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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.2 Fortaleza set. 2007

 

ARTIGOS

 

Melancolia como herança no filme Cidadão Kane

 

 

Liliane Seide FroemmingI; Márcia Regina RibeiroII

IDoutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS. Professora do Instituto de Psicologia da UFRGS. Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). End.: Rua Silveiro, 1114, apt. 301, Santa Tereza. Porto Alegre, RS. CEP: 90850-000. E-mail: lilifrom@portoweb.com.br
IIMestra em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. End.: Av. Fábio Araújo Santos, 1391, bl. A, apt. 155, Nonoai. Porto Alegre,RS. CEP: 91720-390. E-mail: mribeiro@orion.ufrgs.br

 

 


RESUMO

O texto propõe um estudo, com base na teoria Psicanalítica, sobre o filme Cidadão Kane, de Orson Welles, abordando alguns aspectos em relação à melancolia. Trata-se de considerar algumas partes do contexto fílmico (roteiro, música, montagem), assim como a biografia do autor e contexto social, como dispositivos que dão um certo relevo à idéia da impossibilidade de se fazer um luto pela perda de um objeto amado. Para além da sintomatologia clássica referida à melancolia, a ênfase é dada no processo da perda descrito por Freud em seu texto Luto e Melancolia de (1917 [1915]). O filme nos faz refletir sobre o quanto o que se herda pode estar paradoxalmente referido a uma perda. O personagem Kane, na sua infância, herda uma fortuna ao mesmo tempo em que perde o convívio com os pais; assim, o que ele não leva de sua casa (o trenó Rosebud) é o que o acompanha pelo resto da vida, enquanto significante, vinculado ao abandono. A montagem, um dos aspectos da análise fílmica, é mais detalhadamente analisada por ser considerada pelo próprio Welles como o elemento principal da obra de arte cinematográfica. Outra proposição que se apresenta, neste artigo, é a idéia de que também a montagem, neste filme, pode ser pensada como produtora de um efeito melancólico.

Palavras-chave: Cidadão Kane, montagem, psicanálise, melancolia, significante.


ABSTRACT

The text proposes a study, based on Psychoanalytical theory, about the film Citizen Kane, by Orson Welles, touching upon some aspects related to melancholy. It is about regarding some parts of the movie context (script, soundtrack, editing), as well as the author's biography and the social context as social devices that award importance to the idea of the impossibility of mourning over a beloved object. Beyond the classic symptoms attributed to melancholy, the emphasis here lies on the process of loss described by Freud in "Mourning and Melancholy" (1917 [1915]). The film makes us reflect on how much what is inherited can be paradoxically referred to a certain loss. Kane the character, in his childhood, inherits a fortune at the same time that he loses the possibility of living with his parents; thus, what he doesn't take from home (the sledge Rosebud) is what accompanies him for the rest of his life, as a significant, linked to the abandonment. The editing, one of the aspects of the movie analysis, is analyzed in more detail because it was considered, by Welles himself, as the main element of a movie masterpiece. Another proposition presented in this article is the idea that the editing, in this film, can also be thought as producing a melancholic effect.

Keywords: Citizen Kane, editing, psychoanalysis, melancholy, significant.


 

 

Introdução

"A sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado."1
- Sigmund Freud

Muito se tem dito sobre o filme Cidadão Kane, um clássico do cinema de todos os tempos. Foi já, ao longo dos seus 66 anos, muito discutido, debatido, diríamos até exaustivamente trabalhado pelos amantes do cinema. Mas uma obra de arte é assim, ela atravessa os tempos e se reatualiza a cada exibição, a cada comentário, a cada fruir estético, na sua potência de transmissão do que é belo. Apesar de pertinente, não se discutirá aqui a natureza da obra de arte, nem a filosofia da arte cinematográfica, a não ser apenas como pinceladas para colorir uma aproximação entre Cinema e Psicanálise dentro de um tema que, se não é a essência do filme, nos parece percorrê-lo ao longo da trama, a saber, a melancolia.

Para tanto, recuperamos alguns aspectos do roteiro, da montagem, do contexto social à época da exibição do filme, alguns aportes teóricos da Psicanálise e do Cinema para apresentar mais um lado deste multifacetado prisma de que é composto o filme.

