e a maneira feminina de fazer suplência à inexistência da relação sexual. Datamos dessa época o início do chamado último ensino de Lacan, cujo eixo principal é a tese de que o inconsciente não é o real. O real é sem lei. Esta afirmação é a conseqüência da introdução da lógica do não-todo, como axioma da sexuação feminina. A sexuação masculina rege-se pela lógica do todo. O que é dominante neste caso é a estrutura edipiana, regida pelo princípio da exceção, isto é, pela função do Nome-do-Pai. O pai é sempre incerto porque é efeito da seguinte suposição: "há ao menos um fora da castração". Este princípio funda a lógica do todo, pois, correlativamente ao pai/exceção, todos os outros homens encontram-se submetidos à castração, ou à identificação ao ideal. Desse lado, o gozo é limitado pela função do Nome-do-Pai, é inconsciente e estrutura-se como a linguagem. Isso quer dizer que o sintoma é o retorno do recalcado, e é interpretável. O homem faz amor com seu inconsciente, isto é, com o objeto a do seu fantasma.

Do lado da sexuação feminina, diferentemente, não há exceção. Logo, não há regra, modelo, ou identificação a um ideal. É isso que Lacan quer dizer com a frase: "a mulher não existe". Só existem as mulheres, portanto, cada uma é uma. O gozo não é limitado pela identificação, é sem lei, é real. Não é interpretável porque o simbólico nesse terreno conecta-se diretamente com o real, sem passar pela redução ao objeto a do fantasma. O parceiro da mulher é Deus, o ilimitado do gozo.

A função do Nome do Pai é a de articular a linguagem da esfera pública - a das significações recebidas - à língua privada (lalangue) de cada um. Partimos do princípio de que é função do significante Nome-do-Pai, precisamente, engendrar essa articulação reduzindo o gozo ilimitado ao fantasma. O saldo da eficácia simbólica desse operador metafórico é o fantasma, prova da separação entre o sujeito ($) e o Outro (A) mas, também, o modo privilegiado de interseção entre um e Outro: (o objeto a).

O que a escuta psicanalítica na instituição ensina sobre isso à psicanálise em prática privada? Se a função do Nome do Pai é, para todo sujeito, a de limitar o gozo (que é ilimitado em sua estrutura) graças ao complexo de Édipo, precisamos distinguir o mais claramente possível como isso se faz em diferentes contextos sociais. Em nossa abordagem privilegiaremos a distinção entre os discursos que organizam a linguagem da esfera pública em dois contextos sociais em que operamos como psicanalistas: em prática privada com indivíduos dos extratos médios e em prática institucional com indivíduos que se servem da rede assistencial do estado.

Geralmente, pensamos na prática analítica como um modo regulado de emergência da esfera privada na esfera pública. Trata-se, entretanto, de um contrato privado entre psicanalista e analisando o qual, se instala e opera dentro da zona definida pelo exercício das profissões liberais. No interior dessa zona, dividimos com médicos, advogados, psicólogos e psicoterapeutas a obediência ao princípio de que nossos clientes têm direito ao segredo. Quanto à demanda, somos procurados, não oferecemos nossa escuta diretamente a ninguém. Fomos formados na tradição freudiana, e a releitura de Lacan reforçou a importância do complexo de Édipo, do Nome do Pai, como o princípio a partir do qual toda posição subjetiva se ordena. Entretanto, os movimentos sociais que culminaram em maio de 1968 reduziram muito o poder explicativo da metáfora paterna. A liberação da sexualidade e a emancipação da mulher afrouxaram a coercitividade dos vínculos familiares e reduziram a importãncia do pai de família e das identificações ("significações recebidas") que lhe competia transmitir. Produziram esse fenômeno da linguagem pública que é o psicologismo: um novo eidos, ethos e dialeto da cultura psi2.

Há um afinidade muito grande entre a cultura psi e o modo como se organiza a linguagem pública e privada nos extratos médios e altos, ditos educados. Essa linguagem desvaloriza a diferença sexual e geracional. Não reconhece ninguém como significante da exceção, ou o ideal do eu. Supõe que todos são indivíduos, cada um é um e ninguém pode restringir ou limitar a liberdade do outro. A autoridade paterna se oculta sob o fundo de uma intensa atividade denegatória. Sem ser ausente, ela não é legítima. A identificação ao ideal do eu não assegura mais, legítimamente, a limitação do gozo.

