SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue1O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicosNascimento psíquico e contemporaneidade: implicações metapsicológicas nos modos de estruturação subjetiva author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.1 Fortaleza Mar. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

A modernidade líquida: o sujeito e a interface com o fantasma

 

Liquid modernity: the subject and the interface with the phantom

 

 

Fabio Elias Verdiani TfouniI; Nilce da SilvaII

IDoutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista - Araraquara. Pós-doutorando no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas. Bolsista da FAPESP. End.: R. Maria Octávia P. Villa, 71. Ribeirão Preto, SP. CEP: 14021-047. E-mail: fabiotfouni@hotmail.com
IICientista Social. Professora Doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Coordenadora do grupo de pesquisa, ensino e extensão "Estudo das populações migrantes no Brasil e no mundo: o papel da instituição escolar". Editora do periódico eletrônico "Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa". End.: R. Antonieta Leitão, 209, apt. 12, Freguesia do Ó. São Paulo, SP. CEP: 02925-160. E-mail: nilce@usp.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta as principais características da modernidade líquida que, segundo Z. Bauman (2005, 2001, 2000, 1998) são desapego, provisoriedade e acelerado processo da individualização; tempo de liberdade, ao mesmo tempo, de insegurança. Tal contexto pode ser definido pela palavra alemã Unsicherheit que significa: falta de segurança, de certeza e de garantia. Tem a cidade de São Paulo como exemplo deste tipo de sociedade. Notamos uma crise do estatuto do real nesse período, ou ainda, um abalo no conceito de real e do que seria esse real. Neste contexto, talvez possamos dizer que a realidade é o real com toque de fantasia; é o real sem o choque do real. Dito de outro modo, afirmamos e destacamos que o mal-estar atravessa a subjetividade humana, ou melhor, a relação do sujeito com seu próprio desejo, e com os objetos que podem preenchê-lo. Sendo assim, apontamos a constituição da fantasia para não nos depararmos com o real das megalópoles, de sua injunção à velocidade e à mobilidade. Esta fantasia pode fornecer ao sujeito alguma segurança em uma época tão insegura. Neste sentido a fantasia pode ser ideológica no sentido de que nos impede de ver o todo do real desta nossa época. Do nosso ponto de vista, a busca do real, nesses tempos, dar-se-ia com o questionamento da fantasia e com a tentativa de compreender qual o sentido dessa velocidade no capitalismo. O sujeito tenta preencher seu desejo, todavia, o desejo é por definição não-preenchível. Neste contexto o capital, no lugar do Outro pode tomar para si o papel daquele que preenche os desejos humanos. Concluímos que existe uma ligação entre o desejo e o assujeitamento do sujeito ao outro, e que a dificuldade encontrada na relação do sujeito com o real pode ser tratada tanto no sentido ideológico tradicional, como através do fetichismo.

Palavras-chave: modernidade líquida, subjetividade, fetichismo, realidade, ideologia.


ABSTRACT

This work presents the main characteristics of liquid modernity, according to Z. Bauman (2005, 2001, 2000, 1998) which are detachment, provisionality, and a speeded process of individualization; at the same time, a moment of liberty and insecurity. This context can be defined by the german word Unsicherheit, which means: lack of security, of certainty and of guarantee. The article has São Paulo city as an example of this kind of society. In this sense, we affirm that the status of the real and of reality is problematic in this time, and this is part of the discontents of post-modernity. Reality is here treated as the real with a touch of fantasy, so it is the real without the shock of what would be the subject's confrontation with the real. We claim that the discontents constitutes human subjectivity, and also the subject's relation with his own desire and with the objects that can fulfill this desire. The subject needs a fantasy not to be in direct contact with the real, in this case, the big cities and their injunction to speed and mobility. This fantasy may offer some security to the subject in such insecure times. In this line, fantasy may be an ideological fantasy which stops us from seeing the whole real of our time. The search for the real can be done by questioning the social fantasy and attempting to understand the meaning of speed in capitalism. We know that the subject tries to fill in the hole of desire, with by definition can never be fulfilled. So, in this context, the Capital may take for it's self the ideological role of fulfilling the human desire. Also the difficulty which is found in the relationship between the subject and the real can be delt with in an ideological approach, as well as through fetishism.

Keywords: liquid modernity, subjectivity, fetishism, reality, ideology.


 

 

Introdução

As principais características da modernidade líquida, segundo Z. Bauman (2005, 2001, 2000, 1998) são desapego, provisoriedade e acelerado processo da individualização; tempo de liberdade, ao mesmo tempo, de insegurança. Tal contexto pode ser definido pela palavra alemã Unsicherheit que significa: falta de segurança, de certeza e de garantia.

A cidade de São Paulo é um exemplo desta situação. Tem 1.525 quilômetros quadrados - é a maior cidade brasileira e da América do Sul e a quarta maior cidade do planeta. De acordo com Rogério Lorenzoni, repórter Terra, (2006), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que a mesma tem 10,5 milhões de habitantes. Desta forma, abriga mais de 5% do povo brasileiro.

Conforme Lorenzoni (2006), segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), de cada quatro veículos que circulavam em 1997 no Brasil, um estava na capital paulista. Isto porque o transporte público é ineficiente. A cidade tem uma frota de cerca de cinco milhões de carros (licenciados) e uma circulação diária de aproximadamente três milhões de veículos. A malha viária total da cidade é de aproximadamente 14 mil quilômetros (dá para ir de Porto Alegre a Natal 3,5 vezes) e os motoristas paulistanos podem atravessar mais de 55 mil cruzamentos. Em 2000, segundo o Departamento de Trânsito (Detran), 5.155 pessoas morreram em acidentes de trânsito na cidade.

