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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.7 no.2 Fortaleza Sept. 2007

 

ARTIGOS

 

Corpos invasivos e violentos: subjetivação e incorporação dos sentidos em Foucault e Merleau-Ponty1

 

 

Fernando de Almeida Silveira

Psicólogo e Advogado. Doutor em Psicologia pela FFCL - Psicologia - Ribeirão Preto - USP. End.: Av. Caramuru, 630, bl. 3, apt. 104. Ribeirão Preto, SP. CEP: 14030-000. E-mail: fesilvey@usp.br

 

 


RESUMO

Michel Foucault estuda o corpo enredado, submetido aos embates das forças dos poderes-saberes que se articulam estrategicamente na história da sociedade ocidental. Por sua vez, Merleau-Ponty visa à experiência sensível que germina enquanto estrato originário da correlação corpo próprio-mundo, como uma região de sentidos que não se limita a seus significados histórico-culturais pois representa nossa abertura ao Ser em geral. Esta pesquisa parte da concepção foucaultiana de corpo enredado e procura analisar em que medida o ponto de vista de Merleau-Ponty de experiência sensível se define como ato violento no extravasamento das percepções, a partir do exemplo da correlação entre sono e vigília, no processo de encarnação e deslocamento dos sentidos do sujeito da experiência fenomênica. Verificou-se que é somente Merleau-Ponty que propõe uma articulação entre enredamento e corpo germinado através da qual percepção e subjetivação podem se remeter mutuamente. Este trabalho se desenvolve através da leitura de bibliografia dos referidos autores, comentaristas e de outros autores da filosofia moderna, em um enfoque transdisciplinar, que se remete tanto ao campo da psicologia como ao da filosofia, na medida em que se analisa a complexa correlação entre o corpo vivido e o corpo histórico, e o processo de construção da identidade do sujeito moderno (Agência Financiadora: FAPESP).

Palavras-chave: corpo, alma, Foucault, Merleau-Ponty, Psicologia.


ABSTRACT

Michel Foucault examines entangled body, submitted to the strikes of power and knowledge, which are strategically articulated in Occidental society's history. In his turn, Merleau-Ponty aims to investigate the sensible experience that germinates as an original stratum of proper body-world correlation, that is, as a region of senses that is not limited by its historical-cultural meanings because it represents our opening to the Being in general. This research starts from Foucault's conception of entangled body to analyze if Merleau-Ponty's point of view about sensible experience may be defined as a violent act in overflowing of perceptions, using the example of the correlation between sleep and vigil in incarnation and displacement senses process in phenomenical experience. The research has verified that only Merleau-Ponty proposes a joint between entanglement and germinated body, in which perception and subjectivation can be related mutually. From the discussion of the referred theorists, their commentators and other modern philosophers' bibliography, the analysis is conducted through a transdisciplinar approach, which refers to Psychology and Philosophy fields as it analyzes the complex correlation among lived and historical body and identity construction process of modern subject. (Financing Agency: FAPESP).

Keywords: body, soul, Foucault, Merleau-Ponty, Psychology.


 

 

Introdução

Nossa pesquisa se propõe analisar os processos de subjetivação e de incorporação dos sentidos em Foucault e em Merleau-Ponty, a partir da relevância das enunciações do corpo (e, decorrentemente, da alma em suas emanações), tendo como objetivo sua aplicabilidade transdisciplinar no contexto da Psicologia.

Neste sentido, um dos focos principais destas problematizações leva em conta o caráter sócio-histórico de edificação tanto do sujeito de conhecimento como do sujeito psicológico. E, sob outro viés correlato mas não idêntico, considera a questão da historicidade dos saberes em geral, dentre eles, as ciências humanas e, especificamente, as ciências psicológicas.

É neste contexto epistêmico-histórico que nosso trabalho visa a implementar uma analítica fundamentada sobre duas importantes investigações da constituição do corpo do sujeito moderno: o corpo foucaultiano atravessado pelas relações de poder/saber e o corpo próprio merleau-pontyano como fonte de percepção, de sentidos e de amplos processos lingüístico-histórico-culturais.

Como resultado, diagnosticamos diferenças enunciativas nestes autores, principalmente no que se refere à questão do corpo como elemento na constituição violenta e/ou invasiva de sentidos, em seu decorrente processo de constituição da subjetividade, incluso, neste âmbito, a instância de sofrimento psíquico do sujeito perceptual e histórico, conforme contemplaremos neste artigo.

Partindo da verificação destas diferenças enunciativas do corpo nestes autores estudados, este estudo parte da concepção foucaultiana de corpo enredado e procura analisar em que medida o ponto de vista de Merleau-Ponty de experiência sensível se define como ato violento.no extravasamento das percepções, a partir do exemplo da correlação entre sono e vigília, no processo de encarnação e deslocamento dos sentidos do sujeito da experiência fenomênica.

Neste sentido, o tema da corporeidade deve analisar em que medida a sua historicidade em Foucault emerge como especificidade da articulação enunciativo-discursiva de suas investigações sobre os processos de subjetivação, sustentados através de uma objetivação do corpo e de suas emanações as quais, em Merleau-Ponty, são situadas na experiência do corpo próprio, em coerência com a configuração dos dizeres e das visibilidades inerentes ao seu projeto fenomenológico.

Este trabalho se desenvolve através da leitura de bibliografia dos referidos autores, comentaristas e de outros autores da filosofia moderna, em um enfoque transdisciplinar que se remete tanto ao campo da psicologia como ao da filosofia, na medida em que se analisa a complexa correlação entre o corpo vivido e o corpo histórico e o processo de construção da identidade do sujeito moderno. Para tanto, investigamos as disposições sobre o corpo em obras de Merleau-Ponty (sendo elas, A Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção), bem como as disposições na obra de Foucault (com especial destaque, As Palavras e As Coisas, Vigiar e Punir e História da Sexualidade - Volume I).

No que se refere ao instrumental metodológico para o desenvolvimento de nosso trabalho, partimos da noção de grade de especificação enquanto instrumental-chave para alavancamento de nossas questões, seja em relação a Foucault ou a Merleau-Ponty.

Neste sentido, é Foucault quem, em A Arqueologia do Saber, estuda as regras de formação dos objetos das formações discursivas. Para tanto, parte do exemplo do desenvolvimento do discurso da psicopatologia. Nele reconhece suas diversas categorias, dentre elas as de doença, alienação, anomalia, demência, neurose ou psicose, degenerescência etc.. E, a partir destas enunciações, indaga sobre qual foi o regime de existência da loucura enquanto objeto do discurso (Foucault, 1969, p.47).

Neste contexto, denomina de grades de especificação aos

sistemas segundo os quais separamos, opomos, associamos, reagrupamos, classificamos, derivamos, umas das outras, as diferentes 'loucuras' como objetos do discurso psiquiátrico (essa grades de diferenciação foram, no século XIX, a alma, como grupo de faculdades hierarquizadas, vizinhas e mais ou menos interpenetráveis; o corpo, como volume tridimensional de órgãos ligados por esquemas de dependência e de comunicação; a vida e a história dos indivíduos, como seqüência linear de fases, emaranhado de traços, conjunto de reativações virtuais, repetições cíclicas; os jogos de correlações neuropsicológicas como sistemas de projeções recíprocas e campo de causalidade circular (Foucault, 1969, p. 48, grifo nosso).

Portanto, este conceito-referência é norteador deste nosso estudo.