Uma das tantas formas de se analisar um filme é vê-lo sob a ótica dos pressupostos da teoria psicanalítica, ou tão simplesmente nos entregar ao que ele pode simplesmente nos fazer associar. Não se trata de uma sessão de análise; não há sujeito suposto saber das nossas inquietações nos esperando na sala de cinema, mas este último constitui, por suas próprias características, um forte vetor para onde podem convergir nossas elucubrações no sentido do que nos toca. Para a Psicanálise, o sujeito suposto saber é o pivô da transferência que ocorre entre analisando e analista. Nas palavras de Lacan (1996 [1964]): "Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber - que eu abreviei no alto do quadro por S.s.S. - há transferência" (p.220), ou seja, é porque o sujeito supõe um saber no analista, que é possível que a transferência se efetue numa análise. Segue Lacan (1996 [1964]): "enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do desejo inconsciente..." (p. 222). Esta seria a primeira formulação do paciente, o seu próprio desejo, dirigida ou transferida ao analista. Lacan (1996 [1964]) pontua o elemento enganador que aí se coloca, e nos pergunta se ele não é da mesma ordem que a alienação fundamental que constitui o sujeito, para finalizar afirmando que é no "...desejo do Outro que o desejo do sujeito se constitui" (p. 223). É deste engano, então, que advém uma verdade, a verdade do sujeito. Embora a transferência não seja exclusiva do "setting" analítico, pensamos que ela não se dá numa sala de cinema, mas algo de um engano também ali ocorre no "setting" da sala de cinema: realidade ou ficção? A história é minha ou do outro, ou mesmo do Outro? Não supomos um saber, mas nos entregamos, nos deixamos guiar, associamos livremente a partir da produção imagética. Não pensamos ou não vamos ao cinema esperando que ele tenha a resposta às nossas questões mais profundas, mas não raro, ao sairmos de uma sessão de cinema, ficamos com a estranha sensação de que alguma cena falou de nós, tocou, fez pensar ou até trouxe de volta questões adormecidas. O engano que ali se produz, dentro da sala escura, traz um efeito de verdade, produzindo elementos que, muitas vezes, levamos para os analistas.

Assim, quando vamos ao cinema, sentamos, relaxamos, desligamos celulares e pagers, a sala escurece, deixamos o cotidiano do nosso mundo lá fora e focamos a tela. Somos, por minutos, o que as imagens vêm nos mostrar. Submergimos nas imagens, sons, palavras que aparecem e não são as nossas mas, ao nos entregarmos a elas, deixando-nos levar pelo fluxo imagético, sonoro, numa espécie de devaneio, invadimos a tela e ela nos invade; nos deixamos tocar por mensagens principalmente não-verbais; esbarramos, por vezes, em nossos nós; nas nossas teias cai, não raro, a cena mais insignificante para o próprio filme, se alojando, ocupando espaço em nossos pensamentos, perturbando emoções, trazendo lembranças esquecidas, escancarando, muitas vezes em imagens, o que só estava dito, o que só se imaginava, o que nem se sabia existir.

O que há no cinema é uma espécie de entrega, ali já se espera que algo nos ocorra e até desejamos o efeito de não sairmos do cinema da mesma forma que entramos, o que fatalmente já deve ter ocorrido a cada um de nós após a exibição de algum ou de muitos filmes que vimos.

Neste sentido, Ismail Xavier (1983) acrescenta que "(...) no cinema, a distância permanente da obra desaparece gradualmente da consciência do espectador e, com isso, desaparece também aquela distância interior que, até agora, fazia parte da experiência da arte."(p.84). E ele segue: "nada comparável a este efeito de 'identificação' já ocorreu em outra forma de arte e é aqui que o cinema manifesta sua absoluta novidade artística" (p.85).

Cabe ressaltar, ainda, que a Psicanálise, desde seu nascimento, sempre buscou a literatura como contraponto de suas considerações teóricas, e o próprio Freud formulou suas teorias valendo-se dela. Quanto ao cinema, que nasce praticamente junto com a Psicanálise, Freud se manteve receoso, tecendo poucos comentários a respeito. Atualmente, os psicanalistas buscam a arte em geral, inserindo aqui, portanto, o cinema, para dialogar, interpretar, fazer associações com a teoria. Froemming (2002) coloca ainda que "quando Freud determinava a seus pacientes que associassem livremente, que falassem sem censurar nenhum conteúdo, invariavelmente, eles lhe contavam sonhos. Hoje, nossos pacientes contam, além de sonhos, filmes, impressões causadas por filmes e utilizam muito a expressão "era como num filme" para nos dizer de uma senso-percepção peculiar, difícil de ser traduzida em palavras" (p.12). O cinema, não resta dúvida, tomou conta do nosso imaginário, instalou-se em nossas vidas, passando a fazer parte de nosso cotidiano e, portanto, de nossas análises.

Se falar de um filme, assim como nos diz Badiou (2005), "é examinar as conseqüências do modo próprio em que uma idéia é tratada por este filme"2 (p.32), então aqui se tentará pensar na idéia particular que nos ocorreu, ao assistirmos Cidadão Kane e para a qual buscamos subsídios a fim de desenvolvê-la.

A nossa proposição é a de que o filme traz elementos para pensarmos sua composição e seu mote, remetendo-nos à melancolia. Trata-se da história de um homem que foi "abandonado" por seus pais ainda criança e da forma como ele mesmo se fez objeto abandonado. Trata-se de um documentário não concluído sobre um cidadão por faltar o significado da palavra Rosebud, que, segundo os jornalistas que estão a produzi-lo, daria um diferencial buscado à pergunta "Quem é Kane?". Trata-se de um drama, montado como um quebra-cabeça cujas peças não se encaixam, se aproximam, indo e vindo no tempo, sendo narrado por pessoas já "em ruínas". É como se tudo, de certa forma, ficasse inacabado, dando-nos uma sensação de tristeza, de pesar, de melancolia mesmo, no sentido mais comum do termo.