Frente a estes dados, conclui-se que os habitantes desta cidade vivem numa prisão cotidiana dentro dos seus carros. O fluxo de veículos é desordenado e caótico. Além disto, tendo em vista o dinamismo da cidade e suas intensas relações sócio-econômicas: Todos têm pressa e precisam chegar logo! Decorrente desta necessidade de rapidez, uma das conseqüências observadas é um trânsito extremamente agressivo e perigoso.

Destacamos ainda que, de acordo com a matéria de Lorenzoni (2006), tal metrópole tem mais de 50 shopping centers e 30 ruas de comércio especializado. Hoje, São Paulo responde por 20% das vendas de varejo e por 9,2% dos pontos de vendas de todo o Brasil.

Com relação ao lazer, Lorenzoni (2006) destaca as 265 salas de cinema, 92 teatros, mais de 70 museus, 11 centros culturais, além de salas de exposição e centenas de danceterias e barzinhos. São Paulo é conhecida como a "Capital Mundial da Gastronomia" já que tem cerca de 12,5 mil restaurantes e 15 mil bares, cifras maiores do que as de Paris, por exemplo.

É, basicamente, o Turismo de Negócios que movimenta 90 mil eventos por ano na cidade, com 15 milhões de participantes da referida matéria jornalística que grifamos a seguir: Ocorre um evento a cada seis minutos na capital paulista. Assim, das 170 feiras organizadas por ano em todo o Brasil, 107 são realizadas em São Paulo. Para receber tanta gente, há 50 mil vagas nos hotéis.

Outro indicador importante destacado por Lorenzoni (2006) vem da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) de São Paulo, que é a sexta do mundo em volume de contratos negociados, com lances médios diários de US$ 1,8 bilhão.

Sempre na direção da fluidez e rapidez, tendo em vista as transações comerciais aqui apontadas, o consumir ganha enorme importância para os seus habitantes, permitindo que a mão invisível do mercado atue no sentido de transformar os luxos de hoje em necessidades do amanhã. Assim, na "Terra da Garoa", cada um dos seus habitantes, cada consumidor vive em estado de auto-exame minucioso, auto-recriminação e autodepreciação permanentes, e assim também com ansiedade contínua, já que consumir em um mercado de ininterruptas novidades - inclusive simbólicas, tais como: cursos, palestras, seminários, oficinas, congressos etc - torna-se, praticamente, uma tarefa sobre-humana.

Este artigo pretende discutir como se dá a relação "sujeito" e "desejo" na cidade de São Paulo e/ou em locais que possuem características semelhantes a esta. Na medida em que, do nosso ponto de vista, a mobilidade aparece na modernidade como elemento que visa ultrapassar valores conservadores e antiquados, para estabelecer uma nova ordem, um futuro melhor. Assim, o movimento e a velocidade de movimento se tornam fundamentais na substituição da velha ordem pela nova ordem. E é nesse contexto que surgem as vanguardas modernas, a liderar esse movimento cultural.

Esse movimento - que antigamente era um desejo moderno - torna-se uma obrigação nos dias atuais. Nem chegamos a pensar em "por que mudar", somente sabemos que o movimento, a atualização são fundamentais para que o sujeito tente evitar ficar para trás, e até mesmo evitar "ser excluído". Se na modernidade a mobilidade e a velocidade eram desejadas, na pós-modernidade esse desejo se transforma em obrigação, se transforma, praticamente, no mínimo exigido para permanecer vivo. Assim, o que na modernidade era parte de um projeto de felicidade libertadora do homem, se transforma numa obrigação carregada de angústia e mal-estar.

O consumo rápido e voraz se transforma numa obrigação. Seguir a mão invisível do mercado se torna obrigatório para que o sujeito seja reconhecido social e culturalmente como pertencente ao grupo dos vivos. Com isso, o sujeito sente que ele mesmo "nunca é bom o suficiente". Assim, paradoxalmente, quanto mais o desejo social é o de um preenchimento, mais o sujeito sente o mal-estar do vazio, um vazio que para nós é constitutivo do sujeito e seu desejo. Provavelmente o problema seja a maneira cultural que nossa sociedade encontrou para lidar com essa falta constitutiva.

 

A modernidade líquida: definição

"Modernidade líquida" é conceito desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman e, para fins deste artigo, recorremos a várias de suas obras na tentativa de apresentar os principais aspectos da sociedade atual que, apreendidos pelo citado autor, o fizeram elaborar a respectiva definição para os dias em que vivemos.

Segundo Bauman (2001), as inúmeras esferas da sociedade contemporânea (vida pública, vida privada, relacionamentos humanos) passam por uma série de transformações cujas conseqüências esgarçam o tecido social. Tais alterações, de acordo com o sociólogo polonês, faz com que as instituições sociais percam a solidez e se liquefaçam, tornando-se amorfas, paradoxalmente, como os líquidos. A modernidade líquida, assim, é tempo do desapego, provisoriedade e do processo da individualização; tempo de liberdade ao mesmo tempo em que é o da insegurança. Como resposta a esta possibilidade de liberdade (Bauman, 1998, 2000, 2001), os homens deste tempo, no anonimato das metrópoles, têm a sensação de impotência sem precedentes, já que, no anseio por esta liberdade, os mesmos encontram-se por sua própria conta e risco em meio ao concreto. A responsabilidade é deixada às energias individuais, favorecendo a solução biográfica das contradições sistêmicas. Desta forma, como todos estão sem tempo, e preocupados com inúmeras atividades assumidas, poucos são aqueles que têm tempo e disponibilidade para dar o ombro amigo para o próximo; o vizinho é um desconhecido.

