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Revista Mal Estar e Subjetividade

versión impresa ISSN 1518-6148versión On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.2 Fortaleza sep. 2007

 

RELATÓRIOS DE PESQUISA

 

Da arte ao ofício: vivências de sofrimento e significado do trabalho de professor universitário

 

 

Luciano MendesI; Carlos Jaelso Albanese ChavesII; Maria Cecília dos SantosIII; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoIV

IGraduado em Administração pela Universidade Federal de Lavras. Mestre em Administração pela Universidade Estadual de Maringá e Universidade Estadual de Londrina. End.: Rua 44, 776, Baroni. Barretos, SP. CEP: 14780-190. E-mail: lucianobtos@yahoo.com.br
IIGraduado em Contabilidade pela Universidade Estadual de Maringá. Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Estadual de Maringá e Universidade Estadual de Londrina (PPA/UEM/UEL). End.: Rua Osvaldo Cruz, 126, apt. 07, ed. Osvaldo Cruz, Zona Sete. Maringá, PR. CEP: 87020-000. E-mail: jaelso.chaves@hotmail.com
IIIGraduada em Contabilidade pela Universidade Estadual de Maringá. Aluna especial do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Estadual de Maringá e Universidade Estadual de Londrina (PPA/UEM/UEL). End.: Rua. Osvaldo Cruz, 126, apt. 07, ed. Osvaldo Cruz, Zona Sete. Maringá, PR. CEP: 87020-000. E-mail: ceci.santos@hotmail.com
IVPsicólogo. Mestre em Psicologia social pela PUC/SP. Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP. Pós-doutor pela Universidade de Paris VII. Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá. End.: Rua Prof. Ney Marques, 21, Zona Sete. Maringá, PR. CEP: 87020-000. E-mail: garmneto@uem.br

 

 


RESUMO

O presente artigo relata investigação cujo objetivo foi o de descrever os significados do trabalho e o sofrimento na profissão de docente. Mais especificamente, tratou-se de entrevistar professores ligados aos departamentos de Física, de Estatística e de Matemática da Universidade Estadual de Maringá (UEM), tomando em conta essa temática. O referencial teórico utilizado discorre sobre o sofrimento e o significado do trabalho, tanto quanto se buscam na Psicanálise e na Psicopatologia do Trabalho, explicações mais abrangentes para se entender como essas relações de prazer/desprazer seriam vivenciadas pelos indivíduos no âmbito da sociedade. A pesquisa realizada foi de caráter qualitativo, pois, quando se trata de sentimentos, a pesquisa quantitativa torna-se, a nosso ver, insuficiente, devido às vivências de sentimentos serem experimentadas por cada indivíduo do ponto de vista de sua singularidade. Os resultados mostraram que, apesar de a profissão de docente ser gratificante, por utilizar-se das faculdades mentais, como num processo de criação artística, o sofrimento no trabalho, pelo menos aquele dos professores entrevistados, é muito evidente e, em grande parte, relacionado com a instituição e seus problemas. Conclui-se, portanto, que nem mesmo profissões criativas, como a de docente, estão livres de fortes sentimentos de desprazer, além de tudo porque, como aponta Freud (1930/1976), o sujeito não consegue obter plena satisfação vivendo em sociedade, devido à renuncia instintiva (pulsão) que deve realizar.

Palavras-chave: sofrimento no trabalho, trabalho, professores universitários, psicopatologia do trabalho, psicanálise e trabalho.


ABSTRACT

The present article tells about investigation whose objective was to describe the meanings of the work and the suffering in the professor's job. More specifically, it was about interviewing professors linked to the Physics, Statistics and Mathematics departments of the Universidade Estadual de Maringá (UEM) considering the meaning and suffering from work. The written theoretical referential discourses about suffering and meaning caused by work, the same way we search wider explanations in the Psychoanalysis to understand how these pleasure/displease relationships are lived by the individuals within the society. The accomplished research was from qualitative character, because when it talks about feelings, the quantitative research becomes, from our point of view, insufficient, due to the living of feelings be experienced for each individual from the point of view of your singularity. The results showed that, in spite of professor's profession be gratifying for using the mental capacities, as in a process of artistic creation, the suffering in the work, at least from the interviewed professors, it is very evident and, most of time, related with the institution and its problems. Therefore not even creative professions, as the professor, are free from strong feelings of displeasing, above all because, as Freud (1976/1930) says, the individual doesn't get to obtain full satisfaction living in society, due to his renounces instinctive that should accomplish.

Keywords: suffering in the work, work, university professors, psychopathology of the work, psychoanalysis and work.


 

 

Considerações Iniciais

Objetivamos, neste artigo, descrever significados e o sofrimento na profissão de docente universitário, mais especificamente em professores do Centro de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Maringá (UEM), localizada no norte do Estado do Paraná. Note-se, pois, que este trabalho representa uma parte de um projeto maior, que congrega pesquisas sobre o mesmo tema em outros dois centros dessa mesma instituição: Ciências Humanas e Ciências Biológicas.

Para tanto, buscamos, na Psicopatologia do Trabalho, de Christophe Dejours, de alguma forma inspirada na Psicanálise, compreender, na relação indivíduo-trabalho, algumas causas de importantes sofrimentos e de que forma estes podem ser atenuados. Mas não nos restringimos apenas à Psicopatologia, que busca explicar a causa do sofrimento apenas no trabalho, abordamos também algumas considerações da psicanálise freudiana na tentativa de entender, com mais profundidade, supomos, as vivências de prazer e/ou de desprazer nas relações sociais.

O sofrimento no trabalho se manifesta, sabemos, sobretudo por angústia e depressão (Dejours, 1992), afetos esses que nos apontam diretamente para a experiência do desprazer decorrente do conflito entre a subjetividade e o mundo "externo". No entanto, os significados que os sujeitos atribuem ao trabalho não se reportam somente ao desprazer, mas também à satisfação que, de algum modo, é pulsional. Agrupamos, então, os afetos em dois grandes blocos: um referente ao prazer e o outro, ao desprazer. Essa não distinção entre os sentimentos particulares, como a angústia, a depressão e outros, não deve ser tratada como um descuido dos pesquisadores, mas como uma necessidade na análise das entrevistas. Isso pode parecer excessivamente simples, mas preferimos, assim, ficar com Freud (1930/1976, por exemplo), para quem todos os sentimentos são derivados ou do prazer ou do desprazer.

 

O Sofrimento e o Significado no Trabalho

Para Dejours (1996:153), o sofrimento pode ser conceituado como "o espaço de luta que cobre o campo situado entre, de um lado, o bem-estar e, de outro, a doença mental". A perspectiva deste autor remonta, basicamente, à Psicopatologia do Trabalho que, desde a década de 1980, vem procurando fundamentar a clínica desse sofrimento na relação psíquica com o trabalho. Desse ponto de vista, vale afirmar que são as pressões do trabalho que põem em causa o equilíbrio psíquico e a saúde mental e derivam da organização do trabalho1.