Segundo Kaufmann (1996), a melancolia tem sido até hoje uma afecção de difícil classificação, tanto para a Psiquiatria quanto para a Psicanálise, na medida em que sua teoria vem sofrendo modificações ao longo dos anos e não há uma unanimidade em torno da questão. O trabalho mais significativo para a Psicanálise sobre a melancolia foi empreendido por Freud em 1917, no seu texto "Luto e Melancolia", e é com este aporte e algumas contribuições de Lacan que analisaremos o filme. De forma introdutória, então, podemos utilizar a definição de Chemama (1995) para a melancolia que a coloca como uma "afecção profunda do desejo, que Freud considera a psiconeurose por excelência, caracterizada por uma perda subjetiva específica, a do próprio eu" (p.134). Nesse sentido, o desejo que perpassa o filme, o personagem, segue uma trajetória descendente em direção à ruína. O que resta depois de uma história de perdas até na hora de expirar é o que não pode ser significado - o significante Rosebud.

 

O roteiro, música, o social : A vida revivida

O início de um filme é muito significativo, pois ele pode nos dar a pista que irá nos ajudar a identificar sua unidade. Não raro ele apresenta, de forma condensada ou mesmo metaforizada, a idéia central da trama.

Pois, logo de início, o filme Cidadão Kane nos coloca diante de uma cena de morte e todo o aspecto sombrio que ela envolve, incluindo a música de abertura composta por Bernard Herrmann. A primeira grande ação do filme é a morte. Trata-se, então, da morte de um homem, antecedida da palavra Rosebud e seguida pela queda de um objeto. Estes três elementos, portanto, o homem, a palavra e o objeto, sintetizam a história ao redor da qual se ampliará a trama. Em relação ao homem morto, se desenvolverá, em flashback, a narrativa de uma conturbada história de vida. A palavra Rosebud, pronunciada num close-up da boca de Kane, é aqui considerada como um significante que se repete, servindo de elo que liga as cenas e a repetição, a cada quadro, reformulará nossa construção da história composta em mosaico. O objeto, um peso de papel, também mostrado em close-up, quebrado no instante da morte e, num certo sentido, morrendo junto com o sujeito, libera com a queda o que, até então, havia ficado encapsulado no ego, ou seja, a perda repentina da infância e o abandono dos pais, representados pela casinha na neve, último momento de contato com ambos.

Nesse momento, insere-se, no filme, um documentário no qual jornalistas estão tentando retratar a vida de Kane e esbarram num enigma: "Rosebud, vivo ou morto", diz um personagem numa alusão a um tipo de jornalismo investigativo da época. Um bom enigma não se esgota na capacidade de um único decifrador, o que faz com que o filme continue a ser abordado por diferentes óticas. Desta maneira, busca-se o contato com pessoas que conviveram com ele a fim de descobrir o significado da palavra. É a forma como se vai reviver a vida que já foi dada como terminada no início do filme.

A história de vida de Cidadão Kane que nos é apresentada é composta por diferentes visões e interpretações de Kane, a partir dos seguintes relatos: última esposa, Susan; memórias de Thatcher, tutor; Sr Bernstein, uma espécie de gerente; Sr Leland, amigo íntimo. O contexto destes personagens que vão produzir a narrativa apresenta-se em tons lúgubres. Susan encontra-se solitária, visivelmente alcoolizada, numa casa de shows, em noite chuvosa. A câmera que entra no recinto, através do teto de vidro, nos faz pensar em alguém preso numa redoma; o livro das memórias de Thatcher está guardado também numa espécie de biblioteca-prisão, lugar frio e escuro, cujos guardiões se comportam como carcereiros; o Sr Bernstein, já bastante velho, está numa sala com enormes quadros e objetos que o deixam pequenino na sua fala; Leland, também velho e doente, está recluso num asilo.

Sabe-se, então, através dos relatos, que Kane foi retirado do convívio familiar, ainda criança, e tutelado por banqueiros até que completasse a maioridade. Da cena de sua infância, quando foi levado pelo Sr. Thatcher, cabe colocar algumas falas importantes ditas pelo pai e pela mãe. Do pai, dirigindo-se à mãe, temos as seguintes:

— Esquece que sou o pai dele?

— Mary, pela última vez, podem pensar que sou mau marido e pai.

— Eu não posso fazer nada...

E da mãe para o pai, quando o menino empurra o Sr Thatcher no chão: o pai diz que o filho precisava de uma surra e a mãe pergunta ao pai se ele pensava realmente assim e, ante a afirmativa do mesmo, ela diz:

— Ele vai ser educado onde não possa alcançá-lo.

Esta fala fecha com a imagem da mãe abraçada ao filho, ficando o pai e o Sr. Thatcher ao fundo. Esta passagem é muito significativa para entendermos o desenrolar da história de Kane, sua dificuldade de se colocar como aquele que "encarna" as regras como um pai e sua dificuldade nos afetos. Diz mais adiante o amigo íntimo Leland, sintetizando o drama de Kane:

— Casou-se por amor. Amor! Por isso fez tudo... Por isso entrou na política! Queria que os votantes o amassem também. O que ele queria da vida era amor. Essa é sua história, como perdeu. Não podia retribuir por não tê-lo. Amava a si próprio, é claro... E profundamente. E a mãe, sempre a amou.

