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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.1 Fortaleza Mar. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Desdobramentos do trabalho analítico como discurso

 

Unfoldings of the analytic work like discourse

 

 

Luis Achilles Rodrigues Furtado

Psicanalista. Mestre em Psicologia pela UFC. Professor Assistente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará - Campus Avançado de Sobral. End.: Av. Dr. Guarani, 15, apt. 202. Sobral, CE. CEP: 62040-730. E-mail: luis_achilles@hotmail.com

 

 


RESUMO

A partir de uma investigação anterior sobre a temática do trabalho na obra freudiana, desenvolvemos neste artigo uma exploração inicial do ensino de Lacan. Orientados pela questão sobre o trabalho do psicanalista, abordamos os problemas de tradução implicados nas palavras alemãs relativas ao termo "trabalho" e seguimos as orientações de Lacan em seu seminário sobre "Os escritos técnicos de Freud" e seu texto "Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise". Dissertamos, então, sobre a afirmação de Lacan sobre o trabalho analítico como discurso, diferenciando, por fim, o trabalho do analista do trabalho analisante.

Palavras-chave: trabalho analítico, linguagem, psicanálise, discurso, elaboração.


ABSTRACT

After a previous investigation about the subject of the labor in Freud's works, we develop in this article an initial exploration on the Lacan's teaching. Guided by the question about the psychoanalyst's labor, we touch the translating problems involved in the German words related to the word "labor" and follow the Lacan's orientations in his seminar about "The technical writings of Freud" and in his text "Function and camp of the speech and the language in Psychoanalysis". Then, we approach the affirmation of Lacan about the analytic work like a discourse, differentiating, in the end, the work of the analyst and the analysant work.

Keywords: analytic work, language, psychoanalysis, discourse, elaboration.


 

 

Introdução

A Psicanálise, sua teoria e suas conseqüências sobre o modo de pensar os fatos humanos permitiram a vários autores dialogarem e questionarem, em realidades diferentes, a aplicabilidade dos conceitos elaborados por Freud. Deste modo, os conceitos psicanalíticos começaram a ser mesclados nas áreas da filosofia, das ciências sociais, da literatura, da religião etc. Todavia, dialogar com esses saberes não significa fazer uma psicanálise aplicada. Apesar de Freud se questionar sobre as realizações humanas através de diversos prismas, o criador da Psicanálise sabia que suas considerações sobre tais assuntos eram decorrentes daquilo que ele descobrira na escuta de seus pacientes e dos desdobramentos teóricos que lhe eram possíveis.

Em um trabalho anterior (Furtado, 2005), questionamo-nos como poderíamos pensar o trabalho na obra freudiana, já que Christophe Dejours e Abdoucheli (1994) haviam afirmado que a Psicanálise não poderia contribuir em nada neste assunto e apenas questionar sobre qual o lugar do sujeito no mundo laborativo. Concluímos que, no plano objetivo e tecnocrático, realmente a psicanálise não tem como servir aos interesses de produção. Todavia, descobrimos que Freud considerou importante a dimensão do trabalho e utilizou os termos Arbeit, Verarbeitung, Bearbeitung e Durcharbeitung em diversas ocasiões e sentidos1. Enfim, o trabalho, para Freud, tal como o consideramos em nosso referido estudo, é importante enquanto atividade profissional e como atividade psíquica.

Como continuação de nossa pesquisa, iniciamos uma leitura dos seminários e dos escritos de Jacques Lacan na esperança de também verificarmos que contribuições este autor pode nos dar para pensarmos a questão do trabalho na Psicanálise. Cientes da amplitude da temática e da variedade de sentidos que o termo pode encontrar, tal como o verificamos na obra de Freud, restringimos nosso questionamento para cada momento do ensino de Lacan. Deste modo, propomos a simples questão, que nos obriga a um retorno a Freud com Lacan, que pode ser enunciada da seguinte maneira: O que é o trabalho analítico? Quem trabalha, o analista ou o analisante?