No entanto, mesmo de posse dessas considerações, fica-nos a pergunta: por que continuamos, então, a trabalhar incessantemente? Se o sofrimento, que descrevemos neste artigo está relacionado diretamente ao trabalho, por que continuamos a trabalhar? Será que o trabalho só nos causa sofrimento ou só nos serve no sentido de sobrevivência material? É possível uma adequação entre trabalho e satisfação? Existem profissões que são mais ou menos prazerosas?

São essas incógnitas que nos conduziram a buscar uma explicação na psicanálise, da qual derivam vários estudos da Psicopatologia do Trabalho.

 

A Dialética Indivíduo-Sociedade: uma Explicação Psicanalítica do Prazer/Desprazer

Como se sabe bem, Freud (1920/1975) propõe uma diferenciação entre dois princípios de funcionamento psíquico: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Para esse autor, o princípio do prazer é um método primário de funcionamento do aparelho psíquico, que consiste em buscar o prazer e evitar o desprazer. Acerca dessa busca incessante pelo prazer, Freud (1920/1975) afirma que, do ponto de vista da autopreservação do organismo, entre as dificuldades do mundo externo, ele, o princípio do prazer, é, desde o início, ineficaz e até mesmo perigoso. Marcuse (1968, p.33) nos possibilita certa compreensão dessas considerações freudianas, dizendo que "se tivessem liberdade de perseguir seus próprios objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a associação e preservação duradoura: destruindo até aquilo a que se unem ou em que se conjugam".

É devido à incompatibilidade entre o princípio do prazer não limitado e o mundo externo que Freud (1920/1975) considera a sua substituição pelo princípio da realidade. Assim, para Freud (1920/1975), mesmo regido por esse último, o sujeito não abandona a intenção fundamental de obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, assim como o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa do que será, então, o longo e indireto caminho para o prazer. É em torno dessa incompatibilidade com o mundo externo que o autor chama atenção para o processo de "repressão" ou "recalcamento" das pulsões.

A esse respeito, Marcuse (1968) nos diz que, para Freud, a história do homem é a história da repressão. A cultura coage tanto a existência social do homem quanto sua existência biológica. Desse modo, a civilização só começa a existir quando o objetivo primário (satisfação integral das pulsões) é abandonado. Assim, esse autor expõe que o homem animal converte-se em ser humano somente através de uma transformação fundamental da sua natureza. O seguinte quadro, retirado diretamente de seu texto, mesmo sendo um tanto "mecânico", pode ser bem ilustrativo do que estamos tratando:

 

 

Marcuse (1966, p.35) comenta, ainda, que, sob o princípio da realidade, o ser humano desenvolve a função da razão, aprende a "examinar" a realidade, a distinguir entre o bom e o mau, verdadeiro e falso, útil e prejudicial. Torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora. Com o estabelecimento do princípio da realidade, o ser humano que, sob o princípio do prazer, dificilmente seria pouco mais do que um feixe de impulsos animais, converte-se num "eu" organizado, ou melhor, civilizado.

Mas algo nesta discussão não pode ser imediatamente compreendido se não avançamos um pouco mais na teoria das pulsões. Freud (1920/1975) fala-nos sobre a existência, nos indivíduos, de duas pulsões: a de vida e a de morte. Assim, faz uma distinção nítida entre as "pulsões do ego" (pulsão de morte) e as "pulsões sexuais" (pulsão de vida). As primeiras exercem pressão no sentido da morte, isto é, da volta ao inorgânico, o inorganizado, e as últimas, no sentido de um prolongamento da vida, isto é, do unido e organizado. Essa elucidação está vinculada à busca, um tanto especulativa, que Freud fez na Biologia para uma explicação do que chamou compulsão de repetição, de tudo que diz respeito ao repetir humano, ao insistir em restar sempre nos mesmos estados. Mais tarde, Klein (1958/1991) vinculará essas pulsões a sentimentos como o amor (pulsão de vida) e ódio (pulsão de morte), considerando que essas pulsões são mais psíquicas do que biológicas2. Seria, assim, a partir dessas pulsões que podemos entender a propensão dos indivíduos a atitudes tanto amorosas, quanto agressivas, frente aos objetos do mundo externo e também do mundo interno, introjetados. É em direção a elas, pois, que a civilização tem destinado tantos esforços para reprimir.

Freud (1930/1976) considera que a civilização é a soma integral das realizações e regulamentos expressos entre os indivíduos, e que serve a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de auxiliar os seus relacionamentos mútuos. Afirma o autor que, sendo o propósito da vida o programa do princípio do prazer, com o predomínio do princípio da realidade, não há possibilidade alguma de ele (o princípio do prazer, na sua forma absoluta) ser efetuado, pois todas as normas do universo lhe são contrárias. Assim, considera Freud (1930/1976), nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossas próprias constituições, e comenta, ainda, que a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. É neste ponto que afirma, então, que o sofrimento ameaça o ser humano a partir de três pontos, digamos: 1) de nosso próprio corpo, que nem mesmo pode dispensar-se do sofrimento, pois lhe é um sinal de advertência; 2) do mundo externo, que pode nos destruir com muita facilidade e 3) de nossos relacionamentos com os outros, ou seja, da impossibilidade de as regras - entenda-se aí da família, do Estado e da sociedade - de fato os organizarem perfeitamente.

As duas primeiras fontes, diz-nos ainda Freud, o nosso corpo e o mundo externo natural, não podemos fazer muito para evitá-las. Nunca dominamos completamente a natureza, e o nosso organismo, parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização. Quanto aos relacionamentos, diz-nos o autor (1930/1976), o método mais imediato seria o de manter-se à distância das outras pessoas, isto é, tratar-se-ia de evitar as relações, no entanto sabemos que isso é praticamente impossível.

Haveria, ainda, outras técnicas de evitar o sofrimento. A mais grosseira, embora mais eficaz, seria o método de influência química ou a intoxicação. E outra, ainda, seria a utilização das faculdades mentais destinadas à criação, em que se obtém o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer, a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual.

Freud (1930/1976) afirma que esta última técnica consiste em reorientar os objetivos pulsionais de maneira que diminuam a frustração do mundo externo. Uma satisfação desse tipo, por exemplo, pode ser encontrada na alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades. Tais satisfações parecem "mais refinadas e mais altas", comenta Freud (1930/1976, p. 98). Aí, então, nos valemos também dos comentários de Marcuse (1968, p.35), quando diz que apenas um modo de atividade mental é separado da nova organização do aparelho psíquico e conserva-se livre do domínio do princípio da realidade: é a fantasia, que está protegida das alterações culturais e mantém-se vinculada ao princípio do prazer.