Neste contexto, o relacionamento eu-outro é mercantilizado e frágeis laços de afeto têm a possibilidade de serem desfeitos frente a qualquer desagrado das partes. E, deste modo, "O interesse público é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados" (2001, p. 46).

Bauman nos mostra que a "modernidade líquida" é um tempo em que a violência, o terrorismo e o individualismo são exacerbados, instalados em não-lugares, em "terras-de-ninguém".

Deste modo, as cidades do século XXI, nas palavras do sociólogo, são cidades na modernidade líquida, pois, nesta época atual da história de parte da humanidade.

Os fluidos se movem facilmente. Eles 'fluem', 'escorrem', 'esvaem-se', 'respingam', 'transbordam', 'vazam', 'inundam', 'borrifam', 'pingam', são 'filtrados', 'destilados'; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho... Associamos 'leveza' ou 'ausência de peso' à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos (Bauman, 2001, p. 8).

Em Vidas Desperdiçadas (2005), o autor que sustenta nossas afirmações faz-nos pensar acerca da existência de seres humanos que teriam o status de lixo nesta modernidade líquida da qual tratamos anteriormente. Dito de outro modo, a descartabilidade é característica dos seres humanos e das relações que estabelecem, obedecendo à máxima da sociedade em que estamos inseridos: o consumir.

Assim, na perspectiva de Bauman, o sujeito da modernidade líquida se constitui por inúmeros mal-estares, sentimentos de aflição, insegurança, depressão, ansiedade; já que são permanentemente ameaçados pela possibilidade de se tornarem supérfluos: lixo. E, portanto, terem suas vidas desperdiçadas antes mesmo de nascerem.

Neste contexto, passamos a vida em busca da segurança, de estratégias de defesa eficazes, fugindo do "lixo humano" - excluídos do consumo - e com medo de sermos os próximos a serem lançados no aterro já que, parafraseando o sociólogo: a cada refugo seu depósito de lixo. Ou seja, a nossa cultura é a do lixo, do descartável imediatamente, sem causar grandes transtornos.

Sempre na direção da fluidez e rapidez, tendo em vista as transações comerciais aqui apontadas, o consumir ganha enorme importância para os seus habitantes, permitindo que a mão invisível do mercado atue no sentido de transformar os luxos de hoje em necessidades do amanhã.

No reino do consumo, apesar da riqueza que flui, muitos são os miseráveis, aqueles que vivem do lixo. Além disto, o trabalho não é mais um porto seguro, nem fundamento da vida em sociedade, sobretudo o trabalho da imensa massa dos menos favorecidos economicamente.

Para Bauman (2001, p. 174-175), estes homens e mulheres que compõem o substrato social do movimento operário

[...] tendem a ser as partes mais dispensáveis, disponíveis e trocáveis do sistema econômico. Em seus requisitos de empregos não constam habilidades particulares, nem a arte da integração social com clientes - e assim, os mais fáceis de substituir têm poucas qualidades especiais que poderiam inspirar seus empregados a desejar mantê-los a todo o custo; controlam, se tanto, apenas parte residual do poder de barganha. Sabem que são dispensáveis, e por isso não vêem razões para aderir ou se comprometer com seu trabalho ou entrar numa associação mais durável com seus companheiros e trabalho. Para evitar frustração iminente, tendem a desconfiar de qualquer lealdade em relação ao local de trabalho e relutam em inscrever seus próprios planos de vida em um futuro projetado para a empresa. É uma reação natural à "flexibilidade" do mercado no trabalho, que, quando traduzida na experiência individual da vida, significa que a segurança de longo prazo é a última coisa que se aprende a associar ao trabalho que se realiza.

Como conseqüência desta liquidez desmedida, o tempo desta cidade é do fim da era do engajamento mútuo: todos estão ocupados o tempo todo. A agenda está cheia, especialmente para aqueles que, no momento, não podem oferecer alguma espécie de vantagem. Para os "indesejados", oferece-se toda espécie de resposta vinda de um aparelho eletrônico. Estas máquinas, portanto, colaboram para que o descompromisso entre as pessoas seja uma norma: assim, a secretária eletrônica ligada, o correio eletrônico "que não funciona bem", o "computador que pegou vírus", a caixa postal do celular são barreiras colocadas entre nós e aqueles que não queremos atender.

Todos participam de muitos projetos ao mesmo tempo e não observamos, salvo cada vez menos raríssimas exceções, o nascimento e muito menos o crescimento de fortes vínculos entre as pessoas que se acotovelam na megalópole.

Do ponto de vista aqui adotado, as relações humanas na "Selva de Pedra" têm os seguintes aspectos: a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de arcar com os custos (Bauman, 2001, p. 18).

Deste modo, a procrastinação - considerada há pouco tempo como demonstração de displicência, indolência ou lassidão - torna-se posição ativa e, portanto, proposital. A identidade de palimpsesto encontra terreno fértil para sua constituição:

Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da inalterada câmara da atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda a vida, exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma incessante auto-obliteração" (Bauman, 1998, p. 36-37).

Assim também, as questões públicas perdem espaço para a discussão, pois:

[...] o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas; ou, colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente de discernir e apontar o que é público nos problemas privados (2000, p.10).

E por isso, temos questões apenas tratadas em público, o que não significam que sejam públicas.

A chance para mudar isso depende da ágora - esse espaço nem privado nem público, porém mais precisamente público e privado ao mesmo tempo. Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo significativo.

