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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.1 Fortaleza mar. 2006

 

ARTIGOS

 

Do mal-estar da existência ao biologismo das relações

 

 

Cristiane Holanda QueirozI; Clara Virgínia de Queiroz PinheiroII

IPsicologa. Mestre em Psicologia pela UNIFOR. End.: R. Andrade Furtado, 1399. Apto. 201. Bairro Cocó. CEP: 60190-070. Fortaleza-CE. E-mail: cris_agave@hotmail.com
IIProfessora do Curso de Mestrado em Psicologia da UNIFOR. Doutora em Saúde Coletiva do IMS pela UERJ. End.: Av. Washington Soares, 1321. Bairro Edson Queiroz. CEP: 60811-905. Fortaleza-CE. E-mail: claravirginia@unifor.br

 

 


RESUMO

Com a crescente difusão do discurso científico-tecnológico no âmbito social, buscando ultrapassar os limites da experiência humana através da manipulação da vida em sua realidade biológica, podemos observar a constituição de novas maneiras de se conceber a nossa noção de humanidade. Tal concepção, que vem sendo forjada nas últimas décadas, encontra-se em contraposição à psicanálise a partir de dois aspectos aqui recortados, a saber, a disseminação da teoria desenvolvida por Sigmund Freud como um dos pensamentos mais relevantes e mais influentes para a formação das subjetividades modernas; e, principalmente, a noção de que a condição subjetiva só pode existir em função de restrições pulsionais que, por sua vez, geram um mal-estar impossível de ser debelado pelo sujeito. Tendo em vista, pois, a distinção entre a forma como a experiência humana se situa para a psicanálise e para as tecnologias biomédicas, propusemo-nos, neste texto, a delinear tais diferenças, utilizando como fio condutor uma obra ficcional, o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Inicialmente, determinamos o que fundamenta a existência do sujeito em Freud e, em seguida, comentamos as visões prospectivas referentes a uma maior inserção das "tecnociências" na vida das pessoas, estabelecendo quais as repercussões possíveis que esta inserção pode trazer.

Palavras-chave: discurso científico-tecnológico, psicanálise, mal-estar, felicidade e literatura.


ABSTRACT

With the increasing diffusion of the scientific-technological discourse in the social ambit, searching to exceed the limits of the human experience through the manipulation of life in its biological reality, we can observe the constitution of new ways of conceiving our notion of humanity. Such conception, that has been forged in the last decades, is a contraposition to psychoanalysis from two aspects defined here, which are the dissemination of the theory developed by Sigmund Freud as one of the most relevant and most influential thoughts for the formation of modern subjectivities; and, mainly, the notion that the subjective condition can only exist in function of drive restrictions that, in turn, generate a discontent impossible to be overcome by the subject. Therefore, having in mind the distinction between how the human experience is established by the psychoanalysis and by the biomedical technologies, we considered, in this text, to delineate such differences using as a guide the fictional book Brave New World, by Aldous Huxley. Initially, we determined the bases of the subject existence on Freud's theory and, after that, we commented the prospective visions referring to the larger insertion of the "technosciences" in people's lives, establishing which repercussions that insertion can bring.

Keywords: scientific-technological discourse, psychoanalysis, discontent, happiness and literature.


 

 

Introdução

Para Mustafá Mond, um dos Dez Administradores Mundiais, a droga perfeita caracteriza-se pelos efeitos de ser "eufórico, narcótico [e] agradavelmente alucinatório" (Huxley, 1985, p. 52) para aqueles que a utilizam. Essa "perfeição química" atua no organismo eliminando qualquer indício de infelicidade, impondo, de maneira eficiente, uma barreira ao seu surgimento. Assim, não há espaço para incertezas, desencontros ou sofrimentos. Finalmente, a dor existencial tem a oportunidade de ser curada através da soma, a rápida e efetiva "droga da felicidade". Mas se houver preferência por mecanismos menos invasivos, pode-se recorrer a uma visita ao "Cinema Sensível", por exemplo, cujas narrativas simplistas e banais são superadas pelo incremento das sensações, que são transpostas dos filmes para os espectadores, reproduzindo o prazer em cenas de sexo ou a tensão gerada por situações de perigo em cenas de perseguição.

Essa felicidade possível evocada pelo Administrador Mundial encontra-se no romance Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley em 1932. Tomando como referência uma sociedade futurista completamente dominada pela racionalidade científico-tecnológica, Huxley traça um interessante panorama sobre a existência humana em todos os seus âmbitos - felicidade, sofrimento, amor, nascimento, morte -, a partir, justamente, das vivências desses homens que se vêem imersos num mundo absurdamente dominado por um gigantesco aparato institucional, que se sustenta em função de uma pretensa estabilidade das relações sociais. A fim de conquistar esse "mundo admirável", portanto, foi preciso obter o controle da fecundação e do desenvolvimento de embriões, criando indivíduos aprisionados a um rígido sistema de castas determinado pela biologia; e influenciar no comportamento de cada um a partir de processos de condicionamento em massa, para que todos só ajam da maneira que o Estado assim o desejar. A família, a religião e a educação estavam, pois, abolidas enquanto referências possíveis para tais pessoas. Daí a visão sombria de Mond sobre o passado:

Mãe, monogamia, romantismo. (...) Seu mundo não lhes permitia aceitar as coisas naturalmente, não os deixava ser sãos de espírito, virtuosos, felizes. Com suas mães e seus amantes; com suas proibições, para os quais não estavam condicionados; (...) com todas as suas doenças e intermináveis dores que os isolavam; (...) eram forçados a sentir as coisas intensamente. E, sentindo-as intensamente (...), como poderiam ter estabilidade? (Huxley 1985, p. 38).

Ainda que não estejamos vivendo em Estados ditatoriais "tecnocientíficos" como em Admirável Mundo Novo, percebe-se que a ficção criada pelo escritor inglês tem tido uma forte ressonância com o momento que estamos atravessando, especialmente quando levamos em consideração a forma como estamos lidando com os avanços científicos e tecnológicos que vêm se estabelecendo, gerando quimeras fabulosas que tomam corações e mentes, subvertendo a nossa visão de mundo e o sentido que tínhamos, até então, sobre o que é a experiência humana. Assim, novos modos de ser estão sendo forjados e rapidamente consolidados. Tal consolidação está se imprimindo na vida em sua realidade biológica, transmutando o corpo em coisa, em um objeto passível de ser alterado por meio da sofisticação da tecnologia biomédica, tornando-o, assim, o maior depositário das nossas exigências de felicidade.

