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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.7 no.1 Fortaleza Mar. 2007

 

ARTIGOS

 

Os estados limite e o trabalho do negativo: uma contribuição de A.Green para a clínica contemporânea

 

 

Claudia Amorim Garcia

Professora Associada do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Professora orientadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. End.: Rua Gal Glicério 335/1202. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22245-120. E-mail: clauag@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo se constitui numa discussão sobre a clínica dos estados-limite a partir da contribuição de A Green. O texto apresenta a contribuição greeniana sobre os estados-limite ao longo de duas décadas, partindo da premissa de que uma teoria explicativa desses casos exige a consideração das vicissitudes do objeto, da construção dos limites psíquicos e do trabalho do negativo. O argumento central gira em torno da hipótese de que nesses casos, que caraterizam o que vem sendo denominado de clínica do vazio, a onipresença do objeto invasivo e a inaccessibilidade do objeto idealizado interferem gravemente na capacidade de construir representações, problema central na clínica dos estados-limite. A impossibilidade de constituir a ausência enquanto presença em potencial impede o pensamento e o acesso ao desejo, enquanto que as angústias de fusão e de separação atestam a fragilidade dos limites psíquicos, nestes casos, demonstrando que o objeto não se deixou apagar. Na conclusão, o artigo sugere que o trabalho do negativo, em seus aspectos estruturantes, não acontece de maneira satisfatória com esses pacientes que parecem, ao contrário, à mercê de seus efeitos patológicos dramaticamente encenados nas manifestações de depressão primária e nas graves conseqüências da cisão, muito freqüentes nestes casos.

Palavras-chave: estados-limite, trabalho do negativo, pensamento, angústia de intrusão, angústia de separação.


ABSTRACT

This article is a discussion about borderline states from A Green's point of view as expressed in his publications along two decades. It assumes that a clinical approach to these cases demands the theoretical consideration of the vicissitudes of the object, the development of psychic borders and the work of the negative. The central argument asserts that in these cases, typical of what has been called the clinic of emptiness, omnipresence of the intrusive object and the inaccessibility of the idealized object interfere with the ability to represent which is the main problem with these patients. The impossibility of establishing absence as potential presence interferes with thinking and prevents access to desire. On the other hand, these patients are caught between separation anxiety and intrusion anxiety which points at the fragility of their psychic borders and testifies to the fact that, in their case, the object was not erased. The concluding remarks suggest that the structuring function of the work of the negative does not take place in a satisfying way with these patients who, on the contrary, strongly manifest the pathological consequences of the negative in the form of clinical symptoms like primary depression and splitting.

Keywords: borderline states, work of the negative, thinking, intrusion anxiety, separation anxiety.


 

 

El psicoanálisis encuentra lo negativo en el fundamento mismo de su existencia porque su teoria descansa sobre una positividad en exceso, aquella debida al funcionamiento pulsional, positividad a la cual el sujeto no puede acomodarse sino negativizándola o poniendo en juego mecanismos de defensa que vuelvan la vida pulsional compatible com las exigencias de la vida cultural, resultado ella misma de una negación de la vida natural (Green, 1988).

O campo de produção psicanalítica atual vem apresentando um número cada vez maior de publicações sobre o que se convencionou chamar de novas patologias, apesar das críticas que o uso desta expressão tem suscitado. É evidente, portanto, o interesse da comunidade psicanalítica na discussão de questões que dizem respeito ao exercício da psicanálise na contemporaneidade e, conseqüentemente, à pesquisa sobre quadros clínicos que se afastam do modelo clássico da neurose. Se, por um lado, não ousamos afirmar que estamos diante de um novo sujeito, por outro lado, nos deparamos, hoje, com manifestações subjetivas em que predominam aspectos que até pouco tempo eram muito menos evidentes. Neste sentido, parece que nos encontramos mais distantes da perversão, considerada por Freud o negativo da neurose, e mais próximos da psicose na qual a relação com o outro e a fragilidade da estrutura egóica representam pontos nevrálgicos, o que justifica a escolha do termo limítrofe para designar as novas configurações psíquicas.

