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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.1 Fortaleza mar. 2007

 

ARTIGOS

 

Problematizações feministas à obra de Michel Foucault

 

 

Martha NarvazI; Henrique Caetano NardiII

IPsicóloga e psicoterapeuta feminista. Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Integra o Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua e o Movimento Feminista Coletivo, Feminino Plural, de Porto Alegre. End.: Rua Wenceslau Escobar, 1086, ap. 919. Bairro Tristeza. Porto Alegre, RS. CEP: 91900-000. E-mail: phoenx@terra.com.br
IIMédico sanitarista e do trabalho. Doutor em Sociologia pela UFRGS. Professor do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Endereço: Rua Ramiro Barcelos, 2600/312. Porto Alegre, RS. CEP: 90035-003. E-mail: hcnardi@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe-se a problematizar alguns aspectos da obra de Michel Foucault a partir do diálogo - mutuamente enriquecedor - entre Foucault e os estudos feministas. Mantidas as diferenças e as tensões que lhes são constitutivas, acreditamos que as feministas podem operar, a partir das ferramentas conceituais desenvolvidas por Foucault, na desconstrução dos discursos hegemônicos acerca dos sexos e dos gêneros, tanto quanto os foucaultianos podem igualmente enriquecer suas análises através da incorporação das problematizações feministas às suas reflexões. Inicialmente, destacamos algumas convergências entre Foucault e o feminismo, em especial no que se refere às questões da ética, da liberdade, do poder, da crítica à razão ocidental e à teoria universalizante do sujeito. A seguir, apontamos algumas áreas problemáticas na obra de Foucault, entre elas a omissão dos aspectos de gênero e da erótica feminina em seus escritos. Ao final, discutimos as implicações da recuperação de Foucault do modelo de relações da Grécia Antiga, androcêntrico, desigualitário e hierárquico, na busca por modos de subjetivação sustentados em uma ética construída em torno da prática reflexiva da liberdade e de uma nova estética da existência.

Palavras-chave: feminismo, estudos feministas, gênero, Michel Foucault, perspectivas androcêntricas.


ABSTRACT

This paper intends to discuss some aspects of Michel Foucault's work from a dialogue - mutually enriched - between Foucault and feminist studies. Without eliminating differences and tensions that are constituent of both perspectives, we believed that feminists can operate, based on conceptual tools developed by Foucault, to overcome dominant discourses about sex and gender, so much as foucaultians equally can enrich their analyses through incorporation of feminist arguments in its reflexions. Initially, we highlighted some convergences between Foucault and feminism, especially about ethics, freedom, power and critic to western reason and to subject's theory. To proceed our critique, we point to some problematical areas at Foucault's work, among them: Foucault's omission of gender and feminine eroticism issues in his writings. Finally, we discuss some implications of Foucault's choice in recuperating the relationship's model of Ancient Greece known as a male-centered, unequal and hierarchical, in his search to think modes of subjectification sustained in an ethics based on the reflexive practice of liberty in search of a new aesthetics of existence.

Keywords: feminism, feminist studies, gender, Michel Foucault, androcentric perspectives.


 

 

Introdução

Michel Foucault mostrou-nos, através de sua vasta e inquietante obra, os efeitos normatizantes dos modos de dominação na produção da subjetividade humana. Considerado um dos filósofos de maior influência no pensamento moderno sobre a sexualidade, diversos estudos feministas têm sido produzidos a partir das ferramentas foucaultianas. Segundo Roso & Parker (2002), Foucault (1990a) questiona a constituição da categoria sexualidade em seus códigos morais ao longo da história, daí a importância de seu trabalho para a teoria feminista. Questionar a sexualidade "em si mesma" significa compreender a sexualidade a partir das relações de poder que a conformam em cada período da história e em cada contexto socioeconômico e cultural. Apesar da crítica das feministas à omissão dos aspectos de gênero nas análises de Foucault, Diamond & Quinby (1988) destacam algumas convergências entre o pensamento feminista e a obra de Foucault: 1) ambos identificam o corpo como o local de poder, como o locus de dominação através do qual a docilidade é executada e a subjetividade constituída; 2) ambos apontam para as relações locais do poder ao invés de concebê-lo apenas como o poder vertical do Estado ou do capital; 3) ambos enfatizam o papel crucial do discurso e sua capacidade de produzir e sustentar as formas de dominação e enfatizam os desafios e as possibilidades de resistência dos discursos marginalizados; 4) ambos criticam o humanismo Ocidental que tem privilegiado a experiência da elite masculina em seus universais de verdade, liberdade e natureza humana. Estas convergências incluem algumas das formas mais poderosas de resistência das quais as feministas têm-se valido em suas produções teóricas e políticas nas últimas décadas do séc. XX (Diamond & Quinby, 1998), tais como as práticas de empoderamento dos grupos de mulheres e a proposição de políticas feministas afirmativas, ou seja, políticas destinadas a reduzir as históricas desigualdades sofridas pelas mulheres, tais como, por exemplo, a criação de uma legislação que respeite a paridade nos cargos políticos, no acesso à educação e na remuneração (Negrão, 2002; Prá, 1997).

Pensando ser possível estabelecer um diálogo entre Foucault e o feminismo, mantidas as diferenças e as tensões que lhes são constitutivas, este trabalho propõe-se a problematizar alguns aspectos da obra de Foucault a partir do olhar dos estudos feministas, acreditando que as (os) feministas podem operar, a partir das ferramentas conceituais desenvolvidas por Foucault, na desconstrução dos discursos hegemônicos acerca dos sexos e dos gêneros, tanto quanto os foucaultianos podem igualmente enriquecer suas análises através da incorporação das problematizações feministas.

