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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.1 Fortaleza mar. 2007

 

ARTIGOS

 

Narrativas, conhecimento e homem simbólico: entrelaçamentos entre saberes e fazeres

 

 

Mériti de Souza

Psicóloga. Doutora em Psicologia (PUC-SP). Pós-Doutora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Professora do Departamento de Psicologia da UFSC. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. End.: Rua Pádova, 44, apt. 106. Corrego Grande. Florianópolis, SC. CEP: 88037-640. E-mail: meritidesouza@yahoo.com

 

 


RESUMO

A dicotomia entre conhecimento e prática ensejada pela modernidade e pelo paradigma científico a ela associado tem sido debatida no cenário contemporâneo a partir de leituras denominadas modernas e pós-modernas. O modo de produzir subjetividade e conhecimento que predomina no cenário contemporâneo produz, por um lado, subjetividades que se acreditam constituídas por uma consciência capaz de expurgar os afetos e controlar o entorno e a si própria. Por outro lado, temos a produção da ciência calcada no pressuposto do saber absoluto e verdadeiro. Problematizar temas relevantes a esses debates e subjacentes a essas leituras se revela fundamental ao exercício da prática do profissional que se preocupa com a sua inserção crítica, já que as concepções em pauta subsumem o debate sobre o homem simbólico, as narrativas e a concepção sobre o real. Neste artigo, o objetivo específico é analisar o pressuposto anti-realista e o pressuposto da dissolução das referências identitárias concomitante às suas reverberações na produção subjetiva e social. De forma específica, focalizamos a concepção sobre o ato de conhecer e sobre o sujeito que conhece e as suas relações com a constituição subjetiva e cognoscente. Ato contínuo, essas análises são ilustradas a partir de recortes do trabalho realizado com grupos em uma instituição escolar e são estabelecidas relações entre as práticas psicológicas e as leituras acerca da constituição subjetiva e do sujeito do conhecimento.

Palavras-chave: conhecimento, sofrimento, narrativas, subjetividade, prática psicológica.


ABSTRACT

The dichotomy between knowledge and practice desired by modernity and by its associated scientific paradigm has been discussed in the contemporary scenery taking as a starting point the so-called modern and pos-modern readings. The predominant form of producing subjectivity and knowledge in the contemporary scenery constructs, on the one hand, subjectivities that are believed to be constituted by a conscience capable of purging the affections and controlling the surroundings and itself. On the order hand, we have the production of science based on the assumption of the absolute and true knowledge. To problematize themes that are relevant to these debates and subjacent to those readings is fundamental for the professional practice that is concerned with its critical insertion, since the conceptions mentioned subsume the debate about the symbolic man, the narratives and the conception about the real. In this article, the specific objective is to analyze the anti-realistic and the dissolution assumptions of the identity references concomitant with their reverberations in the subjective and social. Specifically, we have focused the conception about the knowledge act and about the knowing subject and his/her relations to the subjective and cognoscente constitution. Henceforth, those analyses are illustrated from parts of the work carried out with groups in a school and relations are established between the psychological practices and the readings on the subjective constitution and on the knowing subject.

Keywords: knowledge, suffering, narratives, subjectivity, psychological practice.


 

 

Introdução

A parábola do Arlequim, conforme pontuada por Serres (1993), ilustra a relação que o humano estabelece com o novo e com o ato de conhecer. No relato do autor, Arlequim viaja à Lua e, no retorno, organiza uma conferência para comentar a viagem. Para a surpresa de todos, ele afirma nada existir de novo na Lua em relação à Terra, tudo igual aqui e lá. Um belo espírito pergunta ao conferencista se a paisagem lunar condiz com a sua vestimenta, afinal ele vestia casaco sobre casaco, calça sobre calça, numa mistura inaudita de cores e tecidos. Atônito com a sua vestimenta, Arlequim começa a retirar suas peças de roupa, em um trabalho infindável que culmina com a exposição de um corpo nu miscigenado, híbrido na forma do macho e da fêmea, mestiço na textura e na cor da pele. Homem ou mulher? Amarelo, branco, negro? Impossível distinguir naquele corpo e naquela pele a etnia, a raça, o sexo. No ato final, Arlequim busca se desfazer da pele e do corpo que o envolvem, no esforço supremo pela busca do que ele acredita ser a essência, a identidade que o caracterizaria e o definiria.

A análise proposta por Serres (1993) incide na crítica ao conhecimento como verdade, conforme proposto pela ordem moderna. A partir da consolidação de específicos cenários sociais, econômicos e culturais, a ordem moderna se especializou em produzir subjetividades Arlequins que se acreditam constituídas por uma consciência que lhes oferece o pleno conhecimento sobre si e sobre o real. Esse processo opera a partir da elaboração e da predominância no plano singular e coletivo de ideais e de práticas que concebem o humano como indivíduo dotado de características únicas que se desenvolvem a partir de interações com o entorno social e cultural. Em outras palavras, a leitura cartesiana concebe o sujeito como configurado pela razão plena, pela dissociação mente-corpo e pela supremacia da razão perante os afetos. A suposta coincidência entre subjetividade, conhecimento, consciência, realidade sustenta concepções e práticas referentes à constituição do sujeito e das redes sociais. Esse cenário deságua na construção de sujeitos que se representam como identidades individualizadas, ou seja, se concebem como capazes de conhecer e de controlar o real. O ápice desse processo pode ser localizado na lógica moderna da razão instrumental, que captura a razão e a torna um instrumento a serviço da ordem liberal e capitalista. Dessa forma, por um lado, esse processo produz subjetividades que se acreditam como constituídas apenas pela consciência e capazes de expurgar os afetos e, por outro, produz a ciência calcada no pressuposto do saber absoluto e verdadeiro (Berman, 1986; Chauí, 1992; Bauman, 1998, 2001; Sousa Santos, 1996, 2002, 2003).