Entendemos também que esta questão é muito ampla e por isso preferimos, em decorrência do momento em que se realiza nossa pesquisa, restringir nossas observações a duas referências do ensino de Lacan nos anos de 1953 e 1954: as aulas do seminário sobre Os escritos técnicos de Freud (1953-54/1986) e seu relatório do Congresso de Roma, realizado em setembro de 1953 e intitulado: Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1956/1998a). A relação entre as duas referências não é arbitrária, pois no que se refere ao sentido que Lacan atribui ao termo trabalho naquele seminário, ele mesmo aponta a consulta do relatório. Ademais, um leitor mais aprofundado na literatura psicanalítica poderia sentir falta das referências à lingüística e da apropriação deste campo que Lacan (1958/1998b) realiza em seu texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Ali, Lacan dá importantes contribuições para desenvolvermos as relações entre o trabalho psíquico (com as operações de condensação e deslocamento) e as figuras de linguagem conhecidas como metáfora e metonímia. Em relação a este tema, remetemos o leitor mais avisado à nossa dissertação de mestrado (Furtado, 2005), onde exploramos em Freud a noção de trabalho psíquico. Contudo, o texto de Lacan sobre a Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud data de maio de 1957 e constitui outro momento da teorização lacaniana a ser explorada por nós em futuras publicações.

 

1. O trabalho no seminário de 1953-54

Podemos dizer, grosso modo, que a abordagem lacaniana sobre os textos freudianos relativos à técnica são questionamentos e reflexões sobre o trabalho analítico e os destinos da Psicanálise naquele tempo. Vale lembrar o esforço do psicanalista francês, no primeiro momento de seu ensino, sobre o retorno à leitura da obra freudiana, buscando o resgate do sentido original que cada vez mais estava se perdendo através daquilo que foi chamado de ego psychology. Percebia-se o desvirtuamento da técnica e da teoria analíticas, assim como polêmicas institucionais que versavam sobre a regulamentação da formação dos analistas. Dizendo de outra maneira (e nos termos que nos interessam aqui), era o próprio trabalho dos psicanalistas que estava sendo afetado.

Ao abordar a temática da resistência (1953/1986, p. 45-46), Lacan realiza precisões na tradução francesa do texto freudiano A interpretação dos sonhos (1900/1987a, p 475). Na frase "... tudo que interrompe o trabalho analítico é uma resistência", o termo utilizado em alemão é Arbeit e não Behandlung, o que poderia significar cura. Trata-se, portanto, de uma atividade objetiva de análise que nada mais é do que a revelação do inconsciente. Freud não se refere, nesta citação, ao sentido de um tratamento que visa uma cura ou normalização do sujeito, mas remete ao esforço a ser realizado para o desvelamento do material inconsciente do analisando.

Apesar de o termo Arbeit ser uma palavra comum, que pode aparecer em diversos sentidos e em alemão ser acompanhada por diferentes complementos — aparecendo assim as expressões como trabalho de luto, trabalho do chiste, trabalho de civilização etc. —, podemos verificar dificuldades de tradução e confusões entre três termos diferentes utilizados por Freud (traduzidos pela palavra elaboração): Verarbeitung, Bearbeitung e Durcharbeitung.

1.1. Verarbeitung: o trabalho de processamento

Jacques Lacan (1953-54/1986, p. 154), ao discutir o texto freudiano sobre o narcisismo (1914/1974), reclama da dificuldade de se traduzir o termo Verarbeitung, utilizado por Freud naquele contexto. O referido termo, traduzido normalmente por "elaboração", implica uma significação confusa promovida pela tradução oficial das Obras Completas de Freud.

Segundo Luiz Hans (1996), Verarbeitung, enquanto atividade psíquica, designa um trabalho de processamento, transformação e integração (absorção) dos estímulos no psiquismo. Deste modo, Freud, quando usa este termo alemão, refere-se à forma como lidamos com o excesso de estímulos acumulados. Esta modalidade de trabalho psíquico é saudável e ocorre diante da impossibilidade de descargas motoras ou verbais. Sua característica é a espontaneidade (Laplanche e Pontalis, 1992). Podemos verificar que este termo mantém proximidade com o conhecido modelo hidráulico do aparelho psíquico.

