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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.2 Fortaleza set. 2006

 

ARTIGOS

 

O mal-estar nas novas formas de trabalho: um estudo sobre a percepção do papel dos cooperados em uma cooperativa de trabalho autogestionário

 

 

Regina Heloisa MacielI; Filadélfia Carvalho de SenaII; Iratan Bezerra de SabóiaIII

IDoutora em Psicologia Experimental/Ergonomia. Professora Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. End.: R. Rangel Pestana, 2424. CEP:60834-250 Fortaleza CE. E-mail: rhmaciel@rapix.com.br
IIMestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza. Aluna do programa de Pós-Graduação do Doutorado em Educação da Universidade Federal do Ceará
IIIEspecialista em Administração de Recursos Humanos. Aluno do programa de Pós-Graduação do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. End.: R. Stênio Gomes, 421. Casa 01 Jardim das Oliveiras. CEP: 60821-450. Fortaleza-CE. E-mail: iratan@gmail.com

 

 


RESUMO

As cooperativas de trabalho autogestionário são associações de profissionais com o objetivo de garantir trabalho e renda dentro de um contexto democrático, constituindo-se como espaços alternativos na ordem sócio-política-econômica. O objetivo desta investigação foi verificar como membros de uma cooperativa do Estado do Ceará, através de seus discursos, percebem a cooperativa e seu trabalho, analisando o impacto da mudança na estrutura do trabalho de empregados para cooperados sobre a subjetividade dos trabalhadores. Foram realizadas entrevistas em grupo e individuais, além de terem sido aplicados questionários abertos, em 38 cooperados de um universo de 768 de uma mesma cooperativa. Através da análise dos discursos, pode-se perceber que, apesar de terem ocorrido certas mudanças na postura e atitudes dos cooperados em relação ao seu trabalho anterior na empresa tradicional, existem ainda hábitos e expectativas ligados ao tipo de emprego anterior, não se percebendo nos discursos, em geral, uma apropriação pelos sujeitos da sua situação de trabalho, o que resulta em um mal-estar com relação a sua atual situação de trabalho. Os sujeitos reproduzem os mesmos esquemas anteriores, aprendidos na organização de origem, e a cultura da organização é híbrida, não possuindo características das empresas tradicionais, mas também não refletindo as possibilidades de uma cooperativa autogestionária. Provavelmente, isto ocorre porque o local reservado às cooperativas na ordem socioeconômica não representa um progresso real nas condições de trabalho desses profissionais, mas sim uma deterioração dessa condição.

Palavras chave: mal-estar no trabalho, cooperativas de trabalho, cultura organizacional, subjetividade e trabalho, identidade e trabalho.


ABSTRACT

Autonomous workers cooperatives are workers associations with the aim of assure work and income in a democratic context. In this sense, they constitute alternative spaces in the social economic and politic capitalist order. The objective of this paper is to describe how the workers in one cooperative of Fortaleza, Ceará view the cooperative and their work, through the analyses of their discourses. The focus is on the impact in the subjective perceptions of the work structure and organization in the process of change from being traditional workers to associated workers in a cooperative. The participants were 38 professionals from a cooperative of 768 workers. Focal groups, individual interviews and open questionnaires were used to collect the information. The results have shown that in spite of the occurrence of some changes in their attitudes in relation to their former work in a traditional company, there are persistent habits and expectations linked to the former condition, besides a feeling of dissatisfaction towards the cooperative. In their discourses there is no sign of appropriation of the actual condition of autonomy. Their subjective process reproduces the same old pattern and the cooperative organizational culture is hybrid, showing a mixture of a traditional firm and the possibilities of an autonomous cooperative. This is probably due to the place the cooperatives have in the socio-economic scene; a place that does not reflects a real progress in the worker's condition, but its deterioration.

Keywords: discontents in work, cooperatives, organizational culture, workers subjectivity, workers identity.


 

 

Introdução

No capitalismo, o trabalho assume uma concepção predominante de trabalho assalariado e sua organização repousa sobre a cooperação subordinada, cujos fins a serem alcançados não são determinados pelos indivíduos e cujas riquezas, decorrentes da produção social, são apropriadas de forma privada. A cooperação subordinada é a forma fundamental do modo de produção capitalista, sendo, na sua forma mais simples, constituinte do germe de espécies mais desenvolvidas de cooperação e que continua a existir ao lado delas (Marx, 1989). Nesta modalidade de organização dos processos de trabalho, os trabalhadores-produtores não participam do plano de trabalho, não definem a sua jornada de trabalho e não participam da apropriação dos excedentes por eles produzidos (Braverman, 1987).

As cooperativas de trabalho são definidas como aquelas associações civis que, constituídas entre operários de uma determinada profissão ou ofício, ou de ofícios vários de uma mesma classe, têm como finalidade primordial melhorar a remuneração, as condições de trabalho e as condições pessoais de seus associados. Dispensando a intervenção de um patrão ou empresário, as cooperativas propõem-se a contratar trabalhos ou serviços públicos e particulares, coletivamente por todos ou por grupos de alguns de seus membros. Denomina-se cooperativa de trabalho tanto as que produzem bens como aquelas que produzem serviços, sempre pelos próprios cooperados. Os trabalhadores são a própria mão de obra, participam ao mesmo tempo na gestão e na produção (Queiroz, 1996; Cattani, 1996; Schneider, 1999). Assim, as organizações cooperativas, na sua essência, podem ser consideradas como experiências que, além de gerar trabalho e renda, podem apontar para novas formas de organização da produção que não explorem a força de trabalho e de construir relações de trabalho simétricas e horizontais.