Entretanto, é necessário pontuar que, ao se deparar em situações questionadoras da linearidade da sua representação identitária individualizada e totalizante, os sujeitos conformados pelo ideal moderno vivenciam como ameaça à sua constituição psíquica o reconhecimento das contradições e lacunas que a realidade lhes apresenta. Isto ocorre, pois o ato de relançar o olhar envolve o movimento subjetivo e cognoscente do sujeito no trabalho de elaborar leituras diferenciadas sobre si e o outro, bem como demanda sua condição em suportar o encontro com o novo e de pensar possibilidades que não havia pensado para sua vida.

Os profissionais, preocupados com o exercício profissional crítico e contraposto à intervenção asséptica e idealizada, têm assumido nos seus trabalhos a importância de o sujeito construir novas narrativas sobre si mesmo e sobre o mundo que o circunda. A concepção de constituição subjetiva por nós adotada compreende os aspectos históricos, econômicos e culturais hegemônicos em determinado espaço-tempo como relacionados aos ideais coletivos e singulares. Assim, os ideais coletivos e os singulares se retroalimentam, já que o humano se configura como singularidade a partir do coletivo.

A partir dessa leitura, torna-se necessário problematizar a concepção de conhecimento, pois a realidade caminha na contracorrente do discurso cientificista e positivista que dissocia a teoria da prática e o sujeito que conhece do objeto a ser conhecido. A produção do conhecimento não se associa de forma linear às categorias ou aos referenciais preestabelecidos e determinados, ou seja, o referencial teórico ilumina o caminho, porém não define a direção, e o trabalho de intervenção se configura como trabalho de investigação (Num, 1983). Considerando-se esses pressupostos, faz-se necessário pensar a prática referenciada na perspectiva crítica, já que ela demanda a adoção de teorias acerca da constituição subjetiva e de estratégias de intervenção concernentes a processos de subjetivação e de dessubjetivação.

As análises acima configuram um debate contemporâneo acirrado em todas as áreas do conhecimento, bem como incidem diretamente sobre as práticas de profissionais que atuam no atendimento ao humano, já que as concepções em pauta subsumem o debate sobre o homem simbólico, as narrativas e a concepção sobre o real. Essa discussão tem mobilizado pesquisadores e profissionais, pois envolve aspectos epistemológicos complexos. Com a presente discussão, interessa-nos problematizar alguns aspectos concernentes aos saberes e às práticas referenciados na perspectiva crítica e associados à organização social e subjetiva contemporânea. De forma específica, focalizamos a concepção sobre do ato de conhecer e sobre o sujeito que conhece e as suas relações com a constituição subjetiva e cognoscente. Essa leitura demanda problematizar a referência epistêmica que subjaz à representação moderna acerca do sujeito e do real e suas ressonâncias no trabalho psicológico.

 

Narrativas, subjetivações

Trabalhar com a tese de que o simbólico faz parte do tecido social e se encontra presente em todos os setores da sociedade não implica estabelecer a tese de que esses aspectos abarcam toda a vida social e sejam suficientes para o trabalho de análise sobre o humano e a cultura. A narrativa e o discurso não se esgotam em um efeito discursivo, conforme apregoam correntes denominadas pós-modernas ou anti-realistas, já que a condição do concreto continua a operar no plano da construção dos discursos e dos símbolos. Essa discussão tem como pano de fundo o embate entre realismo epistemológico e anti-realismo. Ela envolve o aspecto do concreto, entendido não como o empírico que se esgota no sensível, mas, antes, como a articulação das relações sociais à vida das pessoas que produz a materialidade articulada às condições nas quais elas vivem. A discussão também envolve a relação do coletivo com o singular, no debate específico sobre o tema da constituição das subjetividades. O sujeito não é apenas discurso, apenas linguagem, conforme atestam algumas correntes da psicologia, da psicanálise e mais recentemente da história e da sociologia. O sujeito é tanto linguagem quanto as condições concretas que produziram sua língua materna e que também produziram a comunidade de falantes daquela língua, na qual ele se inscreveu ao nascer.

Para Flamarion Cardoso (1996; 1997a, 1997b), a questão principal continua a ser o conhecimento que o homem pode ter acerca da realidade, seja ela social ou física. O autor adota a posição do realismo epistemológico, por acreditar que o ser humano apresenta condições para conhecer o real, apesar de existirem limites para essas condições. Cardoso se volta à posição do realismo epistemológico, em decorrência de ela viabilizar a intervenção sobre o real e manter o compromisso com a transformação do social. Afinal, caso o real se reduzisse a um mero efeito discursivo e se conformasse à leitura que o sujeito faz sobre ele, o cepticismo e o niilismo se justificariam e desaguariam na morte do sujeito e na inércia social.

Para sustentar sua posição, o autor argumenta que, no decorrer da evolução da espécie humana, as mudanças no sistema nervoso caminham no sentido de aperfeiçoar os instrumentos humanos para a apreensão do real. Ele recorre a pesquisas da neurobiologia e da paleontologia, quando elas afirmam que o diferencial entre o homem e o animal é a linguagem sofisticada que a nossa espécie domina, a qual se associa ao meio ambiente social, que desempenhou e desempenha papel fundamental no desenvolvimento da espécie humana. O desenvolvimento e o aperfeiçoamento da linguagem se associam ao que o autor denomina de "xadrez social", ou seja, as interações sociais que envolvem as regras, os vínculos, as desavenças, as alianças que se organizam em determinado momento e podem mudar posteriormente. O "xadrez social" obrigou os homens a desenvolver e a aperfeiçoar a linguagem, instrumento fundamental na constituição do eu consciente, que opera como instrumento de construção de um modelo complexo de mundo físico e social.

A preocupação de Flamarion Cardoso se reporta a sustentar a concepção realista e, a partir dela, a concepção de que a apreensão do real realizada pelo humano, e explicitada sob a forma de narrativa, mantém contato com o real e com o mundo social. O objetivo do autor é o de criticar as correntes pós-modernas e anti-realistas, que postulam tanto a tese da descontinuidade entre narrativa e fatos quanto a tese de que o real é construído pelo sujeito na sua abordagem do mundo.

