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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.2 Fortaleza set. 2005

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Henrique Figueiredo Carneiro

Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza. henrique@unifor.br

 

 

Nelly Schnaith
La muerte sin escena
Buenos Aires: Leviatán, 2005. 78 p.

Conheci Nelly Schnaith em Las heridas de Narciso — ensayos sobre el descentramiento del sujeto, publicado, em 1990, pela Catálogos Editora: Buenos Aires. A partir desta obra, acompanho sua lógica de construção sobre o que ela chama de deslocamento da subjetividade que se situa entre: a identidade e a normatividade, as palavras e a expressão, a sublimação e o seu oposto, seguindo o que nos diz Guillermina G. Camusso, quando faz um resumo desta obra. Por este motivo, penso que esta obra deveria ser de obrigatória leitura para que o leitor pudesse avançar um pouco mais na tarefa de compreensão de La muerte sin escena, real objeto desta resenha.

Da essência que pude extrair ainda de Las heridas de Narciso, depreendi que estava diante de uma excelente contribuição para os temas polêmicos da nossa época, sobretudo quando autores como Richard Sennet, Christopher Lasch e Gilles Lipovetsky — para citar os mais destacados -abrumam o mundo com produções sobre a Cultura do Narcisismo, trazendo à cena nada menos que o nosso velho Narciso que de tão belo não envelhece, formando assim o espectro do paradigma perfeito para a inspiração de todas as patologias do eu e as conseqüentes passagens ao ato tema de tanto interesse para as contribuições que a psicanálise está convocada a comentar como algo que possa servir de contraponto à reprodução de uma nova teia de cristal sobre a essência dos reclamos do sujeito que sofre e que pede por uma intervenção que o faça de novo estar no reino da incompletude.

Uma excelente contribuição, porque as Feridas de Narciso é um tema que interessa à psicanálise e a toda humanidade, sempre que o saber instituído é questionado e as paranóias do eu afloram de forma incomensurável. Nos ensaios sobre o descentramento do sujeito, o que se realça logo no prefácio é a referência de que o discurso serve como mediação entre o pensamento e o objeto. E nada mais sugestivo do que esta intervenção exposta na obra de Nelly, para abrirmos um universo de construções em torno do sofrimento humano que se deixa atravessar hoje pela maquinação da tecnociência e que impõe ao homem uma condição de existir pautada no consumo. A autora trabalha essa lógica mediante discussões sobre a nova tecnologia da imagem, no capítulo reservado à discussão entre o realismo e a realidade. Outras questões passeiam na imbricação do texto de Nelly para trazer à superfície pontos que facilmente se escondem nas entrelinhas da estética e da ética.

Entretanto, é no segundo capítulo das Feridas de Narciso que a autora vai colocar o acento no que resta do sujeito na trama formada entre a identidade e a cultura. Mostra que o sujeito fica interposto entre as palavras e a expressão e sai em busca da recuperação do Eros perdido e se emaranha nas patologias da felicidade, fazendo com isso valer o nome da obra, isto é a ferida gerada pelo desencantamento do sujeito diante do vislumbramento, que é a imagem como captura da existência.

Feita esta apresentação da autora, que creio não ser muito conhecida nos meios acadêmicos brasileiros, podemos perguntar sobre o que nos mostra Nelly em sua obra La Muerte sin escena. Uma leitura que faço em função da seqüência do exposto na apresentação e fundamentando ainda nas pesquisas que desenvolvo no Laboratório sobre as Novas Formas de Inscrição do Objeto — LABIO, na Universidade de Fortaleza, é a de que esta obra traz uma importante contribuição do campo da filosofia para a referência sobre o estatuto da violência desvairada a que assistimos hoje como uma espécie de escalada sem barreiras simbólicas capazes de estancar a irrupção constante do real, como entendemos em Psicanálise.

O fio condutor da obra é o esforço ocidental em significar a morte e que aparece no exercício inesgotável da construção de uma razão inteligível que seja sustentada pelo campo da estética, pelas amarrações do campo das idéias, e pelo edifício consistente de um discurso, enfim, através de todos os dispositivos que a cultura humana foi capaz de sustentar para explicar a cena da morte. O desafio que a morte traz à humanidade sempre foi a existência de um saber sobre como representá-la ou domesticá-la, sobretudo, quando assistimos pasmos a uma efusiva ode coletiva à violência, em que a morte passa por um crivo da deserotização. Como vemos, La muerte sin escena segue os caminhos que relatamos em Las heridas de Narciso, quando Nelly faz uma análise extensiva daquilo que ela recortou nos gradientes que resistem ao deslocamento da subjetividade, situados entre: a identidade e a normatividade, as palavras e a expressão, a sublimação e o seu oposto.