Mas, como nos chama a atenção Sigmund Freud (1930/1996a) em O Mal-Estar na Civilização - e, portanto, contemporâneo de Admirável Mundo Novo -, há uma parcela inconquistável "de nossa própria constituição psíquica" (p. 93) que reafirma, de maneira constante, o quanto o sofrimento do sujeito lhe é inerente e, portanto, inextingüível. Entretanto, o psiquismo, sempre associado à falta e ao conflito, não é a única fonte de nosso sofrer. Temos, também, as dolorosas relações com os outros, sempre atravessadas pelo amor e o ódio; e as inconstantes forças da natureza, que insistem em nos afetar através de catástrofes naturais e da inexorável finitude dos corpos.

O sujeito freudiano, com suas incomodidades causadas pela inevitabilidade da vida comunal, pode ser pensado como evanescente no romance de Huxley. As relações em Admirável Mundo Novo são determinadas por uma perenidade assombrosa. O outro não pode ser um fator de novidade, de diferença, ou até de estranhamento, pois tudo já é previamente sabido em virtude das características inerentes à casta a que se pertence. E as relações dentro de uma mesma casta também não são mais compensadoras, pois não se admite qualquer vínculo afetivo mais aprofundado, haja vista a extinção da família e da monogamia, limitando-se, pois, a encontros de natureza sexual com vários parceiros. Afinal de contas, uma sexualidade livre de qualquer impedimento traz um grande acréscimo de felicidade e reduz as instabilidades trazidas pelo apaixonamento. Só se pode existir, então, enquanto uma peça funcional da máquina coletiva. Assim, a experiência subjetiva torna-se obliterada ou, pelo menos, indefinida. E é nesse aspecto da relação com o outro, e de todas as vicissitudes que lhe acometem, que temos a concepção psicanalítica de interdição à sexualidade e à agressividade como essenciais para os enlaçamentos sociais.

Em Freud, a subjetividade irá se definir, necessariamente, na relação com o outro, por meio da interdição ao prazer total, miticamente creditado ao sexo e à violência libertos de quaisquer restrições. Dessa forma, a condição humana passa a ser regida por uma ordem além da biológica, uma ordem fundamentada pelo desejo e pela pulsão, em um estado de permanente impossibilidade para encontrar uma satisfação absoluta ou, em última instância, para encontrar o fim das angústias relacionadas ao existir. A partir de tais perspectivas, a psicanálise, enquanto um marco para o pensamento moderno, posiciona-se como uma voz dissonante em meio às concepções que têm sustentado essa marcha incessante da humanidade em direção à busca pelo bem-estar. E esse pretenso apaziguamento do mal-estar vem sendo considerado como cada vez mais viável pelas "tecnociências", ainda que muito daquilo que é apregoado restrinja-se ao campo do ficcional.

Tendo em vista, pois, a distinção entre a forma como a experiência humana se situa para a psicanálise e para o conhecimento científico-tecnológico na atualidade, conhecimento este respaldado, curiosamente, por muitas questões levantadas por Aldous Huxley, propomo-nos a delinear, neste texto, tais diferenças. De início, por meio daquilo que fundamenta a existência do sujeito em Freud e, em seguida, através de visões prospectivas referentes a uma maior inserção das "tecnociências" na vida das pessoas, estabelecendo quais as repercussões possíveis dessa inserção.

 

Nós, os desamparados

O ensaio de Sigmund Freud sobre O Mal-Estar na Civilização pode ser considerado como "uma súmula grandiosa do pensamento de uma vida" (Gay, 1991, p. 499), pois traz décadas de elaborações teóricas do autor com relação ao desenvolvimento de sua "psicologia profunda", a psicanálise.

A relevância desse trabalho, para as questões que aqui abordamos, está na constatação de Freud quanto à impossibilidade de sermos felizes, ou melhor, a impossibilidade de nos livrarmos de um mal-estar que é próprio da existência humana e que, como tal, não pode ser debelado. Seguindo essa vertente, Freud nos chama a atenção para o fato de que um continuum de satisfações poderia nos ser insuportável, indicando, assim, que há uma forma de contenção enredada em nossas possibilidades de consecução do prazer. Isto se refletirá na forma como é elaborada a nossa existência enquanto seres formadores de cultura, concebendo-a como um conjunto de intrincados entrelaçamentos grupais, sustentados por interdições da agressividade e da sexualidade, que extrapolam as meras aproximações instintivas típicas da vida animal.

As proibições evocam justamente os aspectos mais difíceis que nos são determinados pela existência comunal, a saber, os relacionamentos que estabelecemos com os outros, "relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado" (Freud, 1930/1996a, p. 101). Tais relações se constituem como a nossa maior fonte de sofrimento, um sofrimento que se mostra sempre como "fatidicamente inevitável" (p. 85).

Essa inevitabilidade é confirmada diante da necessidade que temos, enquanto seres culturalizados, de nos vincularmos aos outros como forma de estabelecermos nossa condição de humanidade, de nos tornarmos sujeitos. E ser sujeito se expressa num processo permanente de rompimentos e de reestruturações que fazem do homem uma produção ininterrupta de trocas entre a maneira como experimenta sua subjetividade e como se acomoda às imposições sociais.

Com isto, ainda que cada um seja o "inferno" para o outro - tomando de empréstimo aqui a constatação sartriana na claustrofóbica peça teatral Entre Quatro Paredes (Sartre, 2005), de 1944 -, é apenas em nome desse outro que posso constituir a minha vida como uma vida propriamente humana, carregada por uma vivência consigo mesmo que se denomina de "interior" ou "psíquica".