Mas, como a sociedade, apesar de tanto sofrimento, consegue manter os indivíduos unidos? Essa conduz-nos a uma outra afirmação feita também por Freud (1930/1976, p.106), segundo a qual "constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos proteger contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização". A resposta para tal questionamento, apesar dessa afirmação, é dada pelo próprio Freud, ao dizer que:

A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem3 (Freud, 1930/1976, p.134).

É, então, que Freud (1930/1976) afirma que o interesse pelo trabalho em comum não manteria unidas as pessoas, mas essa união provém dos esforços que a civilização exerce. O trabalho teria para nós um caráter compulsivo, mas esse seria criado a partir de necessidade externa ao indivíduo.

 

De Volta ao Trabalho

Aqui deslizamos, pois, do campo da Psicanálise para o da Psicopatologia do Trabalho. Apesar de os escritos de Christophe Dejours estarem voltados, sobretudo, para o trabalho operário, muitas de suas considerações são válidas para todo e qualquer tipo de trabalho. Vejamos.

Dejours (1992) comenta que, no discurso dos trabalhadores, identificou dois tipos de sofrimento ligados ao trabalho: a insatisfação e a angústia. Esses dois tipos de sofrimento estão ligados diretamente à tarefa executada (por exemplo, de uma tarefa desinteressante nasce uma imagem de indignidade), ao significado desta tarefa (em que a falta de significado e a inutilidade dos gestos geram ciclos de insatisfação, que provocam uma imagem pálida do indivíduo) e ao sentimento de utilidade (pois a inutilidade remete à falta de qualificação e de finalidade do trabalho), entre outros. Portanto, como diz esse autor, essas vivências de sofrimento, nos pontos destacados acima, podem gerar o que ele chamou de "vivência depressiva", que condensa de alguma maneira os sentimentos de indignidade, de inutilidade e de desqualificação. Essa depressão é denominada ou é o que aparece como cansaço.

Dejours (1992, p.49) fala-nos, então, com respeito ao significado do trabalho, de dois componentes: o conteúdo significativo relacionado ao sujeito e o conteúdo significativo relacionado ao objeto4. Sendo assim, o conteúdo significativo do trabalho em relação ao sujeito está ligado à própria profissão, salientando Dejours (1992) que entra aí a noção de evolução pessoal e aperfeiçoamento, ou seja, a possibilidade de auferir benefícios pessoais e sociais com o trabalho. Já no caso do conteúdo significativo do trabalho em relação ao objeto, Dejours (1992) salienta que o trabalho comporta também investimentos simbólicos e materiais destinados a um outro. Neste último caso, a questão social torna-se mais evidente, pois o trabalho pode vincular uma mensagem simbólica a alguém, que aufere aí aspectos como reconhecimento, aceitação, status social, etc. Dejours (1992) afirma, no entanto, que separar assim conteúdos significativos em relação ao sujeito e ao objeto é naturalmente arbitrário, na medida em que as regras de troca de investimento não se deixam assim separar. O investimento narcísico, que se dirige ao próprio sujeito, só pode renovar-se graças ao investimento objetal e vice-versa, pois ambos partem do mesmo locus.

De importante está, ainda, que o significado do trabalho está diretamente ligado a sua organização. É neste ponto que Dejours (1992) afirma que a organização do trabalho, concebida por um serviço especializado da empresa, estranho aos trabalhadores, choca-se frontalmente com a vida mental e, mais precisamente, com a esfera das aspirações, das motivações e dos desejos. Isso porque, em muitos casos, essa organização do trabalho não é deixada a cargo do trabalhador, mas é algo que ele tenha que se adaptar por "imposição" da empresa e que acaba confrontando com suas aspirações e desejos. Assim, evidencia Dejours (1992) que a organização temporal do trabalho, a escolha de técnicas de execução, pelo trabalhador, permitem, dentro de certos limites, adaptar o trabalho às suas aspirações e competências. Em termos de economia psíquica, destaca Dejours (1992), esta adaptação espontânea do trabalho ao homem corresponde à procura, à descoberta, ao emprego e à experimentação de um compromisso entre os desejos e a realidade, o que gera o conteúdo significativo do trabalho, ou seja, o trabalho passa a ter um significado para o trabalhador porque atende suas atribuições pessoais e sociais.

Temos, evidentemente, algo bem mais detalhado em Freud (1930/1976), que apenas constata que o trabalho não está na nossa natureza, mas impõe-se de fora e, portanto, seria de se pensar que ele em si mesmo deveria ser fonte de sofrimento. Na verdade, temos algo diferente em Dejours (1992, p.52). Para esse autor, o sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho está bloqueada, ou seja, quando o trabalhador não consegue fazer modificações neste trabalho. Dejours (1992) comenta, ainda, que não são tanto as exigências mentais ou psíquicas do trabalho que fazem surgir o sofrimento, mas sim esse bloqueio na sua organização. No entanto, quando as exigências psíquicas são prazerosas, ou seja, quando o conteúdo do trabalho é fonte de uma satisfação sublimatória, esse trabalhador tem um "prazer de funcionar"; o que, de algum modo, não está muito longe das idéias de Freud. Argumenta ainda que tais condições só são encontradas nas profissões de artesão, profissionais liberais e entre os responsáveis de alto nível, pois o trabalho é livremente organizado ou deliberadamente escolhido e conquistado:

Não há nada de espantoso, nesse quadro, que grandes dificuldades concretas do trabalho sejam facilmente aceitas. Exigências materiais assim como salariais, em relação às quais a resistência cresce. São testemunha disso os artistas e os pesquisadores, por exemplo, pois seria falso imaginar que, para a maioria dessas categorias, os sacrifícios materiais sejam fáceis. Eles o fazem sofrer, como a todo mundo, mas o prazer do trabalho lhes permite uma melhor defesa (Dejours, 1992, p.135).

Também o salário, acrescenta Dejours (1992, p.50), contém numerosas significações: primeiramente concretas (sustentar a família, pagar as dívidas etc.), mas também abstratas, na medida em que o salário contém sonhos, fantasias e projetos de realizações possíveis. No caso inverso, o salário pode veicular todas as significações negativas que implicam as limitações materiais que ele impõe.

