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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.7 no.2 Fortaleza Sept. 2007

 

ARTIGOS

 

Transtornos alimentares: uma perspectiva social

 

 

Sheila Weremchuk IdaI; Rosane Neves da SilvaII

IPsicóloga formada pela UFRGS. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. End.: Av. Cristóvão Colombo, 1125, apt. 403. Porto Alegre, RS. CEP: 90560-004. E-mail: sheilaida@gmail.com
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. End.: Rua Barbedo, 581, apt. 304. Porto Alegre, RS. CEP: 90110-260. E-mail: rosane.neves@ufrgs.br

 

 


RESUMO

A partir da problematização do conceito de Transtornos Alimentares, este artigo busca investigar a nossa relação com o corpo, colocando em discussão as práticas normativas que constituem nossos modos de vida. Diante de um certo padrão estético que associa o corpo com a beleza e a imagem de sucesso, pretendemos problematizar o contexto social no qual os Transtornos Alimentares vêm sendo produzidos. Para isso, utilizaremos como recorte a análise da anorexia e bulimia. De difícil tratamento e de grande morbidade, os sintomas dessa psicopatologia refletem uma preocupação excessiva com o peso, a imagem corporal e o medo de engordar. Nosso interesse é contribuir para essa discussão, saindo de uma perspectiva individualizante voltada para a jovem anorética e/ou bulímica e as interações disfuncionais do seu sistema familiar, passando a considerar os transtornos alimentares como um dispositivo que denuncia o extremismo na forma de pensar, sentir e experimentar o corpo em nossa sociedade. Assim, nosso objetivo é apresentar alguns subsídios que permitam deslocar essa questão do âmbito exclusivo da experiência individual para uma análise das práticas sociais de relação com o corpo que habitam a experiência contemporânea, entendendo os transtornos alimentares, na atualidade, como a exacerbação de um sintoma social.

Palavras-chave: transtorno alimentar, processos de subjetivação, psicologia social, normal, patológico


ABSTRACT

Based on the concept of eating disorders, this paper aims on the investigation of our relation with body, discussing the normative practices that constitute our ways of life. From an aesthetic standard that relates body to beauty and success, we intend to put in question the social context where eating disorders have been produced. To achieve this objective, we base our study on anorexia and bulimia analysis. The symptoms of these psychopathologies have difficult treatment and reflect an excessive worry about weight, corporal image and fattening up. Our interest is to contribute to this discussion, avoiding an individualized perspective, focused on anorexic and/or bulimic young boy or girl and on the dysfunctional interactions of his/her familiar system, but shifting the focus on eating disorders as devices that denunciate the extremism of the way of thinking, feeling and experiencing body in our society. Therefore, our objective is to present some subsidies that allow us to dislocate this matter from the exclusive scope of individual experience to an analysis of the social practices of our relation with body that reside contemporary experience, considering eating disorders in the present time as the exacerbation of a social symptom.

Keywords: eating disorder, subjetivation processes, social psychology, normal, pathologic.


 

 

Introdução

A busca do corpo ideal e da imagem de beleza eterna assumem, na atualidade, um estatuto de encantamento pelo culto ao corpo. Assim, percorrer o espaço urbano é captar um registro de inúmeras academias de ginástica, lojas de alimentos que prometem o mínimo de calorias a serem ingeridas, parques onde vemos pessoas correndo, caminhando como forma de exercício, além de clínicas de estética que oferecem desde uma "limpeza de pele" até cirurgias plásticas removedoras do excesso de gordura corporal. Se nas ruas tal paisagem destaca-se, quando chegamos em casa e ligamos a televisão ou pegamos uma revista, a cena insiste: invista no corpo o máximo que você puder.

Dessa forma, parece haver um certo consenso de que todos são capazes de modificar e transformar o próprio corpo, a fim de adequar-se aos critérios de beleza, juventude e preocupação excessiva com a aparência predominantes em nossa cultura.

Num contexto no qual somos cotidianamente invadidos por imagens de corpos esbeltos e belos vinculados a um padrão estético que associa magreza e sucesso, os cuidados com o corpo passam a ser importantes não apenas nos discursos médicos referentes à prevenção de doenças, mas, principalmente, na associação que é feita socialmente entre o peso e a imagem de beleza.

