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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.2 Fortaleza set. 2006

 

EDITORIAL

 

Objeto, corpo e atualização do mal-estar

 

 

O objeto e sua forma de representação, materialização e apoderamento pelo sujeito se apresentam hoje como um índice inquestionável de atualização do mal-estar na cultura. É com o semblante encarnado nessa lógica que o discurso da técnica se apresenta e convoca o sujeito a subverter o estatuto do ser em função do ter. Portar o objeto e transmutá-lo em factível, enfim, dar posse ao sujeito da condição de apropriação de uma resposta sobre a angústia, acaba sendo uma das marcas iniludíveis dos trabalhos sobre o mal-estar e a subjetividade do nosso tempo.

Iniciamos este número com um estudo teórico sobre as relações de objeto em Freud e Fairbairn. O enfoque principal que é dado a este trabalho aponta as divergências e possíveis convergências entre estes dois autores, a partir da teoria da libido e das relações de objeto, para concluir que Fairbairn propõe uma lógica que, de certa forma, inclui uma relação entre libido, personalidade, estados psicopatológicos, objetos internos e relações com os objetos. Ao mesmo tempo, destaca o trabalho que existe no percurso freudiano aplicado às relações de objeto.

Desta forma, este número avança na discussão entre objeto, materialização e apoderamento, a partir da articulação entre trauma e sintoma. Uma discussão importante, principalmente porque a atualização do mal-estar pode irromper abruptamente no sujeito, a partir de um evento catastrófico de massa. E o importante a ser demarcado nessa situação é a diferença entre o fenômeno social e os efeitos que causam sobre a subjetividade daquele que sofre um corte nos laços sociais. É neste ponto que o sujeito pode cambalear na representação e no real do corpo, tomado por impossibilidades e reclamado por um tempo psíquico em que o traumático é sinônimo de constituição subjetiva e, como tal, o sintoma pode ceder espaço a uma retificação psíquica a partir do momento em que o sujeito é implicado no seu sofrimento.

Estas implicações a que é levado o sujeito no espaço e no tempo atual remetem às paradoxais fronteiras entre elementos solúveis, nas quais o sujeito se perde e se recompõe, por envolver subjetividade, corpo, laço social e passagem do tempo. Espaços que o sujeito, muitas vezes, não acompanha e que o campo da arte e a representação artística comparecem como um fio de reconstituição subjetiva. Entretanto, este é um movimento cheio de estancamento e de novos discursos em processo de constituição.

Constituições que colocam em evidência a importância do tema da origem em psicanálise, perpassando as noções de processo imaginário, de acontecimento e do impessoal. Constituições que reclamam novas inscrições no corpo e convoca uma investigação sobre os sentidos das modificações que se aplicam sobre ele. A tatuagem e o uso de piercing já não podem ser simplesmente associados a uma condição psicopatologizante do sujeito, pois há de ser entendida também como uma expressão da subjetividade na qual o sujeito ensaia um movimento de que apropriação de si mesmo.

Assim, o corpo, na contemporaneidade, pode sinalizar em direção ao colapso do amor romântico e privilegiar relações efêmeras em função do culto narcisista e da individualidade, bem como sustentar-se na lógica da eficácia e da eficiência promulgada pelas novas tecnologias e o consumo exacerbado do objeto como forma de tamponamento da angústia. A conseqüência é que o sujeito pode sair à caça exasperada da felicidade, esquecendo-se que o que ela baliza é a causa do desejo que o põe em cena.

Toda esta lógica de funcionamento das relações do sujeito com o laço social que implica na articulação do corpo com o objeto investido é perpassada por uma referência ao mal-estar da época, quando a ambigüidade passa a ser uma marca inquestionável presente em atos como o divórcio, e a posição de divergência que cada um ocupa na elaboração do processo de luto, sejam para o sujeito ou para a família envolvida na ruptura do laço.

Por tudo isso, o corpo passa a ser o objeto de atualização do mal-estar e põe em cena os fatores associados à angústia e à fobia social. Uma questão que abre espaço para pensar essa problemática, a partir da interação entre diversos fatores, como neurobiológicos, psicológicos, socioculturais. O estudo aqui apresentado conclui que ainda resta muito para ser depreendido da relação entre os fatores envolvidos nesse processo.

Na esfera do trabalho e da educação, este número trata do mal-estar pelo viés das construções subjetivas.

Na área do trabalho, dois artigos são apresentados. Um aponta para uma reflexão a respeito das implicações de crenças e concepções diante da noção de trabalho flexível e seus efeitos na subjetividade. Aqui são avaliados conceitos importantes para a compreensão do mal-estar da época, como as noções de sujeito-trabalhador e sujeito consumidor, que implicam em uma reavaliação da posição que ele ocupa diante das referências do tempo e do espaço na geração do sofrimento, em contraste com a outra posição que é a de tempo e do espaço na determinação do usufruto do prazer.

Na mesma linha de construções subjetivas acerca do mal-estar no trabalho, aparecem as saídas cooperadas que o trabalho autogestionário sugere. Um dado importante por envolver urgentes reflexões sobre a cultura organizacional e os traços de identidade de cada sujeito no contexto das relações sociais de trabalho, principalmente em uma época em que o corpo serve de baluarte para o adorno e para o prazer, ao tempo em que é convocado também a atender ao ideal de eficácia. Com isso, podemos destacar que o trabalho tomado como um objeto de sobrevivência fica cada vez mais atravessado pelo estatuto subjetivo do prazer e de uma cultura hedonista. E essa relação cria um impasse, cujos efeitos aparecem sob a forma de mal-estar.

Especificamente na articulação entre psicanálise e educação, conhecidos campos dos impossíveis, uma história breve da trajetória de Françoise Dolto, destacando-se, principalmente, o trabalho desenvolvido com bebês e suas conseqüências para a educação de crianças, importantes temas para se levar em conta na discussão sobre objeto, corpo e mal-estar.

Encerrando a seção de artigos, as novas formas de sintomas e as patologias de época trazem a discussão do corpo e do objeto para um referencial analítico, a partir do delírio quixotesco, para destacar que há uma narcotização do corpo que suplanta a subjetivação e privilegia a via do gozo.

A resenha de livros enfoca uma obra que trabalha a migração, o território, a identidade, a subjetividade, as fronteiras e o poder, temas de grande valia para a atualização do mal-estar que o sujeito exibe hoje dentro da tentativa de inserção nos laços sociais, desgastados que estão pelo estranhamento causado em função da hospitalidade buscada e pela constatação do incômodo causado.

 

Henrique Figueiredo Carneiro
Editor e Organizador
Psicanalista e Coordenador do Mestrado em Psicologia da UNIFOR

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