Assim, a condição do sujeito, enquanto um ser cultural, implica em um desamparo irredutível diante do mundo, levando-o a depender do outro para viver. Afinal de contas, os filhos dos homens só se humanizam através dos vínculos com seus pares, vínculos estes que são responsáveis por nos imprimir aquilo que Birman (2001) concebe como uma "reprodução permanente" da manutenção do nosso viver. E a vida cultural, ao mesmo tempo que nos protege, propiciando relacionamentos variados e múltiplos, reafirma nossa fragilidade ao nos deparar com o fato de que suas ofertas jamais cessarão o persistente sofrimento existencial.

Para Freud, portanto, a civilização não é tomada como um progresso que tenderia a tornar os homens sempre mais adequados à vida em grandes grupos, mas sim como uma fonte inesgotável de mal-estar. Tal perspectiva descumpre o imaginário contemporâneo de felicidade possível em função desse permanente "sofrimento civilizado", que nos é expresso de maneira incessante por nossos inconscientes, pois, para a psicanálise, não somos livres, ainda que assim nos concebamos, e nossa individualidade não nos garante uma capacidade absoluta de autonomia diante daquilo que queremos.

E foi exatamente a partir do inconsciente, segundo Birman (2001), que se construiu uma "metáfora das novas modalidades de inserção do sujeito no mundo" (p.143), isto é, novas modalidades que culminaram na afirmação do sujeito enquanto moderno, enquanto atravessado pela psicanálise e por esta constituído. O autor chama a atenção, ainda, para a caracterização do homem moderno como deslocado em um mundo cujas tradições foram para sempre perdidas - tradições essas que são representadas por identidades fixas, que não podiam expressar as diferenças ou mesmo aceitarem o outro em sua condição de estrangeiro, de estranho. Isto acaba por nos remeter a uma outra peculiaridade dessas subjetividades sem moradas fixas, a saber, a nostalgia.

Como afirma Calligaris (1999), tal aspecto também se coaduna com o sujeito freudiano, sujeito este que está continuamente em construção, tendo em vista que não pode retornar de onde veio, pois as certezas da vida pré-moderna não lhe servem mais, e nem encontra satisfação no presente, porque o melhor de sua vida estará sempre reservado ao futuro. Essa ambigüidade do sujeito moderno o faz atormentar-se "entre as miragens da nostalgia e as miragens do projeto" (p. 22), impondo-lhe, portanto, a produção perpétua de sua história pessoal.

Constantemente insatisfeito e sofrente, a modernidade forneceu os subsídios necessários para que o homem pudesse se constituir como um ser de desejo e pulsional, um ser fundamentado, portanto, pela psicanálise. Assim, esse homem empreende uma busca por algo que jamais poderá ter, enveredando-se naquilo que Calligaris (1999) define como "complicações eróticas" (p. 14), revestindo o mundo de miríades de sentidos, tornando bem mais complexa a relação consigo mesmo e com os outros.

Em função do que foi dito, temos a psicanálise como a maior referência sobre as formas de subjetivação constituídas na modernidade, tanto pelas influências que recebeu desse determinado momento histórico para desenvolver seus aportes teóricos, como pelas ressalvas feitas quanto às incomodidades que tal período nos delegou. Como comenta Gay (1991), Freud tomava a si mesmo não apenas como um destruidor das próprias ilusões, mas, também, das ilusões da humanidade. Mas o que significa essa desilusão? Em que território o sujeito se encontra para se constituir como desiludido?

 

O legado de nossas renúncias

Ao comentar sobre o "domínio das paixões" para a psicanálise - pensando domínio aqui não apenas como forma de contenção, mas também como um campo de atuação, e paixões como pulsões -, Kehl (1995) demarca muito bem o território que evocamos acima, através das renúncias à sexualidade e à agressividade que compõem, de maneira inconteste, as formulações freudianas sobre a relação indissociável entre homem e cultura. E essas renúncias se determinam como fatores necessários à existência da vida culturalizada, bem como do mal-estar que lhe é intrínseco.

Numa nota de rodapé em O Mal-Estar na Civilização, relembra Kehl, Freud comenta a respeito de uma lenda sobre o "homem pré-cultural" que se comprazia em apagar o fogo, uma força então produzida apenas pela natureza, com sua urina, revelando, com este ato, uma satisfação sexual infantil de potência. "A primeira pessoa a renunciar a esse desejo e a poupar o fogo pôde conduzi-lo consigo e submetê-lo a seu próprio uso. Apagando o fogo de sua própria excitação sexual, domará a força natural do outro fogo" (Freud, 1930/1996a, p. 97). Com isto, temos essa lenda confirmando, então, as renúncias pulsionais como forma de se constituir a cultura através de uma conquista do mundo natural, controlando suas forças - especialmente as instintivas -, para não mais ser submetido a elas.

Saímos, então, de uma forma de submissão ao natural para uma forma de dominação cultural? Certamente que sim. Entretanto, precisa-se considerar que, para a psicanálise, dentro da perspectiva ressaltada por Kehl, tal mudança de "senhores" não significa uma concepção negativa da experiência do que é ser sujeito, isto é, não devemos nos pensar como absolutamente destituídos de qualquer possibilidade de nos depararmos com o novo, com o diferente, tal como os disciplinados homens e mulheres de Admirável Mundo Novo. Mas, pelo contrário, é justamente a moderação pulsional que nos permite inúmeros e amplos caminhos, pois nos retira de relações objetais fixas, tais como aquelas determinadas pela necessidade, para nos inserir naquilo que Kehl denomina de "territórios das paixões" (p. 472), que seria o território próprio da ação do homem.

A psicanálise aponta permanentemente para a desilusão, para a perda das fantasias, perda dos domínios da infância onipotente. Uma desilusão que nos coloca diante da nossa condição: somos humanos, somos mortais, somos solitários, somos incompletos. Mas, uma vez aceitas as determinações fundamentais da condição humana, (...), se abrem para nós possibilidades infinitas do domínio das paixões: nem a onipotência, nem a submissão, mas a conquista do território humano (Kehl, 1995, p. 494).

O sujeito freudiano renuncia aos prazeres absolutos e completos que podiam ser obtidos, em suas fantasias, numa permanência idílica no mundo natural, para se deparar com prazeres parciais extremamente variados, que podem comportar tanto as satisfações sutis das formas apaziguadas e educadas que caracterizam as relações sublimatórias, como também o arrebatamento de satisfações mais primárias que "convulsionem nosso ser físico" (Freud, 1930/1996a, p. 87).