As inúmeras experiências associativas deste tipo que vêm se multiplicando hoje, no mundo, nas áreas da produção, do consumo, dos serviços e de crédito, recebem também uma série de nomes como economia solidária, socioeconomia, cooperativa, economia popular solidária, associativismo e economia popular (Singer, 1996; Ribeiro, 2001). Este trabalho focaliza especificamente as cooperativas de trabalho, organizações onde o trabalho cooperativo se organiza por oposição à cooperação subordinada, base da produção capitalista. O trabalho cooperativo autogestionário, enquanto alternativa ao capitalismo, é uma realidade concreta na experiência histórica dos trabalhadores.

No Brasil, estavam cadastradas nas juntas comerciais em 2001 cerca de 20.579 cooperativas, representando um crescimento de 331%, quando se considera o número de cooperativas em 1991 (4.666) (Silva et al, 2003). Segundo os mesmos autores, cerca de 94,2% do total de cooperativas registradas eram cooperativas de trabalho.

No entanto, o atual movimento cooperativista mundial e brasileiro tem dividido as opiniões. De um lado, há aqueles que acreditam nas suas possibilidades enquanto força transformadora das relações de trabalho, garantindo melhorias nas condições de vida e trabalho dos cooperados (Rufino, 2003). De outro, há os teóricos que apontam as limitações do cooperativismo no atual momento histórico-social, argumentando que enquanto preso a relações contraditórias com o modo de produção capitalista, convivendo no seio do próprio sistema, pode estar servindo a objetivos espúrios (Ide, 2005) e pode, no máximo, ser um horizonte orientador para as organizações das classes trabalhadoras nas lutas contra a globalização neoliberal.

Além disso, há cooperativas que fogem da doutrina original das cooperativas de trabalho, isto é, são falsas cooperativas criadas por determinadas empresas ou empresários para servir aos seus propósitos de barateamento e precarização do trabalho. Estas últimas são denominadas de "falsas cooperativas", "cooperfraudes", "cooperativas de fachada" ou ainda "coopergatos" (Ide, 2005; Lima, 2004; Piccinini, 2004).

Basicamente, qualquer cooperativa de fato, para o bom desenvolvimento de seus trabalhos, possui em sua estrutura uma Assembléia Geral, conjunto ou reunião de todos os associados, que constitui o principal fórum de decisão da cooperativa. A igualdade do poder de voto de cada sócio na definição dos interesses da empresa representa o princípio da gestão democrática do empreendimento cooperativista. Além disso, deve possuir uma Diretoria ou Conselho de Administração, órgão superior na administração da cooperativa, formado por cooperados eleitos pelos demais, responsável pela execução das propostas aprovadas pela Assembléia Geral, podendo ainda indicar uma diretoria executiva, com a função de administrar o dia-a-dia da cooperativa. O Conselho Fiscal é um órgão independente dentro da cooperativa; cabendo-lhe fiscalizar, em nome dos demais associados, a administração do patrimônio e das operações da organização. Podem ser criados também Órgãos Auxiliares da Administração, comitês, comissões ou núcleos, com atribuições específicas.

O princípio de cada pessoa representar um voto na empresa cooperativa faz do associado seu principal elemento. Essa gestão democrática significa que o dinheiro é utilizado para servir ao cooperado e não é o que determina seu poder. A economia cooperativa socializa o capital quando, se concentra no "homem sócio" que, em igualdade com todos os demais, decide os rumos de sua vida econômica, conforme os objetivos comuns.

O capital integralizado é o valor subscrito pelo associado ao capital da cooperativa. Ao formar ou ingressar numa cooperativa, a pessoa assume uma obrigação financeira que é sua cota de participação no negócio, intransferível a terceiros. Segundo a legislação vigente, o volume de capital, de cada sócio deve ser remunerado a uma taxa anual limitada, no máximo, até 12% ao ano. Limitando os juros sobre o capital impede-se a especulação financeira, pois, na cooperativa, o capital deve ser fator de produção e não de renda financeira (Brasil, 1988; Xavier, 2005).

Em uma cooperativa autogestionária, os associados são os donos da empresa cooperativa que, reunidos em assembléia geral, definem, pelo voto, os objetivos e funcionamento do negócio. As decisões tomadas nestas reuniões gerais devem ser respeitadas e cumpridas pela Diretoria e demais associados, estejam ou não presentes às assembléias (Drimer e Drimer, 1984; Xavier, 2005).

A participação é o objetivo e o meio para se criar e manter uma cooperativa. É "objetivo" porque é com a finalidade de participar da riqueza e benefícios gerados pelo seu trabalho que as pessoas se unem nessa forma de sociedade. É "meio" porque somente através da efetiva participação de todos os sócios se obtém o sucesso das metas socioeconômicas do empreendimento (Limbemberg, 1996; Faveret Filho, 1996; Guillerm e Bourdet, 1976; Lucena, 1994; Silva et al, 2003).

Uma questão que se relaciona à mudança de postura do trabalhador para cooperado tem a ver com a apropriação/expropriação do conceito de cooperativa por parte dos cooperados, e os símbolos a ele ligados. Dejours (1996) afirma que as patologias de cunho psicológico têm tido uma ênfase cada vez maior no mundo do trabalho na contemporaneidade, estresse, estafa mental, burnout, entre outros; vêm tomando conta do cenário da saúde no trabalho. Esse fenômeno é apontado pelo autor como resposta a uma falta cada vez maior de simbolização da atividade produtora, ou seja, da atividade de transformar a natureza em materiais de valor utilitário ou de mercado, o que se relaciona principalmente com a organização do trabalho subordinado e os modelos de gestão. As cooperativas autogestionárias poderiam vir a se constituir em um contraponto a essa situação. Nesse sentido, Sato (1999) considera o processo de construção de cooperativas como uma interação que envolve dimensões simbólicas e materiais, de ordem política, econômica e psicossocial, modificando a relação do trabalhador com seu trabalho.