O meio de vida, essa rocha em que se devem assentar todos os projetos de vida para serem viáveis, fazer sentido e reunir a energia necessária para se realizarem (ou, pelo menos, tentarem isso), tornou-se inseguro, errático e não-confiável. O que os advogados dos programas de 'bem-estar para trabalhar' deixam de considerar é que a função do meio de vida não é apenas garantir o sustento diário para os empregados e seus dependentes, mas - e não menos importante - dar segurança existencial sem a qual nem a liberdade nem a vontade de auto-afirmação são concebíveis e que é o ponto de partida de toda a autonomia.

O trabalho, no seu formato atual, não pode dar essa segurança, mesmo se consegue repetidamente cobrir os gastos com a sobrevivência. A estrada que parte do bem-estar para o trabalho leva da segurança à insegurança ou de uma menor para uma maior insegurança (Bauman, 2000).

 

O sujeito e o mal-estar do desejo

Aqui, vamos tratar da relação entre produções culturais pós-modernas, o desejo do sujeito, o real e a realidade. O desejo cultural pós-moderno parece ser constituído pela busca de um hiper-real, uma fantasia mais interessante que o real. O mergulho no hiper real aponta para uma perda do real. Provavelmente, sufocado no excesso de fantasia, ele busca ou deseja um retorno ao real, mas acaba por descobrir que não pode conhecer o real - a verdade, a plenitude - na medida em que este conhecimento levaria à morte. Assim, o sujeito deseja o real, mas ao mesmo tempo em que sabe que precisa fugir dele.

De acordo com Freud (1995) o sujeito foge da outra categoria, ou seja, da realidade quando o preço a se pagar para estar nela é alto demais. Podemos dizer o sujeito, ao buscar o real encontra um mal-estar, e nesse movimento acaba por usar a realidade como um anteparo contra o mal-estar e a morte do real. O real defende o sujeito da realidade, e a realidade defende o sujeito do real. Aqui temos um nó entre real, realidade e fantasia. E ainda, o real pode ser o real do desejo, ou seja, o que o sujeito realmente deseja, mas pode ser também o real do mundo, aqui, que existe e é inacessível por ser atravessado pelo simbólico.

Existe uma dificuldade no tratamento do real na medida em que muitos julgam que o real e a realidade seriam a mesma coisa, mas não são. Freud (1995) afirma que, na constituição do sujeito de maneira saudável, o desejo deve ser contido pelo que ele chama de princípio da realidade. Ou seja: o sujeito deveria se guiar pelas regras sociais e por uma razão lógica, uma espécie de "cientificismo" na medida em que a realidade supostamente obedece a princípios físicos e racionais.

Assim, a noção de sujeito adotada aqui é de um sujeito psicanalítico, tal como concebido por Lacan em suas leituras de Freud, a saber, o sujeito do inconsciente. A existência do inconsciente relaciona-se aqui ao que escapa à consciência, consistindo no não saber. Esse sujeito é diferente do sujeito moderno, centrado, concebido como um sujeito de conhecimento.

Nesta direção, na perspectiva deste artigo, talvez possamos dizer que a realidade é o real com um toque de fantasia; é o real sem o choque do real. E assim, se estar no o real é o lugar do "tudo saber", e isso leva o sujeito à morte, notamos que, do tudo, o sujeito passaria para o nada. Dialeticamente, a verdade do tudo é o nada. Dito de outro modo, afirmamos e destacamos que o mal-estar atravessa a subjetividade humana, ou melhor, a relação do sujeito com seu próprio desejo, e com os objetos que podem preenchê-lo.

Além disso, a problemática do real externo possui uma ligação com a do real interno, sendo que a primeira se constitui na questão de se o real, o mundo existe, ou se não passa de uma fantasia. A segunda se refere a qual objeto do mundo tem, ou supõe-se que tem, com o real do sujeito. Há mal-estar na dificuldade de determinar se o mundo corresponde a algum real. Há também mal-estar na dificuldade em determinar se o objeto seria o objeto de desejo, e na escolha desse objeto.

Portanto, na busca do real, quando o sujeito se aproxima demais desse real, o sujeito se afasta com medo do absoluto da morte. Então, tanto a busca do real como o encontro desse real, trazem sofrimento. O objetivo do sujeito é evitar o sofrimento e, para tanto, usa a realidade como fantasia que barra o sofrimento do real, ao mesmo tempo critica o sofrimento da realidade e busca o real, busca sua verdade.

Ao relacionarmos o conceito de modernidade líquida com o caráter fluido do desejo, vemos que, se o sujeito encontrar a verdade de seu desejo, tanto o sujeito que antes se movia liquidamente, como seu desejo, se cristalizam diante do fim da necessidade do movimento. Essa cristalização seria o fim do desejo, o desvendamento deste seria, portanto, a morte. O sujeito precisa manter-se em movimento e, para tanto, foge do real do desejo. Assim, a solução para o desejo não chega nunca, na verdade, talvez chegue apenas com a morte.

No entanto, esse momento de solução que não chega nunca também traz angústia, o sujeito se cansa do dia-a-dia desta nossa fantasia social. Mais do que isso, o princípio de realidade deseja um rompimento contra a atitude conservadora do dia-a-dia, que é pouco líquido, no qual pouca coisa parece acontecer. Ou seja, a repetição de atividades causa mal-estar, talvez, na mesma medida em que o excesso de movimento.

A realidade no sentido de mundo desprovido de fantasia e gozo pode ser frustrante, entretanto, temos que considerar a reflexão proposta por Zizek (1992): "Por que acordamos do sonho? Acordamos por chegarmos perto demais do desejo real". Dito de outro modo, afirmamos que acordar do sonho mostra que encontramos na realidade algum conforto diante do insuportável do desejo real.