 

1. Foucault e o movimento feminista: em defesa da liberdade

Alvárez-Uría (1985) destaca o compromisso apaixonado em defesa da liberdade presente no projeto intelectual e político da obra de Foucault, que reivindica o direito à liberdade como um direito inscrito na idéia de Humanidade. A preocupação com a liberdade é evidente em seus trabalhos, destinados a evidenciar a estrutura indissociável das relações de poder e saber, relações essas que atravessam os corpos e as consciências, a fim de discipliná-los e controlá-los. Uma vez que a questão da liberdade remete a quem somos e ao que fazemos, percebemos e sentimos, as últimas obras de Foucault ocupam-se da elaboração de uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos em agentes morais (Alvárez-Uría, 1985). Influenciado pela Genealogia da Moral, de Nietzche (1998) - para quem o compromisso com a verdade necessita da crítica dos valores morais e do conhecimento das condições e circunstâncias nas quais surgiram, se desenvolveram e se modificaram - Foucault (1997) buscou compreender a história da moral ocidental. Tal busca levou-o a rastrear a moral instituída, entendida como dispositivo normatizante historicamente constituído que se apresentava como a verdadeira e única moral possível a ser seguida. Foucault, opondo-se a tratar as formas hegemônicas dos códigos morais como verdades inquestionáveis que devessem ser seguidos pelos indivíduos, buscou identificar as formas que regularam as condutas e negaram as práticas de liberdade através dos tempos. Ele acreditava que, através da reflexão ética e do cuidado de si, os sujeitos poderiam ampliar a prática reflexiva da liberdade. A fim de trazer elementos para a problematização de uma ética da existência fundada na reflexividade e na construção da vida como uma obra de arte, Foucault resgatou uma série de práticas, em especial da Antiguidade Grega, que possibilitariam discutir a fundação de uma nova ética para além da moral cristã ou das imposições do Estado. Nesta nova ética, para Foucault, a ação individual e o compromisso pessoal não poderiam estar desvinculados dos interesses coletivos, daí que Foucault buscou, segundo Alvárez-Uría (1985, p.20), "fazer uma história destinada a auxiliar homens e mulheres a estarem mais conscientes das ataduras visíveis e invisíveis da modernidade que hipotecam sua liberdade".

Sendo um tanto cético quanto às soluções políticas oferecidas à sociedade em sua época, Foucault (1999) entendia que o trabalho de um intelectual estaria em problematizar a realidade e questionar as formas próprias de pensar e atuar em cada tempo, participando na formação de um novo ethos político: "o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar libertar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, mas nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga" (Foucault, 1995, p.239). Embora tivesse atuado politicamente em alguns fóruns, como o Groupe d'Information sur les Prisions (GIP), e contribuído para a definição das lutas de seu tempo, Foucault (1999) era reticente em relação aos movimentos de libertação, dado que tais lutas estariam atravessadas pelos discursos de cientificidade dos especialistas, das teleologias predefinidas e dos argumentos dogmáticos, como, por exemplo, do Partido Comunista Francês. Foucault (1995) reconhecia a dominação de algumas "minorias", entre elas as mulheres, e entendia ser necessário, em algum momento, que tais minorias lutassem por sua libertação. Entretanto, ainda assim, era contrário às políticas identitárias dos movimentos libertários, propondo que "as relações que devemos manter conosco mesmos não devam ser relações de identidade, mas sim relações de diferenciação, de criação e de inovação" (Foucault, 1999, p. 421).

Butler (2003) diz que, embora Foucault se mostre crítico e reticente quanto às políticas identitárias e libertárias, há uma tensão não resolvida quando, ao ler-se Foucault (1990a) contra ele mesmo nos diários da hermafrodita Herculine, ou Alexina, Foucault parece se deleitar com a "derrubada do sexo". Tal constatação, típica das políticas emancipatórias das quais o feminismo é partidário, parece não muito distante do polimorfismo psicanalítico, do Eros bissexual original e criativo de Marcuse, ou das proposições libertárias de Reich que Foucault critica. Butler (2003) identifica, assim, um Foucault "oficial", antijurídico e antiemancipatório, que argumenta estar a sexualidade situada no interior das matrizes de poder, sendo produzida a partir de práticas históricas específicas. Nessa visão, uma sexualidade antes da lei seria ilusória e cúmplice das práticas emancipatórias. Ao mesmo tempo, continua Butler (2003), Foucault fala de um "limbo feliz de uma não identidade" ao referir-se à hermafrodita Herculine, o que parece vir ao encontro das políticas emancipatórias que diz contestar. As preocupações com as questões da liberdade e das relações éticas inscrevem-se como questões fundamentais tanto a Foucault quanto às pensadoras feministas, evidenciando-se aqui uma primeira aproximação, ao mesmo tempo em que uma primeira distinção. Apesar dos objetivos aparentemente diferentes do feminismo e de Foucault, ambos buscaram desconstruir os modos existentes mas invisibilizados de dominação. Para Foucault, o papel do intelectual estaria em desconstruir os modos de dominação que interpretam, proíbem ou invalidam discursos e saberes, resgatando, assim, sua potência (Foucault, 2000). Já o movimento feminista propõe uma ação assumidamente política com vistas à libertação de minorias historicamente oprimidas.