Em nossa prática, na Vara de Infância de Juventude de Terezópolis, temos enfrentado nossa imensa ignorância a respeito de como se organiza a esfera pública, a linguagem pública e as "significações recebidas" das populações que vivem nas, assim chamadas, comunidades marginalizadas. Passamos a definir o que considero ser uma comunidade desse tipo para não despertar em nossos leitores o sentimento de que somos preconceituosas. São habitantes de um território à margem da legalidade - geralmente terrenos invadidos, onde não há saneamento básico, onde a luz provém de "gatos" furtados da rede pública — onde a presença do Estado de direito em suas vidas compete com o poder dos traficantes de droga. São trabalhadores do mercado informal: camelôs, flanelinhas, biscateiros. A rede de ensino é pública. A medicina é questão de saúde pública. Os problemas de ajustamento das crianças e adolescentes são da alçada do Ministério Público, da Vara da Infãncia e da Juventude. Nossa presença também faz parte desse espaço institucionalizado demarcado pelo significante "público".

A demanda que nos é encaminhada não é nem mesmo a dos sujeitos que serão ouvidos. Somente na medida em que crianças adolescentes são encaminhadas à Vara da Infância e da Juventude, na condição de vítimas ou de praticantes de atos infracionais, é que nos oferecemos para escutá-los. Essas crianças e jovens não têm exatamente aquilo que os extratos médios definem como família, e sim próximos. Dizemos seus próximos porque, a noção de família nuclear que até recentemente era o modo de organização típico dos extratos médios e altos da população brasileira, não é de modo algum uma estrutura constante nesse grupo social. O leitor dirá que também a família nuclear típica vem se transformando na civilização do objeto a . Sem dúvida, os laços familiares hoje flutuam muito mais ao sabor das pulsões. É uma tentação enorme aproximar a frouxidão dos vínculos de uma e de outra camada da população mas, como veremos, a semelhança aqui é mera coincidência.

Se as comunidades faveladas têm uma relação com a civilização do objeto a é porque os indivíduos, na medida em que estão relativamente fora do que se define como o "contrato moderno dos direitos e deveres", nem por isso deixam de participar de algum modo da sociedade de consumo. Nosso esforço tem sido o de formalizar os aspectos mais importantes da cultura e do laço social nas comunidades marginalizadas de modo a compreender como se organizam as relações entre pais, filhos, avós, tios e vizinhos. Podemos dizer, grosso modo, que o axioma: "o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência", só de modo muito precário pode servir de orientação na psicanálise aplicada. A religião, muito mais que a ciência, é o discurso que estrutura o funcionamento dos indivíduos e do laço social. Por isso mesmo, eles não são exatamente indivíduos. A noção de responsabilidade pessoal é fraca. A grande indiferenciação do indivíduo no grupo social quase nos autoriza a falar de uma responsabilidade e de uma irresponsabilidade coletivizada. Por essa razão, sempre que somos chamados a buscar uma solução em casos de abandono, abuso, atos infracionais - que não se resolvem com a aplicação pura e simples de uma sanção legal -, nosso ponto de dificuldade é encontrar um sujeito dividido. Pela mesma razão, não podemos qualificar os indivíduos envolvidos com a justiça de psicóticos. A posição psicótica, nessas comunidades, é antes um fato de discurso coletivo, e não um acidente de uma dada constituição subjetiva. O discurso da ciência comanda que: "todo homem nasce livre e igual". O que ele foraclui é a relação de sujeição de cada homem ao significante paterno que é sempre particular, o Nome-do-Pai. A essa dependência do sujeito com respeito ao significante paterno devemos a instalação da fantasia, do monólogo interior, em que circula a fruição com o objeto do gozo rejeitado pela universalização dos direitos do homem. Somente nessas condições, podemos falar com propriedade e conhecimento de causa em sujeito dividido, e em responsabilidade pelo seu sintoma, e pelo seu gozo. Dizendo isso não pretendemos estigmatizar a população que vive nas favelas, e sim ressaltar o despreparo do psicanalista para operar junto a ela.

As comunidades a que nos referimos não se representam como partícipes de um contrato social em que seriam sujeitos de direitos e deveres, em igualdade de condições com outros sujeitos. Muito pelo contrário, acreditam que devem ser tratados como exceção a essa regra. Acreditam que são profundamente desamparados, e a origem dessa crença precisa ser melhor investigada. Pensamos que uma das razões desse estado de coisas é que o universo simbólico em que se encontram mergulhados é ainda religioso e, como descrevia Louis Dumont3, a religião com seu dossel de símbolos, é um discurso que abarca todas as esferas e dá-lhes sentido. Trata-se de uma área em que o sujeito não é sujeito da ciência, ele é um filho de Deus. O outro aspecto importante é a experiência da exclusão do mercado formal de trabalho e de vários outros indicadores, já mencionados anteriormente, de inclusão na sociedade legalizada.

