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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.7 n.2 Fortaleza set. 2007

 

RESENHAS DE FILMES

 

 

Autor da resenha
Henrique Figueiredo Carneiro

Psicanalista. Professor Titular e Coordenador do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). End.: Rua Aloysio Soriano Aderaldo, 150, apt. 202. Fortaleza, CE. CEP: 60191-260. E-mail: henrique@unifor.br

 

 

 

"Piaf: um Hino ao Amor"
Título Original: La Môme
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 140 minutos
Ano de Lançamento (França/República Tcheca/Inglaterra): 2007

 

Do Hymne à l'Amour a Je Ne Regrette Rien

Entre o Hino ao Amor e o Não me arrependo de nada, duas canções emblemáticas de Piaf, podemos identificar, na obra dirigida por Olivier Dahan, um verdadeiro tratado ao amor, no sentido psicanalítico que o termo representa, na medida em que as duas tratam de investimentos, cortes e re-investimentos nas paixões e no sentido de uma elaboração final dada ao sofrimento.

Isso, porque só podemos falar de amor a partir da demanda que o Outro apresenta, precocemente, aos que nascem. É neste ponto que a obra retrata uma Piaf presa nos capítulos de uma novela em que faz valer a essência do que Freud descreve como o estranho-familiar. Por outro lado, não podemos esquecer que um dos maiores referenciais de Freud ao investimento amoroso é nada menos que o seu texto sobre Luto e Melancolia.

O que Piaf enfrenta, em toda a sua infância, é um desfile de desencontros com o espaço que deveria servir de suporte para o atendimento de suas demandas. Uma mãe alcoolista, de pouca investidura na maternidade, contrasta com um pai idealista, porém interventor, ao ponto de causar em Piaf o desejo de ser a representante de uma busca incessante por um lugar através da voz.

O amor de mãe aparece no filme totalmente nebuloso. Presa entre o álcool e o desprezo de si, coloca-se em cena uma mulher mais preocupada em saber o que tem, do que voltada para a realização de um desejo materno. Nesse sentido, notamos uma Piaf que se constrói sobre o campo das privações.

Privada da mãe, apesar de sua presença; do pai que vai à guerra; e da avó que cuida de um bordel, vai encontrar um refúgio materno, ainda que velado, na figura de uma prostituta. Uma insígnia que aparece em um momento importante da sua vida, mas que protagoniza um dos cortes mais duros que sofreu na infância.

 

 

A cena em que Piaf é arrancada dos braços desta insígnia materna só pode ser comparada, em termos de marca, a duas outras cenas que o filme apresenta. A primeira, uma cena que a marcará até a hora de seu desespero final, quando, já no leito de morte, lembra do seu brinquedo, uma espécie de fetiche transicional entre a infância desgraçada e a vida adulta sustentada por uma amarra significante calcada na paixão visceral representada pela voz.

A segunda complementa a primeira, e é, talvez, a mais importante cena para a perspectiva de sustentação de sua vida. A cena em que, exposta pelo pai às intempéries malsucedidas de seu idealismo, é convocada a fazer algo. E canta.

O primordial desta cena reside também na forma como Piaf passa a representar seu sofrimento. Sua voz, um objeto também primordial passa a representá-la. É com ela que vai enfrentar a vida nos espaços da boemia, além de ser a representante de sua existência. A pergunta que colocamos neste interstício é o que representar pela voz, pois ela em si, tomada pela pulsão, pode simbolizar apenas a presença de um vazio.

 

 

Nestes aspectos, o filme faz um recorte bastante preciso já na referência ao título: Piaf, um hino ao amor. De fato, o amor para Piaf é de uma ordem tão pulsional que as repetições que enfrenta na sua discografia representam, ao mesmo tempo, todas as suas errâncias. Errâncias que indicam a passagem de uma posição de privação dominante na sua infância, para uma representação das frustrações vividas nas suas relações afetivas.

Este construto de sofrimento que Piaf canta em suas canções avança tão profundamente pelo seu corpo e sua vida, até chegar ao golpe mais duro que o filme apresenta, no momento de sua separação com Marcel Cerdan, o grande amor de sua vida. A vida se desorganiza em sua frente. É como se outra vez ela cegasse.

Durante sua infância, ela perde a visão e sua recuperação encontra um sentido mesclado entre o sacro e o profano. Da religião à constatação da libido investida sem regras, as mulheres do bordel comemoram a decifração das imagens que por um tempo ficaram obscurecidas. Como mulher, e já investida de sentido, o duro golpe que a vida lhe reservara, arrancando de seus braços o homem brilhante, famoso e que não ofusca seu sucesso, a deixa ferida de morte.

Estes elementos parecem de grande importância para a psicanálise, pois trazem à tona traços de grande valia para o entendimento da posição que cada um ocupa na vida como uma forma de saída às intemperies do sentido.

Piaf passa sua vida entre o sentido do que canta e a captura masoquista de um gozo, que sustenta em nome do álcool e da morfina. É tudo isso que a faz, no filme, encerrar um ciclo vital com a expressão cantada: JE NE REGRETTE RIEN!

Não se arrepende de nada. Nem pode. Pois prevalece um imperativo do supereu que a conclama a viver. Entre constantes abandonos, enfermidades e desenganos, o que prevalece como uma saída diante do sofrimento é um mandato de sobrevivência. A cena com o pai foi um imperativo. Sua voz é sua arma subjetiva que procura preencher, sobretudo, com suas sensações. Sensações que presenteia ao público e a uma França arrasada pelo desfecho de um pós-guerra e de um mundo melancolizado pelas perdas incontáveis.

No momento em que a sombra do objeto recai sobre o eu, aí está a posição do sujeito na melancolia. Em outras palavras, a sombra do objeto neste caso não é nada menos que o vazio que indica: a angústia não existe sem objeto. Este é também um filme que ilustra perfeitamente todo o percurso pulsional de morte que nos atravessa, sem nenhuma pretensão de rótulos sobre o mito, pois o pulsional de morte nos atravessa a todos. Cabe a cada um dar o destino que pode.

Não se arrepender de nada, de modo algum aparece em Piaf como ausência de culpa, pois ela emerge mediante outras referências como o desamparo, a revolta e a insistência em apagar a vergonha. O canto de amor, no caso, foi emoldurado como um hino para si e para o mundo.

 

 

Recebido em 8 de agosto de 2006
Aceito em 15 de agosto de 2007
Revisado em 1º de setembro de 2007

 

 

Notas

1. As ilustrações foram extraídas do site: http://www.cinemacafri.com/filme.jsp?id=1220

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