Para se avaliar o funcionamento e a transformação do trabalhador de uma cooperativa, um aspecto importante a ser observado é como ocorre a participação de seus associados. O envolvimento do cooperado deve ir além da utilização dos serviços oferecidos e de sua freqüência em reuniões e assembléias e se consubstanciar nos sentimentos e relações que ele mantém com seu trabalho e com a cooperativa.

As organizações cooperativas, portanto, suscitam questões sobre a relação entre trabalho, autogestão e empreendedorismo (Rech, 1995). A principal delas tem a ver com o aspecto socioeconômico dessas associações, se elas realmente propiciam avanços na direção da maior democratização do trabalho, pela autogestão e posse coletiva dos meios de produção, superando assim a subordinação ao capital (Lima, 2004; Lins, 2001), e se essa superação é percebida pelos cooperados.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação entre o trabalho cooperativo e a concepção que o trabalhador construiu, ao longo do tempo, do seu papel na cooperativa. Pretendeu-se verificar, por meio dos discursos dos cooperados, como eles percebem a cooperativa e seu trabalho. Foi analisado, especificamente, o impacto da mudança na estrutura do trabalho de empregados para cooperados sobre a percepção de seus papéis como trabalhadores e, ao mesmo tempo, gerentes do negócio, principalmente no que diz respeito às relações de poder.

A importância dessa reflexão e análise consiste em perceber o fio condutor das mudanças ocorridas nas relações de trabalho e verificar se houve mudanças equivalentes no interior dos sujeitos. Em outras palavras, identificar se os antigos empregados de uma empresa estatal, hoje trabalhando em uma cooperativa, conseguiram formar uma nova cultura no seio da cooperativa ou se eles ainda se sentem como "empregados", sujeitos ao comando de outros, reproduzindo as mesmas relações de poder e a cultura da organização de onde vieram.

 

Método

Local do estudo e população estudada

A pesquisa foi realizada em uma empresa cooperativa autogestionária no Ceará que tem quatro anos de fundação, da qual participam trabalhadores com diferentes funções e formações. A empresa é regida pelos valores e princípios do cooperativismo e tem como ramo de atividade econômica a venda dos serviços profissionais dos cooperados, trabalhadores oriundos, na sua maioria, de uma única empresa privatizada. Trata-se de uma cooperativa que presta serviços à empresa de energia elétrica da cidade de Fortaleza. A cooperativa conta hoje com cerca de 768 associados, entre profissionais especialistas, agentes administrativos e engenheiros. Destes, 38 participaram desta pesquisa.

Foram realizados grupos focais com 16 dos 38 cooperados, divididos em dois grupos. Os grupos foram formados por pessoas com diferentes idades e classes sociais, tendo níveis de instrução do ensino fundamental ao superior completo. Os participantes eram todos homens, dado o tipo de trabalho da cooperativa, com idades variando de 18 a 50 anos.

Com cada grupo de oito participantes foram realizados três encontros em diferentes ocasiões, cada um com a duração aproximada de duas horas. Apenas um dos participantes faltou a dois dos encontros.

Os encontros foram realizados em uma sala que, na cooperativa, é utilizada para reuniões, um ambiente bastante agradável. Todos os encontros foram gravados e foram feitas algumas anotações, observando-se o estado físico e emocional do cooperado naquele momento.

Inicialmente, foram apresentados ao grupo um esboço da agenda dos encontros e um cronograma, com um tema definido para cada encontro. Os temas propostos para as discussões foram:

1. Concepção do papel de ser dono, autogestor, empreendedor: qual o entendimento, percepção, que se tem desses papéis?

2. A partir da sua experiência na cooperativa, qual a sua percepção de cooperativismo?

3. Com sua vinda para a cooperativa, quais suas expectativas? Para você, o que impede a construção dessa nova forma de pensar as relações de trabalho?

Foi solicitado aos participantes que preenchessem uma ficha em que eles deveriam informar a idade, o sexo, a profissão, o tempo na função e na cooperativa.

O primeiro encontro prosseguiu com uma breve dinâmica de apresentação do grupo e do pesquisador. Em seguida, o pesquisador esclareceu que a discussão seria de caráter informal, na tentativa de tornar o clima da reunião mais descontraído, espontâneo e participativo.

Questionários e entrevistas

Alguns cooperados, notando a organização dos encontros dentro da cooperativa, perguntaram se também podiam participar. Para não perturbar o andamento dos grupos focais, a esses cooperados foi fornecido um questionário, mantendo os mesmos temas de discussão apresentados aos grupos. Foram distribuídos 22 questionários.

Dezoito participantes receberam o questionário e o devolveram preenchido no dia seguinte. Preencheram também a ficha com seus dados pessoais. Os outros quatro preferiram que suas respostas fossem gravadas, afirmando que falando eram melhores que escrevendo.

 

Resultados

As entrevistas com os grupos focais foram gravadas e transcritas, bem como as entrevistas individuais. As transcrições foram analisadas juntamente com os questionários respondidos pelos cooperados. As principais idéias foram enquadradas dentro de uma série de categorias que descreveremos a seguir. Desenvolveram-se as idéias centrais, como proposto por Lefèvre F., Lefèvre M. e Teixeira (2000). Após a transcrição e análise, foram feitas várias leituras do material obtido e as fitas foram ouvidas várias vezes para confirmarem as categorias da análise. Os questionários e entrevistas foram analisados da mesma forma.