Assim, diante do impacto marcante dessas imagens, pretendemos problematizar as formas de relação com o corpo que habitam a experiência contemporânea. Para isso, utilizaremos como recorte a análise dos transtornos alimentares conhecidos como anorexia e bulimia. De fato, nas mais diversas áreas de conhecimento como na população em geral, fala-se de uma epidemia dessas manifestações. Nosso interesse, portanto, é ampliar essa discussão utilizando os transtornos alimentares como um dispositivo de visibilidade que denota a exacerbação do padrão estético da magreza cultivado pela sociedade contemporânea. Temos, então, como objetivo, fornecer alguns subsídios que permitam sair de uma perspectiva individualizante - que reduz esta patologia ao entendimento do que se passa exclusivamente com esta jovem anorética ou bulímica e/ou sua família - e nos levem a analisar o contexto social no qual se produz esta doença, uma vez que consideramos que as patologias refletem os nossos modos de existência.

 

A (des)construção do Corpo a partir dos Transtornos Alimentares

Tomando os Transtornos Alimentares como ponto de partida dessa análise, torna-se importante apresentar, mesmo que de forma breve, algumas definições do termo. Nesse sentido, trata-se da aproximação de uma doença psiquiátrica que tem capturado, predominantemente, mulheres jovens de diferentes classes sociais.

Segundo os manuais classificatórios conhecidos como DSM-IV E CID-10, as duas principais entidades nosológicas dessa patologia referem-se à Anorexia e Bulimia Nervosa. Para Sanchez, Dorfman e Jaeger (2003), a anorexia é caracterizada por uma luta pessoal contra a fome na qual é evidente uma perda de peso exagerada devido à redução de alimentação, métodos purgativos e/ou excesso de atividade física. No que diz respeito ao termo bulimia, trata-se da ingestão de uma grande quantidade de alimento alternada com comportamentos para evitar o ganho de peso.

Portanto, embora classificados separadamente, apresentam uma etiologia comum no que diz respeito à idéia de preocupação excessiva com o peso e com a forma corporal e o medo de engordar. Além disso, Cordás (2004); Claudino e Borges (2002), ao proporem uma discussão atualizada dos critérios diagnósticos desses transtornos psiquiátricos, salientam que, em ambos, aparece, indiscutivelmente, uma distorção da imagem corporal com perturbações graves na forma de vivenciar o peso.

De fato, diante do acontecimento de que muitas pessoas, hoje, sofrem com a preocupação de controlar o peso, os dados epidemiológicos revelam que 90% dos diagnósticos da doença atingem apenas as mulheres jovens. Algumas pesquisas mostram que cerca de 30% das mulheres entre 12 e 29 anos controlam o peso utilizando dietas severas, laxantes e diuréticos ou provocando vômitos.

Mas, para entender os significados dos transtornos alimentares no nosso contexto social, procuraremos mostrar, ao longo do tempo, outros sentidos atribuídos a situações de privação de alimentação. Se, hoje em dia, estes transtornos expressam tentativas extremas de baixar peso associadas à norma rígida da magreza, a história nos mostra que nem sempre foi assim.

Cordás (2004) descreve que, no séc XIII, algumas mulheres utilizavam-se da inanição como uma forma de aproximarem-se espiritualmente de Deus, a fim de tornarem-se santas. Eram chamadas de "santas anoréxicas". Santa Catarina de Siena, Margareth de Cortuna, Santa Rosa de Lima são alguns dos exemplos encontrados na literatura. A partir de relatos religiosos da Idade Média, esses comportamentos eram entendidos dentro de um contexto de práticas religiosas como forma de devoção a Deus, evidenciando que o medo de engordar e a excessiva preocupação com a imagem não apareciam como o foco central de tais práticas naquele momento.