 

O pressuposto ou descoberta do corpo na genealogia de Michel Foucault

Nossos estudos sobre o corpo em Foucault, desde o Mestrado (Silveira & Furlan, 2001), nos levaram, introdutoriamente, a considerar que, para Foucault (1979, XII), o poder

intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos - o seu corpo - e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.

Esta perspectiva é constantemente direcionada para o desenvolvimento daquilo que se configurou como sendo a microfísica do poder, ou seja, o foco na corporeidade de cada indivíduo - com seus hábitos, instintos, pulsões, sentimentos, emoções, impulsos e vicissitudes - como o ponto fundamental sobre o qual atua um emaranhado complexo de uma série de lutas e de confrontos inerentes a tais saberes, no processo de produção de poder.

Dentre tais práticas, podemos enumerar, ilustrativamente, os suplícios, as disciplinas, as disposições do corpo no tempo e no espaço, os métodos de auto-exame e de controle, os mecanismos panópticos de vigilância, os atos e as práticas confessionais (de cunho religioso ou científico), a confecção de laudos periciais e psicológicos sobre as disposições dos corpos-almas, os exames médicos (que esquadrinham tanto o corpo como a alma dos pacientes, dos loucos, dos excluídos), conceitos de higiene física e de demografia.

É este conjunto de constatações que se configura enquanto uma nova fase do seu projeto histórico-filosófico: a fase genealógica, enquanto "um diagnóstico que se concentra nas relações de poder, saber e corpo na sociedade moderna" (Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 117).

Esta fase é representada, principalmente, por Vigiar e Punir (1975), enquanto um estudo que se volta para a constituição dos mecanismos de poder/saber, através da prática penal/punitiva e do implemento de fórmulas genéricas de dominação, de cunho disciplinar e de vigilância, presentes em toda a sociedade moderna, e por História da Sexualidade - Volume I - A Vontade de Saber (1976) na qual Foucault mostra a implementação do dispositivo da sexualidade.

Desta maneira, a genealogia foucaultiana foi se revelando como portadora de uma nova estrutura analítica de produção histórico-filosófica, porque reconhece a validade do estudo da corporeidade no que nela se manifesta como mais próximo, também denominada de história efetiva (nitidamente de inspiração nietzscheana): "a história efetiva" [...] lança seus olhares ao que está próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as energias; ela perscruta as decadências" (Foucault, 1979, p. 117).

E esta apropriação dos aspectos relegados da corporeidade instaura uma verdadeira vivificação da filosofia do corpo. Neste sentido, sua criação intelectual é multi-sensorial: valoriza na filosofia as emanações físico-sensórias do corpo e as eleva a condições de detentores de história.

Assim sendo, ao focalizar suas investigações no contexto das singularidades próprias da corporeidade, Foucault passa a relevar como história os eventos e marcas desta corporeidade os quais, a princípio, são comumente considerados como "não possuindo história, os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos" (Foucault, 1979, p 15), e passa a rastreá-los através de um estudo minucioso, revelando-os enquanto apropriados por uma complexa série de articulações estratégicas de saberes e de poderes, os quais utilizam o corpo como seu alvo e, mais do que isto, como seu começo.

Nas palavras de Foucault:

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissolução do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia [...] está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (Foucault, 1979, p. 22).

Em outros termos, o corpo é o campo (porque as forças atravessam e constituem a realidade da corporeidade, não há força sem corpo) de forças múltiplas, convergentes e contraditórias e o próprio lugar da sedimentação de seus combates.

Ou, ainda,

sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam e entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito (Foucault, 1979, p. 22).

Ou seja,

Lá onde a alma pretende se unificar, lá onde o Eu inventa para si uma identidade ou uma coerência, o genealogista parte em busca do começo - dos começos inumeráveis [...] A marca da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos (Foucault, 1979, p. 20).

Este caráter dissociativo do eu, com seus começos inumeráveis, múltiplos e dissociadores, possibilita a compreensão de uma dinâmica desse "eu" na qual corpo e alma estão submetidos a processos múltiplos de constituição histórica.

Corpo e alma, portanto, são interpenetrados de história e articulados através de diferentes contextos discursivos, os elementos co-construtores de múltiplos focos de subjetivação, de forma que se torna imprescindível associá-los ao processo de edificação da própria identidade histórica do indivíduo.

Dentro deste universo no qual poder e saber estão intimamente ligados, o que se frisa, portanto, é que "não há constituição de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder" (Foucault, 1975, pp. 29/30).

Com isto supera-se a neutralidade difusamente presente em diversos grupos intelectuais de que "fazer ciência não é fazer política" ou a concepção na qual a ciência está dissociada de qualquer disputa pelo poder.

Muito pelo contrário, ao reconhecer o liame estreito entre saber e poder, Foucault lança a ciência e todos os saberes (os quais reconstroem e rearticulam o binômio secular do corpo e da alma) a uma relação de suporte teórico e epistemológico de múltiplos interesses, inerentes aos rearranjos das conformações de poderes imanentes a cada momento, em nossa sociedade.

Daí sua analítica dos saberes científicos ter se desdobrado sobre uma vasta diversidade de campos do saber, tais como: a Medicina, o Direito, a Sociologia, a Lingüística, a Psicologia, a Demografia, a Pedagogia, a Biologia, a Economia, a Política, a Filosofia, a Sexualidade, todos eles analisados através de uma perspectiva eminentemente histórica.

 

Articulações do corpo em Foucault e Merleau-Ponty

Em nossas pesquisas recentes sobre o corpo em Foucault e Merleau-Ponty, pressupomos, de início, que há um ponto em comum entre a fenomenologia merleau-pontyana e a ontologia histórica2 de Foucault: a concepção imbricada entre corpo e alma. É o que Merleau-Ponty nos aponta:

Nós propomos admitir que nosso século se distingue pela associação toda nova do 'materialismo' e do 'espiritualismo' [...] ou mais ainda pela ultrapassagem destas antíteses. [...] Nosso século apagou a linha de separação do 'corpo' e do 'espírito' e vê a vida humana como espiritual e corporal em toda parte, sempre apoiada sobre o corpo, sempre interessada, até nos seus modos mais carnais, às relações pessoais. Em muitos pensadores, no fim do século XIX, o corpo era um pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX restaurou e aprofundou a noção de carne, ou seja, de corpo animado (Saint Aubert, 2004, p. 192, grifo nosso).

Mas, a partir desta ótica em comum - dois autores que imbricam corpo e alma -, constatamos, no Doutorado, diferenças enunciativas sobre os corpos/almas em Foucault e Merleau-Ponty.

Foucault associa corpo e alma ao processo sócio-histórico das redes de poder/saber, desenvolvidas na sociedade ocidental, principalmente a partir do século XVIII, com o advento da Modernidade, o qual permitiu o implemento das ciências do homem - especialmente a partir da filosofia de Kant - com o ­desenvolvimento de estudos sobre a finitude humana, alavancados pelas concepções humanistas do corpo e da alma.

Por conseguinte, no final do século XVIII, ocorre uma importante modificação do sistema de pensamento ocidental através do evento sócio-histórico-cultural, caracterizado por Foucault como a "entrada do homem na história". Trata-se da mutação de conformação discursiva denominada de analítica da finitude do homem: "é uma analítica [...] em que o ser do homem poderá fundar em sua positividade todas as formas que lhe indicam não ser infinito" (Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 22).