O homem moderno, que se constituiu graças ao advento da ciência, organizava sua vida sexual e seu trabalho a partir da lógica do recalque das pulsões. A clínica freudiana revelou que a doença nervosa moderna tinha origem na moral sexual civilizada. Desde os movimentos de maio de 1968, sob a denegação do Nome-do-Pai, esses sujeitos experimentam a crise de toda autoridade legítima, o declínio do Nome-do-Pai e mergulham na sociedade dos contratos intersubjetivos4, esvaziados dos poderes régios de Estado.

Os habitantes das comunidades marginalizadas se representam, em seu profundo desamparo, como dependentes da providência divina. Por isso, o tempo da vida não se ordena pela lógica do recalque: da acumulação, do projeto, do planejamento do futuro. Eles vivem ao Deus dará. A vida é puro desperdício, e toda tentativa de regular a pobreza pela via da assistência social fracassa, pois em geral engendra uma nova dívida social. A noção de responsabilidade pessoal é muito limitada, pois o grande eixo ordenador da vida é a esperança na caridade de Deus, ou do Estado. Deste último, sentem-se ainda mais credores na exata medida em que se tornam pais. Esse é um aspecto do engendramento da pobreza no Brasil que merece uma consideração muito atenta. Ter um filho é adquirir um título de crédito, um direito à assistência do Estado, da vizinhança, dos próprios pais, e até de Deus. Pensamos que as condutas infracionais, abusos e abandonos de crianças que proliferam de modo muito mais acentuado nos grupos marginalizados obedecem à lógica de reivindicação de um direito à assistência e, dificilmente, podem converter-se em um dever de responsabilizar-se pelo seu gozo. Precisamos entender melhor o estatuto da criança num e noutro grupo social, pois essa diferença é fundamental no que se refere ao estatuto do sujeito. Nos extratos sociais médios, a criança pertence à sua família, que tem o dever de alimentá-la, vesti-la, educá-la e de cuidar de sua saúde com seus recursos próprios. As estatísticas comprovam a tendência à queda na taxa de natalidade e o aumento impressionante da idade média da primeira gravidez. Em contrapartida temos uma enorme quantidade de crianças que nascem de uma mesma mãe pobre, assim como o fato de que a idade média da primeira gravidez é, entre elas, sempre decrescente. Essas crianças são automaticamente consideradas filhos e filhas da providência estatal. Isso é muito inquietante no que concerne ao seu estatuto como sujeito. É o que nos esforçamos para captar, de modo muito incipiente, nos casos clínicos que se seguem.

Esboçamos uma breve comparação entre dois casos de homossexualidade no início da adolescência. Trata-se de Bonifácio, um menino da periferia de Terezópolis, e Manuela, uma típica "garota de Ipanema". Tomamos como eixo da comparação o significante do Nome-do-Pai, num e noutro caso. Apresentamos o contraste entre um pai corno e outro mulherengo. Destacamos a diferença entre a posição subjetiva de um e de outro, relacionando-a a dois pontos:

1) os efeitos na sexualidade do significante paterno;

2) a particularidade da linguagem pública - em suas relações eletivas com a ciência ou a religião — enquanto contexto social em que circula este significante.

Os dois casos misturam elementos de vários casos diferentes e não correspondem a nenhum analisando real.

Bonifácio:

Esse menino está sob o cuidado do juizado desde os 8 anos de idade. O pai adotivo pediu "Providências" ao Juizado por recomendação das escolas por onde o menino passou. Nelas, essa criança fez atentados violentos contra as professoras. Foi expulso de três delas. Durante uma entrevista, o pai adotivo declara que o menino, hoje com 13 anos, é homossexual. Relata que ele esteve internado numa instituição para menores, mas foi retirado de lá porque aconteceram episódios sexuais com os outros meninos. O pai adotivo não considera que o fato de o menino ser homossexual seja um problema, o que o aborrece é o fato de ele não trabalhar, de não estar estudando e de ter sido expulso de mais uma escola.

O menino fica calado durante a entrevista e só se mostra constrangido quando o pai expõe sua vida sexual. Ele banaliza os atos infracionais que cometeu, e mantém um ar de deboche diante da ação judicial. Ele não deve nada! Nunca!