Ainda que seja possível estabelecer algumas semelhanças entre as santas medievais e as jovens anoréticas de hoje, é discutível pensar que há uma mera continuidade entre estes dois tipos de experiência: não há como estabelecer uma relação linear entre ambas como encontramos em algumas explicações que tentam fazer essa aproximação. Assim, apesar de podermos encontrar algumas relações de continuidade, não acreditamos ser possível considerar que a anorexia do presente é uma mera evolução de uma doença que já existia na Idade Média. O que se pode dizer é que estas duas experiências são forjadas em contextos históricos distintos e expressam diferentes modos de subjetivação, ou seja, diferentes modos de produção da subjetividade: no presente, nos deparamos com mulheres jovens buscando atingir uma imagem cultivada pela sociedade que associa beleza a magreza; no passado, encontramos mulheres envolvidas em práticas de purificação espirituais. Assim, se existe uma certa permanência entre a Idade Média e a atualidade, ela não reside no fato de as jovens anoréxicas estarem substituindo as santas de outrora e, sim, na questão de essas mulheres rechaçarem o próprio corpo para atingir os ideais de uma época, ideais estes que expressam um determinado modo de subjetivação dominante.

Ao analisarmos os modos de subjetivação contemporâneos, percebemos que estamos inseridos em uma lógica capitalística na qual é permitido manipular e controlar o corpo das mais diversas formas, transformando-o em um objeto de consumo. Assim, meninas, jovens e mulheres adultas freqüentam academias de ginástica, fazem dietas, utilizam cosméticos para afirmar-se na condição do que é considerado como padrão estético feminino em nossa sociedade. Segundo pesquisa de Novaes (2006) com freqüentadoras de academias de ginástica e pacientes submetidas a cirurgias plásticas e bariátricas, foi demonstrado que a preocupação com a beleza é presente em todas as mulheres entrevistadas e, independente da classe social, todas utilizam diversas práticas para livrar-se daquilo que entendem como feio no próprio corpo. Para a pesquisadora, tal fenômeno é potencializado pelo fato de que a sociedade atual faz exigências e exerce um controle maior sobre os corpos de mulheres uma vez que, nos homens, os imperativos de beleza são bem mais sutis, tolerando-se melhor os desvios e negligências. Assim, Novaes (2006) afirma que, enquanto no gênero masculino podemos falar de imagens centradas em conquistas sociais e econômicas, a construção de uma imagem feminina é necessariamente atravessada por investimentos voltados para o próprio corpo. Desse modo, a autora destaca que uma bela imagem feminina requer esforços, investimentos financeiros e tempo.

A beleza da mulher deve ser apreciada nos detalhes, um mero descuido, um simples desleixo e pronto, já é suficiente para a feiúra nela aparecer. Um simples descascado no esmalte, uma maquiagem fora do tom, uma depilação por fazer, o uso de uma roupa fora das últimas tendências da moda ou uma raiz mal feita já são aspectos suficientes para emergirem duras criticas à sua imagem. (Novaes, 2006, p. 71).

Seguindo a análise das questões do gênero feminino, Bordo (1997) mostra que a submissão dos corpos das mulheres aos modelos estéticos de uma época estaria "reafirmando as configurações de gênero existentes contra quaisquer tentativas de substituir ou transformar relações de poder" (Bordo, 1997, p. 21). Para a autora, a busca da feminidade atua diretamente sobre o corpo, através de imagens normalizadoras amplamente difundidas nos discursos vigentes e que definem o que é ser ou não ser mulher hoje. Portanto, trata-se da noção de corpo como um território de regulação, manipulação e controle social. Assim, com base nessa formulação teórica feminista, a anorexia e bulimia passam a ser entendidas como uma forma de denunciar a reprodução das idéias de que os corpos das mulheres precisam ser melhorados, moldados e transformados. Entretanto, a autora destaca que tal denúncia e resistência acabam contribuindo para afirmar a manutenção de um estereótipo predominante de que o feminino tem desejos excessivos, obsessivos e irracionais, impedindo, assim, que outras imagens e sentidos sejam produzidos (Bordo, 1999). Sob essa perspectiva, podemos considerar que essa patologia acaba reiterando o lugar da mulher como alvo de investimento do poder, impedindo uma crítica daquilo que produz esses modos de vida. Nesse sentido, a autora utiliza a definição de Foucault a respeito da noção de "corpos dóceis", para afirmar que os corpos femininos de anoréticas e bulímicas tornam-se "corpos dóceis", uma vez que estão submetidos à sujeição e disciplinamento externos. Ora, enquanto instrumentos dóceis, pouco podem produzir diferença para si e para o mundo. Entretanto, vale destacar que não se trata de considerar o sujeito passivo ou uma mera vítima das exigências de nossa contemporaneidade e sim como efetivamente constituído nas redes de poder atualmente em funcionamento. Nesse sentido, autores como Butler, Louro, Nicholson, bem como os próprios trabalhos de Susan Bordo, apontam para uma apropriação pós-estruturalista nas análises do gênero feminino. Trata-se, portanto, do deslocamento da noção de um feminino preso ao patriarcado, enquanto um sistema de relações que determina a exploração de um grupo, para pensar este feminino como um agente de produções socialmente construídas.