Ou seja, a partir de tal reconfiguração discursiva, o homem passa a ser delineado como uma figura passível de pesquisas empíricas, alicerçada sobre sua própria finitude, tendo o corpo como um novo universo a ser vasculhado, analisado e exaustivamente estudado enquanto objeto de investigação distinto e discriminado. Em outras palavras, "um ser cuja finitude lhe permite tomar o lugar de Deus" (Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 32).

Desta maneira, a Modernidade se materializa como uma verdadeira consagração da natureza finita do homem e sua possibilidade de averiguação positivista a qual, por sua vez, se debruça sobre a corporeidade humana como um objeto a ser cientificamente dissecado e interpretado.

Neste contexto, Foucault (1975) considera que poder e saber se constituem mutuamente, incidindo sobre os corpos através dos discursos sobre a alma moderna (referentes, exemplificativamente, à produção discursiva da alma dos loucos, dos excluídos, dos condenados, dos disciplinados, dos anormais, dos sexualizados, dos presos etc.), considera "a alma, efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma, prisão do corpo" (p.30 - grifos nossos). E inverte a clássica proposição platônica quanto ao binômio corpo/alma (lembremos, para Platão, "o corpo é a prisão da alma"), desnudando a alma de seu suposto caráter mitificador ou transcendental. Portanto, os corpos são enredados no efeito de conjunto de uma série de rupturas e escansões históricas, que se cravam sobre a corporeidade, visíveis nos mapeamentos dessas forças através da arqueogenealogia foucaultiana.

É assim que a filosofia foucaultiana é um pragmatismo, um funcionalismo bélico-estratégico. E, se não discorre sobre a estrutura perceptual da existência (conforme Merleau-Ponty), Foucault releva a função existencializante de redes de forças historicamente posicionadas: "a existência como um produto de uma série de jogos discursivos, de forças e estéticos, que têm no exercício do pensamento e de suas bordas a possibilidade de atravessamento da história, enquanto elemento que nos separa de nós mesmos" (Deleuze, 1990, p. 119).

Em Foucault, a quebra e a ruptura das combinações das forças históricas sobre os corpos são elementos primordiais na constituição, não só da corporeidade mas, simultaneamente, de subjetividades e da psiqué. É a encarnação da alma moderna (dos excluídos, dos dominados, dos normalizados etc.) enquanto exterioridade constituinte de determinada psiqué, afeita mais à história do que a hermenêuticas interiorizadoras do sujeito.

Por sua vez, a noção de corpo próprio em Merleau-Ponty releva da corporeidade sua característica (para ele, estrutural) de um corpo imbricado na sua relação com o mundo, através da experiência perceptiva, primordial na constituição dos sentidos e da subjetividade.

Para Merleau-Ponty, "o corpo é o veículo do ser no mundo [...] meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo" (Merleau-Ponty, 1945, p.122). Destarte, se "[...] percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção" (Merleau-Ponty, 1945, p. 278).

Sob tal prisma, Merleau-Ponty visa à experiência sensível, imanente à corporeidade, como uma região de sentidos que não se limita a seus significados histórico-culturais porque representa nossa abertura ao Ser em geral. É o que ele denominava de região do Ser bruto.

Por conseguinte, as construções lingüístico-discursivas da realidade, inclusive aquelas referentes às questões da corporeidade, partiriam de uma experiência perceptiva que elas não abriram e nem podem fechar, porque o sentido da experiência sensível encontra-se sempre aquém dos significados da linguagem, e por isso pensamos, construímos e desenvolvemos linguagens. É o que poderemos denominar de primado da experiência perceptiva sobre os processos racionais de construção do conhecimento.

Tais noções se distanciam das considerações de Foucault que enfoca tanto a noção de consciência como a concepção ontológica do homem enquanto construções histórico-culturais que se fixam sobre o corpo, produzindo campos de verdades e de articulações de poder sobre essas corporeidades, em uma abordagem eminentemente enunciativo-discursiva, principalmente na sua fase arqueológica e político-estratégica, principalmente na sua fase genealógica.

Destarte, tanto a ontologia, a fenomenologia como a psicologia são por ele analisadas enquanto discursos historicamente constituídos, os quais permitem um acesso direto sobre o corpo, no exercício das forças de poder, estrategicamente dispersas em toda a rede social.

E, se para Foucault o corpo é uma peça numa trama de articulações de saberes/poderes, Merleau-Ponty o inscreve enquanto ponto de apoio de percepções e de sensações na expressão da existência do indivíduo, de forma que "a consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo" (Merleau-Ponty, 1945, p. 193), e o "corpo é a 'forma escondida do ser próprio'" (Merleau-Ponty, 1945, p.229).

 

Conclusões

A genealogia fenomenológica de Merleau-Ponty

A genealogia dos saberes científicos e do senso comum, efetuada por Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção (1945), também tem na correlação corpo-alma um dos seus principais elementos alavancadores.

Em entrevista de rádio proferida na primavera de 1959 (ou seja, posteriormente à publicação desse livro) a G. Charbonnier, Merleau-Ponty nos aponta como a questão central do espírito e do corpo é fundamental no direcionamento global de todos os seus estudos:

Desde que o espírito reflete sobre sua verdadeira natureza, ele se percebe somente como pura consciência, pensada no senso cartesiano, e é ele mesmo que é ainda o espectador da relação do espírito e do corpo. Ele a vê, ele a pensa, ele a constitui, ele faz parte do universo do pensado, mas ele não é um vínculo entre outra coisa do que ele mesmo (Saint Aubert, 2004, .p. 111).

Ora, se é possível conferir a Descartes a conformação discursiva dualista que admite a existência de duas realidades completamente separadas: o espírito e o corpo, por ele denominados respectivamente de substância pensante e de substância extensa, é a partir dela que podemos também supor o primado do pensamento-espírito sobre a matéria-corpo, já que se concebe que a verdade não provém, como ponto de partida, da percepção dos sentidos, mas da demonstração intelectual enquanto único princípio de conhecimento.

Conforme o trecho acima, é o espírito que vê, que pensa e que, assim, é o elemento fundamental na enunciação da precedência e da primordialidade do sujeito pensante perante a corporeidade. Isto nos levaria não só à total independência entre o pensamento e a extensão, como também à transmutação do corpo e de suas percepções enquanto mero objeto a ser discernido pelo sujeito, sob a forma de idéias, conforme os preceitos da metafísica cartesiana.

É o que Merleau-Ponty, nessa mesma entrevista, ressalta ao analisar o processo de purificação do pensamento, já que dissociado das imperfeições do corpo e, portanto, que se auto-referencia e se autoconstitui, que vemos a consideração de que

é esta imanência filosófica do pensamento nele mesmo que sempre me chocou, que sempre me pareceu insuficiente, de maneira que desde meus estudos eu me propus trabalhar este problema, das relações do espírito com o que ele não é: como torná-las compreensíveis, como torná-las pensáveis [...] com a parte tomada em mim com o que, conforme certas referências, é menos espiritual, o pensamento menos puro ... (Saint Aubert, 2004, p. 111).

É assim que vemos Merleau-Ponty (1945) apresentar a fenomenologia do sujeito da percepção como maneira de suplantar a concepção idealista do sujeito cartesiano, extensamente apropriada pelos saberes científicos. Na abordagem merleau-pontyana, a experiência perceptiva é o campo primordial da relação do homem enquanto ser-no-mundo. É o que denominou de facticidade do mundo em relação às produções mentalistas, na medida em que "[...] o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável" (p.14).