1.2. Bearbeitung: a elaboração secundária

Apesar de Lacan não fazer referência ao termo alemão Bearbeitung em seu seminário de 1953-54, consideramos fundamental realizar uma apreciação do sentido dado por Freud a esta palavra, tendo em vista a confusão de sua tradução.

Inicialmente, a utilização do termo "elaborar" não é justa para a palavra em questão. "Elaborar" contamina o termo alemão com os significados de "aperfeiçoar" e "assimilar", que se aproximam da palavra anteriormente comentada verarbeiten.

Podemos, ademais, apontar que Bearbeitung é utilizado por Freud em contextos e sentidos diferentes e ilustrativos para nosso estudo.

Trabalho secundário (sekundäre Bearbeitung): este é um sentido conhecido como "elaboração secundária" (Hans, 1996; Laplanche e Pontalis, 1992). Refere-se ao trabalho secundário do sonho no qual o pré-consciente opera no material onírico como se este fosse um material perceptivo. Este trabalho secundário do sonho é efeito da censura psíquica e é o responsável por fazer relações, dar ordem aos elementos oníricos, tornando-os inteligíveis. É um trabalho que corresponde às funções sintéticas do eu, permitindo uma busca da unidade dos elementos do sonho. Segundo Laplanche e Pontalis (1992, p. 145-146), Freud fez uma aproximação entre este trabalho secundário e a formação de certos sistemas de pensamento.

Racionalização bem sucedida

Trabalho analítico (analystiche Bearbeitung): o sentido aqui empregado refere-se a submeter algo ao (tratamento) analítico. Neste caso, o paciente é tomado como objeto a ser trabalhado analiticamente.

Trabalho como atividade objetiva na realidade: Freud utiliza este sentido quando se refere, no texto Mal-estar na civilização (1930 [1929]/1990b), ao conselho de Voltaire para cultivarmos nosso jardim. O termo é aqui compreendido em relação às capacidades reguladoras do trabalho nas relações do sujeito com a realidade. (Furtado, 2005).

1.3. Durcharbeitung: a perlaboração

Na última aula do seminário dedicado aos escritos técnicos de Freud (1953-54/1986, p. 325), Lacan relaciona o termo trabalho com o de discurso. Afirmará que o discurso leva certo tempo engajado na construção do ego2.

Neste momento, a palavra alemã Durcharbeitung, normalmente traduzida por "perlaboração" (Laplanche e Pontalis, 1992), aparece como o tempo necessário ao sujeito durante uma análise. Lacan relaciona esta outra derivação do termo Arbeitung ao tempo-para-compreender. Afirma que, nesta perspectiva, se trata do discurso como trabalho.

Entretanto, antes de precisarmos a significação da posição de Lacan neste seminário, devemos esclarecer melhor o significante Durcharbeitung, que Freud (1914b/1987) utilizou em um dos seus mais famosos artigos sobre a técnica: Recordar, repetir e elaborar.

Segundo o dicionário de Luiz Hans (1996), a palavra alemã, que ora consideramos, evoca a duração de uma ação e o dispêndio de esforço. Para este tradutor durcharbeiten é utilizado por Freud em relação ao esforço e ao trabalho de vencer a resistência. Além da dimensão temporal implicada nesta significação, temos também a dimensão da direção, que evoca uma vetorização, uma força que atravessa. Seguindo as palavras de Hans (1996, p. 203): "Não se pode afirmar que é um conceito psicanalítico, mas é utilizado quando Freud quer se referir ao modo de 'trabalhar' o sonho ou materiais da análise, ou ainda, para o trabalho de vencer as resistências".

Desta maneira, podemos verificar mais claramente a relação que Lacan faz entre o termo alemão e seu entendimento de discurso como trabalho. Para o psicanalista francês, o discurso precisa de um tempo para aparecer inteiramente engajado na construção do ego. Só depois disso é que o discurso se resolve no analista, ou seja, adquire sua culminância na relação com o analista. Ao mesmo tempo desta resolução, o discurso adquire seu valor próprio e aparece como um trabalho.