Então, podemos inferir que a configuração de um corpo, no caso, o corpo anorético e/ou bulímico, não existe como uma entidade transcendente, mas é constituído a partir de determinados regimes de verdade. Ou seja, a idéia de diferenciação entre um corpo normal e um corpo patológico parte de uma série de saberes e práticas que entendem o próprio corpo como uma entidade individual. Entretanto, cabe ressaltar que, para Foucault (1982), essa noção só passa a ser concebida a partir do "efeito do investimento do corpo pelo poder" (Foucault, 1982, p. 146). Portanto, a idéia de individualização dos sujeitos no qual cada um é responsável pelo corpo que possui corresponde a uma verdade que está ligada a determinadas relações de poder. Dentro desta perspectiva, propor uma definição de corpo é entendê-lo como um território de relação de forças que estão constantemente em combate. Assim, o corpo não expressa uma individualidade, um organismo, mas a forma como a própria sociedade o concebe, o reconhece e o utiliza.

Neste sentido, retornando ao nosso ponto de partida, o desafio para pensarmos os transtornos alimentares na atualidade consiste em colocar em discussão não apenas a experiência individual da jovem anorética ou bulímica e sua família, mas as práticas normativas que configuram e produzem nossas formas de vida. Trata-se de colocar em questão esta repartição entre o normal e o patológico, deixando de situar tal repartição no âmbito exclusivo da experiência individual e passando a considerá-la também em relação às práticas sociais na atualidade.

 

O corpo, a norma e a experiência contemporânea

Refletir a respeito da experiência contemporânea do corpo é identificar que, no presente, ele vem operando uma forma de relação com o mundo no qual preconceitos relativos à beleza, associados à preocupação excessiva com a aparência e com a saúde predominam na cultura. De fato, vive-se "numa época em que se fala massivamente do culto ao corpo" (Sant'Anna, 1995, p.13). Sendo assim, há um enorme interesse em privilegiar os discursos a respeito do corpo para enfrentar um certo desconforto decorrente da destradicionalização e esvaziamento da história.

Hoje, em qualquer conversa urbana trivial, é comum a referência às taxas de colesterol ou triglicerídeos; às novas dietas; aos novos exercícios físicos; às novas técnicas de relaxação e alongamento muscular; aos ganhos ou perdas de 'consciência corporal'. Mais que isso, além de aprendermos a distinguir diferentes estados posturais, diferentes ritmos respiratórios, diferentes estados de tensão ou relaxação muscular, diferentes estados de flexibilidade ou rigidez articular, diferentes estados de circulação artério-venosa etc., estamos nos habilitando a relacionar estados emocionais a variações em taxas de hormônios, a carência de certo tipo de alimento, ao excesso de consumo de outros (Costa, 2004, p. 214).

Para entender como se produz esta relação entre um campo de saberes a respeito do corpo e a experiência de superinvestimentos de valores corpóreos, devemos pensar num corpo atravessado pelo contexto social e histórico.