A resposta à domesticação da morte, Schnaith vai tecendo pouco a pouco em um fio que resgata de Sócrates a Deleuze e de Cristo ao cristianismo, através do sentido ou da desrazão da morte revestida com o glamour da representação, até chegar ao que resta pela constatação do inefável. E o tom mais grave que é dada a esta construção é mesmo a falta de sentido da morte no presente, quando não se encontram instrumentos sensíveis ao horror do genocídio e da morte anônima. Trata-se, enfim, do esvaziamento da representação da morte, que a autora demonstra em um giro magistral até culminar na conclusão da própria morte da representação.

Da morte de Sócrates no Fédon extrai uma construção que desmonta tantas leituras realizadas para emoldurar a falência de um corpo que reclama pela palavra uma imortalidade da alma. Destaca que foram necessários vinte e cinco séculos para que se pudesse tocar este desencanto criado na obra platônica do Fédon. A morte fica, afinal, desnudada, sem palavras que a recubram, sem metáforas que superponham um elegante sentido à cicuta que Sócrates ingeriu sobre o horror do perecimento. A morte fica, enfim, sem Eros possível, pois fica sem palavras que a sustente. Como um fim último de atualização desta morte da representação faz um enlace com o suicídio de Deleuze. Enquanto Sócrates superpôs a palavra sobre a morte, Deleuze simplesmente apresenta um grito primitivo e indicador do estado anterior ao atravessamento da palavra no corpo do vivente. Simplesmente não há palavras que recubram esta angústia.

O que destaca Nelly na morte de Sócrates é que ele, depois de ingerir a cicuta " (...), falou até o umbral da morte (p. 30). Com esta constatação, como não dar ênfase a Michel Serres ao dizer que a razão e a palavra foram a droga que, indiscutivelmente, causou a maior seqüela conhecida sobre o Ocidente? E isso reanima a impressão de que Sócrates vivia em um mundo falado em detrimento de um mundo sentido.

Em contraposição, o suicídio de Deleuze, que aos seus 70 anos se lança de uma janela, faz com que a autora investigue a morte pelo grito. Exatamente porque nesse ato reside o paradoxo da morte de Sócrates, diante da representação idealizada de uma tranqüila imortalidade. A constatação da morte pelo grito simplesmente nos choca, porque estamos acostumados a assistir a morte revestida de logos. Na morte deleuziana o que resta é o tom primitivo de um grito e nada mais. Este contraste é interessante quando a autora traça uma linha de extirpação da moldura da morte no ocidente. Da morte recheada de palavras à morte sem representação que um grito pode conter, é este o desfecho de uma morte sem cena que não comporta as especulações de discípulos ávidos por uma palavra ou por um sentido diante do enquadre da maestria de um Sócrates que recobre a falência dos órgãos.

Daí então à morte de Cristo como símbolo do cristianismo chega a análise de Nelly, mediante a representação encarnada de um ícone que desfila na tradição escultórica e pictórica ocidental. Da morte à representação do escárnio, do humano ao divino ato da ressurreição, a morte de Cristo serve aos cristãos como uma tentativa de trabalho árduo da representação que sai do mundo antigo e atravessa a idade média com inúmeras tentativas de captura de um sofrimento que seja adaptável à sensação de leveza, através do sublime ato de representar do artista.

Depois de discutir estas bases inquestionáveis da representação ocidental da morte, Nelly entra na tese principal de sua obra: a morte da representação hoje.

Esta análise é realizada pela autora mediante a leitura de obras cinematográficas (A história oficial, A lista de Schindler, Extermínio). Em todas, fica patente a função de mostrar a morte mediante corpos em sofrimento desfechados pela tortura, pela violência ou por catástrofes coletivas. Com isso o que nos diz Nelly é que o espectador fica conclamado à banalização da morte, pela anestesia que o atravessa, pela frieza que o faz assistir a estas cenas colocadas no cotidiano de uma sala de jantar ou de um home theather. Não há palavras diante desse ato cinematográfico, há uma banal contemplação. Como também não há como se refletir sobre corpos dilacerados, pois passaram a ser encontros com o cotidiano.

Concluo esta resenha com uma passagem de Nelly Schnaith em que presentifica essa letargia que indica a morte da representação:

Que tipo de discurso — verbal ou icônico, narrativo ou teatral — pode produzir uma 'transformação interior' que sensibilize o espectador para a recepção deste tema terrível: a morte anônima, a morte sem cena? Tem que se tentar / inventar outra forma que represente o que não se pode representar. (p.53-54).

 

 

Recebido em 18 de novembro de 2003
Aceito em 10 de dezembro de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2003

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