Nesse ponto, vale problematizar o debate pós-moderno acerca das metanarrativas no seu projeto de leitura universal e teleológica sobre o real, bem como sobre o sujeito na sua pretensa constituição como calcada na coincidência entre subjetividade, consciência e ação. No seu estudo sobre a pós-modernidade, Lyotard (1979) utiliza o conceito de metanarrativa para realizar a crítica ao discurso moderno que acompanha a ciência, bem como afirma que a configuração de uma nova rede social definida como pós-moderna explicita a crise da modernidade. Para o autor, a narrativa moderna seria trans-histórica, universal e operaria como justificativa para aos grandes modelos teóricos e políticos centrados na concepção da razão, no progresso e na história conformada por um sentido verdadeiro. Entretanto, para um autor como Anderson (1999), por exemplo, a crítica de Lyotard é niilista e conservadora, já que realiza a desconstrução do sujeito e da perspectiva de ação sobre o real. Assim, o eclipse do sujeito e a relativização do real inviabilizariam projetos de transformação social calcados no pressuposto da emancipação social.

Entretanto, é necessário ressaltar que a crítica pós-moderna é ampla, complexa, e se espraia em diferentes abordagens. Por um lado, podemos citar a abordagem que tanto reduz o real à construção elaborada pelo sujeito sobre o mundo, quanto atribui ao discurso um saber que prescinde do real e do coletivo. Nessa senda, temos o caminho do ceticismo epistemológico a desaguar na inércia social, no niilismo e, por fim, no conservadorismo. Essa crítica pós-moderna endereçada à metanarrativa que acompanha a modernidade e a ciência se sobrepõe a diagnósticos desconstrutivistas e neoliberais, sobre a morte do sujeito e o fim da história, conforme as leituras de Fukuyama (1994), Lyotard (1986) ou Hayden (1994), por exemplo. Por outro lado, podemos citar a abordagem realizada por autores como Jameson (2002), Sousa Santos (1996) Bauman (1998, 2001), que sugerem o pós-moderno como operador de uma crítica ao moderno que, no entanto, não lhe faz oposição frontal. Dessa forma, a crítica realiza a tarefa de problematizar a constituição do sujeito calcado de forma exclusiva na racionalidade e de questionar os ideais de progresso que acompanham a ciência e a teleologia que atribui um sentido único e verdadeiro à história.

As leituras denominadas pós-modernas ou pós-estruturalistas envolvem debates acirrados e incidem diretamente sobre as práticas psicológicas à medida que trabalhar com grupos, por exemplo, demanda a opção por um referencial teórico calcado na representação identitária coletiva e na representação identitária singular, no homem concreto e simbólico. Essa opção demanda, entre outros aspectos, o trabalho de explicitar o debate sobre o realismo e sobre o discurso como narrativa. O discurso ocupa ponto central nessa discussão, à medida que o seu estatuto é concebido de diferentes formas na história e na literatura. A concepção por nós utilizada diz respeito à história referida ao discurso como narrativa não ficcional, pois este se encontra imbricado ao concreto do mundo, ao passo que a literatura entende o discurso como construção ficcional. Nesse contexto, está em pauta a concepção sobre as fronteiras demarcadas pelo real e pela narrativa no seu entrelace com o coletivo, o singular, o simbólico e o concreto. É importante explicitar o entrelace entre essas instâncias, pois o subjetivo se constitui no fazer-se contínuo e complexo entre elas. Nessa perspectiva, a pergunta que insiste: o exercício da prática psicológica na perspectiva crítica, que se propõe a questionar o sistema liberal e capitalista vigente, implica em opções pela metanarrativa e pelo realismo epistemológico? Nesses termos, utilizar essas concepções implica em construir práticas psicológicas emancipatórias e éticas produtoras de sujeitos emancipados e éticos? O exercício da prática crítica e comprometida com o outro demanda de forma exclusiva adotar a concepção da subjetividade referenciada na teoria do sujeito da ação?

Acreditamos que o engate da perspectiva crítica com o trinômio da metanarrrativa, realismo epistemológico e emancipação social, não se reduz a uma leitura linear e de causa e efeito. Essa leitura questiona o próprio pressuposto da contradição como inerente ao processo sócio-histórico como dinâmico e associado à constituição da rede social e do sujeito, bem como da capacidade cognoscente do sujeito da ação em realizar leituras sobre si e seu entorno. Assim, o processo sócio-histórico engendra alterações na configuração do real e do sujeito que demandam a capacidade cognoscente e o exercício da crítica por parte do sujeito. Em outras palavras, significa que uma dada leitura sobre o real realizada em determinado espaço-tempo não pode operar como fetiche e funcionar como leitura padrão e como técnica, aptas a emoldurar o enquadre de qualquer outro espaço-tempo. O que se mantém são os parâmetros e pressupostos que sustentam a leitura realizada e conformam a teoria referenciada nos pressupostos do universal, do singular, do concreto e do simbólico e orientam novas leituras.

Nesse contexto, as utopias e os valores universais não oferecem interesse? A estetização do presente englobou os projetos de futuro e os projetos coletivos foram tragados pelo narcisismo? Algumas leituras pós-modernas que profetizam o fim da história e o abandono da ética pela estética (Lyotard, 1986; Fukuyama, 1994) parecem insistir em responder sim a essas perguntas. Entretanto, as leituras debatidas acima apontam para outras perspectivas e nos levam a pensar a partir da nossa experiência com o trabalho realizado, nos últimos anos, com grupos e instituições. Dessa forma, faz-se necessário que, no seu exercício profissional, o psicólogo trabalhe com esses aspectos e os problematize incorporando-os em suas análises.

Conforme postulado anteriormente, esse debate permanece na ordem do dia e em constante questionamento. Não obstante, a concordar com Flamarion Cardoso (1996, 1997a, 1997b), avaliamos que a existência do humano se ampara em uma realidade objetiva. O conteúdo interno da vida de cada pessoa - pensamentos, memórias, afetos, desejos - são singulares, porém o conteúdo de sua vida é da ordem do coletivo, pois se apóia na cultura e na história. O solo coletivo entranhado nas redes econômicas, sociais, políticas produz práticas e discursos associados a uma rede simbólica. Assim, cada subjetividade singular necessariamente se articula ao coletivo, no sentido de que se constitui e se sustenta no outro que nos habita e, também, habita a linguagem e o social.