Uma apreciação rápida da literatura psicanalítica sobre este tema mostra que o interesse pelas novas patologias, fazendo jus a uma tradição inaugurada por Freud, surgiu inicialmente de questões suscitadas pela clínica, mesmo quando, posteriormente, se desdobraram em construções teóricas complexas e diversificadas. Assim, foi a partir de impasses surgidos na relação analítica, especialmente no que se refere aos ataques ao enquadre (Green, 1975,1982), assim como às defesas rígidas e resistentes e às respostas contratransferenciais inusitadas e intensas, que exigem do analista uma forma de atuação diferenciada, que foi sendo construído um extenso campo de discussão teórico-clínica sobre a clínica dos limites. Dessa forma, pacientes limítrofes, borderlines, casos limite são alguns dos termos utilizados para designar uma patologia cada vez mais identificada na clínica psicanalítica atual, objeto das mais diversas formulações teóricas. Aqui faremos uso das contribuições de Andre Green (1975,1977/1990,1982,1988/1995b,1993/1995a) para a discussão desta temática, autor que utiliza a expressão genérica estados limítrofes de analisibilidade (1975) para se referir a constituições subjetivas que dominam o campo clínico atual, incluindo os pacientes narcisistas, os esquizóides e os borderlines propriamente ditos.

Em Um psicanalista engajado (Green,1994/1999), Green afirma, sem muita precisão, que seus escritos, até aquela data, englobavam a investigação de três grandes problemáticas, a saber, o narcisismo, os estados limite e o trabalho do negativo, temas indubitavelmente relacionados. Sem minimizar a relevância do narcisismo para qualquer estudo que se considere psicanalítico, postulamos, no entanto, que uma teoria explicativa dos estados-limite implica, necessariamente, na consideração de três questões chave em torno das quais se estrutura: as vicissitudes do objeto, a construção dos limites intra e intersubjetivos e o trabalho do negativo. Estes três elementos se modulam numa articulação cujo eixo central é representado pelo trabalho do negativo, e constituem um cenário caracterizado, principalmente, por uma impossibilidade de pensar (Green, 1975,1977). Nosso objetivo, portanto, neste artigo, é retraçar a argumentação greeniana no que diz respeito ao trabalho do negativo e sua relevância na constituição dos estados-limite, endossando sua tese segundo a qual são as vicissitudes do objeto na sua articulação com o trabalho do negativo que determinam a emergência dos pacientes limítrofes nos quais o processo de construção das fronteiras psíquicas é bastante dificultoso.

Apesar de a problemática dos estados-limite já se fazer anunciar na obra de Green desde a década de 60, como atestam alguns dos trabalhos mais tarde incluídos na coletânea Narcissisme de vie. Narcissisme de mort (1983), é principalmente a partir dos anos 70 que a questão vem a ser explicitamente formulada, vindo a resultar na publicação de La folie privée. Psychanalyse des cas-limite (1990), da qual fazem parte dois textos a que Green se refere de maneira especial nas entrevistas que concedeu a Macias: "L'analyste, la symbolisation et l'absence dans le cadre analytique"(1975/1990) e "La double limite"(1982/1990). Em ambos, a discussão, que se refere principalmente aos estados-limite, gira em torno da constituição dos limites psíquicos e sua repercussão sobre a capacidade de representação dos sujeitos, questão que aponta, inevitavelmente, para o lugar princeps que o objeto ocupa no processo de constituição psíquica. O trabalho do negativo é apenas esboçado em 1975, vindo a ocupar lugar de destaque em 1982 para se constituir na essência da discussão apresentada na coletânea homônima de 1993 em que, finalmente, uma definição conceitual é proposta. Assim, em Aspectos do negativo: semântico, linguistico e psiquico (1993/1995a), Green discute a polissemia do vocábulo negativo e apresenta alguns significados mais correntes na lingua francesa. Num primeiro sentido, o negativo está em oposição ao positivo e a relação entre eles é polêmica e conflituosa. Numa segunda acepção, o negativo se encontra numa relação simétrica, mas inversa, com o positivo, sendo, por conseguinte, intercambiáveis. O terceiro significado, e o mais importante, para a psicanálise, se refere a uma ausência latente, algo que continua existindo virtualmente, mesmo quando não é mais perceptível, aquilo que se opõe ao manifesto, ou seja, o recalcado ou o pre-consciente. Finalmente, no último sentido, negativo diz respeito ao nada (substantivo) ou a nada e remete ao que já foi ou nunca aconteceu. A expressão trabalho do negativo, em psicanálise, articula essas várias acepções e se refere a manifestações tão diversas quanto o recalque, a forclusão, a alucinação negativa e a negação. É, no entanto, principalmente o terceiro sentido atribuído ao negativo - uma ausência latente - que mais parece ter sido utilizado por Green no "Seminário sobre o negativo" (1988/1995b), texto que discutiremos no final de nosso trabalho. Antes, porém, uma breve apresentação genealógica do trabalho do negativo nos escritos de A Green se faz necessária.