Podemos ver, então, que há uma aparente distância em relação a Freud, no sentido de que, para o criador da psicanálise, o trabalho já surge com um sentido de sofrimento para o ser humano. Em Dejours, ele não tem toda essa negatividade. Todavia, a idéia de sublimação permite pensar outra relação do homem com o trabalho, mesmo no âmbito das idéias de Freud. Enquanto atividade pulsional sublimada, o trabalho teria um grande potencial de prazer. Mas é preciso acrescentar - e isso talvez faça distanciar mais ainda os dois autores, Dejours e Freud - que, para Freud (1930/1976), a capacidade de sublimação humana não é muito grande e não é muito bem distribuída por igual entre as pessoas. A grande maioria tem essa capacidade em grau bem pequeno.

Para Dejours vale, então, considerar, com relação ao sofrimento, que a repressão que o indivíduo tem no âmbito da sociedade, ela se intensifica na relação com a empresa. Notemos, pois, que a repressão (recalcamento) aí funciona como uma alternativa negativa em relação à sublimação.

Podemos, agora, utilizar um termo extraído do trabalho de Marcuse (1968) que é "mais-repressão"5, ou seja, a organização do trabalho aumenta a incompatibilidade do indivíduo com a realidade. Por esse motivo, segundo esse autor, o trabalho é tão desagradável, fonte de sofrimento.

Dito isso, não nos esqueçamos de que se trata, aqui, de uma pesquisa empírica e passemos aos problemas práticos de método.

 

Procedimentos Metodológicos

Esta pesquisa foi realizada através de um estudo de caso, no qual, como já foi dito, se verificou o sofrimento e o significado do trabalho, de professores do Centro de Ciências Exatas (departamentos de Física, Estatística e Matemática, mais especificamente) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pode ser caracterizada como descritiva e qualitativa. Descritiva porque o pesquisador observa, registra e analisa fatos e eventos e qualitativa, porque o sofrimento e o significado tocam em aspectos da subjetividade individual. Minayo (1994, p.21) ressalta que esse tipo de pesquisa se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado. A pesquisa, nesses termos, trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes cuja quantificação não se pode dizer que não é possível, mas a nosso ver seria deformadora.

Tendo como objeto de pesquisa professores do Centro de Ciências Exatas, mais especificamente dos departamentos de Física, Estatística e Matemática, de início nos apresentamos em suas salas, expusemos o assunto da nossa pesquisa e os convidamos para uma entrevista.

Seguimos também algumas diretrizes propostas por Minayo (1996, p.102) para amostragem numa pesquisa qualitativa, que: (1) privilegia os sujeitos sociais que detêm os atributos que o investigador pretende conhecer; (2) esforça-se para que a escolha do locus e do grupo de informação e observação contenha o conjunto de experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa; (3) considera-os em número referente para permitir uma certa reincidência das informações, porém não despreza informações impares cujo potencial explicativo tem que ser levado em conta.

Quanto ao número de respondentes, além de sua disponibilidade e de seu interesse em conceber a entrevista, para Minayo (1996, p.102), numa pesquisa qualitativa, o critério não é numérico. Pode-se considerar que uma amostra ideal é aquela capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas dimensões. Portanto, a coleta das informações foi feita com professores que atenderam aos seguintes critérios: estarem vinculados a um dos departamentos: Física, Estatística ou Matemática; serem professores efetivos na Universidade Estadual de Maringá, com dedicação exclusiva. Além disso, consideramos o dito humanista de que uma única ocorrência humana pode revelar muito bem o drama humano por inteiro. Isso serve para a situação estudada: poucas pessoas podem revelar todo o drama de uma situação insatisfatória de trabalho.

Do ponto de vista do instrumental de coleta de dados, foram realizadas entrevistas pouco estruturadas, pois nos pareceram muito mais acordes com os objetivos, e tendentes à técnica da história oral (Bom Meihy, 1996). Isso foi inspirado em Dejours (1996, p.131), que afirma que "o sofrimento no trabalho articula dados relativos à história singular e dados relativos à situação atual", isto é, ele é inteiramente atravessado pela dimensão temporal.

Os procedimentos de análise deste trabalho, por sua vez, seguiram a técnica de análise de conteúdo, mas num sentido muito geral. Para Gomes (1994, p.74), essa técnica, atualmente, contempla duas funções: a primeira refere-se à verificação das questões em que se podem encontrar respostas para essas; e a segunda refere-se à descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que está sendo comunicado. Não se tratou, pois, de análise ou lingüística ou quantitativa de enunciados, mas numa separação muito abrangente e genérica de temas.

 

Resultados e Discussão

Perfil dos Entrevistados

O Quadro 2 apresenta certo perfil dos entrevistados. Nele estabelecemos um código para identificar as transcrições das falas durante a discussão dos resultados. Esse código contém as iniciais da área de atuação, a titulação (em que se estabelece também o sexo do entrevistado) e um número que corresponde à ordem das entrevistas executadas. Esse quadro serve de apoio para a apresentação e análise das falas. Ele nos revela várias características relacionadas, por exemplo, ao sexo ou ao tempo de serviço na instituição, dados que nos ajudam a estabelecer relações.

 

 

De início, discutiremos o significado do trabalho, ou seja, a relação que esses professores estabelecem entre profissão e o prazer em exercê-la. Posteriormente, trataremos mais especificamente do sofrimento que esse trabalho lhes causa.

 

O Significado do trabalho - a relação profissão/prazer

Ser professor é...

Uma primeira incursão pelo significado do trabalho abordou a questão "o que é ser professor para o senhor ou senhora?". As respostas revelaram a profissão numa perspectiva de transmissão do conhecimento, de preocupação com o outro, de contribuição para o crescimento do próximo, enfim, houve uma gama de respostas que visavam, basicamente, à contribuição que eles possibilitariam em relação ao outro e à sociedade. Os trechos seguintes apresentam algo desses resultados:

[...] é uma carreira extremamente gratificante e você não pode ter o medo de querer informar a pessoa e imaginar que a pessoa um dia pode ser superior a você6 [EDr.1].

Professor é transmitir, é tudo de bom que você aprendeu de uma forma mais clara possível [...] [FDrª.4].

É você conseguir jogar uma sementinha, não só a semente, mas o adubo também, pra que cresça, alguma coisa também na mente, na mente que está preparada para estas idéias [...] [MDrª.6].

Ser professor é você cuidar da alma das pessoas, o médico cuida do corpo, e a gente cuida da alma, né? É passar informações para outras pessoas que façam outras pessoas crescerem [...] [MDr.7].

Notemos que, em meio a essa representação do ensino como favorecimento do crescimento do próximo, há elementos mais primitivos. Veja-se o trecho de EDr.1. Ele nos informa de algum modo uma angústia, de que "a pessoa um dia pode ser superior a você", isto é, de que algo do sujeito é sentido como perdido no ato de ensinar, alienando-se dele. Do mesmo modo, pode-se falar também de algo primitivo na representação de uma sementinha, de MDra.6, trata-se da fantasia de natureza sexuada, de reprodução, de fecundar e de ser fecundada. Isso não quer dizer que se trata de um discurso primitivo, mas, como todo discurso, traz elementos primitivos nas suas entrelinhas. Neste caso, o do trecho de MDra.6 trata-se, muito possivelmente, de falar do prazer de ensinar, uma analogia com o prazer do ato de fecundar.