Jones (1994) identifica que a expressão "movimento feminista" não é isenta de confusões e preconceitos. Definido aqui a partir das concepções de Scott (1995) como movimento de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos, o feminismo reivindica que pessoas diferentes sejam tratadas não como iguais, mas como equivalentes. O movimento feminista denuncia que a experiência masculina tem sido privilegiada, enquanto a feminina, negligenciada e desvalorizada, assinalando as desigualdades entre homens e mulheres e desvelando as formas de opressão patriarcal e seus mecanismos de ocultamento. Diversos escritos, entre eles os de Millett (1970), demonstram a opressão não só de gênero, mas de etnia e de classe social que perpassa as mais variadas sociedades ao longo dos tempos, opressão esta que sustenta práticas discriminatórias como o racismo, o classismo e a exclusão de grupos de homossexuais e de outros grupos minoritários. O patriarcado - principal filosofia da opressão de gênero - é um modo predominante, geográfico e histórico, de relacionamentos, nos quais a política sexual implica no fato de que os homens estabelecem as regras de poder e de controle social (Millett,1970). Não se trata necessariamente do domínio do pai, mas, de modo geral, do domínio dos homens, lembra-nos Goldner (1985), domínio que tem assumido diferentes formas ao longo da história. Embora cada vez mais trabalhos como os de Perrot (1988, 1998) destaquem as formas de resistência feminina ao longo da história e contraponham-se à vitimização das mulheres, as feministas têm demonstrado que o poder foi (e ainda é) predominantemente masculino, cujo objetivo original foi a dominação das mulheres, especialmente de seus corpos (Diamond & Quinby, 1988). Esse desejo de dominação parece ser um projeto antropológico em vigor desde o neolítico. Sujeitar a natureza, aproveitar-se de seus recursos, conquistar outros povos e submetê-los para construir a prosperidade humana, estão presentes desde o Adão bíblico. Este projeto de poder/dominação ganhou sua expressão mais transparente a partir do século XVI, implícitos nos dizeres de Francis Bacon, "saber é poder" (só aos homens era concedida a chance de atingir a academia) e de René Descartes, "o homem é o mestre e a obra da natureza" (o que seria, então, a mulher?). Tal antropocentrismo, para Boff (1997), denota o androcentrismo, cujo paradigma de desenvolvimento legitima a dominação das mulheres na medida em que identifica a mulher com a natureza, que devem, ambas, ser submetidas, controladas e dominadas.

Para dar visibilidade a estas questões, o movimento feminista, que nasceu como movimento liberal entrelaçado aos movimentos sufragistas da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos e da Espanha, em uma primeira fase, teve, como esclarece Strey (1998), que recorrer à política identitária como forma de fortalecimento de uma categoria política, daí a criação da categoria "mulheres". O movimento feminista contemporâneo, entretanto, reflexo das transformações do pensamento original, predominantemente intelectual, branco e de classe média, se expressa como um discurso múltiplo e de variadas tendências (Negrão, 2002; Prá, 2002). Não há, portanto, um feminismo unívoco e totalizante, mas um feminismo plural, problemático, que questiona a si mesmo e as doutrinas do feminismo original. Pode-se dizer que há várias "ondas" do feminismo, cada uma historicamente construída conforme as necessidades políticas, o contexto material e social e as possibilidades discursivas de cada tempo (Scott, 1995). Coexistem, assim, correntes que atribuem ao patriarcado a origem da opressão de gênero (Goldner, 1985,1988; Millett, 1970) com teorias feministas que questionam a teoria universalizante do patriarcado, destacando outras formas de relação entre os sexos-gêneros, como nas sociedades primitivas matrifocais, como demonstrado pelos estudos antropológicos de Muraro (1997), ao colocar em evidência a organização social nas sociedades primitivas matrifocais, nas quais as mulheres ocupavam importante lugar na vida social (ver Narvaz & Koller, 2005, 2006a). Há, tanto em Foucault quanto no feminismo, uma preocupação com a liberdade, tanto na problematização das teorias totalizantes quanto na problematização das identidades aprisionadas no gênero, convergência esta que remete à questão da teoria do sujeito, desenvolvida a seguir.

 

2. Foucault, o feminismo e a crítica às teorias essencialistas do sujeito

As teorias essencialistas que fundamentaram as políticas de identidade do feminismo original na criação da categoria "mulheres" têm sido contestadas pelas feministas contemporâneas, destacando-se aqui os trabalhos de Harding (1993), Butler (1986, 2000, 2003) e Scott (1995), aspecto no qual convergem com o pensamento de Foucault. Para Foucault, "não há nenhum sujeito universal". Na última fase de seu trabalho, Foucault tenta destronar a soberania de um sujeito ilusório, produto, isto sim, das práticas disciplinares e dos discursos científicos da modernidade. Este sujeito não só está marcado por um imperativo de encontrar seu significado e sua identidade nas raízes supostamente "profundas" e "interiores" de sua individualidade, mas também - de acordo com o legado Cristão - deve renunciar a si, descobrindo-se como o produto de um ser pecador. Foucault (1999) refuta a noção desta suposta interioridade autônoma, imutável e universal que deve ser desvelada, introduzindo a noção de indivíduo da sociedade grega clássica, para a qual o indivíduo se constitui "como seu próprio mestre" de forma ativa e deliberada, através de determinados exercícios e práticas. Na atualidade, tal problematização procede na medida em que nos faz suscetíveis às operações normalizantes do poder inscritas na teoria do sujeito, que prescreve uma moralidade unitária. Foucault (1986) propõe a "busca de uma estética da existência" como alternativa possível de resistência à demanda hegemônica da moralidade cristã e à idéia de um sujeito universal.