Na análise das idéias centrais procurou-se especificar sua relação com as categorias normalmente propostas nos estudos sobre a cultura organizacional (Fleury & Fischer, 1996), especificamente as relações de poder e as concepções sobre liderança e sobre o papel dos trabalhadores cooperados. Ao final da análise, foi construído o "Discurso do Sujeito Coletivo" (DSC), mostrando as principais idéias e sentimentos dos cooperados na sua relação com o trabalho.

Duas categorias principais emergiram dos discursos colhidos: a primeira tem a ver com a relação dos cooperados com os ganhos e benefícios oriundos do trabalho, e a segunda, com as relações entre os profissionais em diferentes posições na estrutura da cooperativa, aqui denominados de aspectos psicossoais. Além disso, parece não haver um discurso único, mas três posturas distintas: a dos cooperados em posições de direção ou coordenação dos serviços; a dos cooperados que não são oriundos da estatal e, finalmente, os que anteriormente eram empregados da empresa estatal.

Direitos, benefícios e salários: repetições do modelo tradicional

A cooperativa de trabalho, na visão do cooperado ex-estatal, não consegue manter os benefícios que eram fornecidos aos trabalhadores na empresa de onde vieram. Assim, os cooperados, incluindo os dirigentes, mas em menor escala, sentem a falta desses benefícios e não conseguem canalizar esforços coletivos para substituí-los por uma forma adequada à cooperativa. Desejam os mesmos direitos que tinham na empresa estatal, sem se darem conta de que a realidade de trabalho na cooperativa é outra. A mudança da empresa estatal para a cooperativa é praticamente ignorada, levando o trabalhador a reclamar "melhores salários" e "benefícios médicos e odontológicos", entre outros.

Para os que não vieram da estatal, no entanto, as condições são vistas de maneira diferente. Consideram as condições de trabalho da cooperativa melhores que sua condição anterior nas empresas tradicionais de prestação de serviços, mas queixam-se dos colegas ex-estatal que querem "manter os privilégios" que tinham na estatal.

Piccinnini (2004), nas entrevistas com dirigentes de cooperativas de Porto Alegre, encontrou que as cooperativas tentam oferecer aos cooperados algum tipo de benefício tais como planos de saúde, mas a definição do tipo e qualidade do benefício, dependem das condições da cooperativa e nem sempre atendem às expectativas dos cooperados. Isto, é claro, se relaciona ao fato de as cooperativas, na atual ordem socioeconômica, serem, acima de tudo, uma alternativa do capital para a diminuição dos custos do trabalho. Os ganhos da cooperativa nem sempre comportam os benefícios almejados pelos trabalhadores.

Quanto aos "salários", os cooperados mais antigos e mais comprometidos com a cooperativa, bem como os que ocupam os cargos de diretoria tentam incutir nos cooperados a noção de que seus ganhos são o resultado do que eles produzem e que isso não deve ser denominado de salário, mas sim "resultado do trabalho". Contudo, os cooperados agem em relação aos ganhos como se fossem verdadeiros "salários", inclusive utilizando o termo constantemente. Queixam-se do "salário", pois este, sem dúvida, não se compara ao percebido na empresa estatal. Já os cooperados que não são oriundos da estatal, admitem ter melhorado seu nível "salarial" e se sentem satisfeitos com isso.

Cacciamali e Brito (2002) ressaltam que, nos contratos terceirizados pelas grandes empresas, a mão-de-obra contratada pode estar sujeita às mesmas situações dos empregados contratados diretamente pela empresa, apresentando, contudo, maior insegurança na manutenção de seu contrato de trabalho e, em geral, condições de trabalho inferiores àquelas deliberadas para os trabalhadores contratados diretamente. Os autores citam como exemplo especificamente a contratação sob a forma de cooperativa de trabalho. Assim, os cooperados ex-estatal se sentem expropriados de seus ganhos e benefícios, enquanto os outros comparam sua situação atual com os empregos em outras empresas, em que o nível de precarização do trabalho é provavelmente igual ou maior do que a que encontraram na cooperativa.

Chefes e subordinados: aspectos psicossociais

O modelo de gestão preconizado pelo sistema taylorista/fordista deveria ser o pivô da mudança de um trabalho subordinado para o autogestionário, transformando trabalhadores em cooperados. No entanto, os cooperados não demonstram uma mudança significativa em relação a suas atitudes para com as lideranças. Percebem os coordenadores não como companheiros de trabalho, mas como "chefes". Isto é, continuam a ver na figura do coordenador o "chefe que manda e determina o que se deve fazer". Os cooperados não se colocam em uma postura de igualdade com os coordenadores, sentem-se como subordinados. Por outro lado, o coordenador, quando assume a função, passa a se relacionar mais com a diretoria e a manter "uma certa distância" em relação aos companheiros. Os cooperados apontam os dirigentes e coordenadores como detentores de privilégios e de melhores ganhos.

Os discursos mostram que o significado refletido nas relações coordenador-cooperado é apenas uma repetição da que ocorre nos modelos tradicionais, não havendo, portanto, uma superação. As mesmas "distâncias de poder", características das empresas tradicionais e causadores de sofrimento (Fleury & Fischer, 1996), se mantêm na cooperativa.

As atitudes em relação à diretoria não se diferenciam das que normalmente ocorrem nas empresas em geral. A diretoria é criticada e responsabilizada pelas mazelas que ocorrem com os cooperados. Os cooperados a responsabilizam por qualquer eventualidade que venha a ocorrer no curso de suas atividades, o que denota, por parte dos cooperados não dirigentes, uma "postura de expectador" na relação. Os cooperados não se sentem responsáveis pelo próprio trabalho e não tomam iniciativas, mantendo uma postura de passividade em relação à situação de trabalho. No momento em que os coordenadores tentam compartilhar as responsabilidades do trabalho, os cooperados se negam a fazê-lo, sempre "esperando" que alguém tome a iniciativa e se responsabilize por ele. Isto reflete, em parte, a própria postura dos coordenadores, que ao assumirem o posto passam a repetir as atitudes de um "chefe" na empresa tradicional.