Nesse sentido, Aulagnier (2002) propõe indagações a respeito dos efeitos da nossa relação com o corpo a partir do "declínio do discurso religioso em proveito do discurso cientifico" (Aulagnier, 2002, p. 110). Segundo a autora, no discurso religioso, o interior do corpo era protegido pela Igreja que impedia a sua dissecação. Tal configuração restringia o encontro do olhar "com um interior feito de partes, órgãos e pedaços" (Aulagnier, 2002, p. 112). Com o avanço da ciência, o indivíduo não mais conhece o seu corpo, que passa a ser objeto de estudo e observação dos especialistas. A partir disso, a relação que antes era entre o corpo e Deus, agora é intermediada pelo outro que conhece o funcionamento do corpo. Nesse momento, passa-se a considerar a relação do sujeito com o outro, com o olhar do outro, sendo que "o corpo é pensado como um receptáculo, onde se inscrevem os cenários do Outro" (Marsillac, 2004, p. 287).

Assim, com o Racionalismo e o Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, o sentimento do homem de ser um corpo modifica-se: deixa-se de ser o corpo e passa-se a ter um corpo. A partir disso, ocorre a expansão de possibilidades tecnológicas com o corpo. O corpo não mais nos pertence. Agora devemos submetê-lo aos conhecimentos de um campo disciplinar. Trata-se da modernização do corpo. Segundo discussões de Novaes (2006), o corpo é vivenciado de forma diferente: na Idade Média, formava uma unidade com a sociedade da época; nos séculos XVII e XVIII, o surgimento da burguesia implicava na possibilidade de liberação do poder feudal e, conseqüentemente, isso permitiu a possessão do próprio corpo. Desse modo, o corpo moderno tem como marca a forma da individuação.

Foucault (1999) em Vigiar e Punir irá nos mostrar que, para disciplinar, é necessário individualizar o corpo. Através da análise dos conventos, exércitos, escolas e fábricas, o autor discute inúmeras técnicas e procedimentos de distribuição dos sujeitos num modo individual para poder discipliná-los. Trata-se de colocar cada indivíduo num determinado lugar.

Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as presenças e as ausências, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (Foucault, 1999, p. 123).

Segundo o autor, essas modificações produzem a passagem de mecanismos histórico-rituais a mecanismos científico-disciplinares colocando em funcionamento uma outra política para o corpo: a referência do homem não é mais com os seus ancestrais e sim com medidas comparativas que demarcam uma norma a ser seguida.

Ora, essa tecnologia específica de poder, que Foucault nomeou de disciplina, centrada numa lógica individualizante cuja norma os sujeitos devem adaptar-se, atualiza-se na problemática contemporânea dos Transtornos Alimentares. De fato, quando ter um corpo magro torna-se a norma definida pela sociedade, as exigências de uma adaptação podem produzir a exclusão de qualquer outra possibilidade. Quando isso ocorre, a base do entendimento é sustentada através de regularidades, generalizações e medições de aspectos individuais e/ou familiares resultando, por exemplo, em um diagnóstico de anorexia e bulimia. Baseado na idéia de indivíduo - pois, segundo essa operacionalidade, quem tem o problema é o indivíduo e não a sociedade -, encontramos os elementos sustentados no "modelo disciplinar" de Foucault baseados na comparação, diferenciação, separação e exclusão dos indivíduos, segundo um padrão normativo para melhor controlá-los (Foucault, 1999).

Retomando as colocações de Bordo (2003), quando se trata de problemas com alimentação e com a imagem, é extremamente difícil estabelecer uma norma como referência capaz de produzir uma separação clara entre patologia e normalidade. A autora infere que, enquanto afirmamos que somente as jovens adolescentes têm problemas, não podemos compreender o quanto as imagens normatizadoras culturais são uma ferramenta disciplinadora poderosa e onipresente sobre nossos corpos.

Então, poderíamos passar a analisar as relações de complementaridade entre os regimes de verdade e a expansão desse caráter disciplinar na nossa experiência com o corpo.