 

A dupla angústia: intrusão e separação nos estados limite

O interesse pela discussão sobre o pensamento sempre esteve presente nos textos de Green, mas, em 1975, se constitui no foco central da discussão sobre os estados limite sustentada pela consideração da experiência do analista com estes pacientes. Os ataques constantes ao enquadre e a atmosfera densa e nebulosa dominante no espaço analítico provocam movimentos internos, no analista, no sentido não apenas de proteger o enquadre, mas também de dar forma e uma certa ordenação ao material incipiente e fragmentado que o paciente apresenta. Na ausência de uma capacidade vinculatória que possa se expressar na construção de representações, o paciente mobiliza a estrutura de pensamento do analista, o que garante a simbolização necessária à realização de uma análise. Uma avaliação sobre os movimentos internos que ocorrem com o analista indica, portanto, que esses pacientes apresentam uma incapacidade de representar, aqui entendida como resultante da oscilação entre o excesso e a falta do objeto no espaço psíquico. A onipresença do objeto intrusivo e a inacessibilidade do objeto idealizado impedem a construção de representações, e, portanto, do pensamento, já que a ausência enquanto presença em potencial não se constitui por falta de uma experiência satisfatória ou, em termos winnicottianos, de um ambiente suficientemente bom (Green, 1975). O paciente se apresenta numa situação de impasse em que se alternam as atividades de vinculação e disjunção, situação na qual, portanto, libido e destrutividade se degladiam, o que impede o acesso ao prazer, sempre contaminado pela agressividade.

As vicissitudes do objeto nos estados limite resultam em intensas angústias de intrusão e de separação que atestam a fragilidade de limites destes pacientes e a sempre presente ameaça de fusão regressiva. É justamente no contexto desta discussão que são mencionadas algumas manobras defensivas contra a fusão que surgem na relação transferencial e nos parecem apontar para tentativas malsucedidas do trabalho do negativo, tema ainda ausente do texto greeniano nesta época. Assim, os movimentos do paciente em análise parecem indicar um esforço no sentido de se livrar de uma experiência psíquica insuportável através da exclusão somática e da expulsão via ação ou até mesmo do desinvestimento libidinal sob a forma de uma depressão primária (Green, 1975, p.6). O trabalho do negativo aparece também neste texto enquanto necessidade da alucinação negativa do objeto-mãe, o que resultaria na possibilidade de constituição de uma espaço interno neutro, que pode ser ocupado, parcialmente, pelas relações de objeto, como também pode ser sentido como um vazio radical, engolfante e aniquilador, como acontece com os pacientes limítrofes. Em síntese, neste artigo de 1975, embora Green não se refira explicitamente ao trabalho do negativo na sua discussão sobre os estados limite, ele descreve eventos psíquicos que manifestam uma tendência negativizante fracassada - a exclusão somática e a expulsão via ação - ou radicalizada - o desinvestimento presente na depressão primária - mostrando, assim, a relevância do fracasso do trabalho do negativo na determinação da clínica dos limites. Do mesmo modo, ao mencionar as conseqüências patológicas resultantes da falência da alucinação negativa nos estados limite, ele aponta para a função crucial do trabalho do negativo na constituição do espaço psíquico e nas vicissitudes objetais de uma maneira geral, tese que será aprofundada nas décadas seguintes.