1.4. Trabalho, Hegel e o laço inter-humano

Podemos encontrar inúmeras referências à obra de Hegel durante todo o ensino de Lacan, especialmente em relação à dialética do senhor e do escravo. Umas das conotações lacanianas ao termo trabalho também está referida à ligação que podemos estabelecer entre a atividade humana engajada no desejo e a captação do desejo do outro. De acordo com Hegel, através do trabalho percebemos a exploração do homem pelo homem. Ou seja, a noção de trabalho nos ilustra muito claramente esta dimensão em que o homem se torna objeto de exploração de outro homem, tal como Freud também apontou em O futuro de uma ilusão (1927/1990a, p. 16).

Sigamos as palavras de Lacan (1953-54/1986, p. 172):

O desejo inicialmente é apreendido no outro, e da maneira mais confusa. A relatividade do desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda relação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização, inclusive nesta simpática e fundamental exploração do homem pelo homem cujo fim não estamos a ponto de ver, pela razão de que é absolutamente estrutural, e que constitui, admitida de uma vez por todas por Hegel, a estrutura mesma da noção de trabalho.

Neste mesmo seminário, Lacan explica que, apesar da dialética do senhor e do escravo se desdobrar no plano imaginário, existe uma regra desde o início. Para Hegel, a sociedade não está fundada em nenhum laço objetivável e na relação do senhor e do escravo, não se trata da domesticação do homem pelo homem. A relação entre os dois componentes da dialética hegeliana está fundada numa luta de puro prestígio, na qual o senhor arrisca a sua vida.

O escravo passa a reconhecer a superioridade do mestre/senhor pelo fato mesmo de ter arriscado a sua vida. Todavia, este reconhecimento do escravo não tem valia para o senhor, já que este último não considera o valor do primeiro como homem.

Esta estrutura, em que o escravo reconhece o valor do mestre mas este não reconhece este reconhecimento, é sem saída, mítica e imaginária. Entretanto, para Lacan (1953-54/1986, p. 255), tal estrutura possui prolongamentos que "nos introduzem no plano do simbólico".

A partir da situação mítica de reconhecimento, estabelece-se a relação do gozo e do trabalho. Com o reconhecimento do senhor, o escravo fica submetido à lei de satisfazer o desejo e o gozo do senhor. O escravo fica obrigado a trabalhar, consoante com as palavras de Lacan (1953-54/1986, p. 255): "E quando se vai ao trabalho, há regras, horas — entramos no domínio do simbólico".

O próprio mito inicial só pode ser concebido sitiado pelo simbólico, pois há um pacto, uma aposta. Isto ocorre porque o pacto é estabelecido sobre o risco de morte e não pelo temor biológico diante da aproximação da morte. Lacan (1953-54/1986, p. 255) faz a precisão: "No mito hegeliano, a morte não é nem mesmo estruturada como temor, é estruturada como risco, e, para dizer logo tudo, como aposta".

Em resumo, porque Lacan fala da dialética hegeliana no contexto deste seminário? Simplesmente para explicar que a relação intersubjetiva, apesar de se desenvolver no imaginário, está implicada numa regra do jogo, no simbólico. Lacan afirmará ainda, algumas aulas à frente (p. 313), que a palavra é o meio fundador da relação intersubjetiva.

 

2. O trabalho como discurso

Na aula de sete de julho de 1954, a última do seminário sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan faz referência ao seu relatório ao congresso de Roma intitulado Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise (1953/1998a), no qual se referiu ao trabalho analítico como discurso. Naquele relatório, ao precisar que o campo da fala e da linguagem é o lugar onde a Psicanálise opera e encontra suas condições, Lacan aponta onde o trabalho analítico deve acontecer.

Ao afirmar que a associação livre é uma espécie de "trabalho forçado" e que ela tem o valor formativo de um "operário especializado", o autor remete às dificuldades próprias ao discurso, com suas resistências, e ao fato de que o paciente deve "aprender" a abandonar as interferências egóicas e unificadoras que o eu impõe ao discurso do sujeito. O "trabalho forçado", podemos dizer com Braunstein (1980), relaciona-se com o fato de que a técnica psicanalítica impõe uma neutralização do eu que implica uma neutralização do mundo e de suas trocas de estímulos.