Na percepção do cooperado, há dentro da cooperativa uma nítida divisão entre os que pensam e os que fazem o trabalho, bem aos moldes do modelo tradicional taylorista/fordista (Antunes, 1998). Inclusive, os ganhos de cada profissional se diferenciam de acordo com essa fórmula. Na distribuição dos ganhos relacionados aos diferentes contratos feitos pela cooperativa, os que planejam o trabalho sempre aparecem com maiores vantagens do que os "operários". Essa situação é contestada, mas não é modificada, causando as mesmas insatisfações que ocorrem em uma empresa tradicional.

As idéias contidas nos discursos estão em contradição, ao menos na cooperativa pesquisada, ao afirmado por Ruffino (2003), que analisou três cooperativas de trabalhadores e concluiu que houve uma melhora, em comparação com os modelos tradicionais de gestão do trabalho, na contribuição e participação dos membros das cooperativas. Essa melhora, no entanto, é percebida por alguns dirigentes, reforçando, portanto, a idéia de repetição dos modelos tradicionais de gestão e mostrando a existência de conflitos internos, similares aos existentes nas empresas tradicionais.

Sato (1999), discutindo o processo de formação de grupos cooperados, afirma que o processo não passa apenas por aspectos técnicos formais, mas por processos de negociação entre os membros do grupo que colocam no contexto as expressões de diferentes sujeitos, ou diferentes subjetividades. Pontua que em contextos de "poder e controle assimétricos - tanto material como simbólico-", pode acontecer a não explicitação de conflitos, pois "o poder do outro pode implicar na exclusão daquele que detém menor poder e controle" e que isso pode levar a comportamentos de evitação e silêncio, às vezes interpretados como consentimento, mas que é o oposto disso, "onde papéis sociais já desempenhados anteriormente - de empregado, de subordinado e de chefe - acabam por dificultar a construção e o exercício da comunicação." Ainda segundo a autora, o desafio das cooperativas de trabalho é

(...) criar um novo modo de relacionar-se, de ver o trabalho e a vida, que opere através de uma outra racionalidade, que não a instrumental, a partir das pessoas que somos, das experiências de vida que temos e da sociedade onde vivemos, tendo, ainda que não como objetivo único e prioritário, a busca de condições materiais de sobrevivência.

Apesar de não terem uma idéia clara de seu papel na estrutura da cooperativa e de se ressentirem com os dispositivos inerentes ao tipo de remuneração recebida, as expectativas dos participantes da pesquisa são positivas e estão mescladas por idealizações, desejos e vontade de mudança. De uma certa forma, a cooperativa é percebida como este espaço para mudanças e como uma situação que permite a viabilização de projetos pessoais e coletivos num contínuo processo de superação de crises.

Essas considerações podem ser claramente percebidas no discurso do sujeito coletivo construído a partir das verbalizações dos participantes.

 

Discurso do Sujeito Coletivo do Cooperado Ex-Estatal

Chegar aqui não foi uma escolha. Eu fazia parte de um grupo de eletricistas, leituristas que diante da privatização da empresa teve que aceitar o PDV (pedido demissão voluntária). Era um grupo de homens com faixa de idade avançada, ia ser difícil encontrar emprego, com certeza não íamos ser aproveitados e, mesmo sendo aproveitados, íamos passar a ter salários bem inferiores, o jeito era construir algo que fosse nosso, que aproveitasse a mão de obra de tantos pais de família. Na verdade, vim por não ter outra opção, por não ter coragem de sair atrás de emprego com essa idade.

Claro que outros chegaram porque, queriam trabalhar, mas eles reclamam do quanto o ex-estatal esta mal acostumado, quer ter privilégios, se acha no direito de escolher serviço. Sei que a cooperativa é nossa, que não se preocupa com o lucro. Em nossas conversas, é comum a idéia de que tudo que é arrecadado é para ser distribuído entre os cooperados: um bom salário; dinheiro no bolso; temos de garantir um bom serviço médico/odontológico; não preciso trabalhar de domingo a domingo tirando serviço. O que não entendo é porque o tomador de serviço, a [empresa ex- estatal], é que nos diz como trabalhar e como organizar nosso trabalho interno e de campo e porque tudo que acontece aqui o cooperado vai reclamar na ex-estatal, ela fica sabendo de tudo que acontece aqui. Temos que dizer para ela que ela não manda mais em nós.

Nós ainda não temos consciência de que não somos mais ex-estatal pelo fato de nós ainda pensarmos que lá a coisa era fácil, trabalho pouco, muitas garantias e gratificações, bom salário. Por querer que a cooperativa garanta serviços de oficina, de combustível, porque senão não vai trabalhar. Tem um cooperado, entre outros que trabalham comigo, ex-estatal, diz que a Cooperativa tem que garantir os serviços de oficina, de combustível porque senão, não vai trabalhar, eu digo: - companheiro, você já recebe um bom percentual para manter o seu carro em perfeitas condições de trabalho, quando você agrega o seu carro na empresa, você já tem essa garantia, não tem porque você estar falando isso.

Não vejo diferença entre os chefes da ex-estatal com o coordenador daqui, os de lá eram e são melhores. Aqui gritam, esbravejam, não têm modos ao se dirigir ao cooperado trabalhador, querem ser ouvidos e temos que obedecer. Aqui o L., mesmo sem ser o presidente, é o dono, é quem manda mais, toda a diretoria, conselhos baixam a cabeça para ele.