Neste âmbito, a função do fenomenólogo tem um cunho de descrição do vivido e do experiencial, deslocando o eixo central da análise reflexiva das ciências ou do senso comum. Conforme Merleau-Ponty, o real deve ser "descrito, não construído ou constituído." Isto se justifica, pois considera que o real é um "tecido sólido" (confirmando a imagem enunciativa de uma tessitura), que "não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis" (Merleau-Ponty, 1945, p. 6). Ou seja, o real é o campo originário na constituição dos seus correlatos fenômenos.

Neste processo descritivo, Merleau-Ponty se insere na corrente fenomenológica que utiliza, enquanto instrumental metodológico, do retorno às coisas mesmas (também denominado de redução transcendental), concepção desenvolvida de maneira central por Husserl e também apropriada por Merleau-Ponty enquanto instrumento para compreensão do universo pré-reflexivo originário das coisas e da presença do ser-no-mundo.

A esta nova conceituação existencial e sua instrumentalização podemos denominar de filosofia transcendental, na medida em que é também uma filosofia para qual "o mundo está 'ali', antes da reflexão". Este mundo é reconhecido como uma "presença inalienável", que demanda do pesquisador um esforço no sentido de "reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe um estatuto filosófico" (Merleau-Ponty, 1945, p. 1).

Nas palavras de Merleau-Ponty, retornar às coisas mesmas é remontar "a este mundo anterior ao conhecimento do qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem - primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho" (Merleau-Ponty, 1945, p. 3).

Assim, Merleau-Ponty edifica uma filosofia não objetivista (ou naturalista), nem metafísica, psicologista ou subjetivista, mas, sim, uma reflexão radical de segundo grau, na medida em que releva a importância primordial da experiência perceptiva.

O que vemos em Merleau-Ponty é a contraposição entre uma enunciação perceptiva do corpo próprio (tomada enquanto anterioridade estruturante do ser-no-mundo) em face de uma estrutura epistêmica das ciências ou de conhecimento do senso comum que visa instaurar seus pressupostos, a partir dos quais uma nova ordem das razões se efetivará na medida em que conseguir conformar posteriormente o seu primado perante o fenômeno perceptual. A esta sucessão entre a percepção e o saber científico denominamos de Postulado da Anterioridade Perceptiva ou, sob outro ângulo, o Postulado da Posterioridade Científica, em suas inter-relações na fenomenologia de Merleau-Ponty.

É sob este prisma que notamos em Merleau-Ponty certa continuidade entre os saberes e o corpo enquanto grade de especificação. O caráter originário do corpo, em sua dimensão fenomênica, exige-nos conceber que as ciências e as verdades do dia-a-dia possuam um caráter relativamente derivativo da percepção. Ou seja, sua descrição do vivido, centrada em muitos momentos na corporeidade, imprime nela uma característica estruturante da realidade e do mundo.

Neste contexto, denotamos certa continuidade nos jogos de enunciação do corpo vivido diante dos saberes das ciências e do cotidiano. É como se, para a consolidação de seus discursos, Merleau-Ponty partisse da pressuposição de que esses elementos estão imbricados um no outro, num entrelaçamento que ocorreria a partir de um campo perceptivo originário, referente ao corpo próprio-no mundo-diante das coisas, e que se desdobraria em amplos e diversos processos de produção de verdades dele decorrentes, através de enunciações e de visibilidades que tendem a se configurar sucessivamente, de maneira entrelaçada, sem interrupção ou com apenas pequenos intervalos, se comparados com a rede foucaultiana, em seu caráter recortado e devassado pelas forças.

Esta configuração geral da corporeidade em Merleau-Ponty pode ser denominada de tessitura ou trama das enunciações e das práticas.

Assim sendo, compreendemos que a tessitura enquanto imbricação configura o corpo próprio enquanto estrato originário dos corpos científicos e cotidianos e enquanto uma instância primeira a partir da qual estes corpos se desenvolvem como uma dobra, mais ou menos sobreposta e entrecruzada ao corpo vivido, de acordo com sua inter-relação à sua dimensão fenomênica originária.

Desta forma, o corpo próprio é uma instância de brotamento e de germinação dessas outras enunciações da corporeidade, a partir da qual se lançariam outras visibilidades de corporeidade, e por nós denominada de saber perceptivo, saber este que sempre coloca o fenômeno perceptual como anterior e fundante de qualquer ordem de razões.

Compreendemos que esta nossa verificação é uma emergência enunciativa, a qual não implica que esta noção de brotamento e de germinação seja encontrada literalmente em Fenomenologia da Percepção. No entanto, do ponto de vista da percepção corporal do sujeito, temos um exemplo que demonstra o aspecto de brotamento, de maneira evidente, conforme o trecho a seguir:

Mesmo cortado do circuito da existência, o corpo nunca se curva inteiramente sobre si mesmo. Mesmo se me absorvo na experiência de meu corpo e na solidão das sensações, não chego a suprimir toda referência de minha vida a um mundo, a cada instante alguma intenção brota novamente de mim, mesmo que seja em direção aos objetos que me circundam e caem sob meus olhos, ou em direção aos instantes que sobrevêm e impelem para o passado aquilo que acabo de viver (Merleau-Ponty, 1945, p. 228, grifo nosso).

Isto nos remete a um aspecto central de nosso trabalho: o corpo próprio como foco de brotamento de sentidos, e não só de sentidos, mas, conforme já apresentamos sobre outras palavras, de significações, na sua relação mundana.

Este aspecto apresentamos, ao destacarmos que Merleau-Ponty (de um ponto de vista enunciativo e epistêmico e, portanto, constituidor de verdades) considera o corpo próprio enquanto um elemento através do qual o processo de racionalização da realidade vem encobrir, sobrepor, ocultar o fenômeno perceptual nele inerente em sua relação originária com as coisas e no mundo. Ou seja, é possível reconhecer que este caráter originário da dimensão fenomênica é que permite uma maior correlação recíproca entre o corpo próprio e o corpo objetivado.

Então, o corpo não é, como em Foucault, uma peça num jogo de dominações: é um elemento genético na formação e expressão de sentidos e significações, dentre eles os saberes científicos e o senso comum. Há, entre a experiência perceptiva e os saberes cotidianos/científicos, uma relação conascente e imbricada, na qual o corpo próprio é uma instância de brotamento e de germinação destas enunciações derivativas da corporeidade.

Esta constatação resulta em dois conjuntos de postulados distintos, referentes aos corpos foucaultianos e merleau-pontyanos3, referentes, respectivamente, aos corpos enredados na arqueogenealogia de Foucault; e aos corpos brotados/germinados na fenomenologia de Merleau-Ponty.

Estes dois agrupamentos de enunciações são fundamentais para a discussão-tema deste artigo: a questão da invasão e da violência em Merleau-Ponty enquanto efeito que se manifesta através do corpo próprio, conforme veremos a seguir.

 

Encontro e deslocamento invasivo na enunciação do corpo vivido em Merleau-Ponty

Uma das críticas que se faz à fenomenologia em geral, inclusa a merleau-pontyana, é que a cumplicidade primeira do sujeito percipiente com o mundo não levaria em conta a violência inerente à presença do sujeito no mundo, constituídora dos sentidos enquanto ambiência sócio-histórica, enfocada com primazia por Foucault, principalmente em sua analítica dos poderes/saberes sobre o corpo.