As análises de Anderson (1999) e de Zizek (1992, 2001) sobre as correntes pós-modernas na arquitetura, na história, na literatura apontam a inércia social que subjaz a essas leituras, ainda que concordem com algumas das críticas que elas realizam acerca dos pressupostos e dos caminhos trilhados pelo projeto da modernidade. Em outras palavras, os autores concordam, por exemplo, com a crítica direcionada ao imperativo do sujeito kantiano e aos projetos socialistas, conforme implantados na União Soviética e no leste europeu. Entretanto, eles questionam a destituição do lugar de sujeito histórico e ético, concomitante, ao abandono da metanarrativa e da utopia implícita na maioria das análises pós-modernas. No campo da psicologia e da psicanálise, Zizek (1992, 2001) realiza debate sobre as teorias denominadas pós-modernas e desconstrutivistas, no que elas contêm de críticas pertinentes à filosofia das representações e às análises clássicas sobre poder e Estado. O autor questiona os aportes epistemológicos e ontológicos que sustentam essas leituras, no que elas despojam a ação social do seu vínculo com o sujeito coletivo. Ele ressalta a concepção de que a constituição subjetiva se articula à ordem da consciência e do inconsciente e a perspectiva da contradição como presença nessa constituição. Segundo o autor, o sujeito da ação se articula ao real do concreto e ao real da realidade psíquica, no entrelaçamento do singular e do coletivo.

Para Sousa Santos (1996, 2002, 2003), no trajeto histórico percorrido pela modernidade, ocorrem processos que produzem diferenciações no plano interno da rede econômica, social e cultural. No plano cultural e filosófico, ocorre a dissociação da razão em racionalidades estanques e separadas. A razão cognitivo-instrumental, concebida como totalitária e a serviço da técnica e dos interesses do mercado, alcança a hegemonia. A racionalidade prático-moral concebe a ética como dissociada dos aspectos sociais e culturais da vida humana e a racionalidade estético-expressiva passa a conceber a separação entre os conteúdos racionais e os conteúdos afetivos e expressivos do humano. No plano social e econômico, ocorre a diferenciação entre o Estado, outrora corporificado na figura do rei e a ele sobreposto, e a comunidade. Ainda, o mercado, que também se encontrava subsumido ao corpo governamental e ao corpo da população, sofre um processo de desmembramento. O processo que envolve essa separação tripartite também se faz acompanhar pela sua captura, em maior ou menor grau, pelos pólos regulatórios ou emancipatórios. Em outras palavras, em um momento desse processo, a contradição entre a regulação e a emancipação tinha as forças regulatórias centradas no pólo do mercado, do Estado e da comunidade, e as forças emancipatórias se centravam nas racionalidades. Entretanto, no desenrolar do processo histórico, as propostas modernas de emancipação social são capturadas pela ideologia liberal e pelo modo de produção capitalista. Esse processo se caracteriza por um movimento gradual e contínuo que deságua na captura da ciência pelo mercado, pelo Estado e pelo modelo da racionalidade cognitivo instrumental.

Não obstante, para Sousa Santos, apesar da contínua absorção do pólo da emancipação pelo da regulação, as contradições presentes na modernidade também possibilitaram a razão estético expressiva manter o caráter emancipatório e a comunidade sofrer um deslocamento movendo-se para o núcleo das forças emancipatórias. Esse movimento acontece porque a comunidade não se encontra totalmente capturada pela ideologia do mercado e pela regulação instrumental, já que ações de participar e solidarizar-se operam na organização e no funcionamento da rede grupal. Nessa perspectiva, para Sousa Santos, a possibilidade emancipatória não se esgotou e necessita para se fortalecer da produção do conhecimento calcado no plano estético expressivo e na comunidade.

A concordar com os referenciais teóricos acima apresentados, acreditamos que o efeito de subjetivar e de dessubjetivar pode operar em situações grupais e em contextos comunitários, já que o contato com o outro grupal concreto e simbólico se encontra instalado de forma imediata e específica. A realização de atividades em grupo mobiliza recursos dos seus participantes no plano singular e no coletivo, bem como consciente e inconsciente e pode produzir efeitos de subjetivação e dessubjetivação. Como afirma Sousa Santos (1996, 2002, 2003), as práticas grupais podem se configurar como emancipatórias, pois o pólo da emancipação permanece atuante no contexto da comunidade, no contexto racional expressivo. Assim, práticas balizadas por referenciais de solidariedade e de cunho ético-estético operadas no plano grupal possibilitam a reorganização do concreto e do simbólico coletivo e singular. Como postula Pichón-Riviére (1982), a prática grupal, que envolve o exercício de atividades compartilhadas pelos membros do grupo, pode reconfigurar sua organização simbólica e concreta, pois envolve os planos da consciência e do inconsciente. Nessas perspectivas, as atividades realizadas no contexto grupal escolarizado se constituem em experiência que alteram a posição ocupada pelas pessoas frente à aquisição e produção de conhecimento.