Mas por que destacarmos a contenção pulsional em sua eterna insatisfação? Por que "hoje estamos mergulhados numa cultura que supervaloriza os prazeres" (Kehl, 1995, p. 471). Essa supervalorização enuncia-se como uma via que exalta e aceita o prazer de cada um, não apenas como forma de encontro com a felicidade, mas também como uma espécie de direito adquirido por todos. E são justamente os recentes desenvolvimentos da ciência e da tecnologia que vêm se configurando como legitimadores de satisfações absolutamente inimagináveis à época de Freud. Assim, como passarão a se estabelecer os relacionamentos que estão se constituindo a partir dessa inserção "tecnocientífica" na sociedade?

Se nos voltarmos para o Admirável Mundo Novo, teremos alguns efeitos possíveis da relação entre a "tecnociência" e os laços sociais, quando se verifica que os vínculos mais íntimos são rechaçados, e retratados, como algo obsceno, sórdido, insensato. Os cuidados de uma mãe para com seu filho são considerados semelhantes aos de um animal e sua cria. Nada como a "maternagem" asséptica promovida pelas instituições estatais. Além do mais, "cada um pertence a todos" (1985, p.37) e, portanto, não se justifica que alguém se torne mais afetuoso, ou mais amado, por outrem.

Seguindo ainda a lógica do romance, podemos afirmar que o "amor ao próximo" se transforma num desapaixonado percurso para objetalizar o outro a quem me vinculo. Em última instância, nem ódio e nem amor, mas apenas o permanente tamponamento de qualquer mal-estar, através de prazeres facilmente obteníveis: promiscuidade sexual, drogas e uma infinidade de lazeres que evitam o pensar. Assim, o amor é injustificável, exclusivista e desnecessário. Já o ódio inexiste como uma emoção que possa desestabilizar os relacionamentos com os outros, pois a distribuição dos indivíduos em castas, e o condicionamento durante o sono deixam explícitas as posições dos indivíduos dentro da sociedade, não havendo interferências entre grupos diferentes. Daí a passividade da convivência.

Todos os comentários acima, relativos à ficção de Huxley, apontam para uma diferenciação - ou mesmo uma depreciação, talvez - da experiência humana tal como fundamentada pela psicanálise e, por conseqüência, pela modernidade. Estamos prestes a observar, então, de acordo com alguns pensadores, a sociedade assentando-se sobre bases "pós-humanistas", que levarão ao nascimento do "após-homem". E é disto que trataremos em seguida.

 

"Deuses de prótese"1

Estudioso de Freud, Peter Sloterdijk (2000) desenvolve uma concepção de humanismo que tem, de maneira indireta, a psicanálise como fundamento. O filósofo inicia sua argumentação atribuindo ao humanismo a função de ter se estabelecido como uma base de referências sobre as quais se costumavam assentar as maneiras de construção de si e, por conseqüência, de construção das relações que partilhamos com os outros. Atualmente, o homem "educado" pelo humanismo estaria cedendo espaço ao "homem biotecnológico", um homem que sai da submissão domesticadora da escrita para a submissão do corpo manipulável em todas as suas minúcias. Domesticação, educação, contenção, submissão. Como Sloterdijk utiliza essas noções para definir o humanismo em franco declínio?

O humanismo seria, antes de tudo, uma conseqüência da disseminação do conhecimento promovida pelos livros e, via de regra, por aqueles que sabem ler. Essa relação entre os livros e seus leitores constituiu-se como uma "amizade a distância", proporcionando a propagação da escrita pelo mundo como uma espécie de "sociedade literária" sustentada por textos que se fizeram fundamentais. Com isto, formou-se uma determinada compreensão do mundo que se tornou o sustentáculo das sociedades surgidas a partir da modernidade. "Pois o que são as nações modernas senão eficazes ficções de públicos leitores que teriam se transformado, pelos mesmos escritos, em uma associação concordante de amigos?" (2000, p. 12).

Para o autor, as relações atuais estão sendo suportadas por fundamentos "pós-literários" e, por extensão, "pós-humanistas". A escrita teria começado a perder sua força enquanto uma forma de agregação desde o nascimento da radiodifusão, em 1918, acentuando-se com o advento da televisão, em 1945. Certamente, podemos continuar, a chegada da Internet nos anos 90 promoveu, e vem promovendo, novas formas de utilização da escrita que eram inimagináveis há poucas décadas atrás.

Mas de que maneira o humanismo servia enquanto uma "síntese social", um "modelo de formação" e ordenamento político-econômico, tal como afirmada por Sloterdijk? Qual, enfim, o fator organizador da vida comunal que está implícito no humanismo?

O filósofo identifica que o "tema latente do humanismo é (...) o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as boas leituras conduzem à domesticação" (2000, p. 17). O humanismo reflete uma tentativa de superação da luta do ser humano contra suas "tendências bestializadoras" a partir do estímulo às "tendências domesticadoras". Essa lógica assemelha-se à psicanálise no que diz respeito às renúncias pulsionais - condição sine qua non para a vida comunal -, que se mantêm e se disseminam a partir de "figuras de autoridade" representadas por instituições, como a família, a igreja e a escola (Freud, 1923/1996b).

Como exemplo dessa "domesticação humanista", Sloterdijk nos remete às lutas dos gladiadores na Roma antiga, cujas execuções serviam como um espetáculo de violência permitida que tinha a finalidade de divertir as massas incultas, através da desinibição de seus impulsos mais agressivos. Participar desses "rompantes controlados", desses excessos liberados, era inaceitável para aqueles que seguiam a cartilha do humanitas, que, conforme Abbagnano (2003),

significava a educação do homem como tal, que os gregos chamavam de paidéia; eram chamadas de 'boas artes' as disciplinas que formam o homem, por serem próprias do homem e o diferenciarem dos outros animais (p. 519).

Assim, o humanismo com sua "alta educação" visava, já desde a Antiguidade, proporcionar ao homem uma desvinculação da sua condição animal, biológica, brutal, para enredá-lo em problemáticas morais, políticas e econômicas. Enfim, para direcioná-lo corretamente para um caminho que seja capaz de conter sua barbárie e impregná-lo dos mais elevados valores culturais.