 

A clínica dos estados limite: depressão primária e cisão

Em 1977, Green publica O conceito borderline, trabalho essencialmente clínico que serve de transição para seu artigo O duplo limite, de 1982. Neste texto, construído a partir da constatação do vazio afetivo que predomina nas sessões de análise e da intensa contratransferência do analista, ele volta a ressaltar que a impossibilidade de pensar, presente nos pacientes limítrofes, pode ser inferida a partir de contratransferência que provocam. De fato, nestas análises, cabe ao analista utilizar sua capacidade vinculatória para suprir o prejuízo representacional destes pacientes e possibilitar a expressão daquilo que são incapazes de representar. É, portanto, ainda a incapacidade de pensar, característica destes pacientes, que está em questão. No entanto, se no texto anterior esta dificuldade é entendida principalmente em relação às vicissitudes do objeto, neste trabalho é feita uma interpolação a partir da qual o excesso ou a falta radicais do objeto causam, primeiramente, uma cisão responsável, então, pelo prejuízo ao pensamento. Em 1975, a cisão já havia sido mencionada enquanto uma das manobras defensivas utilizadas pelos pacientes frente à ameaça de fusão regressiva. Aqui, no entanto, cisão e depressão primária passam a ser consideradas como os dois mecanismos básicos responsáveis pela atividade psíquica dos pacientes limítrofes, ambos resultando do fracasso na relação como o objeto, ausente ou excessivamente presente. Esta cisão radical que passa a ocupar um lugar central na constituição dos estados limite, e da qual agora se derivam a exclusão somática e a expulsão via ação, se caracteriza por atuar em duas frentes: no limite interno/externo assim com também entre os núcleos egóicos. Assim, nos pacientes limítrofes, a cisão que acontece intrapsiquicamente transforma o espaço psíquico num território ocupado por fragmentos egóicos que assumem o feitio de arquipélagos (Green, 1977/1990) separados por vazios que impedem a construção de representações.

Em 1977, a questão do negativo não é discutida em profundidade, mas se faz presente na importância que é atribuída à depressão primária, manifestação inequívoca de um desinvestimento pulsional radical que parece apontar na direção do vazio e do nada, e se diferencia da depressão secundária e reparadora postulada por Klein (Green, 1975:7). O analista, nestes casos, se sente identificado com um espaço esvaziado de objetos ou excluído da cena analítica, respostas contratransferenciais muito comuns na clínica dos casos limite. Apesar do caráter claramente negativizante da depressão primária, é, no entanto, principalmente quando Green afirma, sem entrar em maiores detalhes, que a cisão específica dos estados-limite é uma expressão da pulsão de morte (Green, 1977/1990:76), que o trabalho do negativo aparece de forma mais evidente. Green chama, então, a atenção para o fato de que a cisão tem um efeito disruptivo sobre a capacidade vinculatória do sujeito interferindo na sua possibilidade de construir símbolos e, portanto, pensar. Apesar dessas referências presentes ao longo do artigo, o trabalho do negativo não está no centro da discussão e é abordado exclusivamente a partir de seus efeitos patológicos, diferentemente do que acontece nos textos posteriores. Dessa forma, tanto a cisão típica dos limítrofes, que se diferencia da cisão na perversão e na psicose, quanto a depressão primária são expressões radicais do negativo e representam respostas ao ambiente que não se mostrou suficientemente bom.

Assinalar a incidência da cisão e suas conseqüências resulta, inevitavelmente, na consideração dos limites e sua centralidade na constituição do espaço psíquico, questão central no artigo "O duplo limite" ( Green, 1982), texto complementar em muitos aspectos ao trabalho que acabamos de comentar, mas que dele se diferencia bastante ao introduzir com clareza a questão do negativo.