Como exemplo das tentativas culturais de manejar o desejo nas grandes cidades, podemos citar o comentário de Bauman (2005) sobre Ítalo Calvino: "Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia - outra das cidades invisíveis de Ítalo Calvino - diriam que sua paixão é 'desfrutar de coisas novas e diferentes'" (2005, p. 07). Bauman salienta o fato de que, no fim do dia, essas coisas novas aguardam o caminhão de lixo, ou seja, são descartadas. Desse modo, a cidade acaba rodeada por montanhas de lixo que os habitantes teimam em não enxergar.

Essa busca incessante de nossa cultura por novidades para, em todos os momentos, preencher o vazio, é carregada de angústia e mal-estar. A cidade precisa do movimento, sendo ela, portanto, constituída pelo movimento. A cidade vive a chegada das novidades como uma enxurrada que se vai no mesmo instante em que chega. As coisas que supostamente preenchem, no instante mesmo em que realizam esse preenchimento já não servem mais, e viram lixo. Isso é o que pode ocorrer quando nada preenche o vazio. O preenchimento é um engodo.

Ocorre certa inversão do desejo para evitar sofrimento: desejamos o que não desejamos, e não desejamos o que desejamos (isto constitui o paradoxo do desejo).

Nesta direção, afirmamos que há um paradoxo fundamental na estrutura do desejo que não pode ser visto por meio de uma visão simplificadora da questão em termos de real/ hiper-real. Ou seja, não desejamos uma fantasia hiper-real em detrimento do real. A realidade é a própria fantasia. Ou seja, por trás da realidade percebida há um real não simbolizado.

Exemplo deste paradoxo pode ser encontrado na recontagem crítica das narrativas mestras tal qual o filme Shrek (Zizek, 2003b) que faz humor e desconstrói a narrativa tradicional dos contos de fadas. O desejo cultural seria realmente o de criticar os ideais de civilização desses contos, ou, na verdade, através de um simulacro de desconstrução, que acabaria por reafirmar, reforçar os ideais mesmo que estamos criticando? Vê-se que por trás da critica à realidade pode se esconder o desejo por aquilo mesmo que é criticado.

De acordo com o referido autor (1999a) e Lukács (2003), o fetichismo é uma das características principais do capitalismo contemporâneo. Do nosso ponto de vista, a sociedade contemporânea passa por um momento fetichista. O fetichismo se formula lingüisticamente pelo desmentido fetichista.

Para Zizek (1999a), o sujeito fetichista tem uma lógica cínica em relação ao desejo, ou seja, o fetichista sabe que não é aquele o alvo real do seu desejo, mas, mesmo assim, ele o deseja. Como afirma Zizek, a máxima do fetichista é "Sei que mamãe não tem o falo, mas ainda assim... [acredito que o tem]" (1999a p.303). O sujeito pode criticar a realidade, mas acaba concordando cinicamente em viver nela, como se dissesse: "sei que o mundo não é bom, mas, ainda assim, acredito que seja". E, do nosso ponto de vista, é essa lógica cínica que está contida em Shrek.

Se o desejo é desejo puro, pura pulsão (Safatle, 2003), o sujeito busca algo, mas não sabe o que é esse algo. Assim, o desejo é puro movimento, pura busca. Em uma época líquida, o desejo também é líquido. Além disso, um dos modos que nossa cultura possui para definir o que é o sujeito é através de seu desejo, nesse sentido o sujeito é o que ele deseja. No entanto, como o desejo é vazio, é desejo puro, o sujeito busca realizar um preenchimento que, além de suprir esse desejo, também dê a esse sujeito o reconhecimento que precisa. Nesse sentido, temos aqui presente uma questão do desejo de reconhecimento de Hegel (Kojeve, 2002).

A relação entre sonho e realidade é estreita. Já no século XVI, em Descartes (1988, p. 24), que, ao colocar um gênio maligno pensando por nós, faz com que duvidemos da nossa própria experiência de realidade. A relação disso com o vazio da modernidade líquida está no fato de que as relações sociais são puro espectro de supostas relações sociais reais, ou seja: no dia-a-dia não somos nós mesmos, mas representamos a nós mesmos.

A relação sexual é tida em geral como aquilo que completa o homem, sendo um ato no qual dois se tornam um. Em termos psicanalíticos, a fórmula lacaniana segundo a qual "não existe relação sexual" é adequada aqui, pois ela significa que, na verdade, não existem relações entre pessoas, pois somos apenas espectros. Não existe portanto completude entre sujeitos, isso pode significar que a relação não é com o outro real, mas com um outro virtual, um espectro. Em termos mais pós-modernos, afirmamos que as relações entre pessoas já são, na origem, relações virtuais, e, sendo virtuais, são carregadas do mal-estar que acompanha a difícil questão do estatuto do real e da realidade no momento atual. Lacan comenta o amor e a relação sexual: "O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos... A relação dos quem? - dois sexos?" (Lacan, J. 1985, p.14).

O filme Matrix coloca em cena pessoas vivendo na realidade virtual, mas coloca também que existe uma realidade real. A realidade virtual é vivida na mente, de modo que pode ser comparada, num certo sentido, à ideologia. A ideologia seria uma realidade virtual, no sentido de que, de certo modo, a ideologia está "em nossa cabeça".