O feminismo também esteve envolvido na busca de estilos alternativos de existência. Entretanto, tais "alternativas" foram fundadas na teoria dominante do sujeito e, conseqüentemente, contribuíram à normatização do poder, em lugar de explorar formas de resistência interiores a ele. Trabalhos feministas que apóiam idéias de uma feminilidade "inata" ou uma sexualidade "natural" estão profundamente implicados na teoria essencialista do sujeito universal da modernidade. A segunda metade do séc. XIX foi, em particular, o período no qual a idéia de um "verdadeiro self" e de uma identidade singular "inata" baseada na feminilidade ou na masculinidade predominou na sociedade Ocidental (Diamond & Quinby,1988). Trabalhos feministas dos séc. XIX e XX freqüentemente adotaram tal essencialismo, propondo a feminilidade como moralmente superior à masculinidade, ou argumentando que as pessoas seriam "verdadeiramente andróginas", embora a cultura as fizesse reprimir sua "outra parte". Poderosa crítica ao essencialismo foi feita pelas feministas marxistas e materialistas, bem como na atualidade têm sido combatidas as políticas identitárias (Scott, 1995). Judith Butler critica a política identitária das "mulheres do feminismo", entendendo que "a unidade da categoria 'mulheres' não é nem pressuposta nem desejada, uma vez que fixa e restringe os próprios sujeitos que liberta e espera representar" (Butler, 2003, p.213).

Definindo gênero, tal qual Scott (1995), como uma categoria relacional, as feministas problematizam o sistema sexo-gênero a partir da desconstrução do sexo como categoria natural binária e hierárquica. Tal desconstrução coloca em debate a política de identidade e a categoria das mulheres, estruturas fundantes do feminismo (Butler, 2003), revelando a instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista (Harding, 1993). Entretanto, tal instabilidade significou a abertura para possibilidades excluídas pelas teorias essencialistas ou totalizantes das categorias fixas e estáveis do gênero, que passa a ser entendido como ato performático, como efeito, produzido ou gerado (Butler,1986, 2003). Tal qual a análise foucaultiana do sujeito, a crítica feminista também se propõe a desconstruir as suposições ilusórias acerca de um sujeito autônomo e universal. Entretanto, para o feminismo, o problema vai além , uma vez que a definição deste sujeito particular dá-se a partir de uma perspectiva androcêntrica e eurocêntrica (Butler, 2003). A limitada e parcial consideração da experiência e das atividades do sujeito masculino da elite branca privilegiada e a correspondente desvalorização das experiências e atividades das mulheres e de outros grupos minoritários/dominados não privilegiados são centrais no humanismo Ocidental e, além disso, servem para manter sua subordinação. As realizações do humanismo Ocidental foram construídas muitas delas às custas das mulheres e das etnias não brancas, mas foram, no entanto, desconsideradas e mesmo negadas (Diamond & Quinby1988), ao que as historiadoras feministas têm tentado resgatar. O feminismo problematiza não só a teoria do sujeito, como o faz Foucault, mas denuncia a noção universalizante do sujeito a partir do sujeito masculino, que desconsidera a multiplicidade da experiência feminina, quer em sua forma particular de eroticidade, de racionalidade ou de suas práticas de resistência.

 

3. Foucault e a negação da erótica feminina

Além da crítica feminista a Foucault em sua omissão da questão de gênero na construção histórica da sexualidade e da subjetividade, o uso de formas masculinas de práticas eróticas como modelo generalizante a partir da sexualidade antiga igualmente tem sido alvo das problematizações feministas, tema especialmente desenvolvido por Greene (1996). Uma vez que a erótica - constitutiva da subjetividade humana - é tomada a partir do modelo masculino em Foucault, o pressuposto aí encontrado é o de que o modelo erótico masculino - que valoriza o modelo fálico e representa relações eróticas como necessariamente hierárquicas - é transferível para a erótica feminina. Foucault constrói uma visão da sexualidade baseado na erótica masculina da Grécia Antiga, uma erótica definida por Foucault como uma relação hierárquica entre um sujeito ativo e um partner passivo. Entretanto, apesar de o papel do menino - o partner passivo - ser o de "objeto de prazer" na relação, tal posição degradante poderia ser entendida como "honrada", se isto envolvesse um "treinamento para masculinidade, relações sociais futuras ou uma amizade duradoura". O deslocamento da erótica masculina para a erótica da humanidade em geral revela a negação de Foucault da singularidade da subjetividade feminina e da erótica das mulheres. Desconsidera, ainda, como aponta Greene (1996), outras possibilidades eróticas, como a erótica feminina evidenciada nos poemas de Sappho - que se baseia em relações de reciprocidade antes que em relações de dominação, perseguição e conquista entre um erasta e um erômeno. Também o discurso feminino expresso pela profetiza Diotime, "de quem hauri toda a ciência, que possuo, do Amor", diz Sócrates, em O Banquete (Platão, 2001, [s/d], p. 61) - não parece ter sido valorizado por Foucault. O fato de que as mulheres figurem "apenas como objetos" nos escritos de Foucault revela a generalizante visão falocêntrica, ou androcêntrica, do autor, o que se pode observar também, comenta Richlin (1991), na escolha dos pensadores e das fontes antigas nas quais se baseia para desenvolver sua genealogia. Embora Foucault não tenha elegido o modelo grego como transponível ou desejado para o nosso tempo, pois ele afirma que "a ordem hierárquica grega é degradante, uma vez baseada na submissão das mulheres e dos escravos" (Foucault, 1994, p. 612), nosso argumento é o de que a escolha da análise do cuidado de si grego como forma de colocar em evidência a precariedade dos modos de subjetivação contemporâneos, conforme ressalta Gros (2002), não é isenta de conseqüências. Ao esquecer a erótica feminina, Foucault deixa de problematizar os saberes minoritários, caros à genealogia, seu método de pesquisa de eleição.