A história de vida dessa criança é muito instrutiva acerca do funcionamento dos laços sociais nas comunidades marginalizadas. Ele nasceu no início de dezembro. Sua mãe passou o révéillon na casa de seus vizinhos. O pai adotivo conta que ela desejava ir às comemorações na cidade, e não tinha com quem deixar seu bebê. Numa roda de vizinhos, ela diz que vai dar uma mamadeira de champagne para o bebê dormir. O pai adotivo, que casualmente estava na roda, disse a ela que não fizesse isso. Ela respondeu então: - "fica com ele para você". Foi dessa forma que Bonifácio foi adotado por esse homem. Assim, essa mulher abandonou um bebê e nunca mais voltou para buscá-lo. A família adotiva compunha-se do homem, sua mulher e uma filha. A mãe adotiva tinha muitas relações extraconjugais, o que redundou na separação do casal. Quando ela se foi, levou Bonifácio e a filha mais velha. Bonifácio relata ter testemunhado muitas dessas conquistas amorosas da mãe. Certa vez, quando ele tinha 5 anos, sua mãe adotiva levou um cara que encontrou na rua para casa. Colocou Bonifácio para ver um filme, aumentou o volume, mas ele escutou, se deu conta do que acontecia entre eles e, por isso, adentrou o quarto da mãe expulsando o intruso a sapatadas de lá. Em seguida ela se torna amante de um traficante e, ameaçada de morte, devolve Bonifácio ao pai adotivo. É dessa forma que Bonifácio vai viver com o pai adotivo que agora já tem outra companheira. Quanto ao menino, esta é sua terceira "mãe". Seus atos infracionais têm início depois do seu segundo abandono pela segunda mãe.

Bonifácio foi entrevistado juntamente com seu pai adotivo. Ao final desta primeira entrevista, quando perguntado se ele queria vir, ele respondeu que sim. Durante essa entrevista ele só se refere à analista como "tia". Ela lhe diz que não é sua tia. Ele pede o tempo todo que ela se coloque em seu lugar para que possa entender os motivos para tanta transgressão, ao que ela se nega. Ele acha que ela é démodée porque não ratifica nem suas escolhas sexuais, nem os hábitos que decorrem disso, tais como freqüentar boates gay. Escutamos seu relato numa posição de estranhamento e incompreensão diante de tudo que ele lhe relata.

Num dado momento, ele narra que espera do pai adotivo um tênis que custa duzentos reais. Quando lhe perguntamos: quanto ganha seu pai?, ele não sabe responder. Pedimos-lhes que se informasse sobre isso Na sessão seguinte, ele diz que o pai ganha quatrocentos e cinqüenta reais. Para ele não há nenhum tipo de inadequação entre o preço do tênis que ele deseja e o valor do salário de seu pai. Estranhamos essa atitude. Então, vemos desvelar-se a lógica de sua reivindicação. Bonifácio se considera credor de seu pai adotivo. Seus atos exprimem a reivindicação de um direito a ser tratado como uma exceção. Veremos mais adiante que todos que o cercam contraíram com ele uma dívida em conseqüência do abandono subseqüente ao seu nascimento. Primeiramente, ele justifica suas exigências dizendo que poderia ter tido muito dinheiro e que só não foi traficante porque não quis. A analista lhe pergunta: Você não quis? ou foi seu pai adotivo que não quis isso para você?

Essa intervenção introduz a dívida paterna e marca o início de uma nova série de falas. Na sessão seguinte, ele narra um enorme desconforto no corpo, não sabe o que lhe acontece. Pediu à sua amiga que o acompanhasse porque está muito mal. Ele diz que roupa que veio hoje à entrevista não é habitual. A camisa que ele está vestindo, explica, não é a que usa normalmente, ela tem cor sim e cor não. - Cornão?, exclama a analista! Foi esse o problema de sua mãe, o motivo pelo qual ela deixou seu pai.

Essa intervenção desencadeia outra série de associações, e ele começa a falar da revolta por ter sido deixado pelas duas mães. Quanto a primeira, ele não quer noticias. No que diz respeito à segunda, ele se ressente demais por ela tê-lo abandonado dessa forma, por causa de homens. Ele narra que não acredita nas mulheres, por isso não fica com elas. Ele diz: "as mulheres, elas sempre "corneiam" os homens". O pai é corno. A singularidade da revolta desse menino contrasta com a enorme tolerãncia do seu grupo social com a errância sexual das mulheres. Esse comportamento feminino se repete em muitos outros casos, e o caso mais comum é que uma mulher tenha muitos filhos de vários homens diferentes. Os homens, por outro lado, têm geralmente a bebida como parceira.