Mas o discurso manifesto sobre o prazer de ser professor não se restringe apenas ao fato da transmissão de conhecimento, como já dissemos no início. Abrange outros aspectos, como, por exemplo, o contato com os alunos, que, por um lado, evidencia também o prazer neste contato, o que por vezes é justificado pela idéia de realização da cidadania:

É uma realização pessoal, eu gosto de transmitir conhecimento, eu gosto da interação com os alunos [...] sei que o contato com os alunos é muito mais próximo, é mais direto, é bem pessoal, é um a um, então eu gosto deste relacionamento com os alunos [FDrª.5].

[...] é transmitir o conhecimento e fazer outras pessoas crescerem, e também um pouquinho de cidadania, e também eu procuro conversar com meus alunos, e explicar algumas coisas [...] [MDrª.6].

[...] ser professor não é ir lá e, como dizem alguns, jogar matéria em cima dos alunos, não é? Eu sempre tive uma boa convivência com meus alunos, então é isto, já estou cumprindo meu papel de cidadã, procuro exercer da melhor forma possível minha profissão [EMsª.8].

 

O prazer ainda...

Do mesmo modo que a transmissão de conhecimento, sua aquisição também é um fator muito prazeroso, isto é, algo também de natureza erótica, embora bastante sublimado:

[...] conhecimento é uma coisa que traz o prazer, né, você está sempre evoluindo intelectualmente. Eu acho que isso é um prazer que você não consegue mensurar, pelo menos pra mim, é um grande prazer, você está sempre em contato com coisas, com novos desafios com pessoas diferentes com assuntos diferentes, eu acho que isso é extremamente prazeroso, em termos de profissão, de trabalho, eu acho que a profissão de professor é uma das mais gratificantes, no sentido de auto-realização, a auto-realização [não entendi. Se é exatamente isso que a pessoa falou, esc rever sic entre parênteses] [EDr.1].

É a possibilidade de descobrir coisas novas. Na área da pesquisa você tem esta liberdade, de criar, de descobrir novas coisas, então isso é o fugir da rotina, (de) todo dia fazer a mesma cois.,Um caixa de banco, todo dia está ali, não tem jeito, todo dia tá ali pagando, recebendo, pagando, recebendo, não muda nunca, e esta preocupação nossa, tanto na parte de pesquisa, como na parte de aula, todo semestre, todo ano né, você está dando disciplina diferente, conhecendo novos alunos, a pesquisa também, (você) tá fazendo novas pesquisas, tentando, enfim, interagindo com várias pessoas e isto é interessante nessa profissão [FDrª.4].

Bom, eu faço uma coisa que eu gosto, eu sou professora por opção, eu acho que trabalhar, desenvolver o raciocínio, a mente, estar sempre ocupada, este convívio com os alunos, eu gosto disso, então eu faço o que eu gosto, então, é extremamente prazeroso [EMsª.8].

Notemos, pois, que, em várias falas, a condição da erotização da atividade profissional é a presença do estímulo sentido como novo, da não rotina.

 

O tempo dedicado à instituição é...

Outro ponto levantado pelos professores que lhes possibilitam prazer é a flexibilidade no horário de trabalho. Gasparine (1996, p.125) considera a existência de dois tipos de tempo: o do ator (social) e o da organização. Esse autor discorre sobre a necessidade de uma conciliação entre os dois tempos, em que o papel fundamental consiste em fornecer os limites no interior dos quais as transformações práticas e as exigências de flexibilidade forneçam aos trabalhadores instrumentos para a ampliação da qualidade de seu trabalho e de sua vida. É dentro desta perspectiva de conciliação entre o tempo do professor e o tempo da instituição que as relações de prazer foram evidenciadas. As falas seguintes apresentam essas considerações:

[...] é bom, é muito bom (sic) essa flexibilidade de horário, aqui no departamento, a gente também tem uma certa flexibilidade na hora de escolher a carga horária didática também, né (...) cada professor especifica alguns horários que ele gostaria de estar aqui (...). Em relação à flexibilidade de pesquisa, é excelente, teve uma época, por exemplo, que eu não tinha computador aqui pra trabalhar dentro da universidade. Então eu trabalhava muito com meu computador em casa, então isso é muito bom porque, se algum chefe que (sic) me obrigasse estar aqui, eu ficaria aqui parada, né, então, eu posso fazer as coisas em casa (...). A gente trabalha muito em campo, n?!, Vai fazer pesquisa no campo, você fica uma semana ou duas semanas fora, você combina com os alunos os horários e vai repondo as aulas, essa flexibilidade é muito boa [FDrª.5].

[...] é bem gratificante sim, [...] todo ano te dão uma folha com todas as disciplinas, pedem pra você escolher aquela disciplina que você quer dar aula e o horário, se quer de manhã, de tarde ou de noite, e isso é muito bom. Por exemplo, de manhã cedo, sou um fracasso, então eu jamais vou pegar uma aula oito horas da manhã, então pelo menos eles tentam colocar num horário mais razoável. Eu, por exemplo, só dou aulas, a maioria de minhas aulas é à noite, então isso é bom, você tem esta liberdade de trabalhar no seu "ótimo", digamos assim; se você gosta de dormir um pouquinho mais, tem essa possibilidade, se você gosta de dar aulas até às onze horas, vem aqui dar aulas até às onze horas, e isso é bom, muito bom [FDrª.4].

É interessante que a elasticidade de tempo, suposta ou real, não somente é prazerosa, no sentido de adaptar melhor o trabalho do sujeito individual, mas também traz a marca de um certo não constrangimento, quando se compara a profissão de professor com outras. Isto é, de algum modo, é possível se supor, aí, uma forma imaginária de falar de uma anelada e talvez mítica situação sem insatisfações e, mesmo, sem proibições.

 

O sofrimento no trabalho - as angústias e insatisfações

No entanto, apesar de todo o prazer relatado, as angústias e insatisfações referidas foram inúmeras. Assim, mesmo que a profissão de docente possibilita um prazer, uma erotização sublimada (Freud, 1930/1976; Dejours, 1996; Marcuse, 1968), por desenvolver-se a partir da criação intelectual, ela não está, em momento algum, livre do sofrimento, para o qual a instituição aparece como causa (Freud, 1930/1976; Marcuse, 1968; Dejours, 1992). O que observamos, contudo, é que o desprazer não está somente relacionado com a instituição - que iremos apresentar mais abaixo, mas, também, por exemplo, com a convivência com os alunos, no processo de obtenção do conhecimento etc. Ou seja, o desprazer está justamente ali, onde está também o prazer.