Percebemos que o termo "trabalho analítico", tal como é referido no seminário 1, é utilizado como correspondendo ao discurso, ou melhor, ao trabalho discursivo. Mas resta uma indagação: quem trabalha: o sujeito ou o analista?

Apesar de não ter sistematizado a indagação acima, Lacan nos deixa pistas que indicam que ambos os parceiros da análise estão trabalhando, cada um a seu modo.

2.1. O trabalho analisante

O paciente é convidado a trabalhar arduamente na reconstrução de sua "estátua narcísica", na qual suas ferramentas são as palavras que são destinadas ao outro, que é o analista (Lacan, 1953/1998, p. 251). Todavia, este trabalho é frustrante pois, paulatinamente, a distância entre aquilo que o sujeito quer dizer e aquilo que ele diz apontam cada vez mais para a alienação em que seu eu está fundamentado3. O trabalho do analisante é o de elaborar, atravessar este discurso de modo que o resultado desta travessia seja, segundo Braunstein (1980, p. 236), "a redução da distância entre o sujeito da enunciação e o eu do enunciado, integrando estes significantes representantes da pulsão que estão submetidos ao recalque".

Este trabalho analisante leva certo tempo, um "tempo-para-compreender" que, por sua vez, se enoda com uma vertente objetiva da análise: sua duração. Esta duração refere-se tanto à questão do tempo de cada sessão quanto à questão do término da análise. Nas palavras do autor: "A realidade do tempo na análise assume o valor de um recebimento do produto do trabalho realizado na análise". (Lacan, 1953/1998, p. 314).

Nesta citação podemos ainda retomar o que foi dito sobre a expressão "operário especializado". O autor lembra que o trabalho forçado, o qual, segundo alguns que ele não indica quais sejam, implica uma aprendizagem e tem um valor formativo. Isso significa dizer que um dos produtos do trabalho analítico é a formação de um analista, este operário especializado.

2.2. O trabalho do analista

Se o analisante trabalha arduamente na produção de seu discurso e na sua elaboração, necessitando de tempo para atingir seus objetivos de desvelamento de seu inconsciente e tomar o prumo de sua história enquanto sujeito de suas escolhas, o analista também trabalha e mantém sua relação com o tempo na análise.

Para Lacan (1953/1998, p. 314):

Testemunha que responde pela sinceridade do sujeito, depositário do processo verbal de seu discurso, referência de sua exatidão, garante de sua integridade, guardião de seu testamento, tabelião de seus codicilos, o analista participa do escriba.

Mas continua mestre e senhor da verdade da qual este discurso é o progresso. É ele, antes de mais nada, que pontua, como dissemos, sua dialética. E nisso ele é apreendido como juiz do mérito desse discurso.

Ocupar a função do analista implica então em realizar um trabalho no discurso. Um trabalho de pontuação do discurso do paciente que também passa pela vertente objetiva da duração das sessões. Lacan afirma, neste texto, que o corte das sessões deve servir e ser experimentado pelos sujeitos como pontuação. Desta forma, alterando o tempo objetivo da sessão, não o fixando cronologicamente, o analista também mexe com o tempo do sujeito, antecipando o momento de concluir.

 

3. Considerações finais

As dificuldades próprias à compreensão do sentido original empregado por Freud quanto ao termo trabalho nos permitem realizar precisões importantes quanto à articulação com o trabalho envolvido na análise e apontar quem trabalha. Verificamos que o termo elaboração é traduzido de forma confusa, sendo utilizado em contextos e sentidos originalmente diferentes.

De um lado, a palavra "elaborar" é utilizada, consoante ao modelo hidráulico do aparelho anímico, para referir-se ao processamento psíquico que envolve a organização dos estímulos, que intervêm no aparelho psíquico. De outro, "elaborar" adquire o sentido de um trabalho que necessita de um tempo específico e possui uma direção. Em ambos os casos, Freud utilizou palavras diferentes, apesar da tradução!

Apesar de Lacan, neste momento de seu ensino, considerar a noção de discurso como equivalente à fala (Quinet, 2000) e não correspondendo ao que futuramente designará como laço social, o psicanalista francês nos dá as balizas do que podemos encontrar no trabalho analítico. O discurso é o campo do trabalho analítico.