 

O fracasso na constituição do duplo limite

A experiência analítica com os estados limite mostra a necessidade de construção de uma clínica e uma teoria do pensamento que devem se valer de alguns elementos ordenadores, a saber: o limite interno/externo sempre muito precário nestes casos; a função representacional, referente principal do trabalho analítico, possibilitada pelo enquadre analítico; a ligação e suas relações com o desligamento que tornam possível as representações e cuja transformação se constitui no objetivo central de uma análise; e, por fim, a abstração que seria o mais específico do pensamento, exigindo, na sua origem, o trabalho do negativo (Green, 1982). Escolhendo concentrar sua discussão sobre a questão dos limites, cuja manutenção é sempre um problema crucial na dinâmica dos pacientes limítrofes, Green retoma, em 1982, suas hipóteses anteriores sobre a onipresença do mau objeto intrusivo e a inacessibilidade do bom objeto idealizado, relacionando-as com o processo de constituição dos limites nestes pacientes.

A preocupação em manter uma identidade sempre precária e ameaçada pelas angústias de intrusão e de separação está no centro das relações de objeto, no caso dos estados limite. Na verdade, a manutenção dos limites psíquicos é ainda mais importante do que a satisfação pulsional e o investimento narcísico, sugerindo que o movimento desejante ocupa lugar secundário em relação à necessidade de se defender do objeto intrusivo e assegurar a continuidade sempre frágil das fronteiras psíquicas. A importância do objeto nestes casos é, portanto, absolutamente crucial, isto é, a importância da manutenção da autonomia do eu frente ao objeto. A batalha pela preservação do território egóico domina a cena analítica, mostrando a fragilidade dos limites interno/externo e se faz presente também internamente, através da qualidade beligerante das vicissitudes objetais que dominam o mundo interno, impedindo o pensamento. De fato, a situação de ocupação permanente pelo objeto intrusivo, por um lado, e a ausência radical do objeto idealizado provocam uma intensa beligerância interna que, paradoxalmente, serve de sustentação identitária na ausência de limites minimamente definidos. Esta beligerância excitante protege o sujeito da ameaça, seja de fusão regressiva, seja de dissolução psíquica, e garante uma certa coerência do eu.

Na Negativa, Freud (1925/1976) discute a construção dos primeiros limites eu-outro que decorrem do juízo de atribuição e se constituem através da expulsão do desprazeroso no mundo externo, isto é, de um incipiente trabalho do negativo. Antes, no entanto, da vigência do juízo de existência, o sujeito tem que lidar com aquilo que foi expulso e agora retorna (Green, 1982, p.277). É neste momento que se originam os limites intrapsíquicos pela ação do recalcamento sobre aquilo que reingressa no psíquico. Este ato inaugural do psiquismo tem conseqüências importantíssimas, evidentemente, ao criar a divisão do sujeito em consciente e inconsciente. Este recalcamento é fundamental, porque permite o adiamento da satisfação, garante um certo sentimento de continuidade, torna possível a realização alucinatória do desejo e a construção das primeiras representações ainda temporárias (Green, 1982, p.277). Entre a construção dessas primeiras representações e seu encadeamento sob a forma de pensamento, faz-se necessária uma outra variante do negativo, representada pela alucinação negativa da representação do objeto seio ou mãe, indispensável para que as representações possam ser vinculadas e o pensamento possa se constituir (Green, 1982). Só então o sujeito tem acesso à linguagem em que trabalho do negativo é representado pelo símbolo da negação (Freud, 1925/1976). É, então, como efeito do trabalho do negativo nas suas diferentes manifestações - expulsão, recalque, alucinação negativa e negação - que se constroem os limites dentro/fora e os limites intrapsíquicos. Na encruzilhada deste duplo limite surge o pensamento enquanto processo terciário que faz a comunicação entre os processos primário e secundário, assim como também entre o dentro e o fora (Green, 1982, 1990).