Ora, mas como pode se afirmar, então, uma perspectiva "pós-humanista" para os dias atuais, tendo em vista que a noção "domesticadora" tão cara ao humanismo parece permanecer intocada?

Ao dividir o mundo entre os letrados e os iletrados, principalmente com a disseminação dos livros, o humanismo abriu as portas para a possibilidade, que vem se afigurando como cabível nos dias de hoje, do estabelecimento de uma distinção entre os que administram a criação daqueles que são submetidos a ela. É aí que reside o começo de uma grande mudança que podemos presenciar atualmente, a saber, o surgimento daquilo que Sloterdijk (2000) denominou de antropotécnica (p. 42), cujos fundamentos se conformam às práticas da engenharia genética.

A tese do ser humano como criador de seres humanos faz explodir o horizonte humanista, já que o humanismo não pode (...) considerar questões que ultrapassem essa domesticação e educação: o humanista assume o homem como dado de antemão e aplica-lhe então seus métodos de domesticação, treinamento e formação - convencido que está das conexões entre ler, estar sentado e acalmar (Sloterdijk, 2000, p. 39).

Partimos da leitura para a criação, dos escritos fundadores para uma organização social que terá de se haver com as determinações das tecnologias biológicas. Compreendemos, com Sloterdijk (2000), que não há como escaparmos das restrições aos "impulsos desinibidos" ou, para utilizarmos Freud, das restrições à sexualidade e à agressividade. O caminho é inevitável, desde que nos tornamos homens, desde "a ruptura do nascimento biológico, dando lugar ao ato de vir-ao-mundo" (p. 34), ao ato de humanização, sendo forçados, ao ingressar na cultura, a culturalizar-se.

Desta forma, a biotecnologia mantém a proposta domesticadora do humanismo, mas diferencia-se deste através de uma extrapolação do mero âmbito educacional, para instituir intervenções que sejam capazes de trazer alterações de ordem física, na materialidade do corpo, chegando mesmo ao núcleo de nossas células através das manipulações dos genes.

Dado o nível das intervenções, Sloterdijk (2000) sugere que seja elaborado "um código das antropotécnicas" (p. 45), a fim de que se inviabilizem práticas que venham a extrapolar o campo do moralmente aceitável. Deve-se, então, legitimar aquilo que auxilie a cura de doenças, mas evitar que se institua uma espécie de política pautada na biologia e controlada por uma elite detentora dos recursos financeiros, do conhecimento científico e da sua aplicação técnica. Assim, com a criação dessas "regras" capazes de gerirem o "parque humano", teríamos explicitado algo que o humanismo procurava esconder: "que o homem representa o mais alto poder para o homem" (p. 45). E esse poder, nos moldes humanistas, pode ser considerado como o implemento da "boa educação" através da leitura, tomada como subsídio para a "domesticação" e os efeitos benéficos desta para a manutenção da sociedade.

Mesmo que não exista essa "biopolítica" e que as normas de Sloterdijk sejam apenas uma miragem, os feitos biotecnológicos vêm se consolidando como um referencial para as relações entre as pessoas. Desta forma, quais seriam as repercussões sociais de uma antropotécnica, em que homens administrariam o nascimento de outros homens?

É desse aspecto que Paul Rabinow (1999) irá tratar, quando destaca uma nova forma de expressão, para os dias de hoje, daquilo que Michel Foucault denominou de biopoder, em que o corpo e a população são conjugados como um centro discursivo e prático dos efeitos da ciência e da tecnologia, tal como proposto pela genética pós-mendeliana - especialmente a partir do Projeto Genoma -, com seus efeitos possíveis ou, pelo menos, esperados.

Para o antropólogo, a maneira de se conceber a experiência humana, da forma como foi constituída pela modernidade, vem sofrendo mudanças bastante significativas. A idéia de finitude, de limite à ação do homem, tornou-se o eixo ordenador das relações deste consigo mesmo e com seus pares, revelando-o como sujeito e objeto de suas investigações, como uma preocupação constante dos saberes constituídos, tendo em vista a impossibilidade de se conceber como um ser acabado, construído, perfeito. A finitude se afirmou, então, como uma característica que lhe é própria.

Essa perspectiva de um ser pautado por limitações corrobora as noções de Sloterdijk (2000) e Lebrun (2004). O primeiro, quando condiciona o humanismo à necessidade de uma "domesticação humana", impondo-lhe restrições à sua vida em grupo. Tais restrições serão continuadas, para Sloterdijk, com os avanços da biotecnologia, que exercerá, daqui para frente, novas formas de controle sobre os homens. Quanto a Lebrun, dado seu viés psicanalítico, a limitação está implícita na própria constituição do sujeito, que terá que se defrontar, a partir das "tecnociências", que estão em pleno desenvolvimento, com o fim do impossível, impossível este que se vincula, de maneira indiscutível, até aos nossos sonhos de imortalidade.

Não nos devemos surpreender (...) que nosso limite, de todos - a própria morte -, se tenha tornado incôngruo: é apenas o acidente que deveria haver meios de evitar, a "surpresa desagradável" de que deveríamos nos poupar; não é mais parte integrante de nosso fatum (...) (Lebrun, 2004, p. 107).

Assim, alterando a nossa relação com a finitude, temos o após-homem (Rabinow, 1999, p. 136). Numa aproximação entre o "limitado" e o "ilimitado", está o DNA como um paradigma desse "após-homem", pois permite estabelecer uma transcendência às restrições determinadas por seus próprios constituintes, isto é, com apenas quatro bases nitrogenadas (adenina, guanina, citosina e timina) participando de sua formação, temos uma constelação infinita de seres vivos. O infinito passa a fazer parte, pois, da "equação" do homem, fazendo-o vislumbrar um para além. Com isto, o autor questiona: "como irão mudar nossas práticas e éticas sociais à medida que este projeto [Projeto Genoma] avance?" (1999, p. 137).