Importa ressaltar a concepção de que a constituição subjetiva se articula à ordem da consciência, do inconsciente, nas suas articulações com o sócioeconômico. Nessa perspectiva, nos interessa relevar a concepção freudiana sobre a constituição da subjetividade ancorada no processo de identificações, entendido como um processo singular e cultural. Essa concepção é pertinente, já que empreende a crítica a idéia da subjetividade configurada como uma identidade individualizada e apartada do social. Concomitante, essa concepção reconhece a realidade psíquica que se constitui no entrelace do singular com o social e leva o sujeito a se acreditar como constituído por uma representação identitária única e plena. Vários autores a partir de diferentes abordagens realizam a crítica à leitura sobre a identidade ancorada na concepção de indivíduo (Giddens, 2002; Freire Costa, 1986, 1989; Castells, 1999; Birmam, 1997, 1999; Freud 1921/1973a, 1930/1973b). De forma específica, a leitura freudiana critica o referencial da identidade como fenômeno e como conceito e trabalha com as identificações. Para Freud, o processo das identificações opera no plano da consciência e no plano do inconsciente, permanecendo como um movimento aberto e contínuo, relacionado ao entorno espaço-temporal no qual o sujeito circula. Assim, a identidade se configura como um precipitado de identificações que oferecem ao sujeito a crença em uma pretensa unidade que o caracteriza e define, ao ressaltar a presença inelutável do outro na constituição subjetiva: o outro da cultura, o outro da linguagem, o outro do inconsciente (Freud, 1921/1973a, 1930/1973b). Essa perspectiva postula a presença do contexto sócio-histórico na configuração do psiquismo, bem como a presença da sujeição e da autonomia como processos em constante conflito na organização subjetiva.

A considerar essas análises, faz-se necessário pensar o trabalho realizado com grupos na sociedade atual, na perspectiva dos processos de subjetivação e de dessubjetivação, já que o trabalho de ressignificar e produzir novas narrativas, conforme discutimos anteriormente, subjaz a esses processos. O trabalho com grupos e a própria concepção de subjetividade envolve o debate sobre o homem simbólico, as narrativas e a concepção sobre o real, ainda que esse debate não seja explícito. Concomitante, também se faz necessário problematizar o conceito de identidade coletiva nas suas relações com a configuração grupal, com o sujeito da ação e mesmo com práticas de emancipação e de produção de autonomia. Essa discussão tem mobilizado pesquisadores e profissionais envolvidos no trabalho com grupos e comunidades e preocupados com o referencial crítico de atenção na área da psicologia. A partir desses pressupostos, nos interessa pô-los a trabalhar e, para tanto, apresentamos cenas do trabalho realizado em uma instituição formal de escolarização. De forma específica, apresentamos um recorte do trabalho que realizamos nos últimos anos, destacando a intervenção em uma escola pública, com a população intra e extra-muros.

 

Algumas histórias e outras estórias no trabalho em uma escola.

Em trabalho anterior, pontuamos que a concepção, as normas institucionais, as teorias e as técnicas vinculadas ao ensino-aprendizagem e os vínculos estabelecidos entre os membros da comunidade escolar dizem respeito ao processo de ensinar e aprender. Assim, o aspecto subjetivo do humano compreende o aspecto formal e o didático do conhecer, ou seja, as relações construídas entre as pessoas no processo de escolarização se relacionam com as estratégias de ensinar e aprender. Essa perspectiva orientou as nossas intervenções em uma escola pública nas quais organizamos, entre outras atividades, grupos com alunos e suas famílias, professores e funcionários, tendo por objetivo problematizar as relações de ensino, aprendizagem, inclusão e exclusão, postos a operar nessa instituição (Souza, 2002; 2006).

As situações suscitadas no trabalho grupal provinham dos mais variados contextos que passamos a relatar. Sexta-feira, duas horas da tarde, no pátio da escola, hora de reunião com o grupo das crianças-alunos que se encontrava nesse horário como se fazia havia vários meses. Lentamente elas chegam. O horário marcado das duas horas da tarde parece não dizer muito para elas, pois somente em torno das quinze horas o grupo se completa. O trabalho decidido pelo grupo é falar das vivências da semana de cada um e desenhar essas vivências. O grupo de J.; L.; A. e R. fala sobre a polícia que foi chamada à escola para resolver um problema de tráfico de drogas. J. comenta que está acostumado com a polícia, que sempre aparece no bairro. A. está preocupada com a irmã que engravidou e R. está bronqueado com a diretora, que o chamou à sala da Direção para passar-lhe uma bronca, já que seu professor vive reclamando da sua indisciplina. Nos cartazes desenhados pelas crianças-alunos, figuras coloridas e esquálidas correm pelas ruas do bairro, com o carro da polícia atrás. As figuras correm pelas ruas a cantar e a se divertir, não expressando medo ou rancor com a polícia a persegui-las: parece um jogo de pega-e-esconde. Outro cartaz diz respeito à cena da criança com a Direção da escola. Esse cartaz mostra uma figura sem cor, cabeça baixa, pequena diante da outra figura que fala através de um balão desenhado ao lado da sua boca: nunca mais faça isso! Nas janelas, outras figuras olham a cena. No trabalho de comentar e encenar as histórias contadas pelos dois cartazes, o grupo preferiu encenar a história da rua do bairro com o carro da polícia a perseguir as crianças e se recusou a encenar a história da criança-aluno na sala da Direção. O aspecto lúdico e criativo permeou a dramatização da história denominada "Bandido e mocinhos", sendo as crianças os mocinhos e a polícia os bandidos.

Para além de qualquer perspectiva de normatização ou moralista na análise desse trabalho, vale ressaltar o aspecto criativo, a presença do vir-a-ser nessa encenação. O grupo produziu no sentido de reelaborar a sua realidade e de atribuir novos sentidos para as constantes visitas da polícia ao bairro e à escola. Na encenação e na vida dessas crianças, resistindo ao sofrimento do convívio com a visita constante da polícia, estava presente a necessidade de produzir outros sentidos e de sonhar com outra realidade.

Para exemplificar como esse processo opera no plano intersubjetivo e no plano interrelacional, relembramos o trabalho pioneiro de Pellegrino (1987), ao analisar a questão da lei na cultura brasileira. O autor analisa a rede social brasileira a partir do contrato social instaurado em nome da modernidade, bem como o pressuposto da lei universal como parâmetro de organização social. Ato contínuo, ele trabalha com a noção psicanalítica de Lei e a correlaciona aos sujeitos constituídos no caldo cultural brasileiro. O autor aproxima a lei formal, jurídica, institucional e universal, com a lei na perspectiva psicanalítica de interdição cultural do incesto. A vivência intersubjetiva da interdição no plano do incesto configura uma dada experiência com a lei que prepara o solo para a vivência do sujeito com a lei no plano formal e institucional. Assim, o denominado pacto edípico e o pacto social se entrecruzam, já que ambos envolvem o estabelecimento de leis que dizem respeito tanto à tradição coletiva, que instaura e mantém determinadas normas referentes à configuração social e psíquica, quanto à apropriação singular que os sujeitos realizam acerca dessa tradição.