É dito que passou por várias escolas e universidades, sendo expulso de muitas delas. Quando completa vinte e cinco anos, lhe é entregue a relação dos seus bens, mas ele se interessa apenas pelo jornal Inquire, pois este lhe parece ser divertido. A partir daí, começam, no filme, as muitas cenas do período em que trabalhou no jornal. Este homem vai reunir em si muitos elementos contraditórios que desencadearão também sentimentos de amor e ódio nos que o cercam. Dono de uma grande fortuna, não ligava para o dinheiro, usava-o para tudo comprar, inclusive o que não era pago; casou-se duas vezes, abandonou e foi abandonado; entrou para a política e não chegou a exercê-la. No dizer do amigo Leland:

— Não terminou nada... A única coisa que terminou na vida foi meu artigo.

Sendo o jornal a única coisa na qual se empenha, é interessante notar que, quando Kane vai ler os princípios que nortearão o jornal, diz que o mesmo tem que ser tão importante como o gás da luz e apaga a luz que o ilumina na cena, e é na sombra que lê os princípios:

— Eu darei ao povo o diário que publicará as notícias honestamente... Eu fornecerei também um campeão de seus direitos como cidadãos e seres humanos.

Fez-se um grande colecionador, comprando, compulsivamente, muitos objetos de arte, principalmente estátuas, e acabou por se recolher num castelo monumental, Xanadu, levando consigo os milhares de objetos. Ainda no dizer de seu amigo íntimo:

— Desiludiu-se com o mundo e construiu o próprio, uma monarquia sua.

Constituiu, assim, uma figura ímpar no cenário de sua época. Não por acaso os jornais, no interior do documentário, noticiariam sua morte e fariam uma verdadeira investigação sobre sua história a fim de tentar desvendar o mistério de um homem tão incomum.

Este é basicamente o roteiro e, segundo Mulvey (1996), houve bastante polêmica em torno da autoria de Cidadão Kane, mas, de fato, o roteiro, obra de Herman Mankiewicz e, por que não dizer, de Welles, foi baseado na vida de Willian Randolph Hearst, magnata das comunicações nos EUA à época do filme. À parte a história real do magnata, cabe colocar a própria história de Orson Welles que, assim como Kane, perdeu a mãe ainda criança e o pai, na adolescência; foi precoce no seu desenvolvimento profissional e, tal como Kane, foi, aos poucos, perdendo oportunidades de trabalho, deixando obras inacabadas, sendo considerado por críticos como um megalomaníaco excêntrico. Acabou entrando em depressão, bebendo, não recebendo em vida todo o reconhecimento que seu filme teria mais tarde.

Parece que roteiro e história pessoal se mesclam e, de alguma forma, dão uma potência especial à trama, fazendo deste um grande filme, aliado, é claro, à geniosidade da montagem, da fotografia e de todos os demais elementos que o compõem.

Cabem, aqui, ainda algumas breves palavras sobre mais um dos elementos que compõem a obra Cidadão Kane: a música. Orson Welles designou Bernard Herrmann para compor exclusivamente para o filme. Segundo análise de Miranda (1997), embora Herrmann não fosse adepto do leitmotiv, grande parte da obra foi pensada a partir das características psicológicas dos personagens. No caso de Kane, relacionado ao tema do poder, foi criada uma construção melódica que, para Miranda (1997), lembra o cântico Dies Irae (seqüência pertencente à missa fúnebre); para a infância, tema rosebud, que complementa a personalidade, foi escolhido um movimento melódico ascendente. Esses dois temas relacionados a Kane aparecem juntos no início e fim do filme, além de aparecerem em outros momentos da trama com algumas variações. O que se quer ressaltar desta análise de Miranda (1997) é que a música, de inspiração fúnebre, está aliada ao tema da infância e perpassa todo o filme, contribuindo para uma atmosfera de tristeza e luto.

Interessante também observar que o crack da Bolsa de 1929, conhecido como a Grande Depressão, termo que nomeia um efeito econômico e refere um período histórico, é aludido no filme. Poderíamos pensar o Cidadão Kane como um cidadão americano afetado profundamente por este acontecimento, enquanto metáfora psicopatológica. É um marco da economia mundial e é um dos momentos de virada na história de sua vida.

Mais um elemento a ser considerado se refere ao intenso trabalho com luz e sombras realizado durante toda a narrativa fílmica e que nos faz lembrar das características do cinema noir. Embora Cidadão Kane não tenha todos os elementos do típico filme noir, Orson Welles parece iniciar o experimento que viria a se configurar depois sua grande obra noir: A dama do cine Xangai. Cabe ressaltar que o surgimento de filmes noir se deu a partir dos anos 40, marcando uma diferença dos filmes até então produzidos pelo cinema americano. Segundo Mattos (2001), os elementos principais do filme noir são: "...a narração em primeira pessoa, a presença da mulher fatal, a importância da atração sexual nos enredos e o pessimismo desesperante dos personagens 'cujos atos parecem condicionados por uma obsessiva fatalidade do crime"(p.12). Nenhum destes elementos compõe o filme Cidadão Kane, mas o que vai nos interessar destes filmes é que eles, no dizer de Mattos (2001), eram filmes que faziam um contraste entre o otimismo dos filmes americanos dos anos 30 e o seu relato deprimente, representando uma "crescente desilusão com os ideais americanos tradicionais"(p.15), inspirados por uma filosofia existencialista. Não há final feliz em Cidadão Kane; sombras se formam em torno de sua história e toda uma seqüência de desilusões vai num crescendo até derrocada última que abate nosso anti-herói americano.