Bourdieu bem ilustra algumas colocações neste sentido, ao considerar que a descrição fenomenológica, mesmo quando se aproxima do real, corre o risco de "bloquear a compreensão completa da compreensão prática e da própria prática, por ser totalmente a-histórica ou mesmo antigenética" (Bourdieu, 1997, p. 179).

Isto porque a correlação sujeito-mundo não suportaria que ela fosse compreendida enquanto relação de puro conhecimento entre dois objetos, já que atravessada de História, o que promoveria a opacidade dos sentidos e mesmo das significações do sujeito da percepção, não restrita apenas ao seu caráter fenomênico, mas também associada a estes condicionamentos históricos exteriores. Caberia, então, "retomar a análise da presença no mundo, historicizando-o, ou seja, suscitando a questão da construção social das estruturas ou dos esquemas empregados pelo agente para construir o mundo" (Bourdieu, 1997, p. 179).

Em nossas leituras, reconhecemos hipoteticamente que o estatuto germinante da corporeidade em Merleau-Ponty teria, por um lado, neste caráter de brotamento, uma correlação imbricada entre corpo e mundo. Mas, por outro lado, esta correlação não seria propriamente pacífica.

Isto se deveria ao fato de ser caracterizada por uma articulação fendida, rachada, na medida em que a germinação de uma percepção implicaria em um deslocamento dos sentidos do sujeito, tanto no contexto espacial/temporal de sua história perceptiva, como referente ao processo de produção de sentidos e de significações perante o mundo que o cerca e o constitui, conascentemente.

Este movimento implicaria sempre em uma transmutação na intensidade dos vínculos entre sujeito, mundo e coisas o qual, para nós, traria em seu cerne um caráter impregnado de uma violência, não enquanto jogos de exterioridade (presentes na genealogia de Foucault), mas no âmbito mesmo do entrecruzamento das correlações entre o corpo, as coisas e o mundo, em suas afetações recíprocas.

Neste sentido, a percepção surgiria não apenas como encontro coincidente entre a corporeidade e a realidade do mundo, mas conjugação impregnada de falha, no deslocamento de um certo conjunto de correlações não totalmente coincidentes e, portanto, tensas.

Aliás, a suposta ausência destas fendas implicaria na repetição sucessiva e sobreposta dos sentidos e das significações corpóreas. Portanto, não sensibilizadoras, já que apenas reiteração monótona de um mesmo conjunto de apreensões de sentidos, o que reduziria a percepção humana a uma quase realidade maquinal, limitada a uma série específica e esquadrinhada de um conjunto de estímulos e respostas, os quais, desta maneira, poderiam variar quantitativamente, mas não qualitativamente, muito menos repercutir existencialmente.

Ou seja, o caráter atual de cada experiência perceptiva implica, necessariamente, em um certo grau de ruptura com certa historicidade perceptual. De maneira que brotar um campo de presença em Merleau-Ponty é, simultânea e contraditoriamente, gerar uma fenda em um certo arranjo conjugado de percepções, é deslocar uma ordem perceptiva, atualizando-a e, em certo grau, ultrapassando-a.

De tal maneira que a germinação, mesmo que expressão da convergência entre o dentro e o fora, passado e presente, passividade e atividade, percepção e motricidade, o corpo e o que lhe anima, o eu e o outro, o homem e a Natureza já traria, em seu efeito de deslocamento perceptual, aberturas como sinalizações de uma violência, características dos deslocamentos decorrentes de tais conciliações.

Ao contrário, em Foucault, enredar é produzir, através de cortes transversais de enunciações de verdades sobre os corpos, efeitos atualizados de saberes/poderes. É a ruptura das forças como fator de fabricação de corpos e sujeitos.

É assim que podemos reconhecer, do ponto de vista arqueológico, duas configurações topológicas distintas nos autores estudados: por um lado, em Merleau-Ponty, temos a conjugação germinativa da percepção com efeitos negativos de fenda, graças aos deslocamentos da correlação sujeito-mundo, o qual produz determinada experiência perceptiva. E as desencontradas rupturas das confrontações de forças em Foucault com efeitos positivos de fabricação, em virtude da criação de novas formas de subjetivação.

Neste sentido, podemos considerar que, no movimento aparentemente pacífico da germinação em Merleau-Ponty, ele se efetiva não necessariamente sob a ótica bélica dos afrontamentos sangrentos, com suas interrupções de continuidade e divisões. Mas seu caráter de irruptura é constituído a partir de um acesso ao corpo enquanto extravasamento de percepções, através de sua entrada impetuosa no processo de constituição promíscua e renovada de sentidos do ser-no-mundo.

A este tipo de investidura podemos denominar de invasão enquanto extravasamento de percepções, apoiada sobre o corpo, que se atualiza a cada momento de maneira repentina, imbricada e não caracteristicamente quebrada ou fraturada, como é o caso da arqueogenealogia de Foucault.

Este nosso reconhecimento se coaduna com as colocações de Saint Aubert sobre as transformações do processo de encarnação no desenvolvimento do trabalho de Merleau-Ponty. Para ele "a passagem de uma escritura da encarnação (o 'sujeito encarnado' da Fenomenologia da Percepção)" se direciona no sentido da enunciação de "uma escritura da carne (de seus investimentos, de sua agressividade e de suas irradiações)" enquanto "aprofundamento da natureza expressiva da percepção" (Saint Aubert, 2004, p. 23).

Neste sentido, Fenomenologia da Percepção seria o último livro no qual Merleau-Ponty ainda se apropria dos conceitos clássicos sobre o corpo (por exemplo, sensação, gestalt, divisão dos sentidos etc.) para passar, então, a se aproveitar da potência descritiva de renovadas figuras topológicas: "'invasão', mas também a alavanca dos 'entrelaçamentos', 'quiasmas', 'entrecruzamentos', 'círculos', 'espirais', 'dobras', 'nós', e outras 'promiscuidades'" (Saint Aubert, 2004, p. 19).

Tais denominações, segundo Saint Aubert, mais do que "figuras de estilo" ou "metáforas de abstração", representariam o esforço do filósofo na constituição de um "simbolismo primordial", já que "muito perto das estruturas do vivente e do sensível, o simbolismo do corpo" (Saint Aubert, 2004, p. 19).

Esta rearticulação discursiva cada vez mais se acentua quanto mais Merleau-Ponty desenvolve sua ontologia existencial, até culminar com suas análises sobre a carne em O Visível e o Invisível. Aliás, estas expressões topológicas seriam, para Saint Aubert, "figuras" ou "paisagens do ser" (Saint Aubert, 2004, p. 19).

No entanto, reconhecida nossa proximidade com este comentarista, este seu livro sobre Merleau-Ponty destina-se, preponderantemente, a evidenciar a invasão como ato violento, principalmente após Fenomenologia da Percepção, dentre outros textos, ilustrativamente, d'Humanisme et terreur (1947), a conferência do México de 1949, bem como uma série de manuscritos inéditos depositados na Biblioteca Nacional de Paris.

Neste sentido, nosso foco em Fenomenologia da Percepção representa relevar certos rudimentos do que venha a ser a invasão como ato violento (mesmo que não na sua plenitude nessas obras posteriores de Merleau-Ponty), bem como evidenciar o que já descrevemos como invasão enquanto transbordamento ou extravasamento de sentidos.

Como tema destas nossas investigações sobre os deslocamentos invasivos da experiência perceptiva, resolvemos analisar a instauração do universo dos sonhos, através da correlação dormidor/sono.