Através da difusão de muitos discursos, principalmente da ordem técnico-científica, se expressa um território de produções de saberes a respeito das condições necessárias para o funcionamento saudável do corpo no nosso cotidiano. Para Damico (2003), fala-se tanto do prejuízo das taxas de colesterol para o coração quanto do grande "inimigo da saúde declarado pelo discurso médico-científico" (Damico, 2003, p. 23): o açúcar. O autor também destaca uma certa produção coletiva de total aversão à obesidade. Identificada como causadora de diabetes, problemas cardíacos, entre outras doenças, temos o dever de combatê-la, se quisermos mais qualidade de vida para nosso corpo. Nessa forma de rejeição à gordura e supervalorização da aparência e da beleza, o padrão normativo da magreza tem afetado, predominantemente, as mulheres.

Courtine (1995), ao propor uma discussão a respeito da cultura do corpo, afirma que foi nos Estados Unidos, sob influência do puritanismo, que as práticas de modificações corporais encontraram um território fértil para desenvolver-se. Baseadas na idéia do esforço pessoal onde cada um é responsável pelo corpo que possui, o autor analisa as práticas de body-building, mostrando que a exibição do músculo constitui uma das principais manifestações espetaculares da cultura do corpo. Entretanto, o autor salienta que a potência anatômica exibida não é um simples espetáculo, pois é sustentada pela indústria do músculo e pela obsessão ao consumo. Assim, ao buscarem construir uma imagem de esportistas, atletas e modelos, os indivíduos passam a participar ativamente "do mercado do músculo e do consumo de bens e serviços destinados à manutenção do corpo" (Courtine, 1995, p. 84).

Ainda, como armas para enfrentar essa luta, o mercado oferece, por exemplo, uma enorme quantidade de produtos light e diet. Entretanto, na cena contemporânea, eles concorrem ao lado de um apelo constante para que sejam consumidos também produtos altamente calóricos que facilmente resultarão no ganho de peso. Trata-se, portanto, de um território no qual as mensagens excluem-se mutuamente: ao mesmo tempo em que é afirmado socialmente o desejo da magreza, de ser atraente seguindo esse padrão normativo, temos à nossa frente inúmeros produtos, restaurantes, fast foods com as comidas mais calóricas possíveis. Nesse contexto, como se submeter à norma da magreza se somos, ao mesmo tempo, convidados a comer quase tudo?

Poderíamos dizer que vivemos em uma cultura esquizofrenizante que nos passa, simultaneamente, mensagens contraditórias expressas nos seguintes imperativos: "seja magra e saudável" e "coma tudo".

Entretanto, já que quase todos apresentam uma preocupação com o peso, o anormal vem sendo identificado apenas em termos do excesso de tal situação, sem colocar em discussão os padrões normativos que habitam nossos modos de vida. Segundo Canguilhem (1966/2000), na medida em que uma norma impõe impedimentos e é percebida pelo sujeito como negativa à expansão da vida, ela passa a configurar o patológico ou anormal. O anormal, neste caso, é entendido não como uma ausência de normas, mas sim como uma inflexibilidade e restrição da própria norma.

Inseridos numa ética da normatividade na qual a norma de ser magro é colocada para todos, podemos identificar o doente num território onde a norma permanece sempre a mesma, sem modificações. Portanto, é a maneira e a forma como o sujeito coloca-se diante da norma que está em questão.

Assim, lutar pela beleza do corpo, seja com dietas, ginásticas, drenagens linfáticas, lipoaspiração etc, são estratégias encontradas por alguns para incluir, adaptar e adequar o corpo na suposta normatividade sóciocultural.

Então, poderíamos dizer que este caráter normativo estabelecido a partir de um determinado regime de verdades fornece as condições necessárias para o desenvolvimento de uma disciplina, no caso, uma disciplina corporal que busca alcançar corpos esbeltos e esculturais a serem admirados. Nesse sentido, trata-se da urgência de estabelecer flexibilizações/rupturas na norma corporal, a fim de que ela possa permitir outras possibilidades de existência afirmando outras políticas de vida.

Ora, é justamente a proliferação e potência de tal forma corporal identificada em um modelo disciplinar que se torna o grande modelo a ser atingido por todos. Com uma ação de controle mais sutil, longe dos espaços de confinamento, o sujeito continua sendo vigiado, mas, agora, através de um controle mais eficaz, que não tolera desvios nas formas de conceber o corpo.