Não sei o que passa na cabeça do cooperado. Quando ele é apenas leiturista, eletricista e passa a ser coordenador de serviços, passa a ter um cargo, ocupar um lugar de chefe, não é mais o mesmo. Ele é um cooperado como qualquer outro, mas a partir do momento em que passa a ter um cargo na cooperativa, não é mais o mesmo para os cooperados. Se houve eleição, ele se candidatou, venceu e assume o cargo de coordenação por um período na cooperativa, no dia seguinte as pessoas já não o olham como no dia anterior. Por ele estar lá em outro local e, é claro, estar lá comandando, assume certas responsabilidades, que não tinha antigamente, as pessoas não entendem. E ainda dizem: - olha, bastou ser coordenador, agora já está diferente. Essa é uma relação que tem que ser trabalhada. Não conheço, ainda, nenhum cooperado que tenha se tornado coordenador, que tenha continuado o mesmo, eu sou uma pessoa que bate muito sobre isso e estou com medo de pegar esse mal.

Não há por parte dos coordenadores o escutar o cooperado. Muitas vezes determinam, dizem como fazer. Vou dar um exemplo. Certa vez, eu estava aqui no horário da tarde e o meu chefe disse: - tenho uma coisa para lhe dizer, mas só vou dizer amanhã, quando você vier pegar o serviço. Mas eu vou levar o serviço agora. Então diz logo. Não, você vai vir amanhã, pega o seu serviço, aí eu te digo. Como? Vai ser preciso eu gastar dinheiro com o transporte, pra você me falar e eu pegar o serviço. Isso é brincadeira. Não é brincadeira, ninguém vai levar serviço hoje. Achei isso abuso de poder.

Uma vez, cheguei para conversar, pedir explicação, deixar os acontecimentos, as coisas claras, pedir informações, buscando respostas para algumas coisas e o que um dos diretores me disse: - Cara, pra que tantas perguntas, deixa que a diretoria resolve isso, fiquei frustrado. Eu trabalho, produzo, faço bem o meu trabalho, quero que a cooperativa cresça e eu não faço nada para mudar e ninguém faz nada.

Acho também que um grande problema para a cooperativa é o de estar sempre convivendo com o limite de endividamento. Qualquer coisa que aconteça, que extrapola aquele limite, fica-se desesperado para arranjar recurso de onde não tem. Acho fator decisivo a gente ter um capital de giro para esses momentos turbulentos, para assim sanear e continuar em frente. Atualmente, nosso maior problema está nas decisões políticas de pagar a folha de algumas coordenações, quando esta ultrapassa o percentual permitido. Essa decisão política da diretoria de pagar fez o problema complicar. As APS (Apontamento de Produção e Serviço) pagas pela empresa contratante foram de valor menor do que o valor a ser pago ao cooperado. A folha de pagamento foi muito maior.

Quando a contratante paralisa as equipes no campo por estarem com os EPI's e EPC's em péssimas condições de uso, canso de ouvir os cooperados dizerem: - a multa a ser paga não é culpa minha, cadê a diretoria que não vem ver se o nosso material está em boa condição de uso e trabalho. Vejo nesses cooperados um total descompromisso, querendo se isentar da responsabilidade pelo seu trabalho.

Estamos sempre esperando que alguém assuma a responsabilidade que é de todos, porque é que têm alguns que mandam tanto e outros só obedecem? É difícil compreender o sistema cooperativo. Não entendo muito, em alguns momentos sou dono, em outro sou o empregado que apenas cumpre ordem e realiza tarefas, não cabe a mim decidir seus rumos.

Na nossa cooperativa, a grande mudança tem que acontecer na cabeça do cooperado, porque geralmente dizem assim: a cooperativa tem que mudar, mas todo mundo só pensa que são os diretores, coordenadores, não pensam que a cooperativa é um todo, fica difícil mudar a cooperativa assim, temos que mudar nossa maneira de ser e pensar, começando por não culpar somente a diretoria ou coordenações por irresponsabilidades pessoais,não posso dizer que culpa dá multa, é de A ou B, quando ela é minha.

Existe entre nós uma divisão de ganhos que eu não compreendo, quem mais trabalha é que menos ganha, ralo o mês inteiro, pego serviço de quem não quer fazer o serviço, mesmo assim meu salário não melhora, já tenho mais de dois anos na cooperativa e nunca houve um aumento. E o pior é não receber no dia certo, trabalho o mês inteiro, entro no outro e não recebo o meu salário, foi o meu suor, a minha luta, eu mereço o meu salário. Não é fácil. Não podemos negar que para alguns o salário daqui é bom, o ruim é não ter um dia certo para receber e assim organizar a vida da gente. Já pensei em sair daqui, minha produção é baixa e meu salário uma miséria e ainda não sai no dia. Devo aluguel, luz já foi cortada, o que ganho não dá. Só os cooperados que assumem coordenações, cargos de diretoria, têm uma significativa melhora quanto aos ganhos, para eles a cooperativa significa uma melhora considerável.

O que se vê muito por aqui é a desigualdade, o cara que entrou junto com a gente, sem ter onde cair morto, 3 ou 4 meses depois que assumiu coordenação já tem carro, já aluga carro para a cooperativa, tem casa de praia etc. Isso é estranho, mas é o que estamos vendo. Pena é que ninguém vê o contra-cheque desses coordenadores, a nossa produção é exposta, todos vêm, mas o que coordenações e diretoria recebem, isso não é do conhecimento de todos.