Toda uma atmosfera de sombras do cinema noir nos interessa aqui, primeiro porque se enquadra num clima de luto e tristeza e, segundo, porque lembra a metáfora utilizada por Freud ao explicar o processo da melancolia que veremos a seguir.

 

A Psicanálise: Quem é Kane (Quem)?

Para além da fusão Kane/Welles, uma das perguntas que se faz no filme, através de um personagem jornalista, é "Como se pode conhecer um homem?".

E o filme vai nos mostrar um homem que tem tudo, ou seja, aparentemente nada lhe falta e tudo pode ser comprado, gerado, criado por ele. Ao longo do filme, porém, vai se colocar a questão da falta, através da palavra Rosebud. Não só no filme, como nos estudos sobre o filme, se buscou o significado de Rosebud, que aqui será tratado como um significante que se repete, não interessando o significado, mas a sua repetição ao longo do filme. É justamente pela questão do que ele perdeu, da sua identificação com a sombra do objeto que lhe falta, que pensamos na melancolia para caracterizar o clima, o personagem, a montagem do filme, principalmente no que tange à impossibilidade de se fazer o luto. O personagem Kane, ainda criança, perde, de forma repentina, seus pais e sua infância. Desta forma, a repetição das perdas, os abandonos que Kane sofreu ao longo da sua vida nos fazem pensar que ele sabia quem tinha perdido, mas não o que havia perdido, distinção importante que Freud traz para marcar a diferença entre luto e melancolia.

Freud (1917 [1915]/1980) aborda o tema da melancolia relacionando-a ao luto. Para ele, tanto um como outro estão relacionados à perda de algo ou de alguém, mas enquanto o luto tem duração de um tempo, findo o qual a pessoa retorna ao seu estado normal, a melancolia se arrasta, muita vezes, pela vida afora. Outra diferença apontada por Freud é a de que, embora ambos possam ter como fator externo uma perda real, um ser amado, por exemplo, algo mais se perde no processo da melancolia que não pode ser creditado exclusivamente à perda real deste ser amado, uma perda inconsciente.O processo de perda na melancolia, para Freud, desencadearia uma retirada de libido para o ego que estabeleceria uma identificação com o objeto abandonado. Assim, segundo suas palavras, "a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado" (p. 281).

Como entender esta sombra do objeto é o que se propõe Pereira (2001), ao nos indicar que "trata-se do sombreamento dos suportes simbólicos do Eu. Um recobrimento feito pela dimensão imaginária do objeto que se torna hegemônica" (p.22). Desta forma, segue Pereira (2001), lembrando a fala de Alfredo Jerusalinsky, o sujeito ficaria com dificuldades de prosseguir na sua história, pois lhe faltariam os elementos de representação do objeto perdido necessários a uma re-inserção na ordem simbólica.

Nesse sentido, verificamos que Kane não conseguiu lidar bem com a função de ser pai, marido, amigo, político, jornalista, administrador de sua fortuna. Ele herda uma fortuna, ao mesmo tempo em que herda da mãe, através do desejo desta, a impossibilidade de receber a herança paterna. Lembrando as palavras da mãe: "Ele (Kane) será educado onde não possa alcançá-lo (pai)". Há quase um mandato materno em que o pai fica fora de cena. Neste momento, instaura-se o paradoxo: no mesmo momento em que recebe a herança, perde a possibilidade de herdá-la no sentido simbólico. Um outro momento alusivo de suas impossibilidades é quando Kane lê os princípios que nortearam o jornal. Ele os lê na sombra e isso ilustra o fato de que é como se ele não pudesse se autorizar desde um eu que fala, ficando, portanto, nas sombras. E isto se verificará depois, mostrando, no decorrer da trama, que ele não sustentou o que disse sobre seus princípios. Há uma destituição do pai no discurso da mãe e ele próprio está numa condição de enunciação de quem está desautorizado do exercício da função paterna.

O que se pode pensar, Freud (1917 [1915]/1980) vai dizer, é que uma escolha objetal anteriormente feita se deu com base numa escolha narcísica; o investimento objetal, não resistindo aos obstáculos impostos nesta escolha, acabaria por retroceder ao narcisismo. Uma perda objetal acarreta uma perda do ego e isto tem como conseqüência uma diminuição da auto-estima, um empobrecimento do eu, bem como uma insatisfação com o mesmo. Freud (1917 [1915]/1980) afirma que "a identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa" (p. 282). Se o luto finaliza com a renúncia ao objeto perdido, na melancolia isto não é possível pela identificação com o objeto perdido por parte do eu.