 

4. Foucault e omissão do gênero na definição das relações de poder

Uma das contribuições mais notáveis de Foucault para a crítica social contemporânea, em especial no que concerne às preocupações feministas, é a questão do poder/saber. Para Foucault (1995), o poder e o saber estão entrelaçados. O poder não é apenas coercitivo ou repressor, mas produtivo, heterogêneo, e atua através de "práticas e técnicas que foram inventadas, aperfeiçoadas e se desenvolvem sem cessar. Existe uma verdadeira tecnologia do poder, ou melhor, de poderes, que têm cada um sua própria história" (Foucault, 1999, p. 241). Em cada sociedade, há um regime de verdade com seus mecanismos particulares de produção. Foucault (1995, 1999) diz-nos que a Verdade nunca está fora do sistema de poder e que não há uma Verdade sem poder. Rejeitando a hipótese repressiva do poder - em que o poder só operaria a partir do sistema coercitivo das leis ou do Estado - ele descreve a complexa rede de tecnologias e de sistemas disciplinares pelas quais o poder opera, particularmente através das disciplinas normalizantes da medicina, da educação e da psicologia na modernidade. A noção de poder inclui a possibilidade de resistência, que é fundamental na contraposição a todas as formas de opressão e violência. No entanto, a análise/compreensão das relações de poder remetem para o par dominação/resistência na condição de sujeitos livres, enfatiza Foucault (1995), noção especialmente problemática no que tange à condição feminina. As feministas e Foucault (1995) igualmente compreendem que há relações em que o poder está congelado, saturado, não havendo mobilidade ou fluidez, o que caracteriza os estados de dominação. A dominação se dá, então, de forma assimétrica, desigual, linear e vertical. As metáforas do senhor e do escravo ou do prisioneiro e carcereiro, encontradas em Hegel e Nietzche, oferecem um exemplo do equívoco ao qual a idéia de circularidade do poder pode conduzir. Burck & Daniel (1994) entendem que tal noção de circularidade confunde o entendimento das relações assimétricas, atribuindo complementaridade a pessoas que não a têm. Ao salientar o "poder dos fracos" nas relações complementares, são mantidos os abusos de poder fora de foco, alheios à consciência crítica e à possibilidade de transformação, alerta Ravazzola (1998, 1999). Embora controvertida, a noção de "poder dos fracos" parece interessante para compreendermos os modos pelos quais às mulheres, em diferentes sociedades, é oferecido o exercício do poder apenas na esfera doméstica e como elas são socializadas para isto, acrescenta Hare-Mustin (1987). Faz-se necessário, ainda, considerar que a noção circular de poder e a idéia de Foucault de que "não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta" (Foucault, 1995, p. 248) parece servir aos interesses de alguns mais do que de outros (Goldner, 1985,1988; Jones, 1994).

Apesar da complexidade introduzida por Foucault na análise das questões do poder e do saber, foram claramente negligenciadas as questões de gênero na produção das subjetividades que são, sempre, marcadas pelo gênero (Scott, 1995), constituindo-se esta a crítica feminista central à sua obra. A falha/falta de Foucault em identificar sua "análise do poder" como especificamente masculina e intrinsecamente ligada à extensa ideologia patriarcal da Cultura grega é, de uma perspectiva feminista, uma das regiões mais problemáticas de sua teoria. Teresa de Lauretis aponta para os perigos da cegueira de gênero de Foucault na insistência de que sexualidade e poder são coextensivos: "Negar gênero, em primeiro lugar, é negar as relações sociais de gênero que constituem e validam a opressão sexual das mulheres; em segundo, negar gênero é manter uma ideologia que serve aos interesses do sujeito masculino"(De Lauretis, 1987, p. 15).

As relações de poder e as produções da Verdade e do Sujeito estão absolutamente entrelaçadas com as questões de gênero. Historicamente, as relações de poder se associam à dominação masculina, daí a relevância da crítica feminista à negligência de Foucault ao gênero na análise genealógica. Entendemos, conforme Butler (1986, 2000), que a discussão sobre a subjetividade deva dar-se concomitantemente à problematização da identidade de gênero e dos regimes de verdade que a produzem - uma vez que as pessoas se constituem em sua subjetividade e em seus corpos ao adquirir seu gênero conforme padrões reconhecidos de inteligibilidade de gênero. Butler (2003) irá problematizar a questão das identidades, do gênero, do corpo e do desejo na medida em que "Foucault revela uma indiferença problemática em relação à diferença sexual" (Butler, 2003, p.11). Para Foucault, a categoria sexo é produto de uma economia reguladora difusa da sexualidade que suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica. Entretanto, Foucault é ambíguo acerca do caráter preciso das práticas reguladoras que produzem a categoria do sexo. Foucault critica a hipótese repressiva por esta basear-se em um desejo original, afirmando que este desejo é efeito da própria lei coercitiva. Entende, assim, que a sexualidade é sempre construída no interior dos modos de subjetivação e, portanto, das relações saber-poder. Há que se perceber, no entanto, que as relações de dominação de que fala Foucault são sustentadas pelas convenções culturais heterossexuais e fálicas (Butler, 2003). Também, como demonstra Wilkinson (1986), o poder disciplinar produz configurações particulares e corporificadas/encarnadas e, ao dividir o conhecimento em disciplinas acadêmicas, o faz a partir de uma hierarquia de gênero, associando o saber (o conhecimento, a técnica) ao masculino e à "natureza" (os dons e habilidades inatos) ao feminino. As feministas (ver Narvaz & Koller, 2006b) têm destacado que há diferentes maneiras de se fazer ciência. Homens e mulheres, em diferentes épocas, em diferentes lugares e sob diferentes orientações teórico-epistemológicas, podem produzir conhecimento de formas diferenciadas. Entretanto, a objetividade foi equiparada à masculinidade, o que conduziu a presumir que, para ser objetivo, requer-se distanciamento e separação entre emocionalidade e intelectualidade. A imparcialidade, a partir da perspectiva feminista da produção do conhecimento, não é possível, sequer desejável, especialmente uma vez que se encontra comprometida com a mudança social. As epistemologias feministas entendem que o conhecimento é sempre situado, posicionando-se contra a objetividade e a neutralidade, características da ciência positivista androcêntrica e resgatando o papel da emoção, do corpo e da experiência na produção do conhecimento científico (Harding, 1986; Wilkinson, 1986).