Era preciso que este controle passasse a ser exercido de uma forma mais imaterial, não permanecendo circunscrito apenas ao visível; era preciso atingir o próprio modo de existência dos indivíduos, modelando os seus desejos mais íntimos, tornando-os inofensivos e submissos às novas regras do capital (Silva e Nardi, 2004, p. 192).

De fato, a generalização de um corpo-indivíduo onde a imagem de beleza e sucesso predomina insere-se na lógica do capitalismo. Para atender tal demanda, é necessário consumir, a fim de que o corpo possa ser transformado em pura imagem. Segundo Foucault (1999), a idéia é tornar os corpos dóceis. Ou seja, não apenas utilizar o corpo para analisá-lo, mas também poder manipulá-lo dentro dos interesses do mercado vigente. Para o autor, de fato, o exercício do poder não é mais sobre os corpos no sentido de classificá-los, enquadrá-los, mas sim estabelecer estratégias de controle sobre a vida. Foucault chama de "Biopoder" esse investimento do poder sobre a vida. Ou seja, exercer poder não apenas sobre o corpo, mas sim no controle da vida.

Ainda, em tal processo, no qual as aparências de sucesso atravessam e constituem o valor atribuído à própria vida, Debord (1997) propõe a análise da sociedade do espetáculo. Para o autor, na lógica do espetáculo, a relação social entre as pessoas estaria fortemente mediada pelas imagens. Assim, na sociedade do espetáculo, o real é desprezado e os indivíduos passam a buscar tornar-se uma imagem. Ou seja, o espetáculo é entendido como o próprio predomínio da imagem que, por sua vez, significa uma certa virtualização no mundo, já que as imagens estão sempre sendo buscadas e almejadas.

Assim, segundo Costa (2004), os famosos, as modelos, as atrizes/atores com corpos perfeitos que são amplamente difundidos através dos meios de comunicação são alguns exemplos que, por aparecerem, estarem na tela, tornam-se alvo de imitação. O autor afirma que somos constantemente incentivados a tornarmo-nos personagens da moda.

A imitação, contudo, não pode ir longe. A maioria nem pode ostentar as riquezas, o poder político, os dotes artísticos ou a formação intelectual dos famosos, nem tampouco fazer parte da rede de influências que os mantêm na mídia. Resta, então, se contentar em imitar o que eles têm de acessível a qualquer um, a aparência corporal. Daí nasce a obsessão pelo corpo-espetacular (Costa, 2004, p. 230).

Portanto é necessário existir numa imagem que seja admirada socialmente. Para suportar e enfrentar tal funcionamento social, transforma-se o corpo seguindo "prescrições sociais", fazendo assim o possível para escapar da falta de um lugar para si no mundo. O efeito desse modo de relação apresenta-se num sentimento de que tudo pode ser feito com o corpo.

Sem recursos para lidar com a passagem do tempo, resta enfrentá-lo com o investimento na imagem de si próprio. Entretanto, tal experiência, de existir na imagem, não escapa da possibilidade de desestabilização. Isso porque, facilmente, perdemos a orientação diante de tantas informações.

Assim, frente aos desvios provocados pelo receio de não conseguir atingir um padrão-imagem estabelecido socialmente, as distorções da imagem corporal adquirem a condição principal de uma patologia grave que pode, até mesmo, levar jovens à morte num mundo em que, apesar de não acreditarmos em mais nada, insistimos em acreditar na imagem (Kehl, 2005).

Desse modo, seguimos delegando tanto para equipes especializadas em transtornos alimentares quanto para jovens e suas famílias a urgência de repensar a norma e a imagem corporal que estamos produzindo e expressando em nossos discursos e práticas. Entretanto, no exercício de problematização de tais sintomas psicopatológicos, podemos nos conectar com a denúncia social que eles provocam e passamos a considerá-los não apenas como um sintoma social e sim como algo que está inscrito na nossa cultura. Sendo assim, passamos a ter o compromisso de propor outras formas de pensar, sentir e experimentar nossa relação com a vida, já que essa batalha corporal é evidente para todos nós.

 

Referências

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Recebido em 30 de outubro de 2006
Aceito em 4 de abril de 2007
Revisado em 17 de julho de 2007

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