O autor entende que o rompimento do pacto social reverbera na constituição do pacto edípico, pois os sujeitos que realizam a socialização da criança ato contínuo a introduzem na cultura e passam a ser constitutivos do seu psiquismo. Concomitante, esses sujeitos fazem parte dessa mesma rede coletiva, realizam suas apropriações singulares e vivenciam suas experiências a partir dela. Assim, para Pellegrino, pacto social e pacto edípico se articulam entre si e se articulam com a rede social num movimento conjunto, contínuo e contraditório. Ambos se sustentam e o primeiro subsume e é subsumido pelo segundo e o segundo pode referendar ou não o primeiro. A(s) pessoa(s) que cuida(m) das crianças e realiza(m) a sua socialização opera(m) como representantes e figuram de autoridade para essas mesmas crianças. Temos aqui o plano das representações dos vínculos, afetos, valores, sustentado no plano empírico da corporeidade e do real, que deságua no concreto simbólico e no simbólico concreto da vida material e da vida psíquica. Por um lado, as experiências associadas às particularidades culturais e que configuram o entorno da vida da criança se relacionam a respostas de conflito, aceite ou contestação da lei cultural e da lei subjetiva. Por outro lado, a organização da rede social marcada por freqüentes desrespeitos à universalidade da lei e por privilégios de alguns em detrimento de outros, pode configurar um desregramento social e incidir na produção de subjetividades que não reconhecem a lei, tanto no plano coletivo quanto no singular.

Em outras palavras, para o autor, o rompimento do pacto social pode gerar uma retroação no plano subjetivo. Assim, o desrespeito aos princípios da igualdade e da dignidade, a falta de condições mínimas de trabalho e de subsistência pode levar o trabalhador a adotar diferentes estratégias de ação. Por um lado, podemos ter movimentos de resistência ou de adesão ao status quo, sendo que a parte lesada no contrato social pode manter o pacto social ou romper com ele. Alguns movimentos subjetivos levam o sujeito marginalizado a adotar uma perspectiva de reconhecer o contrato social e de contestá-lo, a partir da transformação do contexto social. Outros movimentos levam o sujeito a retroagir e não mais reconhecer o contrato social e o outro, ocorrendo no plano inconsciente o rompimento com o pacto edípico e com a lei que o sustenta, concomitante a atos que liberam os impulsos agressivos. As leituras do autor caminham no sentido de trabalhar os aspectos intrapsíquicos e interrelacionais associando-os com o exercício da violência por parte dos excluídos pelo contrato social. Esse movimento opera no plano do social, pois remete ao não cumprimento do pacto social e demonstra as relações dessa questão com a configuração psíquica de grupos e pessoas excluídos da sociedade e que exercem ações denominadas violentas por parte daqueles vinculados ao status quo. As análises do autor não vêm no sentido de legitimar essas ações ou mesmo de questioná-las, mas, antes, buscam compreender os mecanismos subjetivos e sociais que sancionam essa maneira de funcionar.

Dessa forma, acreditamos que trabalhos, como o de Pellegrino, oferecem argumentos no terreno da psicologia e da psicanálise, que podem colaborar com a compreensão da constituição das subjetividades no terreno que articula singular e coletivo, concreto e simbólico. Ainda, oferecem argumentos que extrapolam tanto as leituras psicológicas reduzidas ao âmbito do sociológico, que se limitam à denúncia sobre as leituras psicológicas liberais, quanto as leituras psicológicas reduzidas ao âmbito do indivíduo e limitadas a denunciar as leituras críticas como não científicas.

No documentário Meninos do Tráfico, um dos garotos entrevistados sobre suas expectativas de vida, responde que deseja ser "bandido" e aponta seus argumentos. Essa resposta causa estranhamento e choque em nós, telespectadores, que, sentados em nossas poltronas, nos condoemos e analisamos a difícil realidade desses jovens "capturados" pela armadilha tanto da sobrevivência, quanto do lucro fácil proporcionado pelos traficantes. A partir do choque inicial que essa resposta nos causa, é possível enxergar para além do lugar de vítima ocupado por esses jovens. Nessa mirada, o desejo de ser bandido pode operar no plano intrapsíquico com o mesmo sentido que opera para um garoto de classe média, o desejo de ser chefe de uma indústria. Assim, trabalhar no plano da dessubjetivação implica conhecer as condições de vida e os sentidos que assumem para esses garotos o desejo de ocupar esse lugar de comando e de prestígio. Ocupar esse lugar face à sua realidade lhes possibilitará o acesso a bens de consumo, o reconhecimento social do grupo no qual eles transitam e, principalmente, a depender da sua configuração subjetiva, o auto-reconhecimento e a valorização que ele carece. A demanda por momentos em que ele possa se olhar e se sentir olhado, seja com amor, admiração ou ódio, pode ser intensa a ponto de levar esses garotos a investirem um momento em uma eternidade. Ante a expectativa de uma vida sem lugar para projetos de futuro, buscam a antecipação e a condensação do futuro no presente. Sou bandido, então, significa dizer sou temido, admirado, odiado. O tempo do presente é o que o outro me oferece e eu me autorizo, para viver e ser reconhecido como sujeito. De uma forma paradoxal, nada mais moderno do que essa realidade que explicita a busca por ser sujeito. Para o trabalho de intervenção, também importa articular o engate desse ato de produção do sujeito sujeitado com o seu entorno simbólico e concreto, que produz subjetividades capturadas nessa armadilha de potência mortífera. No trabalho de dessubjetivação, explicitar os sentidos que acompanham as práticas revela-se fundamental.