Além disso, as práticas disciplinares de feminilidade da sociedade Ocidental contemporânea atuam sobre os e nos corpos das mulheres, de forma a torná-los dóceis e a discipliná-los de forma distinta da domesticação dos corpos dos homens (Diamond & Quinby,1988). O modelo de poder de Foucault, mais que evidenciar uma visão apenas "neutra" ou não mencionada de gênero, revela-se como uma extensão da visão centrada na masculinidade tradicional da cultura Ocidental - chamada androcentrismo ou falocentrismo - em que "os pressupostos neutros quanto ao gênero implícitos na vontade de poder (sobre os outros) que constituem os Verdadeiros Discursos e as tecnologias a eles associadas transformam orientações desproporcionalmente masculinas em uma orientação da humanidade em geral" (Balbus, 1987, p. 120).

 

5. Foucault e a ética como estética da existência: mas existência de quem?

Retomando a genealogia da moral de Nietzsche (1998), Foucault desenvolveu uma ontologia histórica em relação à verdade, através da qual nos constituímos enquanto sujeitos do conhecimento e sujeitos de poder, a fim de compreender como em cada tempo se produziu a verdade sobre si e como se engendraram as relações morais e éticas. Para Foucault, a ética é um tipo de relação que se deve ter consigo mesmo e que determina a maneira pela qual o indivíduo deve constituir-se a si mesmo como sujeito moral de suas próprias ações. Em seu projeto genealógico, retomou o estudo da moralidade desde a Antiguidade, encontrando diferenças entre os processos de constituição do sujeito - ou de sua sujeição - existente em três diferentes sistemas morais: 1) de códigos de conduta propostos aos sujeitos gregos que queriam ser mestres de si e, por extensão, dos outros, mas que incluíam a possibilidade de escolha da maestria de si; 2) de códigos de condutas morais reguladas pelas imposições religiosas - como no Cristianismo - sistema unitário que prescrevia a abnegação, o sacrifício e a renúncia como forma de ascese e salvação; e 3) de códigos de condutas morais nas formas jurídicas e legais impostas pelo Estado (Foucault, 1995). Na Grécia antiga, encontrou uma preocupação dos gregos com sua conduta moral e com a ética que estabeleciam consigo mesmo e com os outros através de escolhas de modos de vida, entendida como escolha estética ou política de suas formas de existência. Esta arte de construir a si mesmo, este si construído pelos gregos era uma escolha pessoal em busca do governo perfeito de si ou da maestria de si. A austeridade na elaboração de si não era imposta ao indivíduo pela lei civil ou pela obrigação religiosa, mas uma escolha pessoal, uma arte de construir a si mesmo. Assim, os cidadãos gregos podiam decidir por si mesmos se cuidavam ou não de si através de práticas de busca da verdade que incluíam o cuidado de si, as técnicas de si e as escrituras de si, as quais envolviam exercícios, escritas, trocas de cartas e de conselhos com mestres sobre sua conduta. A maestria de si, ou o governo de si, almejados pelos gregos, estavam ligados à necessidade e ao exercício do poder e à construção de uma existência bela (Foucault, 1986, 1999). Embora também constituíssem um processo de subjetivação, tais escolhas não seriam normativas nem hegemônicas, como mais tarde Foucault iria encontrar nas práticas da ascese e do cristianismo.

Foucault (1990b), em A História da Sexualidade, Vol. II, fala de cada uma das três grandes artes de se conduzir, das três grandes técnicas de si que foram desenvolvidas no pensamento grego - A Dietética, a Econômica e a Erótica. Tais códigos, embora propusessem uma moral particular, ao menos uma modulação singular da conduta, não prescreveram um código de condutas obrigatórias a todos nem um mesmo código unitário e hegemônico. Além disso, não havia unicamente a preocupação dos gregos com a regulação da conduta sexual - preocupação evidente nas prescrições de abstinência e renúncia aos prazeres da carne ou da heterossexualidade monogâmica compulsória do Cristianismo - mas uma preocupação com as práticas alimentares, com o cuidado do corpo, dos excessos com a comida e com a bebida e com as relações políticas entre os sujeitos gregos. Os sujeitos não eram iguais na cidade grega, tendo, as mulheres, os escravos e os estrangeiros, um status inferior de não cidadãos: "A cidade grega não é uma democracia modelo, funcionando à custa de exclusões; na verdade, é uma oligarquia travestida para fins violentamente antidemocráticos" (Cassin, Loraux & Pechanski, 1993, p. 15). Foucault destaca que os códigos de condutas reguladoras da ética grega não se baseavam numa moral unitária e hegemônica, como se isso tivesse um valor distintivamente superior à moral cristã unitária. As relações éticas e políticas na Grécia antiga pressupunham uma assimetria com outros, em especial com as mulheres e com os escravos, considerados passivos e não cidadãos, daí a natureza viril e desigual da sociedade grega já admitida por Nietzsche (2000). Encontramos outra face evidente das relações assimétricas nas prescrições de silêncio do discípulo, o qual deveria se restringir a uma posição passiva na relação com o mestre (Foucault, 1995).