Podemos supor, desde as cenas iniciais, que a mãe de Kane representou este objeto amado, mas ao mesmo tempo odiado, já que ela o abandonou ainda criança. Esta ambivalência se perpetua pela vida afora e Kane passa a tratar mal todos com quem se relaciona, como o amigo, as esposas, o próprio tutor, repetindo, e, poderíamos até dizer, provocando a situação de abandono, a partir dessa ambivalência. As pessoas acabam se afastando dele. O amigo Lelland diz que Kane só amou a si próprio, nos fazendo pensar neste processo de retirada da libido do mundo para o eu.

Por outro lado, não vemos Kane apresentar a sintomatologia clássica do melancólico a proferir suas auto-acusações, o desinteresse pelas pessoas e coisas do mundo, mas há um momento em que ele se queixa e diz que, "se não fosse riquíssimo, talvez fosse um grande homem", não se considerando, portanto, importante para si mesmo. Freud formulou sua teoria da melancolia pensando-a para além das características aparentes, formulando uma compreensão que levou em conta outros aspectos que subjazem à sintomatologia, ou seja, a perda de objeto de ordem inconsciente, ambivalência, regressão da libido ao eu. Não temos a intenção de enquadrar o personagem Kane num diagnóstico, mas nos valermos dele a fim de continuar para além das aparências. Na maior parte das vezes, Kane se apresenta como um megalomaníaco. Quanto a isso, Freud (1917 [1915] /1980) nos diz que "a característica mais notável da melancolia, e aquela que mais precisa de explicação, é sua tendência a se transformar em mania - estado este que é o oposto dela em seus sintomas" (p.286). Uma idéia que nos traz Freud é a de que o complexo que subjaz à melancolia é o mesmo da mania, sendo que, na melancolia, o ego sucumbiria ao complexo e, na mania, dominaria ou colocaria de lado. O fato, segue Freud, é que mesmo na mania fica velado para o ego aquilo sobre o qual dominou ou triunfou.

Outro aspecto que se quer sublinhar é a contribuição de Lacan (1988) em relação à formulação do conceito de significante. O autor subverte a lógica do signo, marcando a autonomia do significante sobre o significado, afirmando que a barra que separa um e outro S/s indica um corte e não relação entre ambos. Ele segue colocando que o significante não tem por função significar, pois ele representa o sujeito para outro significante.

Rosebud é um significante de uma perda que revela uma polissemia: a separação da mãe, da casa da infância, as separações da primeira e da segunda esposa, a solidão que avança até a última palavra pronunciada no momento da morte. Este significante vai se repetindo na história de Kane.

Ao perder o lugar infantil, Kane herda uma fortuna. Dentre os inúmeros bens que herda, ele se interessa e investe na atividade jornalística, na produção de textos, palavras, notícias. Seu interesse é o jornal, ainda que - diz um dos narradores -, a única coisa que terminou foi o artigo de Lelland, isto é, completou o texto iniciado por outro com uma crítica endereçada à própria esposa. Completar algo iniciado por outro nos remete também à cena de seu encontro com aquela que virá a ser sua segunda esposa. Ele está indo buscar objetos deixados por sua mãe já falecida. A morte da mãe parece reenviá-lo para outros ideais. Ele encontra Susan neste trajeto e ela lhe diz algo sobre o desejo de sua própria mãe - que ela fosse uma cantora de sucesso. Kane se engaja, a partir deste momento, obstinadamente, na via da realização do desejo desta outra mãe. A sua, agora morta, apontara na direção de busca de poder, da fortuna. Na primeira esposa, podemos identificar questões de ideais sociais e de reconhecimento público - ela aparece marcada como a sobrinha do presidente; uma marca do âmbito do poder.

Esse momento interrompido em que está indo buscar os objetos de sua infância ilustra a impossibilidade que está posta para ele de fazer um luto. Como está colocado em Froemming (2001), à tradução de trauer por 'luto', dada pela editora Imago, podemos acrescentar também a palavra 'tristeza', explicando, assim, a melancolia como resultado da transformação deste afeto. A pulsão, aparecendo sob a forma do afeto, nos possibilita um saber sobre ela. Lacan (2005 [1962-1963]) nos diz que o afeto não é recalcado: "Ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram" (p.23). Então o significante recalcado para Kane é o que ele repete sem cessar, embora a tristeza em seu rosto só apareça mais quando se retira para o castelo.

É, então, sob este aspecto da melancolia que interessa colocar a história de Kane como um exercício para pensar uma forma de constituição. Tendo que renunciar ao convívio com os pais e, principalmente, com a mãe, com quem parecia ter uma ligação mais forte, perde o ser amado, não conseguindo transferir a energia libidinal para outros objetos, recaindo sobre si, ou, como diz Freud, regredindo a um estágio anterior de escolha objetal narcísica. A forma maníaca como Kane adquire objetos ou mesmo como trata seus interesses e idéias nos faz pensar em alguém esvaziado daquele objeto que o completaria e, por identificação, alguém que de fato se coloca como o próprio objeto abandonado. Ao longo da trama, vai sendo repetido o abandono inicial até o enclausuramento no castelo que pode ser pensado como um lento suicídio, outro item importante na melancolia que Freud (1910/1980) identificou como só sendo possível na medida em que o eu se trata como um objeto - uma lâmpada que se vai regulando a intensidade da luz no desejo da escuridão.