 

Deslocamentos invasivos na correlação vigília/dormidor/sono

Merleau-Ponty (1945) considera, do ponto de vista fenomênico, que o sujeito da sensação "é uma potência que conasce em um certo meio de existência ou se sincroniza com ele" (p. 285).

A imbricação conascente entre sujeito e sensação é por ele comparada à relação do dormidor, ao se situar corporalmente para o seu sono, conforme o longo e significativo trecho a seguir:

o sono vem quando uma certa atitude voluntária repentinamente recebe do exterior a confirmação que ela esperava. Eu respirava lenta e profundamente para chamar o sono e, repentinamente, dir-se-ia que minha boca se comunica com algum imenso pulmão exterior que chama e detém minha respiração; um certo ritmo respiratório, há pouco desejado por mim, torna-se meu próprio ser, e o sono, até ali visado enquanto significação, repentinamente se faz situação. Da mesma maneira, dou ouvidos ou olho à espera de uma sensação e, repentinamente, o sensível toma meu ouvido ou meu olhar, eu entrego uma parte de meu corpo ou meu corpo inteiro a essa maneira de vibrar e de preencher o espaço que é o azul ou o vermelho (Merleau-Ponty, 1945, p. 285).

Neste movimento, destacamos o já descrito caráter conciliatório entre duas instâncias da existência: o ser (analisado a partir do seu corpo) e o mundo. Desta díade, vemos a correlação entrelaçada entre o pulmão do indivíduo, que respira lentamente, se comunicar com um pulmão exterior (enquanto simbolismo do mundo enquanto corpo), na constituição de um deslocamento perceptual: do estado de vigília para o de sono.

No mesmo movimento, os órgãos dos sentidos (olhos e ouvidos, nitidamente situados, em sua funcionalidade especificável na vigília), são sobressaltados a uma nova maneira de vibrar, enquanto renovado campo de presença, que extrapola os limites de um eu fechado, e que se delineia enquanto deslocamento perceptual entre duas corporeidades, até então, inter-arranjadas de maneira diversa: o corpo do homem e o corpo do mundo.

Ou seja, para Merleau-Ponty (1945), o aparecimento de novas conformações sensíveis, do ponto de vista do corpo, não se restringe aos seus limites físicos. Em suas palavras, o sensível "não apenas tem uma significação motora e vital", já que sempre expressa "uma certa maneira de ser no mundo", enquanto espacialidade primordial, retomada pelo corpo, sempre que lhe for capaz, advindo daí o caráter da sensação enquanto "uma comunhão" entre o ser e o mundo (p. 285).

É deste prisma que podemos ressaltar um dos nós de nossa problemática.

A enunciação da comunhão em Merleau-Ponty tanto pode ser compreendida ingenuamente enquanto concordar, de maneira perfeita e coincidente, o que dá margem às críticas de diversos autores sobre a facilidade da correlação entre corpo e mundo nesse autor.

É a crítica de Bourdieu (1997) à fenomenologia, ao considerar que "a experiência de um mundo onde tudo parece evidente supõe o acordo entre as disposições dos agentes e as expectativas ou as exigências imanentes ao mundo no qual estão inseridos". E prossegue dizendo que "essa coincidência perfeita dos esquemas práticos e das estruturas objetivas somente se torna possível no caso particular em que os esquemas aplicados ao mundo são o produto do mundo ao qual eles se aplicam, isto é, na experiência ordinária do mundo familiar" (p. 179).

Como, por outro lado e mais próximo do ser encarnado, se referir a por em comum, dividir, partilhar. O que, como decorrência, pode nos levar a uma enunciação de comunhão enquanto partilha, sim, mas também ao conceito de desvio, enquanto deslocamento e extravasamento das forças e percepções envolvidas, já que partilhar não implica, necessariamente, coincidir em toda parte.

É esta segunda acepção mais complexa que compreendemos se tratar da correlação entre o interno e o externo, presentes no contexto do corpo perante o mundo, na constituição do sono. Reconhecemos, nessa correlação nascente, uma pressuposição recíproca na qual sentidos qualitativa e temporalmente diferentes emergem através da transposição de certos limiares tensos, na produção extravasada de campos fenomenais renovados e inéditos.

Por sua vez, é interessante a analogia de Merleau-Ponty (1945), que reconhece no sono uma manifestação de uma potência diferenciada, ao comparar a evocação do sono à evocação dos fiéis a Deus. É assim que descreve que "o deus se manifesta quando os fiéis não se distinguem mais do papel que representam, quando seu corpo e sua consciência deixam de opor-lhe sua opacidade particular e se fundem inteiramente no mito" (p. 226). Da mesma maneira, o sono "vem" enquanto "imitação dele mesmo que eu lhe propunha", já que se está situado em repouso, com respiração lenta e a ele receptivo tal qual um fiel em estado de contemplação em encontrada comunhão com Deus, no desvio do seu estado de consciência perceptiva cotidiana e habitual.

É neste âmbito que preponderam os deslocamentos perceptuais enquanto encontro: do ponto de vista situacional, o sujeito pré-dormidor se consagra à transmutação da sensibilidade do seu corpo em uma "massa sem olhar e quase sem pensamentos, cravada em um ponto do espaço, e que só está no mundo pela vigilância anônima dos sentidos" (Merleau-Ponty, 1945, p. 226).

Ressalta-se, então, em que pese o indivíduo relativamente aberto ao sono, que ele se incorpora enquanto arrebatamento, advindo daí o já destacado caráter invasivo dos conjuntos perceptuais, revestido de um certo teor de violência.

Neste contexto, é o corpo que atua como elemento vivo de deslocamento e de abertura entre várias realidades perceptuais, que nele germinam. Em outras palavras, a corporeidade como matéria de conexão e de desconexão entre níveis de consciência perceptiva sobre ela apoiados, mas nela divergentes, enquanto foco intersubjetivo dessas correlações.

É o que Merleau-Ponty (1945) explicita indiretamente a seguir, em contextos mais amplos:

Neste sentido, aquele que dorme nunca está completamente encerrado em si, nunca é inteiramente dormidor, o doente nunca está absolutamente cortado do mundo intersubjetivo, nunca inteiramente doente (p. 226).

Este caráter situacional e de deslocamento do ser encarnado é evidenciado quando Merleau-Ponty (1945) descreve que estes extravasamentos se apóiam no "ser em situação", e são eles mesmos situados (p. 226). Desta forma, considera que "sono, despertar, doença e saúde não são modalidades da consciência ou da vontade, eles supõem um 'passo existencial'" (Merleau-Ponty, 1945, p. 226).

Isto nos leva a reiterar que o corpo subjetivo está imbricado no que recém-denominamos de corpo mundano. Como também considerá-lo como o ponto de apoio dessas metamorfoses, na medida em que "transforma as idéias em coisas" como, por exemplo, "minha mímica do sono em sono efetivo" (Merleau-Ponty, 1945, p. 227).

Neste sentido, o corpo encarnado no mundo exerce a função de efetuar o movimento de sístole e diástole em direção ao seu autocentramento ou no sentido de adesão mais exterior aos apelos mundanos. E a consideração de que o corpo é ponto de apoio tanto do sono como do estado de vigília só ressalta o embate invasivo entre dois conjuntos diversos de sentidos, na constituição da relação do sujeito no mundo.

É neste seu movimento de abertura e de fechamento da corporeidade a certos apelos perceptuais diferenciados que pressupõe o apenas aparentemente contraditório encontro desviante entre os corpos do ser e do mundo, na medida em que "justamente porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação" (Merleau-Ponty, 1945, p. 228).