Embora Foucault se recuse a fornecer modelos para éticas contemporâneas e conteste a noção de uma única ética, parecendo-lhe catastrófica a busca de uma forma de moralidade a que todos devessem submeter-se, indagamos: Em busca de que nova ética estaria Foucault? Não haveria uma contradição importante na busca por uma existência bela, por uma ética como estética da existência e como prática da liberdade a partir do modelo sexista e escravagista da Grécia antiga? Que nova ética poderia ser construída a partir de relações tão desiguais? Existência bela de quem, para quem e às custas de quem? A busca por uma existência bela era privilégio de quem na Grécia Antiga? Provavelmente, a resposta seria a de que a escolha por uma existência bela era possível apenas aos cidadãos que podiam, inclusive, dedicar-se ao ócio e à construção do governo e da maestria de si às custas da exploração do trabalho das mulheres e dos escravos. Tais aspectos foram considerados problemáticos pelo próprio Foucault, que entendia a não reciprocidade dos gregos como desprezível e como um modelo a não ser seguido. Nesta mesma direção, Dreyfus e Rabinow (1995) enfatizam que a nova economia dos corpos e dos prazeres proposta por Foucault, no final da "História da Sexualidade", será um novo sistema ético cujo grau de reciprocidade deve ser o mais elevado possível.

 

6. O governo de si e o discurso misógino da razão ocidental

O governo de si, a maestria de si e o controle dos apetites e das paixões com vistas à governabilidade, inicialmente de si, depois dos outros, tão enfatizado por Foucault (1999), parece-nos muito similar ao discurso da razão ocidental que atua dentro de uma lógica tipicamente masculina - que sustenta a primazia da razão sobre o sensível, sobre o corpóreo e sobre a experiência, embora ressalte que sua produção derive da experiência sensível e que cada obra é ao mesmo tempo fruto e busca de uma transformação. Usando desta ambigüidade, podemos retornar a filiação Foucaultiana à tradição filosófica na busca da relação entre os sujeitos e a verdade. Assim, a tradição idealista de Platão e Kant: preocupados em dominar os afetos e as paixões, definirão a virtude como a força moral da vontade no cumprimento do dever, acreditando que através do controle dos apetites é que se poderia chegar à justiça social. A virtude diz respeito às leis da liberdade interna, aos deveres éticos, o que exige ser mestre de si e ter autoridade sobre si próprio. A paixão seria, assim, o contrário da virtude. De acordo com o pensamento feminista, tal desvalorização da dimensão sensível da existência constrói-se paralelamente à identificação da mulher com a natureza, com o corpo e com o irracional, desprovidas, portanto, dos atributos necessários ao seu reconhecimento como sujeitos morais, dizia Kant acerca do "belo sexo" (Carvalho, 2002).

Foucault toma de Nietzsche a idéia de que as palavras foram sempre inventadas pelas classes superiores impondo uma determinada interpretação (Foucault, 1982). A moralidade e a Verdade estariam, para Nietzsche, atreladas aos interesses de quem as enuncia: "Não existe uma Ciência sem pressupostos - ambos, tanto a Ciência quanto o ideal ascético, acham-se no mesmo terreno, na mesma superestimação da Verdade, na mesma crença na inestimabilidade e na incriticabilidade da Verdade" (Nietzsche, 1998, p.141). A moral nobre nasce, pare este autor, de um triunfante sim a si mesma. Nietzsche descreve como a aristocracia grega põe em todas as palavras com que distingue de si mesma o povo baixo. Os bem nascidos se sentem como os felizes, os plenos, os ativos; em contrapartida, os impotentes, os oprimidos, eram passivos; introduz a noção de mau como o outro, o estranho, o estrangeiro que é, ao mesmo tempo, o bom de determinado grupo:

O direito senhorial de dar nomes vai tão longe que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores. Eles dizem "isto é isto", marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que se apropriando assim das coisas (...) daí que o juízo de "bom" não provém daqueles que fizeram o "bem"! Foram os "bons" mesmo, os nobres, os poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo o que era de baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu (...) tomaram para si o direito de criar valores e cunhar nomes para os valores (Nietzche, 1998, p. 19).

Perguntamos, então, a Nietzche quem inventou ser a racionalidade superior à emocionalidade? A serviço de quais interesses determinadas formas de racionalidade, ditas femininas, foram, ao longo da história, consideradas inferiores à racionalidade masculina? Para as feministas, Foucault falhou ao não considerar as relações entre autoridade masculina, linguagem, discurso e razão. A linguagem, dizem as feministas, nunca é livre da marca do gênero (Scott, 1995). Elas demonstraram os modos pelos quais as mulheres foram invisibilizadas pelo uso generalizante do masculino e como a razão foi construída como um domínio masculino, separada e considerada superior à emoção e à imaginação (Keller, 1996; Wilkinson, 1986). Gilligan (1982) mostra que as paixões podem ser sociais, e que a interação pode se dar de outras formas que a da paixão auto-solicitante ou da obrigação racional abstrata, mas por relações éticas de nutrição e de cuidado, que são, segundo ela, distintivas das mulheres ao longo da história, se comparadas às relações de dominação, tipicamente masculinas. Embora Foucault aponte os modos pelos quais discursos científicos ignoram os discursos marginalizados e argumente que tais discursos são locais de resistência, o enfoque quase exclusivo de Foucault em seus trabalhos sobre sujeitos masculinos coloca à margem de sua genealogia os discursos das mulheres e suas práticas de resistência (Diamond & Quinby, 1988). A especificidade da experiência feminina tem sido ignorada, descartada ou concebida como inferior pelo discurso da razão ocidental. Algumas atividades e habilidades femininas, como as produções no campo das artes, da ciência e da escrita, bem como seu envolvimento histórico na comunidade e nos bairros nem mesmo tem sido reconhecido como atividade política. Recordando o slogan feminista de que "o pessoal é político", estas atividades políticas locais falam dos modos como as mulheres têm-se envolvidas com o poder nos níveis mais íntimos da vida cotidiana. Uma vez que a atividade política das mulheres acontece geralmente no nível local e refere-se ao seu envolvimento na sustentabilidade da vida, elas manifestam freqüentemente uma ética em seu ativismo que se contrapõe à dominação, ao terrorismo e à violência característicos da ação revolucionária masculina (Diamond & Quinby,1988). A participação das mulheres em diversos movimentos, como a revolução do pão e a revolta pelos altos aluguéis durante a revolução industrial (Perrot, 1988), ou o movimento das Madres de Plaza de Mayo, na Argentina, relatados por Luna (2002), são exemplos de espaços e formas de resistência ignoradas pela historiografia masculina oficial, inclusive por Foucault.