Nesta discussão, outro ponto que deve ser destacado, trata da condicional: se o desejo é desejo puro, não é preenchido por nada, o preenchimento desse desejo poderia ser de responsabilidade do Estado, do Capital, enfim, de algum Outro que assujeite nosso desejo, o que torna nosso desejo o desejo do Outro. O Outro fornece ao sujeito uma fantasia (estruturada como linguagem, isto é, simbolizada, narrativizada), para que o sujeito goze-no-sentido, e o Outro goze com o gozo do sujeito. Zizek3:

A tese de Frederic Jameson sobre o pós-modernismo, segundo a qual nesta época o capitalismo coloniza os últimos refúgios excluídos do seu circuito, é trazida aqui às ultimas conclusões: a fusão entre capital e conhecimento faz surgir um novo tipo de proletário, como se fosse o proletário absoluto desprovido dos seus últimos bolsos de resistência privada; tudo, inclusive as memórias mais intimas, é plantado, de modo que o que resta é agora literalmente o vazio da pura subjetividade sem substância (subjetividade sem substância, definição de Marx do proletário) (1993a, p. 10).

Como conseqüência, não se pode falar em real e hiper-real sem falar no Outro. O Outro é o simbólico que estrutura nossa realidade (como já dissemos). Em continuação, é nele que reside a nossa alienação constitutiva (Zizek, 2003a), esse grande Outro no qual nos alienamos é, em "Matrix", o supercomputador que controla tudo, criando a realidade virtual. Estamos sempre em busca do real por trás da realidade, numa busca infindável carregada de mal-estar. No entanto o furo do real no simbólico indica que o desejo é puro desejo, é vazio. Indica, portanto, que o real desejo é o nada. Diz Zizek3:

Entretanto, o real não é a 'verdadeira realidade' por trás da simulação virtual, mas o vazio que torna a realidade incompleta ou inconsistente; e a função de toda matriz simbólica é esconder essa inconsistência... justamente afirmando que por trás da realidade incompleta/inconsistente que conhecemos, há outra realidade sem o impasse da impossibilidade (2003a. p. 264-5).

Neste sentido, questionamos: Por que existe gozo-no-sentido (gozo ideológico)? Uma das respostas consideradas indica que o grande Outro se alimenta do nosso assujeitamento, do nosso gozo ideológico, ou seja, do nosso gozo-no-sentido (da nossa jouissance). Esse Outro que nos assujeita pode ser encarado como a Matrix. Comenta Zizek:

A única resposta consistente é que a Matriz se alimenta da jouissance dos seres humanos - portanto estamos de volta à tese lacaniana fundamental de que o próprio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, precisa do constante influxo de "jouissance". É assim que devemos inverter o estado das coisas apresentado pelo filme. O que esse filme mostra como a cena de nosso despertar para a verdadeira situação é efetivamente o seu oposto, a própria fantasia fundamental que sustenta nosso ser (2003a. p.281).

No mundo capitalista, afirmar que a Matrix se alimenta de nossa jouissance pode significar que alguém goza com nosso gozo. Goza com o que produzimos, e também goza com o que consumimos. A existência de nosso gozo, ou de um excedente de gozo está a serviço do gozo do capital. Essa posição pode gerar alguma segurança e conforto, mas gera também o mal-estar.

Assim, como dissemos anteriormente, a crítica à narrativa mestra, não é uma crítica por inteiro: Ali mesmo onde está criticando, o sujeito assume uma posição cínica e, em filmes como "Shrek" encontra uma fórmula perversa que permite que ele critique, e, ao mesmo tempo, permaneça gozando sob o assujeitamento ideológico (gozo-no-sentido).

A fórmula seria: "sei que isto não é o real, mas, ainda assim, acredito que seja". Se quisermos enfatizar o caráter cínico desse sujeito que critica o que vê, mas que, mesmo assim, aceita e goza nesse lugar, poderíamos dizer que a fórmula seria: "sei que isso não é o real, mas, finjo que é" ou "ajo como se fosse". Assim a fórmula fetichista que critica as narrativas mestras é: "sei que há furo do real (ou furo na matrix), mas, mesmo assim, finjo que não há."

No filme Matrix, a questão colocada é a de se o mundo existe ou se ele seria uma fantasia implantada pelo Outro, fantasia essa que tampona o furo do real no simbólico, com a finalidade de realizar a manutenção desse Outro. É nesse sentido que fazemos uma comparação do Outro com o gênio maligno cartesiano. A perversidade desse Outro (desse gênio) reside no fato de que ele goza com nosso gozo.

O objetivo aqui não é cair numa discussão filosófica sobre a existência do universo. Mas, podemos tratar a filosofia como parte dos discursos da nossa cultura sobre o universo, parte das explicações que visam tamponar o furo real. Ou seja, trata-se de evitar essa questão que causa mal-estar. Neste caso, Descartes, que viu a dificuldade de obter alguma garantia dessa existência, acaba por atribuir a existência do universo a Deus, pois um sujeito perfeito e bom que conhece verdade não enganaria o homem. Já Segundo Zizek (1993b), Kant teria ido mais longe ao fazer colocações que implicam na não existência do universo5. Afirma Zizek: "... Uma fissura que previne que nós sequer imaginemos o universo como uma totalidade. A sexualidade aponta para o escândalo ontológico supremo da não existência do universo" (1993b, p.83).

A questão de se existe universo ou não está diretamente ligada à da sexualidade. Esta poderia ser uma das leituras possíveis do axioma "não existe relação sexual", que aqui significa que a sexualidade está relacionada a uma disjunção do sujeito com o universo. Nesta linha, a partir do momento em que o sujeito simbolicamente estruturado busca algo que o complete, ele não pode deixar de enfrentar o mal-estar gerado pelo fato de que nada preenche esse desejo. O correspondente ideológico disso é que nenhuma fantasia pode fantasiar o todo. No entanto, não é possível não fantasiar. Nesse sentido, não é só o vazio do desejo que é constitutivo, mas nossa necessidade de fantasia.