Ou seja, da mesma maneira que ser e mundo são conascentes, também o são o encontro e o seu siamês desvio.

Aliás, este caráter desviante é o que permitiria que o corpo não fosse apenas um objeto passivo, assujeitado à incidência das forças exteriores do mundo. Desviar é sempre esboçar uma certa historicidade do sujeito, é não romper (enquanto corte), mas irromper (enquanto transbordamento) uma correlação direta com o mundo. É encontrar para não coincidir totalmente, e sim divergir enquanto escape desta, para nós, apenas hipotética coincidência corpo-mundo, aniquiladora da subjetividade.

É o que Merleau-Ponty (1945) nos mostra ao considerar que "nunca me torno inteiramente uma coisa no mundo, falta-me sempre a plenitude da existência como coisa, minha própria substância foge de mim pelo interior e alguma intenção sempre se esboça" (p. 228).

Ou seja, se a cumplicidade do corpo do sujeito diante do mundo é o que funda suas mútuas possibilidades de existência, elas só se justificam para assinalar o primado do seu caráter desviante em relação ao seu aspecto encontrado, sem o qual não se discerniria nem o mundo, nem as coisas, nem o corpo do sujeito. Sem este caráter desviante e resistente, o corpo e o ser seriam apenas uma coisa ou peça passiva, numa relação praticamente inexpressiva com o mundo.

Isto porque, já que o corpo "exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se realiza nele" (Merleau-Ponty, 1945, p. 229).

Ou seja, realizar a existência no corpo é efetuar, simultaneamente, a apreensão e o deslocamento invasivo do mundo sobre a corporeidade. É assim que a distinção entre corpo existencial e corpo mundano passa a ter dois momentos abstratos. Da mesma maneira que a enunciação de encontro e de deslocamento invasivo, no processo de descrição do corpo fenomênico no mundo.

Como, também, qualquer crítica que venha a considerar ingênua ou fácil a adesão entre corpo e mundo em Merleau-Ponty, se não considerar os deslocamentos enunciativos inerentes à constituição do corpo germinativo, conforme estamos apresentando, no que se refere aos desencontros invasivos de sua configuração discursiva.

Desta forma, destaca-se este aspecto ambíguo e concomitante da encarnação dos sentidos do corpo, no qual a manutenção de uma estrutura de sentidos sempre é acompanhada de sua mutação desestabilizadora. É o que Bimbenet (2004) nos aponta no trecho a seguir

O corpo representa uma possibilidade sempre dada de se apoderar em seu próprio jogo, de nele se aderir sem distância como se ele fosse o mais profundo de nós mesmos. Ele está em nós como uma possibilidade permanente de nos escaparmos de nós mesmos, de nos fixar em um papel e de crer verdadeiramente que nós somos lá onde nós não somos: ele é, em sentido próprio, um álibi permanente (p. 123, grifo nosso).

A partir deste ângulo, sob o qual se questiona a concepção equivocada do corpo como receptáculo passivo do mundo, na constituição da experiência do sujeito, o que se reforça é que o caráter situado e perspectivo do sujeito sempre o leva a um deslocamento corpóreo perante as influências do mundo. Sobre este tema, Merleau-Ponty (1945) destaca o caráter violento da experiência perceptiva:

Não é verdade que minha existência se possua e também não é verdade que ela seja estranha a si mesma, porque ela é um ato ou um fazer, e porque um ato, por definição, é a passagem violenta daquilo que tenho àquilo que viso, daquilo que sou àquilo que tenho a intenção de ser (p. 511, grifo nosso).

Neste sentido é que vivenciar uma estrutura experiencial é, segundo Merleau-Ponty, "vivê-la, retomá-la, assumi-la, reencontrar seu sentido imanente" (1945, p. 511) rompendo, assim, com a perspectiva de uma linearidade entre causa mundana e efeito sobre os corpos, entre ação exterior e reação interior, entre atividade do mundo e passividade do corpo do sujeito.

E se, por um lado, Merleau-Ponty considera que nossos gostos, vontades, resoluções nesta fenomenologia se referem a um "fazer" existencial (o qual se refere à apreensão constante de sentidos e não a um embate subjetivador de forças nos moldes foucaultianos), também nos importa reforçar que os extravasamentos da experiência perceptiva já trazem, nas suas fendas e precipitações, esquemas corporais tensos (já que invasivos), os quais se acumulam enquanto memória corporal e enquanto sedimentação de sentidos.

Isto destaca mais ainda nossa compreensão de que o perspectivismo das experiências corpóreas, em Merleau-Ponty, já é carregado, na sucessão de seus atos, de um caráter violento, mesmo que sob a sua forma menos acentuada da invasão. Este aspecto se relaciona mais com a irruptura de uma relação entre mundo e ser, entre objeto e sujeito, revestindo-se mais de um caráter de violência enquanto deslocamento e precipitação, na qual determinadas estruturas experienciais se invadem reciprocamente, do que sob a forma de cravamentos exteriores sobre corpos, somente possíveis em Foucault, na medida em que o corpo é superfície de inscrição para os acontecimentos cartografados e não instância viva de imbricação de sentidos, germinantemente agressivos, em seu próprio movimento de expressão.

Em outras palavras, sem recorrer às figuras operadoras das rupturas entre os saberes e os poderes (rede, cortes, escansões, etc.), Merleau-Ponty impregna o natural e o humano, o corporal e o mundano, o passivo e o ativo, o interior e o exterior de uma correlação intrínseca e temporal/espacialmente precipitantes, já que instáveis nos seus deslocamentos constantes.

 

O Amor como Ato Violento e Invasivo

Um outro exemplo deste entrelaçamento é visível no estudo de Merleau-Ponty (1945) sobre o amor enquanto encontro deslocador e invasivo:

Quando eu digo que eu vejo o cinzeiro que está ali, eu suponho acabado um desenvolvimento da experiência que iria ao infinito, eu engajo todo um porvir perceptivo. Da mesma forma, quando eu digo que eu conheço alguém ou que eu o amo, eu viso além de suas qualidades um fundo inesgotável que pode fazer romper, um dia, a imagem que eu fiz dele. É a este preço que há para nós, as coisas e 'os outros', não por ilusão, mas por um ato violento que é a própria percepção (p. 485, grifo nosso).

Ou seja, em Merleau-Ponty, o sentido é impregnado de força e, na sua conformação germinante, já traz em seu bojo a violência de sua historicidade, mesmo na sua expressão aparentemente mais encontrada, que é o amor (já que partilha), mas também desencontrada (já que desvio de uma certa história perceptiva pessoal/relacional).

É assim que o momento presente da experiência perceptiva é o momento do equívoco, em que desvios e encontros se efetuam invasivamente.

E se existe algum esboço de enredamento em Merleau-Ponty, o encontramos rara mas significativamente, por exemplo, ao descrever que um dos efeitos de sermos situados é, justamente, constituirmos uma estrutura experiencial que nos aparenta relativamente fechada, de forma que "o criminoso não vê seu crime, o traidor [não vê] sua traição" (Merleau-Ponty, 1945, p. 510).

Desta maneira, Merleau-Ponty explica que, "se estamos em situação, estamos enredados, não podemos ser transparentes para nós mesmos, e é preciso que nosso contato com nós mesmos só se faça no equívoco" (Merleau-Ponty, 1945, p. 510, grifo nosso).