 

Considerações finais

São inegáveis as contribuições de Foucault para a reflexão acerca de uma nova ética que se contraponha aos discursos normalizantes dos dispositivos de dominação, discursos estes que produzem sujeitos a partir da submissão a uma moralidade hegemônica religiosa ou legal. A problematização foucaultiana na busca de uma nova forma de constituição da subjetividade, de novos modos de sujeição que se estabeleçam como uma escolha ativa e pessoal na construção de uma existência bela - como uma estética da existência - permanece fundamental na atualidade. Gostaríamos de enfatizar, entretanto, algumas questões: uma vez preocupado com as questões éticas, por que Foucault toma como exemplo as técnicas de si e as práticas de si a partir das relações hierárquicas e desigualitárias, notadamente masculinas, existentes na Grécia Antiga? Por que Foucault não contestou a estrutura desigualitária da sociedade grega escravagista e sexista? Não seria uma contradição a proposição de uma ética como prática da liberdade ao basear-se em estruturas que não pressupunham a liberdade como valor predominante? Por que tomar como modelo relações de poder e força - visivelmente expressas nos termos bélicos evidenciados nos três volumes da História da Sexualidade - ao invés de outros modelos de relação, como a ética do cuidado, a ética relacional e igualitária da erótica feminina de que nos fala Grenne (1996)? Se Foucault (1999) era o filósofo das problematizações, por que não problematizar as questões da dominação de gênero, de classe e de etnia evidentes na constituição do sujeito e dos regimes de verdade? Por que Foucault apenas tangencia a questão da dominação das mulheres em seus escritos, embora reconheça que existem sexualidades de classe e denuncie a medicalização e a histerização do corpo da mulher, o disciplinamento corporal e a regulação das populações? Uma vez comprometido com a elucidação das práticas disciplinares, por que Foucault não dá visibilidade às práticas disciplinares impostas aos gêneros e, no caso das mulheres, às "prisões domésticas" e às "prisões" de seus corpos, de seus sexos e de seus gêneros? Estaria ele preocupado apenas com a sujeição masculina ou, apesar da crítica à teoria do sujeito, na prática, teria sido sua obra reflexo de um discurso burguês eurocêntrico e androcêntrico, pergunta Butler (2003)? Uma vez preocupado com a questão da sujeição aos discursos hegemônicos, por que não se ocupa dos discursos hegemônicos de gênero e do discurso patriarcal em sua genealogia? Foucault considerava-se incluído naquilo que analisava, entendendo o investigador como inevitavelmente situado, daí o método genealógico por ele proposto ser o método do compromisso (Dreyfus & Rabinow,1995).

Também as feministas (Harding, 1986; Keller, 1996; Wilkinson, 1986) vão dizer que o conhecimento é sempre situado e que o pesquisador está sempre implicado em suas verdades. Se, para Foucault, "há que se promover novas formas de subjetividade através da recusa desta espécie de individualidade que tem sido proposta a nós durante séculos, que talvez possam fazer parte de uma ética profundamente remanejada de uma outra maneira de constituir-se a si mesmo enquanto sujeito moral de suas próprias condutas sexuais" (Foucault, 1990c, p.235), a incorporação das problematizações feministas à genealogia de Foucault poderia ser enriquecedora, ao demonstrar como a dominação masculina foi legitimada por um esquema de oposições binárias que concederam superioridade ao primeiro termo em relação ao segundo, quais sejam: homem/mulher, mente/corpo, espírito/matéria (Diamond & Quinby,1988). Se Foucault não acredita na liberação de subjetividades ocultas ou reprimidas, propondo uma radical reconstrução de subjetividades formadas em e contra a hegemonia histórica do sujeito jurídico (Butler, 1986, 2000, 2003), as feministas há muito demonstraram como formas patriarcais de heterossexualidade monogâmica compulsória e uma rígida, binária e hierárquica produção discursiva acerca da diferença sexual naturalizam diferenças, mascarando a construção cultural e política do poder, dos corpos, das subjetividades e das verdades. Quando Foucault, ao invés de propor uma moralidade unitária, propõe um "ethos filosófico", que reside em "transformações que demonstraram ser possíveis nos últimos vinte anos em determinadas áreas relativas aos nossos modos de ser e pensar, às relações com a autoridade, às relações entre os sexos e ao modo pelo qual percebemos a doença ou a loucura" (Alvárez-Uría, 1985, p. 22), revela que esta nova ética deverá, no que se aproxima do feminismo, pensar transformações necessárias às relações entre os sexos.

 

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Recebido em 17 de outubro de 2006
Aceito em 4 de janeiro de 2007
Revisado em 19 de fevereiro de 2007

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