 

Manuela

Ela tem quinze anos e, segundo sua mãe, anda namorando com meninas. A mãe se incomoda muito com isso. Os pais são separados desde que Manuela, a filha mais velha, tinha 4 anos. Mulherengo, o romance de seu pai com uma amiga da família foi a gota d'água que levou esse casamento a separação. Perguntamos ao pai, durante uma entrevista preliminar, o que é que ele pensava do comportamento de sua filha. Ele responde evasivamente, e procura minimizar a importãncia desse fato, atribuindo-o ao "ar dos tempos". A juventude hoje é assim, ele justifica. Foi preciso lhe dizer que: - sendo assim, eu não vejo nenhuma razão para aceitar sua filha em análise. Ele mostra então alguma inquietação.

Manuela, inicialmente, apresenta uma série de justificativas para suas escolhas sexuais. Diz que lhe é indiferente, tanto pode gostar de meninos quanto de meninas. Mas a relação com as meninas é muito mais verdadeira. Apaixonada por uma cantora , oscila entre o enamoramento e a admiração. A cantora tem exatamente o dobro de sua idade. Essa diferença lhe recorda o recente recasamento de seu pai, um homem de 65 anos, com uma moça de 35. Essa relação a escandaliza! Mas lhe é impossível circunscrever seu repúdio à enorme diferença etária. Como isso não existe mais no discurso coletivo, pois na linguagem pública das classes média e alta as diferenças geracionais não significam grande coisa, só lhe resta dizer que a moça é interesseira e só está com seu pai pelo dinheiro dele.

Confrontada pela analista com a evidente coincidência temporal entre o começo de suas relações com meninas e o recasamento de seu pai, ela faz um ar de incredulidade cúmplice. Ah! Que poder tem o famoso Freud explica! Como são sensíveis esses sujeitos à lógica do inconsciente!. Isso é explicável também. Seu discurso psi é solidamente alicerçado. Manuela também não tem culpa de nada. Tudo é natural. Nada é recriminável. Tudo é permitido, nada é proibido! Entretanto, o apontamento da coincidência temporal, o laço lógico entre esses dois eventos a sensibilizam. Demorou muito a concluir que tem horror de ficar malfalada. Os meninos contam suas aventuras amorosas uns para os outros. As meninas não. Que surpresa! Em tempos de liberação do tabu da virgindade, a prática homossexual entre meninas preserva a reputação da moça! Ela pergunta à sua analista se conhece o ditado: - enquanto não acho a pessoa certa, ando com a errada.

Não tem culpa, mas tem pudor. Tem vergonha porque seu pai está sendo enganado por uma mulher ambiciosa, que não o ama de verdade. Tem vergonha de que os rapazes com quem "ficou" comentem sobre isso entre eles. Seu pai é um "mulherengo" e sua mãe é que foi a "corna". Ela não é vítima de nada. Nem a separação dos pais, nem o recasamento da mãe com outro homem, nem o recasamento de seu pai com uma mulher descaradamente mais jovem lhe dizem respeito. Nada disso a envergonha, e ninguém lhe deve nada. Assim, ela também acha que pode fazer de sua vida sexual o que quiser. Ninguém tem nada com isso. Contra o direito ao segredo, reivindica o amplo direito à franqueza. Quer falar abertamente de seus casos com sua mãe. Acha que ela também tem a obrigação de aceitar tudo. Ela não representa seu comportamento homossexual como a expressão de um direito de ser tratada como exceção. Leva a sério o discurso da ciência. Liberdade, igualdade e fraternidade! Todos iguais perante a lei, pois nada é proibido, ela acredita sinceramente que tudo é permitido. Toda a dificuldade do analista, nessa cultura psi, é a de sustentar o contrário: que quando nada é proibido, então nada é permitido!

 

Referências

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Recebido em 20 de março de 2005
Aceito em 11 de abril de 2005
Revisado em 20 de junho de 2005

 

 

Notas

1 Nas comunidades faveladas esse território é conhecido como "o asfalto".
2 Coelho dos Santos, T. (2001) Quem precisa de análise hoje? Bertrand Brasil, SP, capítulo V
3 Dumont, L. (1992). Ensaios sobre o individualismo: uma perspectiva antropológica sobre a ideologia moderna. Lisboa: Don Quixote. (Originalmente publicado em 1893).
4 Miller, J . A . et Milner, J. C. Évaluation, Ed. Agalma, Paris, 2004

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