Minha suposição é que a nova genética deverá remodelar a sociedade e a vida com uma força infinitamente maior do que a revolução na física jamais teve, porque será implantada em todo tecido social por práticas médicas e uma série de outros discursos (Rabinow, 1999, p. 143).

Partindo dessa afirmação, torna-se clara a irreversibilidade da tecnologia enquanto modo de afetação em nossas vidas. Como destacamos antes, para Rabinow é certo que a tecnologia enquanto uma resposta prática para as teorizações científicas corrobora o projeto de ciência da modernidade. Entretanto, não podemos desconsiderar os comentários de Lebrun, quando este destaca que, na história da humanidade, nunca a tecnologia atingiu tão fortemente a nossa constituição biológica e assumiu uma ingerência tão maciça no campo social, levando, por conseqüência, a intervenções na materialidade dos corpos dos sujeitos.

Essa afetação nos corpos pode ser melhor compreendida se tomarmos as elaborações de Le Breton (2003) sobre os usos e prazeres dos corpos. Para esse autor, o sujeito contemporâneo traz a modelagem de sua aparência como uma tentativa possível de resgatar aquilo que a socialização não mais lhe oferece: um espaço seguro de referências. "O desinvestimento dos sistemas sociais de sentido conduz a uma centralização maior sobre si" (Le Breton, 2003, p. 32). Contudo, esse voltar-se para si mesmo não remete, em momento algum, a uma possível valorização da experiência interior. Le Breton (2003) observa a desconsideração pela construção de uma história pessoal sustentável para o existir. E isto faz com que o corpo se destaque do sujeito e ganhe autonomia enquanto um centro exteriorizado de significações.

"O corpo deixa de ser o lugar do sujeito e torna-se um objeto de seu ambiente" (Le Breton, 2003, p. 52). Para o autor, a biologia é uma das formas de elaboração desse corpo-objeto. Ao privilegiar, por exemplo, as mensagens contidas nos genes como o principal sistema de conhecimento sobre o homem, estamos elevando a informação ao nível de organizadora lógica da existência. Estabelecendo as partes que compõem todos os seres vivos como determinantes para se pensar o mundo e suas relações, pode-se conceber um esvaziamento do sujeito, pois este é apenas mais um ser cuja genética "explica tudo". De acordo com a biologia, o homem inexiste enquanto produção e resultado de interações históricas e sociais, para se confundir com a concretude dos organismos vivos, tal qual uma espiga de milho ou um chimpanzé que, aliás, é bastante aparentado conosco geneticamente.

Le Breton (2003) afirma, então, uma dissolução dos sujeitos nesse campo de informações, tornando-os fragmentários como as partes que constituem o corpo, como os membros, os órgãos, as células, dentre outros. Portanto, fragmentar o corpo é o mesmo que fragmentar o sujeito: pode-se ser qualquer coisa, como se pode alterar o corpo de qualquer maneira. O corpo "divisível" traz, então, a confirmação de que sou capaz de mudar a minha vida, de ser mais feliz, se fizer uma cirurgia estética ou mesmo fizer uma - extremamente radical! - mudança de sexo e assim por diante. Minha identidade depende daquilo que posso fazer com meu corpo maleável. Dessa forma, recorrer sempre a um si mesmo corporificado leva ao empobrecimento, à precariedade, da relação com o outro, essa eterna fonte de sofrimento.

Para Rabinow (1999), tal "precariedade relacional" será constituída, daqui a alguns anos, com a "nova genética" nos impondo que o biológico seja apropriado pelo social através de suas técnicas capazes de alterar a natureza, isto é, alterar o corpo tecnicamente manipulável. Portanto, será uma incidência real no âmbito da sociedade, possibilitando uma transformação do mundo natural que tenderá, a partir daí, a artificializar-se. O natural se transmutará em referência para o cultural, na medida em que for incorporado, cada vez mais, enquanto um valor que passará a reger as relações.

[A nova genética irá] se tornar uma rede de circulação de termos de identidade e lugares de restrição, em torno do qual e através do qual surgirá um tipo verdadeiramente novo de autoprodução: vamos chamá-lo de biossociabilidade (Rabinow, 1999, p. 143).

Essa biossociabilidade, corroborada também pelas idéias de Le Breton que destacamos antes, vem tomando consistência entre nós a partir do momento em que presenciamos grupos constituídos em nome de um mesmo medicamento partilhado por seus membros, de uma mesma cirurgia a que todos os participantes se submeteram ou até mesmo quanto ao uso de um determinado adereço no corpo, prática esta que, se não está diretamente relacionada à tecnologia biomédica, torna-se um reflexo seu, pois trata-se de uma intervenção concreta que visa à modificação da corporeidade para fins de reconhecimento e de aceitação pelo outro.

Rabinow (1999) acredita, ainda, que se a "nova genética" for realmente implementada poderemos, em seguida, desconsiderar o contraponto gerado pela separação entre o natural e o cultural, em função dessa dominância da lógica da biologia, podendo mesmo vir a acabar com a sociedade tal como constituída na modernidade, isto é, constituída a partir da historicidade dos sujeitos e dos seus limites.

No mesmo texto, Rabinow procura reforçar a sua argumentação sobre uma futura "dissolução da sociedade moderna" (p. 144), através do conceito de risco. As "tendências atuais das biociências" (p. 144) passaram a caracterizar a sociedade nos seguintes aspectos: as tecnologias sociais estão atuando na prevenção, reduzindo, assim, seu caráter terapêutico, e instituindo que devemos manter um trabalho infindável sobre nós mesmos, "a fim de produzir um sujeito eficiente e adaptável" (p. 144).

"A prevenção moderna é antes de tudo o mapeamento de riscos" (Rabinow, 1999, p. 145). Os riscos, neste caso, são estabelecidos a partir de doenças que o sujeito poderá adquirir ou não, de determinados comportamentos que deverão ser submetidos a uma vigilância permanente ou não, e assim por diante. Não são mais os sujeitos ou os grupos de risco - como os usuários de drogas injetáveis, por exemplo - o centro das atenções dos discursos médicos, mas os "normais", os "saudáveis", aqueles que são doentes em potencial ou, ainda, os que são acometidos por alguma doença passível de ser controlada por meio de medicamentos e de "hábitos saudáveis".