A relação entre identidade, percepção do corpo e conjunto de papéis sociais é discutida por Freire Costa (1986). A partir de uma leitura psicanalítica e psicossocial, Freire Costa relaciona a identidade à percepção que o indivíduo tem do seu corpo, bem como aos papéis sociais que ele desempenha. Aqui, podemos entender que "a identidade surge, concomitantemente, como correlato da imagem do corpo ou estímulos físicos dele provenientes e como ponto de condensação dos papéis do indivíduo em sua interação social" (Freire Costa, 1986, p. 84). Neste momento, cumpre salientar que Freire Costa faz a crítica aos aspectos referenciados apenas na leitura psicossocial, já que os entende enquanto ricos na sua leitura psicossociológica, porém pobres em sua dinâmica intrapsíquica. Assim, os aspectos salientados por Freud acerca do processo de identificação, na sua temporalidade, historicidade e mesmo no seu aspecto de mobilidade, complementam essas leituras e possibilitam compreender a dimensão psíquica associada ao social e histórico.

O autor aponta a concepção sobre a construção da identidade vinculada ao sentimento vivenciado pelo indivíduo de que sua existência apresenta uma constância no tempo. Em outras palavras, esse processo configura o sentimento de identidade, percebido pela pessoa que o vivencia como uma identidade estabilizada no espaço e no tempo constituída por especificidades afetivas, éticas e cognoscentes. Entretanto, essa ficção identitária não corresponde ao real da representação identitária configurada pela subjetividade clivada, que, por um lado, cindeconsciente e inconsciente e, por outro, produz a contradição no plano da consciência e gera o conflito afetivo, cognoscente e ético que marca o humano. Assim, a produção subjetiva deságua em miríades de representações identitárias contraditórias no plano intrapsíquico e múltiplas no plano interrelacional. Dentre esse rol de possibilidades de configuração subjetiva, podemos ter a construção da identidade delinqüente, por parte daquele sujeito que procura subtrair do olhar público o que acredita ter de melhor e de socialmente valorizado. A pessoa assim constituída procura criar um espaço de "segredo" sobre si com o objetivo de preservar-se da violência. Ainda, podemos ter a elaboração da identidade impostora que expõe ao olhar público o que acredita ser valorizado às expensas de não se representar como configurado pelos atributos valorizados. Assim, o que a identidade delinqüente resguarda, a impostora expõe, e a estratégia adotada inverte-se nessas situações.

Supomos que a análise realizada por Freire Costa (1986) pode colaborar na compreensão das falas dos jovens apresentados no documentário Meninos do Tráfico e dos jovens com os quais trabalhamos na escola. Conforme sabemos, na sociedade contemporânea, a representação identitária se produz a partir do abstrato e do individual em consonância com a hegemonia alcançada por esses aspectos no decorrer do processo histórico que instaura o mundo liberal e capitalista atual. Assim, o sujeito moderno se representa e se sente como desvinculado do social, apesar do fato de que essa própria representação é fruto da sua vinculação com a rede social que propaga essa idéia e dissemina. Em outras palavras, a produção social e econômica se entrelaça com a subjetiva e os valores e práticas presentes na rede social conformam a constituição das subjetividades, produzindo a crença subjetiva de que o êxito ou fracasso social, econômico e afetivo decorre da competência ou da incompetência de cada um. Esse é um processo complexo que se associa à apropriação que cada um realiza do coletivo e deságua na organização das singularidades. Ainda, o material se associa ao simbólico e ensejam o concreto do simbólico e o simbólico do concreto na organização subjetiva. Nesse contexto, aquele que se representa como bandido e como delinqüente pode estar a operar de várias formas. Pode estar a se resguardar do olhar do outro, já que esse outro o entronizou no espaço da exclusão e no tempo sem futuro. Pode estar a usufruir desse lugar e desse tempo, pois ocupa de fato o específico espaço e tempo e o outro lhe delegou e vivencia afetos, ética e cognoscência em outro registro; pode estar a querer punir esse outro que lhe delegou esse lugar de exclusão e presentificação eterna. Essas são algumas dentre as inúmeras possibilidades que podem ter assumido os sentidos construídos por esses jovens a partir do seu lugar social e subjetivo. De qualquer forma, nessas representações permanece a tensão entre o individual e o coletivo e entre o concreto e o abstrato, o que gera a representação identitária como individual e abstrata. O trabalho comprometido com a perspectiva crítica caminha com o objetivo de desvelar os sentidos construídos por esses jovens, bem como explicitar o entrelaçamento dessa produção com o coletivo e com o concreto. O trabalho com esses jovens é conjunto e não caminha na perspectiva teleológica, já que, por um lado, o singular irrompe e, por outro, a procura é pela destituição de um espaço tempo impingido de forma opressora. Em outras palavras, substituir uma atribuição identitária e espaço-temporal por outra, por mais que o caminho para o bem nos tente, não comporta os trilhos da autonomia e da solidariedade.

No plano da estratégia de intervenção, no transcorrer do trabalho grupal, adotamos a posição de dizer aos membros do grupo que não possuíamos respostas para lhes oferecer, e essa questão foi problematizada com eles. Abordamos questões como: existem outros que também vivenciam no bairro a relação com a violência e com a polícia? Em sala de aula, esse tema é discutido com os professores e com os demais colegas? Como essa situação se relaciona com o processo de aprender? É possível mudar essa situação? Ela envolve apenas o aluno ou envolve também o professor, a família, a sociedade? No decorrer dessas discussões, procuramos sustentar o lugar do psicólogo como investido pelo grupo, porém concomitante como um lugar a ser mantido vazio. O objetivo era de que o lugar simbólico do saber e da autoridade não ficasse restrito à singularidade encarnada no profissional, bem como fosse possível a circulação da possibilidade de que os demais membros do grupo viessem a ocupar esse lugar. Em outras palavras, o lugar do suposto saber atribuído pelas pessoas às figuras de autoridade (seja o professor, o líder político, o pai, o líder religioso, aquele a quem se ama) opera pela transferência e, inicialmente, faz-se necessário esse processo, para que a subjetividade seja mobilizada. Entretanto, o psicólogo trabalha no sentido de não corresponder à demanda nele investida, não ocupar o lugar de líder ou de detentor do saber almejado pelos membros do grupo. Assim, o profissional não oferece propostas de ação para o grupo, o que poderia substancializar o lugar de autoridade e tamponar a possibilidade de assunção dos seus membros à condição de construtores da sua ação e da sua autonomia. Nessa perspectiva, manter o lugar da autoridade como um vazio significa manter a possibilidade de que esse lugar possa vir a ser ocupado pelo outro. Esse procedimento reverbera nas experiências que o grupo constrói e é apropriado por cada pessoa que elabora novos sentidos para suas narrativas e suas ações acerca da autoridade e do poder. Entretanto, a qualidade dessa nova elaboração não pode ser prevista ou controlada, já que cada pessoa opera a partir do seu referencial singular, ou seja, do que lhe é possível digerir e sustentar no plano cognoscente e afetivo sobre essas experiências.