 

O relacionamento com os alunos...

[...] e sem falar na falta de interesse, que eu fico impressionada e às vezes eu paro e dou lição de moral, digamos assim, na sala de aula, os alunos parecem que não dão valor à oportunidade, na verdade eles jogam fora as oportunidades (...), quer dizer enquanto não amadurecerem, eu não vou conseguir lecionar matemática para eles, porque eles não querem saber [...] [MDrª.6].

[...] isso é um sofrimento, no sentido de, tem vários cursos, Física, pelo menos, é uma disciplina um pouco árdua, pelo menos os alunos encaram ela (sic) desta forma, então, por exemplo, eu cansei de entrar em cursos de Engenharia, sei lá... química... e aí a primeira coisa que você escuta: "por que eu vou fazer este curso, não tem nada a ver com o meu curso, por que é que eu vou fazer Física?". Aí eu digo, converse com o coordenador do teu curso, não fui eu que fiz a ementa do teu curso, não fui eu que criei a disciplina do teu curso, eu estou aqui para dar aulas para seguir este programa que foi me dado. Então, você recebe direto este tipo de questionamento, (...) aí você vai dizer o quê? E às vezes, realmente, você não sabe pra quê [...] [FDrª.4].

Olha, uma das coisas que mais me incomoda hoje em dia é a indiferença da meninada na sala de aula, a idéia que me parece que eles nem sabem o que estão fazendo na sala de aula;, não tem um objetivo próprio, me incomoda, é porque já vem de casa, isto já vem da família, a indiferença que eles têm prá com eles mesmos, isto depois passa para os outros, vão ser uns cidadãos indiferentes com os semelhantes, (...) e isto é uma coisa que me preocupa, e eu fico me perguntando o porquê disso [...] [FDrª.10].

Devemos, pois, antes de tudo, ter em conta a ambivalência das relações pessoais e a educação se faz através delas. No entanto, aqui é de perguntar se tudo o que foi dito antes sobre o prazer de educar é falso ou contraditório ou, se se quer, idealizado. Muito possivelmente não é falso. Nada impede que o mesmo objeto do prazer o seja também de desprazer, mas, no que concerne à idealização, ela parece ter aí um lugar importante. Note-se que, quando se fala no que é prazeroso, o mesmo objeto que aparece como fonte de desprazer, o ato de ensino, no caso, aparece como idealizado. Quando, então, pede-se que o sujeito fale sobre o sofrimento, aí, então, o mesmo objeto ganha mais realidade, e o ato de ensino aparece como que, quase irremediavelmente, impossível.

 

No processo de aquisição do conhecimento...

[...] existe uma frase que diz que o conhecimento escraviza o homem, de certa forma sim, porque às vezes você fica meio em depressão, porque você não entende alguma coisa que deveria realmente, estar por dentro do assunto. Eu acho que o conhecimento, de certa forma, traz um certo sofrimento. Na verdade, não é um sofrimento, seria uma "autofrustração". É uma coisa momentânea, passageira, não é que é uma coisa persistente, é uma coisa que não dá certo. Você cometeu algum deslize, uma idéia que você teve... enfim, seria nesse aspecto. O conhecimento escraviza o homem, você nunca vai conhecer tudo, aliás, nem um décimo, um milésimo, de qualquer área. Você não vai conhecer se você for pensar que deve saber tudo, você vai ser uma pessoa extremamente frustrada, você vai ter um sofrimento permanente, eu acredito [EDr.1].

Apesar de toda a magnitude de prazer que a criação intelectual proporciona, a aquisição do conhecimento - uma das premissas necessárias para o desenvolvimento intelectual - é também uma fonte de desprazer, como podemos observar na fala deste professor. Aliás, poucas vezes podemos estar tão claramente diante de algo que ao mesmo tempo causa tanta prazer e dor. Sem ir muito longe, podemos ver que uma palavra de um dos participantes foi muito bem usada: "autofrustração" (trecho acima). É interessante notar que, para exprimir o que é tão difícil, pois diz respeito ao inconsciente, ele cria quase um neologismo. Aí, então, tem-se todo um jogo entre o sujeito e seu ideal, em que este último aparece como quase impossível e, mais que isso, como uma espécie de perseguidor. Estamos próximos do que Freud chamou de "superego". Não nos esqueçamos que o superego não deixa de ser uma espécie de ego, isto é, de "eu", e é aí que a palavra "autofrustração" surge como bem adequada, como revelando algo como um "outro" eu, excessivamente exigente, perseguindo e frustrado o que o sujeito percebe como o seu eu atual e consciente. Carvalho (1994), em um trabalho realizado também com docentes da UEM - que, então, estavam realizando seu mestrado -, pôde notar a presença, nos participantes de sua pesquisa, de um nível muito alto, talvez excessivo em alguns casos, de expectativas convivendo com um também elevado sentimento de incapacidade e tudo isso aumentado pela falta de condições e de incentivos institucionais e por sentimentos ambivalentes dirigidos ao orientador. Podemos pensar ainda que, além da excessiva exigência superegóica que a busca e produção de conhecimentos trazem em si, há nessa busca elementos agressivos e eróticos cuja realização traz consigo uma sentida necessidade de autopunição, "autofrustração", como diz EDr.1.

 

O sofrimento e o tempo dedicado à instituição...

A relação prazer/desprazer perpassa também o tempo dedicado à instituição, não apenas no que diz respeito a horas/aulas, mas também com relação ao tempo de serviço prestado a ela. O professor mais antigo que entrevistamos, por ter presenciado muitos momentos da instituição e se considerar uma parte viva da história da instituição (vivendo momentos diversos de felicidade e infelicidade), desfere alguns comentários que evidenciam muita insatisfação com as condições atuais, mesmo quando questionado sobre o que lhe dá prazer nesta profissão:

Esta é uma pergunta difícil, porque são muitas as variáveis envolvidas, eu sempre trabalhei com muito gosto, agora atualmente eu não.. atualmente eu não amo tanto, atualmente não estou gostando muito dos fatos, de ver as coisas, em função do tempo, faz tempo que trabalho como professor, eu já trabalhei muito, eu já trabalhei trinta e cinco anos, um mês e vinte e seis dias, e, em função dessas reformas, como você vê (...) eu com trinta e cinco anos um mês e vinte e seis dias, eu não posso me aposentar [MDr.3].

 

A burocracia como causa do sofrimento...