Critica-se muito o coordenador técnico por ele receber o que ele recebe, mas nenhum de nós tem a coragem de falar isso para ele. Quando ele, em assembléia, fez todo mundo achar que os ganhos dele estavam corretos, nenhum de nós levantou a voz e disse que não aceitava isso. Agora está aí ganhando os tubos de dinheiro e todo mundo tem medo devido à forma como ele fala com a gente, aos berros, e só estamos manifestando isso porque quem está ouvindo é uma amiga nossa, se não fosse a gente não tinha essa coragem não.

Não adianta, quem tem cabeça para pensar aqui é o coordenador técnico, ele determina o que fazer, como fazer e quem vai fazer, os outros só obedecem e se submetem aos seus mandos e desmando. É, companheiro, o problema está na diretoria que deu ao coordenador técnico muito poder, agora ninguém consegue cortar as asas dele, não serei eu a fazer isso.

Numa reunião ouvi o pessoal da Universidade falando sobre isso, mas não me pergunte, pois é coisa que eu não entendo. Sei que tenho que trabalhar muito, mas muito mesmo, para garantir o meu salário e o dos outros.

O que se vê faz qualquer um desanimar, não há como melhorar, as melhoras só chegam para alguns. Eu pensava que aqui fosse diferente, de todos os lugares que eu tinha passado enquanto celetista, lá é normal enriquecer o patrão: na hora de trabalhar divide tarefa, na hora de dividir lucro, isso nunca foi posto em prática. Não há uma preocupação com as pessoas, como estão, se são e estão bem, os coordenadores não sabem tratar os cooperados, não sabem dialogar, muitos mandos e desmandos, isso não deve ser o tratamento com o cooperado, é o nosso trabalho de campo que sustenta tudo isso. O que vem causando muita incerteza, insegurança é a falta de clareza, porque estamos nessa situação tão difícil, onde está a tão prometida gestão participativa, porque as informações só chegam a um nível de cooperados, porque os cooperados do campo não recebem as mesmas informações. Estou insatisfeito com essa política que a cooperativa encontrou de fazer as coisas, porque não se conversa ou ouve o cooperado.

 

Considerações finais

Este trabalho procurou compreender como os trabalhadores cooperados percebem a cooperativa e seu trabalho dentro dela. Os grupos focais, entrevistas e questionários mostraram um conjunto de dimensões importantes a serem levadas em consideração em qualquer projeto de cooperativa com relação à postura dos cooperados e sua compreensão do trabalho autogestionário. Colocam também em questão a validade do modelo na perspectiva de uma mudança real, positiva, nas condições de trabalho e de vida dos cooperados.

É importante ressaltar que a cooperativa analisada é considerada na região como um modelo de cooperativa, não se constituindo em uma cooperativa "de fachada", uma vez que são cumpridas todas as exigências legais para este tipo de associação e que grande parte de seus membros, pelo menos os fundadores, afirmam que o cerne da cooperativa é, de fato, os princípios autogestionários.

No entanto, a análise dos discursos mostrou que a atitude geral dos cooperados ainda é bastante passiva e pouco efetiva nas decisões, pois participam muito pouco e acreditam que esse é o seu papel, procurando se envolver apenas o suficiente para a realização do seu trabalho. Essa postura é coerente com a atitude que, em geral, os trabalhadores demonstram nas organizações tradicionais. Por outro lado, nota-se também que os cooperados que possuem experiências anteriores em organizações sociais ou trabalhos coletivos tendem a ter seu desempenho potencializado dentro da gestão da cooperativa e no seu próprio trabalho.

Em relação às lideranças, pode-se perceber que elas apresentam dificuldades quanto às relações interpessoais e à forma de gestão democrática, características inerentes ao trabalho em cooperativa. As lideranças atuais da cooperativa em estudo não parecem possuir o perfil necessário aos líderes da associação. A diretoria e seus técnicos, indicados com base apenas no estilo carismático, não sabem ou não querem ouvir os cooperados, agem como se fossem os reais "donos" da empresa.

Por outro lado, os cooperados delegam aos líderes informais e formais o poder de decisão que só caberia à assembléia, ou seja, a eles mesmos, e tendem a reclamar das decisões tomadas, mostrando um distanciamento do poder e repetindo a atitude que os trabalhadores normalmente demonstram nas organizações tradicionais.

Os cooperados estudados aqui trouxeram para a cooperativa sua história de vida pessoal dentro da organização de onde se originou a cooperativa. Este fato determina, por exemplo, a forma de relacionamento interno: são relações embrutecidas com pouco respeito para com os outros associados/trabalhadores, colegas da cooperativa. A auto-estima dos associados é, em geral, baixa, o que dificulta o processo de apropriação da idéia de ser cooperado e dono. O foco dos cooperados ainda está no ganho individual, não havendo uma visão compartilhada das vantagens do trabalho coletivo. Em alguns casos,os cooperados querem obter os privilégios que tinham na organização original e repetem as atitudes que tinham naquela organização.

A discussão levantada por este trabalho pode ser resumida em duas questões interrelacionadas. A primeira diz respeito à indagação sobre o objetivo do trabalho cooperativo no atual momento econômico do país, se é apenas uma alternativa ao desemprego, como apontado por Singer (2000) e Lins (2004), ou se traz em sua essência a perspectiva de transformação do modo de pensar o trabalho, da construção de uma nova cultura nas relações de trabalho. Esta última questão se refere à reflexão de que a existência de cooperativas, mesmo as verdadeiras, não garante as transformações individuais e sociais necessárias para uma real modificação nas relações de trabalho.