Uma das denúncias de Zizek nesse campo vai em direção a uma crítica a um suposto "sujeito virtual". Atualmente fala-se no virtual como se ele existisse na história apenas a partir do momento em que vivemos atualmente: a era do computador, onde o sujeito se vê imerso, joga online e até faz sexo virtual. A radicalização da tese de que "não existe relação sexual" nos leva o afirmar que todo sexo é virtual, que o sexo é, nesse sentido, sempre fantasmático e espectral. Esse é um dos sentidos em que o filme Matrix ilustra a sociedade, não apenas a atual, mas a que sempre foi assombrada pelo outro, pelo gênio maligno cartesiano.

Há quem postule que nossa sociedade é a sociedade da interface. Nessa linha, quando estivermos imersos na rede da Matrix, o virtual vai substituir o real. Temos um início desse processo no Windows, onde jogar fora um texto ou aplicativo é colocá-lo no ícone do lixo; portanto, haveria uma passagem para uma vivência icônica, fantasmagórica, em substituição à simbólica (supondo que seja possível a experiência humana fora do simbólico). Vale lembrar que há diferenças na interface entre pequeno outro e pequeno outro, e a imersão do sujeito no grande Outro.

Portanto, como afirma Zizek (1999b), há que se ter cuidado com a crítica à ideologia, pois se em geral a ideologia é vista apenas como o vilão que distorce nossa visão do real, a fantasia de um suposto fim da ideologia (da possibilidade de um acesso ao real nu e cru) é ela mesma ideológica.

 

Considerações finais

Nas regiões do mundo que se encontram na fase do capitalismo breve - muito bem estudado pelo sociólogo polonês Z. Bauman (1998, 2000, 2001) - existem muitíssimas possibilidades, ao mesmo tempo, para todos. Em outras palavras, São Paulo é cidade da "(super) ponte aérea"; do motoboy; do MSN; do skype; dos E-mails; da web; do delivery. Aqui, a relação do sujeito com o desejo tem suas características específicas.

Como resposta a esta possibilidade de liberdade, os moradores, no anonimato da megalópole, têm a sensação de impotência sem precedentes, já que, no anseio por esta liberdade, os mesmos encontram-se por sua própria conta e risco em meio ao concreto. A responsabilidade é deixada às energias individuais, favorecendo a solução biográfica das contradições sistêmicas. Desta forma, como todos estão sem tempo e preocupados com inúmeras atividades assumidas, poucos são aqueles que têm tempo e disponibilidade para dar o ombro amigo para o próximo; o vizinho é um desconhecido.

Frente a estes dados que demonstram o grande fluxo da cidade em diferentes domínios (carros, pessoas, transações, acertos, encontros, conhecimento, negócio, dentre outros), podemos afirmar que São Paulo é nitidamente uma cidade do século XXI, ou ainda, nas palavras de Z. Bauman (2001, p. 8), "uma cidade na modernidade líquida, pois, nesta época atual da história de parte da humanidade".

No reino do consumo, apesar da riqueza que flui, muitos são os miseráveis, aqueles que vivem do lixo. Além disto, o trabalho não é mais um porto seguro, nem fundamento da vida em sociedade, sobretudo o trabalho da imensa massa dos menos favorecidos economicamente.

Em seus requisitos de empregos não constam habilidades particulares, nem a arte da integração social com clientes - e assim, os mais fáceis de substituir têm poucas qualidades especiais que poderiam inspirar seus empregadores a desejar mantê-los a todo o custo; controlam, se tanto, apenas parte residual do poder de barganha. Sabem que são dispensáveis, e por isso não vêem razões para aderir ou se comprometer com seu trabalho ou entrar numa associação mais durável com seus companheiros de trabalho. Para evitar frustração iminente, tendem a desconfiar de qualquer lealdade em relação ao local de trabalho e relutam em inscrever seus próprios planos de vida em um futuro projetado para a empresa. É uma reação natural à "flexibilidade" do mercado no trabalho, que, quando traduzida na experiência individual da vida, significa que a segurança de longo prazo é a última coisa que se aprende a associar ao trabalho que se realiza.

Como conseqüência desta liquidez desmedida, o tempo desta cidade é do fim da era do engajamento mútuo: todos estão ocupados o tempo todo. A agenda está cheia, especialmente para aqueles que, no momento, não podem oferecer alguma espécie de vantagem. Para os "indesejados", oferece-se toda espécie de resposta vinda de um aparelho eletrônico. Estas máquinas, portanto, colaboram para que o descompromisso entre as pessoas seja uma norma: assim, a secretária eletrônica ligada, o correio eletrônico "que não funciona bem", o "computador que pegou vírus", a caixa postal do celular são barreiras colocadas entre nós e aqueles que não queremos atender. Todos participam de muitos projetos ao mesmo tempo e não observamos, salvo cada vez menos raríssimas exceções, o nascimento e muito menos o crescimento de fortes vínculos entre as pessoas que se acotovelam na megalópole.

Do ponto de vista aqui adotado, as relações humanas na "Selva de Pedra" têm os seguintes aspectos: a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados corolários de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas conseqüências de tudo, bem como com a necessidade de arcar com os custos (Bauman, 2001).

Assim também, as questões públicas perdem espaço para a discussão, pois

[...] o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas; ou colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente de discernir e apontar o que é público nos problemas privados (Bauman, 2000, p.10).