Um outro ponto merece ser salientado acerca dessa forma de trabalho, no caso a dificuldade vivenciada pelos profissionais e pelos participantes envolvidos em suportar essa forma de trabalhar nos grupos, já que o fascínio pelo exercício do poder e pela busca da verdade é grande. Assim, a crença do profissional no saber que ele detém e que o auxilia no trabalho com o outro e consigo pode se configurar na crença sobre um conhecimento concebido como verdade sobre o real, o outro e si próprio. A angústia tanto do profissional quanto dos demais membros do grupo se ancora na dúvida em sustentar uma relação na qual é proposto partilhar o lugar de saber, sem abrir mão do saber que se sabe e do saber que pode vir a ser construído em conjunto.

 

Discussões

O sofrimento assume diferentes configurações subjetivas e a sua produção se associa com contextos históricos e culturais diversos (LeGoff, 1996). Interessa-nos ressaltar o sofrimento vivenciado pelas pessoas, quando produzido pelas condições perversas e arbitrárias da sociedade liberal e capitalista. Nessa perspectiva, por um lado, podemos localizar a exclusão e a desqualificação presentes nos contextos escolarizados e mesmo naqueles não escolarizados, que levam as pessoas a se representarem como incapacitadas para produzir e para consumir conhecimento. Por outro lado, encontramos o discurso da competência profissional travestido em técnica que leva profissionais afeitos a diversas áreas de saber a se acreditarem como capazes de dominar todo o conhecimento referente à sua área de trabalho.

O trabalho com os processos de dessubjetivação acompanham as mudanças na ação do sujeito, já que as narrativas e as memórias por ele construídas demandam um deslocamento no campo afetivo e representacional. Em trabalho anterior, defendemos a hipótese de que atividades realizadas com o outro, a partir do seu reconhecimento no exercício da prática grupal, pode propiciar alterações na organização psíquica dos envolvidos e ato contínuo produzir mudanças no entorno social (Souza, 2006). As práticas sociais compreendem as ações realizadas em nome do exercício profissional, da expressão estética e ética, da vida cotidiana, no contexto grupal, institucional ou singular. O exercício do saber em nome de uma área específica do conhecimento, como as práticas psicológicas, educacionais, médicas, político-partidárias, dentre outras, operam como práticas sociais. Essas práticas expressam ações grupais e singulares realizadas pelo humano no âmbito das instituições, da família e demais grupos pertinentes ao cotidiano do sujeito.

A prática psicológica pode caminhar no sentido de desconstruir o referencial identitário individualizado calcado em nomenclaturas e descrições nosográficas que culpabilizam e desqualificam o sujeito concomitante ao descarte da escuta sobre o seu sofrimento. Quando o discurso do sujeito que sofre é desqualificado ato contínuo, o mesmo processo se estende a sua constituição subjetiva. Esse processo confere à fala daquele que vivencia o sofrimento o lugar da patologia e da passividade no sentido de concernente a um logos desfigurado e alienado pelo pathos. Assim, o sujeito desqualificado perante os saberes que o constituem e pelos quais é constituído, desde o saber acerca da sua neurose até aquele referente a sua aprendizagem, ocupa o lugar de objeto face ao outro. Entretanto, vários autores e profissionais trabalham com a perspectiva do direito à fala e do reconhecimento do saber acumulado pelo sujeito desqualificado pelos saberes oficiais centrados na técnica (MacDougall, 1998; Fédida, 1996). A acompanhar essa perspectiva, o trabalho psicológico não se associa de forma exclusiva e linear à adoção de determinada teoria ou prática. Antes, ele compreende um processo que se estabelece entre a teoria e a prática e entre os participantes da atividade psicológica.

A naturalização dos fenômenos sociais ocupa um importante papel na manutenção da ordem liberal, ao levar as pessoas a representarem o modo de vida capitalista (incluindo aqui as suas instituições e os seus valores) como eterno, deslocado do tempo e da história e, portanto, imutável e inquestionável. O laço social opera de forma perversa, ao instaurar discursos e práticas que corroboram a naturalização dos contextos sociais. Dessa forma, a naturalização do estado de coisas, predominante no mundo ocidental, liberal e cristão, cumpre a função política de ajudar a manter a ordem liberal. Nessa perspectiva, vemos a estreita vinculação entre a disseminação do modo de vida capitalista e a ordem moderna, que instaura determinadas concepções de organização políticas, econômicas, culturais e psíquicas. Problematizar e desconstruir essas concepções que produzem sofrimento, seja naqueles que vivenciam o lugar institucional de desqualificados, seja naqueles que vivenciam o lugar institucional de supraqualificados, parece ser um caminho promissor para o profissional referenciado na perspectiva crítica. Por fim, acreditamos que o trabalho de explicitar as relações entre o lugar social ocupado por aquele que sofre e a construção dessa vivência opera como instrumento na escuta e na intervenção profissional.

 

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Recebido em 15 de dezembro de 2006
Aceito em 26 de fevereiro de 2007
Revisado em 9 de março de 2007

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