A trajetória psíquica dos pacientes limítrofes falha no cumprimento dessas etapas. O recalcamento é substituído pela cisão (Green, 1977/1990) e a expulsão inicial, então, causa um buraco que não é integrado à cadeia dos pensamentos. Este vazio interno engolfante, sempre ameaçado de ser invadido pelo objeto intrusivo ou pelas pulsões fragilmente representadas, se apresenta clinicamente sob a forma de um sentimento pontual de morte psíquica que se expressa nos brancos ou sensações de cabeça vazia tão freqüentes nestes pacientes. Além disto, estes pacientes não são capazes de realizar a alucinação negativa da representação do objeto mãe em conseqüência da falta de um bom objeto interno, ou de um objeto subjetivo consistente, diríamos com Winnicott (1971). A representação do objeto que não é negativamente alucinada continua preenchendo o espaço psíquico e impedindo o acesso à linguagem simbólica, território onde novamente o trabalho do negativo atua, desta vez sob a forma da negação (Freud, 1925/1976). Neste sentido, a clínica dos limites se caracteriza justamente pela falência da ação necessária do negativo, e são as manifestações extremas do negativo, não mais estruturante mas patológico, que vamos nela encontrar.

 

O trabalho do negativo e o objeto que não se deixa apagar

Uma discussão aprofundada sobre a exigência do trabalho do negativo na constituição do psiquismo é desenvolvida na coletânea intitulada Le travail du négatif, de 1993, na qual Green aborda minuciosamente temas que havia anunciado nos trabalhos anteriores. Assim, a alucinação negativa, a cisão e a função desobjetalizante constituem algumas das questões que são exaustivamente discutidas a partir da clínica dos pacientes limítrofes. Aqui, no entanto, nos interessa particularmente o Anexo 3 "Seminário sobre o trabalho do negativo"(1988/1995b), texto que já foi objeto de uma leitura rigorosa por Figueiredo (2004) e que retomamos na finalização do nosso trabalho.

Iniciando sua discussão com uma crítica ferrenha ao que considera uma abordagem ingênua e excessivamente empírica da teoria das relações objetais, Green argumenta que não se pode pensar o objeto, em psicanálise, sem levar em conta o trabalho do negativo. Sem se referir diretamente aos pacientes limítrofes, Green discute o que denomina "clínica do vazio", que se caracterizaria pelo efeito combinado do desinvestimento, da destrutividade, da fusão com o objeto e da identificação com o objeto destruído pela separação (Green, 1988/1995b, p. 389). Discutindo extensivamente os impecilhos na constituição psíquica destes pacientes, Green, finalmente, expressa a necessidade incontornável de que o objeto absolutamente necessário - expressão utilizada para designar o objeto primário mãe - seja apagado para que o espaço psíquico possa, então, ser construído de maneira a possibilitar a trajetória desejante e o pensamento. O trabalho do negativo é o que permite que o objeto possa satisfatoriamente estimular e conter a pulsão e também permitir a emergência de vários objetos substitutivos, fonte de atração e repulsa, daí por diante (Green, 1988/1995b, p. 386). No entanto, e como muito bem assinala Figueiredo (2004), a função primordial do objeto que se deixa apagar é a constituição de um vazio estruturante, uma presença ausente que dá acesso ao desejo e possibilita a experiência de separação (Figueiredo, 2004, p. 17), o que lembra o terceiro significado do termo negativo a que Green se refere em 1993. O objeto é aquilo que continua existindo como constituinte da estrutura psíquica, mesmo quando dele não se tem mais notícia

Quando o objeto não se deixa apagar, isto é, não se apresenta como falível e insatisfatório, mas conserva seu caráter de absoluto, ocorre um desvio de sua função primordial, que resulta na coalescência do objeto com a pulsão. Neste caso, a função de contenção e amansamento da pulsão é neutralizada, tornando-a ainda mais intolerável, e o excesso de presença do objeto suscita expressões pulsionais que escapam à representação, como a passagem ao ato, a toxicomania e as formações psicossomáticas, manifestações presentes na clínica dos limites na qual a onipresença do objeto resulta, em última análise, na impossibilidade de pensar. Concluindo, o trabalho do negativo essencial nos seus aspectos estruturantes não se dá de forma satisfatória com os pacientes limítrofes que parecem, no entanto, à mercê de seus efeitos patológicos sob a forma do desinvestimento pulsional que, em última análise, representa a função desobjetalizante, própria da pulsão de morte (Green, 1986/1988).

 

Referências

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Recebido em 19 de outubro de 2006
Aceito em 19 de fevereiro de 2007
Revisado em 9 de março de 2007

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