E por isso, temos questões apenas tratadas em público, o que não significam que sejam públicas.

Diante da crise do estatuto do real, a idéia de que o desejo é desejo em si mesmo, é desejo puro da "pulsão", pura tendência a desejar, pode ser explorada no sentido de que o sujeito busca saber qual o objeto real do seu desejo. No entanto, esse objeto real não existe em si mesmo. Segue-se que a tarefa de preencher esse desejo com algo (com algum objeto ou pensamento) é ideológica. A necessidade de dar um sentido ao desejo pode ser uma resposta para a questão discursiva da injunção à interpretação. Existe a necessidade de que o universo faça sentido para o sujeito, daí, que a ilusão sobre o universo pode ser uma ilusão discursiva.

O preenchimento do desejo puro é realizado pelo Capital, na medida em que este oferece e impõe produtos a desejar. Nesse sentido, quando o sujeito afirma que deseja algo, quando ele nomeia o desejo, pode estar julgando que aquele objeto é sua verdade, sua verdade interna. Nesse momento, o sujeito reduziria seu eu a um objeto. Esta pode ser a forma da reificação do sujeito no Capitalismo tardio. Essa nomeação do desejo só pode ser uma "mentira", uma fantasia implantada pelo capital. O sujeito fantasia com um universo que não existe como anteparo frente à crise do real. Essa fantasia é constitutiva do sujeito no sentido de que no dia-a-dia ele precisa supor que algum universo existe.

Baseados no pensamento de Bauman, afirmamos que necessitamos de uma fantasia para não nos depararmos com o real das megalópoles, de sua injunção à velocidade e à mobilidade. Nossa leitura de Bauman vai na direção de afirmar junto com esse autor (como já foi citado), que essa fantasia pode fornecer ao sujeito alguma segurança em uma época tão insegura. Nesse sentido a fantasia pode ser ideológica no sentido de que nos impede de ver o todo do real desta nossa época. Acreditamos que a busca do real, nesses tempos, poderia se dar com o questionamento da fantasia, e com a tentativa de compreender qual o sentido dessa velocidade no capitalismo. Caso não possamos consumir rapidamente nem correr para nos mantermos atualizados, seremos excluídos: quem lucra com a exclusão do outro?

 

Referências

Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bauman, Z.(2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bauman, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Carreira, A. F. (s.d.)). Autoria e fantasia: Cons(c)ertando a realidade insatisfatória. Manuscrito não publicado.         [ Links ]

Descartes, R. (1988). Meditações: Meditação segunda (Os Pensadores, Vol. 2). São Paulo: Nova Cultural.         [ Links ]

Freud, S. (1995). A perda da realidade na neurose e na psicose (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. 19, 2a ed.). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1924).         [ Links ]

Gerbase, J (1987). Fantasia ou fantasma. Falo: Revista Brasileira do Campo Freudiano, 1, 45-50.         [ Links ]

Hutcheon, L. (1994). Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Jameson, F. (2002). Pós-modernismo: Lógica cultural do capitalismo tardio (2a ed.) São Paulo: Ática.         [ Links ]

Kojeve, A. (2002). Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 20: Mais ainda (2a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Lorenzoni, R. A maior cidade da América do Sul. Recuperado em 10 agosto 2006 da http://sp450anos.terra.com.br/interna/0,,OI236169-EI2551,00.html         [ Links ]

Luckács, G. (2003). História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Safatle. V. (2003). O ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano. In V. Safatle (Org.), Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise (pp. 189-232). São Paulo: Unesp.         [ Links ]

Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Zizek, S.(1993a). Cogito: The void called subject. In Tarrying with the negative: Kant, Hegel and the critique of ideology (pp. 9-44). Durham, NC: Duke University Press.         [ Links ]

Zizek, S.(1993b). On radical evil and related matters. In Tarrying with the negative: Kant, Hegel and the critique of ideology. Durham, NC: Duke University Press.         [ Links ]

Zizek, S.(1999a). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (pp. 297-331). Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Zizek, S. (1999b). Introdução: O espectro da ideologia. In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (7-38). Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

Zizek, S.(2003a). Matrix: Ou os dois lados da perversão. In W. Irwin (Org.), Matrix (259-283). São Paulo: Madras.         [ Links ]

Zizek, S.(2003b). Bem vindo ao deserto do real: Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

 

 

Recebido em 2 de outubro de 2007
Aceito em 28 de janeiro de 2008
Revisado em 11 de fevereiro de 2008

 

 

Notas

1. Utilizamos aqui os termos "fantasma" e "fantasia" de maneira intercambiável e um tanto quanto como sinônimos, seguindo Gerbase (1987) e Carreira (a sair).
2. Os trabalhos de pesquisa deste grupo contam com apoio do CNPq e da FAPESP.
3. A tradução desse trecho foi feita pelos autores, sendo que o original é: "It is as Frederic Jameson's thesis on postmodernism as the epoch in which Capital colonizes the last resorts excluded from its circuit is here brought to its hyperbolic conclusion: the fusion of capital and knowledge brings about a new type of proletarian, as it were the absolute proletarian bereft of the last pockets of private resistance; everything, up to the most intimate memories, is planted, so that what remains is now literally the void of pure substanceless subjectivity (substanzlose Subjektivitaet-Marx's definition of the proletarian)".
4. Se chegássemos a ver a verdade, veríamos que o "tudo" da verdade é, em essência, o nada.
5. A tradução desse trecho foi feita pelos autores, sendo que o original é: "...a certain crack which prevents us from even consistently imagining the universe as a whole. Sexuality points toward the supreme ontological scandal of the nonexistence of the universe"

Creative Commons License