Kernberg (2000, p.129), ao discutir as organizações disfuncionais, mantidas em "paranogênese", ou seja, organizações que impossibilitam que os indivíduos tenham relacionamentos normais de confiança7, destaca que a burocracia é uma forma de proteger a organização contra a paranogênese. O funcionamento eficiente da burocracia, considera Kernberg (2000), pode promover a melhor execução das tarefas, manter intercâmbios sociais normais e impor uma firme adesão ao que em geral pressupõe-se que seja o bem comum. Por outro lado, esse autor também destaca as limitações da burocracia e elas ficam evidentes quando ele cita o exemplo de um secretário estadual da saúde que, ao desconfiar das tarefas dos médicos, desenvolveu um sistema punitivo, em que cada incidente que não se encaixava claramente na lei era seguido de uma imposição de mais leis e regulamentos. Kernberg (2000, p.140) comenta, então, que o efeito em espiral desta burocratização se traduziu em um aumento geral dos custos, atrasos na execução de tarefas, um afundamento na burocracia estatal e um crescimento da equipe burocrática; ao mesmo tempo, desenvolveu uma atmosfera paranóide, aumentado a paranogênese, e reduzindo todos os recursos das organizações envolvidas.

As considerações de Kernberg (2000) não estão aqui ao acaso. Apontamos a burocracia excessiva como uma das formas de sofrimento destacada por todos os professores. Vejamos alguns fatos destacados pelos professores:

[...] a UEM tem uma série de problemas, todo mundo sabe os problemas que tem na UEM: falta de recursos, falta de infra-estrutura, falta de verbas, falta de... enfim, uma fartura sem tamanho, falta tudo, e isso repercute no desenvolvimento do seu trabalho como um todo. Por exemplo, você vai a um congresso, tem que prever o congresso que você vai com seis meses de antecedência para poder pedir o recurso. Em geral, as coisas não são assim, você tem um congresso planejado, mas você não sabe se vai, como vai e nem quando vai voltar. Em geral, aqui tem muita burocracia, prá evitar a burocracia você acaba pagando as coisas do seu bolso, com seu dinheiro, dá menos trabalho, entendeu? Isso é uma coisa ruim: por causa de algumas coisas burocráticas, você acaba tirando dinheiro do seu bolso para ir a eventos científicos [EDr.1].

Eu vou dar um exemplo que não deveria ser dado, mas estes dias a porta do meu armário partiu (...), e eu não poderia deixá-lo aberto porque tenho documentos importantes aqui. Aí eu solicitei o serviço, o sistema de serviço da instituição, e fiquei 3 meses... aí eu tive que pagar do meu bolso, e trazer um especialista de fora, uma pessoa competente de fora pra fazer. Depois de pronto, daí 1 mês, eles vieram ver, eu disse "agradeço, mas já foi feito". Então, são coisas que demoram, você vai precisar adquirir um material, demora pra vir, se você fizer uma licitação, é demorada [...] [FDrª.10].

Bem, a burocracia, eu acho que é, não sei se é, uma questão paranaense, ou muito radical em Maringá. Por exemplo, eu estudei na (...), e lá era muito fácil conseguir alguém, como aluno, né, para arrumar uma porta, trocar uma lâmpada. Eu chegava na pessoa que fazia o serviço, e o cara já trocava na hora, e aqui já chegou a ponto do cara arrumar uma lâmpada e eu apontar uma outra, e ele falar que não tinha uma solicitação para arrumar aquela, tem que ser enviado (sic) uma outra solicitação para arrumar. Eu acho isso um absurdo [...] [MDr.7].

 

As angústias frente ao salário...

E, por fim, uma outra fonte de insatisfações, apontada por todos os professores, foi o salário. As falas seguintes ilustram essas insatisfações:

[...] a pior do Brasil, lecionar em uma universidade pública do Estado do Paraná, de jeito nenhum, só se eu fosse deputado ou vereador [EDr.1].

Péssima, péssima, não existe política salarial, ele, o governo, esqueceu que a gente ganha salário, né?! Talvez esse seja um bom motivo, porque minha conta de telefone, de água, luz, etc., está subindo todos os anos e quando chega no começo do mês, quando chega no dia cinco, já acabou [...]. É claro que isso gera uma angústia, gera uma tristeza, você vai pagar as contas e não dá pra pagar. Muitas coisas eu já deixei de fazer em função do trabalho. Mas isso não me desmotiva a dar aula, né?! Eu venho pra cá da mesma forma, estando triste ou não, as coisas continuam caminhando do mesmo jeito [FDrª.5].

É interessante salientar a última frase das considerações desta professora que, apesar do péssimo salário, ainda encontra motivação para continuar executando seu trabalho. Isso mostra uma identificação muito forte. Aliás, ela parece muito mais identificada com o seu fazer profissional do que com seus estados depressivos. Isso talvez porque essa profissão, apesar do seu pouco reconhecimento nos dias atuais, possibilite uma satisfação compatível com a insatisfação que a instituição lhe causa. É neste ponto que podemos evidenciar, principalmente, as considerações que Freud (1930/1976), Marcuse (1968) e Dejours (1992) fizeram sobre a utilização das faculdades mentais.

 

À Guisa de Conclusão

O objetivo deste trabalho foi verificar os significados e o sofrimento no trabalho de professor universitário, mais especificamente de professores do Centro de Ciências Exatas (departamentos de Física, Estatística e Matemática), da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Foi possível observar, através de seus depoimentos, que as condições atuais em que esses professores se encontram lhes possibilitam um desprazer sem precedentes, vinculado, muitas vezes, à instituição. A compensação deste desprazer vem através de um forte erotismo sublimado, ou "mais refinado" para usar uma expressão freudiana, que esta profissão possibilita, através da criação intelectual que, como Marcuse (1968) salienta, é a única que, de algum modo, está livre do princípio da realidade. Por um lado, a profissão de docente universitário possibilita uma satisfação inquestionável, em que é possível "objetivar" todo conhecimento adquirido, em ensino e pesquisa, assim como satisfazer as pulsões ligadas à "vontade de saber". Mas, por outro lado, a instituição burocrática, a falta de interesse dos alunos, a ambivalência das relações etc., e o excesso de auto-exigência causam sofrimento pela incapacidade que os sujeitos de nossa pesquisa têm de realizar mudanças nestes domínios, que são supostos independentes de suas vontades, inclusive a sua própria auto-exigência.

É possível que essa auto-exigência desmedida, capaz de provocar depressões e paralisações nas atividades, como ressaltou Carvalho (1994), não tenha a sua gênese diretamente relacionada com a instituição, mas em processos outros de natureza infantil. No entanto, é muito possível que uma instituição paranogênica multiplique o mal-estar aí gerado, na medida em que pode potencializar os elementos persecutórios da auto-exigência.