Ademais, podemos ainda realizar uma pequena distinção quanto ao que chamamos de trabalho analítico. Percebemos que Freud e Lacan deixam claro que o trabalho a ser realizado é um trabalho objetivo, demorado, possui uma direção e resistências específicas. Ambos os parceiros da análise participam deste trabalho de formas diferentes, mas não separadas. Assim, o trabalho analítico desdobra-se em trabalho analisante e trabalho do analista.

O trabalho analisante consiste em produzir os significantes da sua história na tentativa dar consistência ao seu eu. Todavia, pela estrutura mesmo do discurso, este trabalho se mostra frustrante e a disjunção entre o eu do enunciado e o eu da enunciação torna-se sempre presente, graças ao recalque. É a diminuição dessa distância entre aquilo que o sujeito diz e aquilo que queria dizer, é a tomada de sua história por parte do sujeito que representa um dos resultados do trabalho analisante.

Os termos trabalho analisante (ao invés de trabalho do analisante) implica que o analisante, a partir do trabalho do analista, do trabalho no discurso através das pontuações, escansões, interpretações e interrupções, elaborará (Durcharbeitung) psiquicamente o que surge no processo analítico.

Percebemos, por fim, que este modo de compreender o trabalho realizado entre o analista e o sujeito nos dá elementos para futuramente, seguindo as lições de Lacan, investigar o lugar do trabalho nas fórmulas dos quatro discursos elaboradas no seminário sobre o Avesso da Psicanálise (1969-70/1992). Ali, o discurso é compreendido como laço social e é desdobrado em quatro lugares: o da verdade, o do agente, o do trabalho e o do produto. Os quatro discursos apontados por Lacan neste seminário implicam, portanto, quatro modos de compreensão do trabalho e seu produto a partir das conceituações psicanalíticas. Cabe ainda nos perguntar qual a relação que este modo de compreensão do lugar do trabalho nos laços sociais mantém com o que Freud enunciou sobre o trabalho. Todavia, esta é uma investigação ainda por vir.

 

Referências

Braunstein, N. A. (1987). Psiquiatría, teoría del sujeto, psicoanálisis (hacia Lacan) (6a ed). Mexico: Siglo Veintiuno.         [ Links ]

Dejours, C., & Abdoucheli, E. (1994). Desejo ou motivação? A interrogação psicanalítica do trabalho. In C. Dejours, E. Abdoucheli, & C. Jayet, (Orgs.), Psicodinâmica do trabalho: Contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho (pp. 33-43). São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Freud, S. (1974). Sobre o narcisismo: Uma introdução (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1987a). A interpretação dos sonhos (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vols. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1900).         [ Links ]

Freud, S. (1987b). Recordar, repetir e elaborar: Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1990a). O futuro de uma ilusão (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1927).         [ Links ]

Freud, S. (1990b). O mal-estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1930 [1929]).         [ Links ]

Furtado, L. A. R. (2005). Pela via do sintoma: Da atividade laboral ao trabalho psíquico. Fortaleza: Dissertação de mestrado não publicada, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.         [ Links ]

Hans, L. A. (1996). Dicionário de alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lacan, J. (1986). O seminário: Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar (Originalmente publicado 1953-1954).         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O seminário: Livro 17: O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar (Originalmente publicado em 1969-1970).         [ Links ]

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Quinet, A. (2000). As estruturas clínicas no campo do gozo. Seminário apresentado para o Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte. Não publicado.         [ Links ]

 

 

Recebido em 4 de julho de 2007
Aceito em 10 de dezembro de 2007
Revisado em 17 de dezembro de 2007

 

 

Notas

1. Freud não empregou o termo Arbeitung isoladamente, pois ele vem sempre acompanhado pelos prefixos: "ver" (Verarbeitung), "durch" (Durcharbeitung) ou "be" (Bearbeitung), os quais lhe dão sentidos diferentes.
2. Preferimos aqui respeitar a utilização do termo ego na tradução para o português do seminário e do escrito de Lacan em questão.
3. Verificamos aqui a estreita relação com a dialética do senhor e do escravo citada anteriormente no contexto do seminário de 1953-54.

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