Mas, se pensamos que é o todo do filme que nos passa a idéia de uma melancolia, então, vamos um pouco mais adiante e analisar outros aspectos como o da montagem.

 

A montagem: a entrada proibida!

A montagem num filme não difere muito de outras montagens, como as constituídas na literatura, por exemplo; porém, sua peculiaridade na obra cinematográfica reside no fato de que ela vai articular diferentes texturas que, segundo Leone & Mourão (1993), "vão se concatenando através da montagem e abrindo espaço para a manifestação da narrativa"(p.130). Esta modalidade articulatória é a peça chave da obra fílmica, visto que ela não se dá só na etapa final, mas está presente desde o roteiro, passando pela realização das cenas até o final com a montagem propriamente dita do filme, com a seleção e organização dos planos.

Também Deleuze (1983) vai fazer referência à montagem, lembrando o que disse Eisenstein: "a montagem é o todo do filme"(p.44). Esta afirmação se justifica, para Deleuze, porque a operação de montagem trabalha com as imagens-movimento para delas retirar o todo, a idéia; em outras palavras, a imagem do tempo.

É preciso que se diga que essa imagem do tempo não se dá unicamente pelo movimento das imagens, mas também é resultado das relações entre elas. A montagem, segundo Deleuze (1983), viria compor, agenciar, essas imagens-movimento como formadora de uma imagem indireta do tempo.

Muitas escolas se formaram a partir dos diferentes tipos de composição da montagem, conforme a concepção orgânica, dialética, extensiva e intensiva. Deleuze (1983) percorre cada uma delas nas suas particularidades para concluir que a única generalidade possível é a de que a montagem "oferece uma imagem indireta do tempo, tanto na imagem-movimento particular, quanto no todo do filme" (p. 75), ou seja, ela é composta de duas faces: "uma se volta para os conjuntos e suas partes, e a outra para o todo e suas mudanças" (p. 75).

O próprio Orson Welles, ao falar sobre montagem, vai dizer que ela não é um aspecto do filme, mas o aspecto, valorizando a montagem como o elemento principal da composição da obra de arte cinematográfica, já que é através dela que se obtém o controle, segundo ele, sobre o filme. Ele segue dizendo que as imagens são simplesmente imagens, importantes, sem dúvida, mas é na duração dessas imagens e na seqüência delas que se processa a eloqüência do cinema. Diz ele: "...a fita de celulóide executa-se como uma partitura musical, e essa execução é determinada pela montagem, da mesma forma que um maestro interpretará um trecho musical todo em rubato, outro toca-lo-á duma forma muito seca, um terceiro será muito romântico etc." (p.110).

Outro exemplo de autor que valoriza a montagem no cinema é Brasil (2002), ao dizer que, quando se fala de um filme, usa-se sempre a montagem, reiterando a importância da mesma. Refere-se às palavras de Eisenstein, que disse: "qualquer um que tem em mãos um fragmento de filme a ser montado sabe por experiência como ele continuará neutro, apesar de ser parte de uma seqüência planejada, até que seja associado a um outro fragmento, quando, de repente adquire e exprime um significado mais intenso e bastante diferente do que o planejamento para ele na época da filmagem" (p.12).

Mais adiante no texto, Brasil (2002) vai colocar que, para Eisenstein, "a montagem é o único processo absolutamente original da arte cinematográfica"(p.13). Por outro lado, o próprio Eisenstein indica que a montagem não é específica do cinema, que ela está presente em outras artes e, mais do que isto, "ela é um processo que faz parte da forma de funcionamento do cérebro humano"(p.13).

Brasil (2002) encerra o seu texto dizendo que Eisenstein estava falando de duas montagens diferentes, mas que são a mesma montagem, e que é esta a idéia que tenta passar aos seus alunos na faculdade. Este paradoxo colocado em relação a duas montagens diferentes, sendo a mesma montagem nos permite pensar que o original da montagem produzida pelo cinema se dá pelo resultado do agenciamento do tempo e da imagem.

Sem querer enquadrar a montagem em Cidadão Kane em nenhuma das escolas referidas por Deleuze (1983), queremos aqui simplesmente pensar no que a montagem neste filme corrobora ou não a idéia de melancolia. Partindo do pressuposto de que a montagem é o todo do filme e como que encerra a idéia central do mesmo, seria esta, então, uma montagem que pode dar a idéia de uma imagem-movimento da melancolia? Vejamos.

A primeira imagem do filme nos mostra e nos faz, de certa forma, uma advertência: "Não entre!" - diz uma placa colocada no portão da casa de Kane, mas a câmera nos leva, nos convida a transgredir o interdito posto de entrada, fazendo-nos penetrar no interior da casa e da vida de Kane, nos dando um acesso privilegiado, mas ao mesmo tempo não autorizado. Este mal-estar produzido de saída nos acompanhará ao longo da trajetória e voltará de forma mais marcante na última imagem em que só a nós, espectadores, é dado o que para todos ficou sem sentido, ou seja, o significado de Rosebud. Então temos, num primeiro tempo, a cena da morte, uma palavra e a queda de um objeto e, no final do filme, uma volta ao mesmo tempo, sendo que agora temos a morte do objeto e a queda do significante. Trata-se, portanto, de um mesmo tempo, tempo de morte, de abandono, de queda.