Esse mesmo aspecto paranogênico é absolutamente verificável, quando todos os professores entrevistados vêem a burocracia atual da UEM como um dos principais incômodos. Esse incômodo se expressa pela dificuldade, ou mesmo impossibilidade, que esses professores sentem de alterar as normas institucionais. Trata-se, pois, de alienação, na medida em que a instituição, que não existe sem o trabalho de seus funcionários, é sentida como estranha e persecutória. Podemos também falar em coisificação e o fazemos nos referindo à obra de Berger e Luckmann (1985): trata-se de quando a realidade torna-se independente dos indivíduos, que muito pouco podem fazer para alterá-la.

É neste contexto, enfim, que podemos nos referir às considerações de Dejours (1992), que vê o sofrimento, em grande parte, produzindo-se na falta de adequação do trabalho cotidiano às necessidades dos indivíduos. A incompatibilidade entre realidade e indivíduo, que, conseqüentemente, é o principal foco de sofrimento psíquico, há muito tempo é discutida. Essa idéia de reificação da realidade remonta aos primeiros críticos da modernidade, como, por exemplo, Hegel e Marx. É sobre incompatibilidade que foram realizadas as críticas do "espírito alienado de si mesmo" de Hegel e do "homem alienado ao trabalho" de Marx. Tanto um quanto o outro viam como saída - para essa incompatibilidade - a arte, que possibilitaria ao indivíduo criar uma sintonia entre "mundo subjetivo" e "mundo objetivo". Apesar destas teorias remontarem ao século XIX, essa mesma crítica permanece até os dias atuais, como é possível verificar nas obras de Marcuse (1968) e Dejours (1992), cada qual com suas peculiaridades, mas com propósitos semelhantes. E, já que se falou na arte, cabe, enfim, perguntar o que é a arte afinal em termos psíquicos. Questão quase sem resposta, mas não intangível e isso nos leva a Freud (1911/1974). Segundo ele, a arte é a melhor conciliação possível encontrada pelo homem entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. É disso, pois, que estamos falando quando nos referimos à incompatibilidade entre condições de trabalho e o sujeito professor: de uma não conciliação entre os dois princípios de que fala Freud. E isso é tanto mais forte na medida em que essa profissão é escolhida por vocação, isto é, por prazer. Ao buscar o prazer, o sujeito encontrou imenso sofrimento.

Esse, pois, é um sofrimento inescapável, pois o sofrimento coabita com a existência humana, pois, viver em sociedade nos exige intensa renúncia, diz-nos Freud (1939/1976). O sofrimento do professor universitário é uma mostra muito interessante disso, na medida em que, como já dissemos, é um ofício escolhido por vocação, isto é, por forte erotismo sublimado. É, portanto, uma profissão em que a busca do prazer precede as obrigações e a sobrevivência. Mas aí o que é "demasiadamente" humano aparece: onde reina o prazer, habita o desprazer.

Isso, contudo, é geral. Não cremos que se vai poder algum dia encontrar um ofício de inteiro prazer, no entanto, também não acreditamos que os professores sejam tratados como merecem nas universidades, ao menos naquela estudada por nós. Não cremos que toda a angústia por que passam seja constitucionalmente humana ou parte essencial de seu ofício. Algo deve ser feito.

O que, então, fazer? Não sabemos ainda. A universidade pública é uma organização complexa e gerida democraticamente, mesmo que essa democracia não seja perfeita. Elas têm inúmeros foros de discussão, também democráticos, e é neles, a nosso ver, que esse problema deve ser levado. Aqui, nos contentamos em analisar e, por que não, também denunciar?

 

Referências

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Recebido em 3 de junho de 2006
Aceito em 13 de dezembro de 2006
Revisado em 17 de julho de 2007

 

 

Notas

1. Por organização do trabalho, entende-se a divisão das tarefas e a divisão hierárquica nas organizações (Dejours, 1996:153).
2. Isso não quer dizer que a pulsão é para Freud algo inteiramente biológico. No entanto, trata-se de uma longa discussão, para a qual não há espaço aqui.
3. Freud (1921/1974) afirma que tanto a identificação quando os relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade são ligações afetivas que desempenham seu papel na pré-história do complexo de Édipo. O menino, tendo como manifestação amorosa sua mãe, se identifica com o pai na tentativa de ser igual a ele e obter a mãe como objeto sexual. Na impossibilidade de ser bem-sucedido, ele "introjeta" a figura do pai em seu "eu". Na verdade, ele introjeta tanto a figura do rival, o pai, quanto a figura do objeto e é isso que dá origem ao superego. Quanto à relação amorosa inibida em sua finalidade, ela estaria no fato de o menino, ao ter a desilusão de nunca poder "ter" a mãe, todo o desejo a ela dirigido é inibido na sua finalidade sexual direta e transformando-se em ternura (ver Freud 1921/1974).
4. Essa decomposição, realizada por Dejours, do significado do trabalho, remete-nos a algumas considerações sobre a teoria freudiana da libido. Freud (1917/1974b) considera, durante o processo de formação do "eu", a existência de dois estados da libido ("amor"): a "libido do eu" e a "libido objetal". De acordo com as proposições freudianas, a criança, quando nasce, teria concentrada toda a libido em seu próprio eu, o que Freud chama de narcisismo primário. Somente mais tarde, a criança passaria a destinar parte dessa libido aos objetos do mundo externo. É a partir da dependência que a criança tem de seus pais, que, num segundo momento, ela irá passar a amá-los. Como bem ressalta Freud, é através do egoísmo que a criança aprende a amar as outras pessoas. Vejamos que objeto, tanto aquele destacado por Freud como por Dejours, pode estar ligado a pessoas, objetos, idéias etc. Apenas a título de consideração, em trabalhos anteriores, Freud (1911/1974a) vincula o termo libido apenas a libido objetal, enquanto a outro ele chama de interesse.
5. Marcuse (1968:53) utiliza esse termo para mostrar que a história das instituições com interesses específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada. Esses controles adicionais, gerados pelas instituições específicas de dominação, receberam esse nome, por esse autor, de mais-repressão.
6. Não se deve tomar uma fala dessas como gratuita, mas muito possivelmente ela revela justamente o contrário do que está dizendo, revela uma certa angústia de ter tido roubado o saber e ser imaginariamente "atacado" por quem dele se teria apropriado e com o próprio objeto apropriado.
7. Essa classificação Kernberg (2000: 129) extrai do trabalho de Eliott Jacques (1976), que propôs dois tipos de organização sociais: a de requisito (ou sadia nos relacionamentos) e a paranogênica (que força as interações sociais a moldarem-se segundo formas de comportamento que levantam desconfiança, inveja, rivalidade hostil e ansiedade).

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