A partir daí, os sujeitos são decalcados de suas realidades sociais, históricas e pessoais, para serem agrupados em nome do poder impessoal e pretensamente verdadeiro de seus componentes biológicos. Tais sujeitos não terão "nenhuma profundidade. Não há absolutamente nenhum sentido em se procurar o significado da falta de uma base de guanina, porque isso não tem significado algum" (Rabinow, 1999, p. 147). Dessa forma, enquadrando-se os sujeitos em uma "bio-lógica", seremos remetidos a uma ordem do sentido que está sendo perdida, isto é, uma ordem própria da manutenção da subjetividade, das construções sobre si mesma, reduzindo-a em função do organismo e sustentando-se através de concepções concretas e naturais sobre o corpo.

 

Um grande salto para a humanidade2: à guisa de conclusão

No prefácio de 1946 para o Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley (2005) comenta que ciências como a química, a física, e seus produtos mais destrutivos - como a bomba atômica, por exemplo -, têm a capacidade para acabar com nossa existência ou para afetá-la de maneira mais geral, com impactos ambientais de grandes proporções. Porém, são incapazes de "modificar as formas e as expressões naturais da própria vida" (p. 5), sendo apenas através das "ciências da vida que a vida poderá ser modificada radicalmente" (p. 5). E é exatamente isto que fica demonstrado nesse romance que tomamos como fio condutor para este texto.

Dado o grande interesse de Freud pela criação literária, permitimo-nos iniciar nossas argumentações a partir de uma história ficcional que se mostrou, na maioria das vezes, como uma fonte bastante proveitosa, e certamente inesgotável, para observarmos a influência recente das "tecnociências" em nossas vidas, bem como as possibilidades infinitas que surgirão a partir daí. Não consideramos Huxley, pois, como detentor de uma "verdade antecipada" sobre como será o futuro da humanidade, mas sim como um interlocutor brilhante, capaz de evocar aspectos que talvez nos passassem desapercebidos.

Sendo assim, Huxley nos deu as ferramentas necessárias para tentarmos discernir que sujeito as "tecnociências" poderão forjar e que sujeito estará sendo afetado por esse conhecimento. Daí termos comentado sobre o "pós-humanismo" e o "após-homem" como vias possíveis para as mudanças que hão de advir. Entretanto, ainda que a tendência dos autores enfocados seja a de considerar as influências da biotecnologia sob prismas que evidenciam da simples perplexidade diante do que vem se apresentando até um certo temor apocalíptico, não compartilhamos inteiramente desses posicionamentos. É certo que os avanços científicos e tecnológicos trazem repercussões problemáticas para os tempos atuais, mas, ainda assim, existem melhorias notáveis naquilo que podemos fazer em nossas vidas. E, como tudo que se refere à existência humana, temos as perdas e os ganhos amalgamados em porções indefinidas, cujos efeitos podem se mostrar melhores ou piores a depender do olhar que recai sobre eles.

Dentre esses efeitos, é a relação do sujeito com a felicidade que parece sinalizar para o surgimento de novos paradigmas. Freud (1930/1996a) já destacava a ciência e a tecnologia, enquanto um método fornecido pela cultura para atenuar o sofrimento, como sendo capaz de realizar nossos "desejos de contos de fadas" (p. 98). Se antes nós transferíamos para os deuses os nossos sonhos de onipotência, agora nós podíamos nos aproximar de muitos dos ideais que compunham a existência dessas entidades criadas por nós.

No caso específico da ciência e da tecnologia, a contraposição identificada por Freud é a de que, ao mesmo tempo que facilita a nossa vida, traz-nos também novas formas de infelicidade ou, podemos dizer, de novas formas de nos depararmos com um veto à satisfação plena. Ainda que sejam inegáveis as maravilhas que obtivemos, como a criação de inúmeros instrumentos que fortalecem nossa frágil condição física, superando nossa força, nossa visão, dentre outras, é inegável, também, que todas essas possibilidades tornam-se extremamente necessárias à vida, fazendo com que não consigamos mais delas prescindir.

Em toda a elaboração freudiana sobre a felicidade ficam determinados, então, os seguintes aspectos: nossa condição cultural impõe moderações necessárias às satisfações, fazendo com que consideremos ser feliz, na maioria das vezes, apenas por não se estar sofrendo; é essencial que nos vinculemos a várias possibilidades de se obter satisfação ou de se evitar o sofrimento, não apenas por temer que uma das escolhas possa falhar, mas, também, porque nenhuma é definitiva; em função das anteriores, temos que a felicidade é algo próprio a cada sujeito e a cada escolha que este faz durante a vida. É, portanto, de maneira individual que podemos eleger aquilo em relação ao qual queremos nos direcionar.

A felicidade em Freud é, portanto, algo da ordem da interioridade, afirmando a posição de um sujeito que precisa dar conta de suas escolhas e responsabilizar-se por elas, tendo em vista que remetem a ele mesmo, àquilo que ele é. Em última instância, a questão é a de como estabelecer os caminhos que queremos dar às nossas pulsões, a fim de que possamos satisfazê-las da única maneira que nos é possível: a maneira parcial. E é nesse jogo de incertezas que se abrem as portas para experimentarmos tudo o que se refere à experiência humana. Até mesmo, dirá Freud (1930/1996a), tornarmo-nos neuróticos ou psicóticos.

Assim, os impasses que vêm assombrando o sujeito da psicanálise, e fazendo emergir um sujeito que privilegia o excesso sob a forma de intervenções no corpo, levam-nos a observar que as reivindicações de felicidade, atualmente, estão muito mais voltadas para aquilo que Freud denominou de uma meta positiva, uma meta que está diretamente relacionada à obtenção de prazer. Não queremos apenas deixar de sofrer, queremos, como afirma Melman (2003), gozar de qualquer maneira, seja qual for o custo. E tal perspectiva corrobora as promessas de felicidade do discurso da ciência e da tecnologia, especialmente na vertente biológica que abordamos neste artigo. Mas por que a felicidade tornou-se uma questão capaz de dizer tanto sobre esse sujeito do excesso?