No caso da cooperativa em questão, é evidente, pelo discurso de alguns trabalhadores, que a cooperativa é apenas uma alternativa ao desemprego e que, se pudessem, voltariam a trabalhar na empresa estatal original. Esta fala vem geralmente acompanhada da idéia de perda de benefícios e direitos, bem como rebaixamento salarial e insegurança. Assim, a resposta à primeira indagação é a de que, embora os princípios gerais da cooperativa sejam realmente os tradicionais, para os cooperados ela é, na maior parte das vezes, uma alternativa ao desemprego e pouco mais que isso.

Pelos discursos, pode-se notar que não há de fato a construção de uma alternativa ao modo de produção capitalista no que concerne à percepção de seu papel social. Na verdade, o trabalhador não se transforma, apenas repete os comportamentos e atitudes aprendidas e vivenciadas no sistema capitalista de trabalho, e não poderia ser diferente. Como discute Lins (2001), as cooperativas são o reflexo do aprofundamento da deterioração das condições de trabalho e é dessa maneira que o cooperado percebe sua situação e não como uma alternativa de trabalho e modelo de produção.

Para que haja uma mudança nas relações de trabalho e nas condições de vida dos cooperados, são necessários mecanismos de organização das atividades produtivas e mudanças sociais que ultrapassem as experiências de organização do trabalho cooperativo, uma vez que essa organização está presa às relações com o mercado e à regulamentação das cooperativas feita pelo aparelho jurídico do Estado.

Essa transformação é ainda pouco provável, uma vez que na cooperativa prevalecem os modelos de gestão capitalista, em especial o modelo taylorista, com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, a fragmentação da produção e a conseqüente perda do controle sobre o processo de trabalho, separando-se assim a produção da gestão, a economia da política, a política da técnica.

Na prática, a igualdade de condições em que se colocam os associados para gerir a empresa, no início, vai, aos poucos, dando lugar à diferenciação entre técnicos e operários, entre os que administram e os que executam. Além do mais, o discurso sobre a propriedade dos meios de produção e a gestão democrática não coincidem com a subordinação que a empresa acaba adotando para responder aos contratos firmados, para procurar novos contratos ou para substituí-los, buscando amparar as necessidades financeiras da cooperativa e dos cooperados. Isto acaba por impor um horário de trabalho rígido ou algo semelhante, no mesmo modelo da empresa tradicional e uma diferença salarial marcante entre os que administram e os que executam. São os que pensam, de fato, os que dominam as assembléias gerais, porque os que incorporaram a caracterização de "ignorantes" (operários) não falam para não confirmar o papel que lhes foi delegado nessa cultura híbrida, como bem pontua Sato (1999). Os "operários", os menos escolarizados e ligados diretamente à produção, ao serem interpelados sobre as diferenças salariais, são capazes de justificá-las pela "competência": os que administram devem ter vantagens salariais. Um ponto positivo, no entanto, é que nem todos percebem as diferenças de ganhos como "naturais", expondo claramente suas insatisfações em relação à divisão dos lucros.

A cultura, enquanto fonte de transformação do pensar, não se manifesta de forma imediata, mas é resultante da própria história pessoal do associado e do modo pelo qual a cooperativa foi formada. Os fatores socioculturais externos influenciam de forma direta as relações e a formação autogestionária, impedindo que a participação e a autogestão real ocorram.

De maneira geral, não se nota uma apropriação real, pelos cooperados, da natureza de uma organização de trabalho cooperativista, que tem como principais pilares uma nova cultura, a autogestão e a idéia de ser dono. Este processo de apropriação requer uma transição de cultura, necessitando de indivíduos críticos e autônomos, indivíduos que precisam sentir que há de fato uma mudança social em curso. A falta de apropriação e a manutenção dos padrões de trabalho formal dentro de uma organização autogestionada criam incompatibilidades nos cooperados que são vividas na forma de mal-estar, expresso pela insatisfação, as críticas veladas, a delegação de responsabilidade por ganho menor, etc.

Em síntese, podemos perceber claramente a dificuldade dos cooperados em romper com o modelo de trabalho a que estavam submetidos. Desta forma, a própria estrutura da cooperativa encontra dificuldades para se estabelecer de uma forma consistente e satisfatória às expectativas destes cooperados; não apenas em termos de ganhos financeiros, mas de apropriação da condição de produtor e gestor de seu trabalho.

Uma alternativa para o problema é a criação de mecanismos para uma capacitação ao modelo cooperativo. Esta ação deveria não somente instrumentalizar administrativamente e legalmente os novos cooperados, mas, principalmente, buscar uma mudança de posicionamento frente a esse novo tipo de empreendimento. Essa mudança se expressaria, de maneira central, na apropriação do modelo cooperativo em contra-parte ao modelo vigente. Os pesquisadores da área da Psicologia do Trabalho, principalmente os que estudam a precarização do trabalho e novas alternativas para os sujeitos inseridos na cadeia produtiva, tem, com a perspectiva de desenvolver pesquisas desta natureza, um campo amplo na interface da Psicologia com a Educação como movimento teórico para desenvolvimento de instrumentos que possam auxiliar nessa apropriação dos novos cooperados e seu reposicionamento na vida comunitária. Mesmo cientes de que romper com a estrutura de mercado já estabelecida e com as relações de trabalho na contemporaneidade é um trabalho demasiadamente amplo para ser alcançado em um só estudo ou intervenção, iniciativas dessa natureza poderiam minimizar o impacto da passagem de um modelo de trabalho tradicional para um modelo cooperado, amenizando o mal-estar causado pela não apropriação desse novo conceito produtivo.

 

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Recebido em 20 de janeiro de 2006
Aceito em 06 de fevereiro de 2006
Revisado em 20 de junho de 2006

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