Também nos é negada uma seqüência linear da trama e a todo o momento a seqüência é interrompida, nos surpreendendo, nos forçando a ir juntando os pedaços e compondo a história para adequar a nossa forma tradicional de contá-la. Nos pequenos tempos, dentro do tempo maior, que compõem o filme, temos a narrativa que revive a história de Kane. Uma narrativa feita por pessoas, na sua maioria já em estado de decrepitude, de abandono. A primeira narrativa é a de um documentário, interrompido pelos jornalistas e desqualificado por não ter um diferencial; a segunda narrativa é de Susan, uma cantora decadente, alcoolizada, que, num primeiro momento, se nega a falar; a terceira narrativa vem das memórias de Thatcher, já morto; a quarta, do velho Bernstein, que pouco tem a dizer e, por fim, de Leland, um amigo íntimo de Kane, também já velho e doente num hospital. Todas as narrativas são interrompidas, inacabadas, e só o que circula é o que consideramos como o significante Rosebud. É ele que imprime o ritmo, o movimento, que faz circular a cadeia, faz rodar o filme.

Se só o significante circula, podemos pensar que os pequenos tempos (pedaços de histórias sem fim), de forma centrípeta, compõem um só tempo, tempo congelado, anunciado no início e retomado no fim: tempo de luto, tempo da melancolia, tempo que fixa um momento, fazendo dos outros tempos restos de histórias, girando e caindo no mesmo lugar, num mesmo tempo.

As pequenas partes da montagem seguem o que já de entrada se anuncia: o fim. Todos os pequenos tempos são interrompidos e se juntam, ou nós os juntamos, para compor um só tempo, uma só idéia, a idéia do fim, do abandono, da derrocada, da melancolia.

 

The End

Como elaborar a dor de uma perda? Construindo uma obra, talvez, através de uma sublimação? Reestruturando o eu? Quantas vezes um retorno sintomático é demonstrativo do objeto perdido, como nos casos de anorexia grave, estado de estupor, inibições extremas da expressão escrita falada ou outras, tentativas de suicídio. Silêncios, ausências de lutos impossíveis de elaborar... Evocações de tempos felizes marcados por tons sombrios, porque perdidos...

A melancolia fala de algo que foi perdido e é assim que começa o filme, ou seja, já começa nos dando a batalha perdida, o fim de um homem, abandonado nos seus instantes finais; solitário na sua partida. Após a sua morte, apenas temos a entrada de uma enfermeira que confere a morte.

A montagem, que erra por diferentes visões de Charles Foster Kane, tenta recuperar o objeto perdido, mas as pessoas próximas que irão narrá-lo já estão em ruínas, sombras de um passado. A utilização das sombras, do claro e escuro em profusas tonalidades, empresta uma luminosidade com contornos obscuros. A própria expressão do rosto de Kane vai, gradualmente, se alterando, adquirindo vincos e ele, progressivamente, se torna uma sombra do que foi: sorridente, audacioso, vivaz. A nostalgia da perda de seus laços familiares, da casa da infância aparece reatualizada no esforço de construir uma casa cheia de objetos vindos dos mais distantes lugares do planeta. Esse esforço de preenchimento mostra o vazio e a solidão dessa casa em que Kane, na sua busca de inserção em um novo mundo, figura como um imigrante que não encontra inserção. A cena final reforça a idéia da ruína com o amontoado de objetos sendo queimados, outros retirados do palácio/castelo, transformado numa espécie de museu que, afinal, tem como uma de suas características ser o lugar onde são depositados os restos culturais das grandes civilizações.

A imagem-movimento da melancolia pode ser entendida, a partir da montagem, como a sensação do tempo que não passou, é um mesmo tempo, tempo de perda; uma melancolia que congela o tempo no instante da perda.

Por fim, nos é dado Rosebud, no sentido mesmo de que o herdamos. Ao saber sobre Rosebud, não mais podemos voltar o filme; ele já acabou, tendo nos feito participar dele sem que pudéssemos interferir ou, como obra aberta, nos obriga a seguir trabalhando; mas, inegavelmente, nos é entregue o motor das cenas, da história que vai passar a produzir em nós seus efeitos. Nesse sentido, a palavra salta da tela no seu sentido significante e cai sobre nós como uma sombra. Seguimos com este incômodo, a colocar significados para ele na tentativa de esgotá-lo, de tentar nos livrar dele sem poder. A não ser, claro, remetendo a outro significante.

 

Referências

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Brasil, G. A. (2002). Montagens, trucagens e outras sacanagens. Plano geral: Cinema de cada um. Aracaju, SE: SATED/SE.         [ Links ]

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Recebido em 2 de outubro de 2006
Aceito em 8 de fevereiro de 2007
Revisado em 6 de agosto de 2007

 

 

Notas

1. Freud, S. (1980). Luto e melancolia (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.14). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1917 [1915] ).
2. Tradução nossa.

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