Todas as questões que aqui abordamos referiam-se, em última instância, ao campo pulsional. As pulsões assumiram, nos dias atuais, uma posição de primeiro plano para se pensar a influência maciça do biológico em nossas vidas, pois estas fazem uma ponte entre as exigências do corpo e a forma como tais exigências se apresentam ao psiquismo. Em último caso, constata Kristeva (2002), "o que entendemos [os psicanalistas] por biologia é (...) pulsão: energia, se se preferir" (p. 40).

Estabelecer as pulsões como um aspecto necessário a qualquer investigação sobre as formas como estamos nos relacionando com nosso corpo acaba por determinar, também, uma forma diferenciada de se lidar com a felicidade, tendo em vista que esta é qualificada por Freud (1930/1996a) como uma questão pertinente às possibilidades de encaminhamentos pulsionais. Assim, teríamos desde um estado mítico de total satisfação, de um encontro completo com a felicidade, com um prazer intenso, até uma impossibilidade total de qualquer satisfação, estado também irreal, em que a pulsão seria tão domesticada que praticamente não nos geraria mais incômodo. Nesse intervalo entre extremos, temos a condição humana.

Retomando, então, a ilusão promovida pela "tecnociência" de que podemos sempre nos satisfazer através de excessos vinculados ao corpo, como se caracteriza a felicidade hoje? De que forma ela é demandada pelos sujeitos contemporâneos?

Inicialmente, temos que nossa capacidade para escolher métodos paliativos para se lidar com o sofrimento torna-se reduzida a partir de dois aspectos. Em primeiro lugar, somos bombardeados, através dos meios de comunicação, com as últimas novidades da ciência que podem nos tornar mais bonitos, mais saudáveis e mais eficientes, por meio de práticas de exercícios físicos, de alimentos funcionais, de intervenções cirúrgicas, dentre outros. Essa disseminação confirma a preponderância do discurso biomédico atual, especialmente porque nós não o procuramos, mas o encontramos já inserido em nossas vidas. Como resistir a tantas propostas rápidas e diretas para se atingir o bem-estar?

Outra questão, resultante da anterior, é que acabamos direcionando nossas escolhas para um caminho apenas, que é o da manipulação do corpo. Freud define o sofrimento como sensação e é justamente a possibilidade de modificar o que sentimos que mais nos interessa nos dias de hoje. Se a "intoxicação" era apenas uma das medidas que reduzia o mal-estar, dentre várias outras, hoje é um método bastante requisitado para se obter prazer, principalmente se extrapolarmos o seu sentido para qualquer empreendimento que cause mudanças físico-químicas no organismo.

Comparando as noções de felicidade hoje, com as de Freud, encontramos as seguintes perspectivas: não aceitamos apenas não sofrer, queremos, acima de tudo, ter prazer, pois "ser feliz é o que importa", rezam os meios de comunicação diariamente; a variabilidade das nossas escolhas, ainda que sejam muitas, está minimizada em virtude da qualificação dos objetos ofertados como os únicos possíveis para nos fazer atingir estados prazerosos; e a submissão ao discurso da ciência e da tecnologia faz com que sequer percebamos a perda da singularidade de nossas escolhas, pois acabamos nos fundindo "no anonimato de um corpo coletivo" (Melman, p. 195).

E esse discurso traz uma felicidade exaltada através do corpo, tornando-se, pois, uma felicidade exteriorizada, uma felicidade que atravessa os limites de cada um para ser exposta na carne. "Quem eu sou" perde suas referências internas antes longamente elaboradas, para se vincular a uma demonstração externa de quão maleável pode ser o meu ser. Novos sujeitos tinham que engendrar novas formas de lidar com a felicidade, com o prazer e com o sofrimento.

"Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social: qualquer confusão introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo" (Le Breton, 2003, p. 223). Estejamos preparados, então, para estabelecermos uma nova coerência para o mundo, para o sujeito e para suas relações.

Dessa forma, permanece o fato de que o ser humano está constantemente envolvido em buscas incessantes por conhecimento e por tentativas de alterar a si próprio e ao meio em que habita. Se a capacidade que temos para obter esse conhecimento não nos tornou melhores e mais felizes, também não nos fez piores ou mais infelizes. Contudo, é indiscutível que o homem está mudando, como sempre mudou desde que surgiram as primeiras civilizações. Não de maneira súbita, mas gradativa e contínua, seguindo, hoje, a trilha do movimento irrefreável da ciência e da tecnologia.

E, diferentemente da ficção de Huxley, o seguimento desse caminho prescinde de um Estado autoritário para dar-lhe suporte, pois as descobertas "tecnocientíficas" nos "serão vendidas pelo mercado como algo sem o qual não podemos viver" (Frankel, 2003, p. 32), e não por meio de imposições dos governos sobre seus cidadãos. Qualquer pessoa, principalmente aquelas que vivem em ricas economias liberais, pode ter acesso a medicamentos, cirurgias, técnicas reprodutivas, entre outros, formando uma circulação de "produtos e serviços" médicos disponíveis para todos, sendo inserida nos vários âmbitos de nossas vidas, criando novas identidades, reconhecimentos e agrupamentos.

Finalmente, queremos ressaltar que as questões discutidas neste texto tiveram, como objetivo, levantar campos possíveis de elaboração, tendo em vista que não poderíamos estabelecer certezas sobre as subjetividades que vêm se constituindo na contemporaneidade, especialmente em virtude do fato de que os vínculos entre os homens sempre comportarão descontentamentos e sempre remeterão a processos contínuos de ordenamentos e de desajustes, marcando, de maneira definitiva, os descaminhos do sujeito em seu trajeto humano.

 

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Recebido em 10 de outubro de 2005
Aceito em 25 de outubro de 2005
Revisado em 14 de novembro de 2005

 

 

Notas

1 Constatação freudiana de que "o homem (...) tornou-se uma espécie de Deus de prótese" (1930/1996a, p. 98), a partir das várias possibilidades que a ciência e a tecnologia nos trouxeram, fazendo-nos superar as nossas limitações físicas.
2 Referência à frase "É um pequeno passo para o homem, mas um gigantesco salto para a humanidade", de Neil Armstrong, ao pisar em solo lunar pela primeira vez, em 20 de julho de 1969.

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