Isto aponta um liame estreito entre a percepção como uma fonte importante na própria constituição do sujeito (criminoso, traidor) em Merleau-Ponty. Isto porque a germinação perceptiva, na sua historicidade e no acúmulo de vários deslocamentos situacionais (enquanto equívoco ou falha), gera ao redor do sujeito uma atmosfera emaranhada, sob a forma de rede, justamente advinda de suas imbricações e dos seus entrelaçamentos difusos acumulados.

É possível considerar uma questão muito importante em nossas análises, que é a possibilidade de intercomunicações entre dois tipos de enunciação corpórea diferentes: o brotamento dos sentidos e a rede subjetivadora, comunicação esta presente generosamente na obra de Merleau-Ponty e ausente (apesar do reconhecimento de Foucault ao valor do trabalho deste seu antigo professor) na arqueogenealogia foucaultiana, que pretende se impor como instrumental de análise de amplos arranjos de saberes e de poderes, através do alavancamento exclusivamente enredado do corpo.

Aliás, isto não nos causa espanto justamente porque a estrutura enunciativa do corpo em Merleau-Ponty, como temos visto, agrega encontro e ruptura (enquanto fenda) na irruptura. Enquanto que, em Foucault, é sempre a ruptura que gera positividade (seja sob a conformação da normalização ou da resistência), na constituição de multiplicidades de identidades sobre os corpos, posicionados historicamente.

Isto só nos mostra quanto o brotamento do corpo em Merleau-Ponty não é uma topologia abstrata ou distanciada, na medida em que tem espaço e duração, sendo através de tal enunciação que a corporeidade, em Merleau-Ponty, é lançada na História, na estreita imbricação fendida entre universo humano e natural, refeita a todo instante sobre nossos corpos vividos, nele tanto germináveis como enredáveis, de maneira intercomunicada nos seus jogos enunciativos.

 

A Aplicação das Análises do Corpo em Foucault e Merleau-Ponty na Psicologia

Assim, podemos reconhecer, nos corpos merleau-pontyanos, seu caráter de brotamento desviante e invasivo enquanto visibilidade de determinada paisagem enunciativa arqueológica, já que os dizeres do corpo em Merleau-Ponty formam arranjos enunciativos germinantes, os quais, enquanto raridades e neste trabalho diagnosticados, ajudam a esclarecer seus desdobramentos discursivos, na formação do conhecimento fenomenológico de Fenomenologia da Percepção.

Também ressaltamos que, em Merleau-Ponty, o enredamento subjetivador (através dos exemplos do traidor e do criminoso) pode surgir a partir da relação difusa de vários brotamentos perceptuais, em uma comunicabilidade entre rede e germinação diferente da concepção que, posteriormente, Foucault desenvolveria exclusivamente a partir da noção de corpos e almas enredados, na constituição da sua paisagem enunciativa arqueológica sobre o tema da corporeidade.

O que nos interessa concluir, do ponto de vista da corporeidade nestes dois autores, é, ao invés de uma consideração fixa (quase ideológica!) que estabeleça superioridades e inferioridades de uma enunciação do corpo neste ou naquele autor, assinalar que, na dinâmica de suas enunciações, como acabamos de reafirmar, Merleau-Ponty propunha, mesmo que inadvertidamente, uma articulação entre corpo germinado e corpo enredado através da qual, portanto, percepção e subjetivação podem se remeter mutuamente, sustentadas pelos corpos, de maneira desigual e fendida.

Por sua vez, Foucault foi o pesquisador exclusivo do corpo enredado4. Os sentidos, emoções e emanações anímicas do sujeito são recortes fragmentados de certa incidência de forças. São exclusivamente produtos de um jogo histórico, os quais podem interagir entre si e se transformarem reciprocamente, mas sempre manifestação de um enredamento que os arruína e na qual a matéria física, enquanto elemento operatório da História, é o próprio despojo visível de uma guerra constante, através da qual sentimos os efeitos encarnantes de suas batalhas.

Aliás, relevar o corpo foucaultiano, para nós, representa a possibilidade de evitarmos sua aplicação cega e dogmática, na constituição de pressuposições fixas e aprisionadoras de sermos foucaultianos. Em outras palavras, é estarmos fixados a uma perspectiva de rede de corpos/almas nos saberes/poderes sem alavancarmos, a partir da corporeidade, outras articulações enunciativas.

Bem como evitarmos uma tendência contemporânea de desqualificar Merleau-Ponty como um autor historicamente datado, já que ao mostrarmos a complexidade da articulação dos corpos neste autor, estamos possibilitando a abertura de uma revisão de seus horizontes, os quais podem apontar para futuros estudos promissores, principalmente no que se refere ao aspecto encarnado do psiquismo na Psicologia.

Este tipo de indagação tem um sentido metodológico potencialmente eficaz pois nos possibilita, diante de nossos estudos, indagarmos arqueologicamente: estamos abordando o corpo enquanto germinação ou enredamento? Se as duas formas se encontram presentes em uma mesma discursividade, qual a sua combinação? E, além disto, haveria outras formas de paisagens enunciativas do corpo e da alma em outros filósofos ou psicólogos?

E também acreditamos que as recém-descritas paisagens enunciativas do corpo nos autores estudados possam oferecer subsídios para o estabelecimento de uma articulação entre Filosofia e Psicologia, no sentido de propiciar um maior rigor dos estudos psicológicos, principalmente do ponto de vista epistêmico, enquanto pesquisadores e psicólogos, em nossos contextos de atuação. Como também enquanto seres humanos lançados no mundo, produzidos por complexos jogos de percepções e forças perceptuais-históricas, cujas imbricações e enredamentos nos fazem refletir sobre o que somos e o que temos feito de nós mesmos.

 

Referências

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Recebido em 19 de outubro de 2006
Aceito em 26 de julho de 2007
Revisado em 4 de agosto de 2007

 

 

Notas

1. Esse trabalho originou-se de uma parte da tese de doutorado: "Corpos sonhados-vividos: a questão do corpo em Foucault e Merleau-Ponty", de Fernando de Almeida Silveira e Reinaldo Furlan, em 2005, Departamento de Psicologia e Educação da FFCL, Ribeirão Preto - USP. Meus agradecimentos à Fapesp, pelo financiamento desse projeto de Doutorado. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59137/tde-09062006-162253/
2. Para Foucault, sua obra possui três formas distintas de ontologias históricas: "Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos de saber [fase arqueológica]; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros [fase genealógica]; terceiro, uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos como agentes morais [fase da estética da existência]" (Dreyfus & Rabinow, 1995, p. 262).
3. A nível ilustrativo, já que não nos cabe detalhá-los no momento, elencamos da genealogia de Foucault os seguintes postulados: Postulado da Inscrição sobre o corpo dos poderes/saberes, Postulado da Transversalidade das Redes de Forças sobre os corpos, Postulado da Disposição e da Posição do Corpo na rede de saberes/poderes, Postulado da Tensão dos Embates entre corpos/poderes/saberes. E em Merleau-Ponty, os postulados a seguir: o Postulado da Excedência da Objetivação perante a Percepção, o Postulado da Anterioridade Perceptiva ou da Posterioridade Científica, o Postulado da Permanência Corpórea e o Postulado da Correlação Nascente entre Corpo-Mundo (Silveira, 2001 e 2005).
4. Sob esta conclusão categórica, é jus ressaltarmos que os livros da denominada fase da estética da existência do indivíduo não foram contemplados neste projeto, o que pode implicar em uma revisão desta concepção, principalmente referente aos livros da denominada fase genealógica.

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