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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.1 Fortaleza Mar. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Psicanálise e biopolítica: considerações a partir da análise de Birman sobre Foucault

 

Psychoanalysis and biopolitic: considerations about Foucault’s analysis on Birman’s perspective

 

 

Marcus César Ricci Teshainer

Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP. Mestre em Sociologia pela PUC/SP. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP. End.: R. Arthur Sabóia, 441. São Paulo, SP. CEP: 04104-060. E-mail: ideafix@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir o comentário de Birman sobre a obra "História da sexualidade v. 1: a vontade de saber", de Michel Foucault, mais especificamente sobre o/ conceito de biopolítica e sua relação com a psicanálise. Após uma apresentação inicial dos/ argumentos de Birman relativos ao tema em questão, é abordada a pertinência de cada um deles na própria obra de Michel Foucault; em seguida, discute-se a idéia apresentada por Birman, o que conduz à confirmação de parte de sua/ análise e à proposta de uma ampliação de sua leitura sobre a relação da/ biopolítica com a psicanálise.

Palavras-chave: Foucault, psicanálise, biopolítica, poder, subjetividade.


ABSTRACT

This paper intends to discuss the Birman's analysis on the Michel Foucault's work "The history of sexuality: An introduction", specifically on the concept of biopolitic and its relation with psychoanalysis. Initially, the Birman's position on the mentioned concept is presented. After/ this, each point of his position is examined and, finally, his ideas are discussed, what/ it/ leds to the confirmation of part of Birman's analysis and to a proposal of the/ enlargement of his consideration about the relation between biopolitic and psychoanalysis.

Keywords: Foucault, psychoanalysis, biopolitic, power, subjectivity.


 

 

A relação entre psicanálise e biopolítica é tema bastante polêmico, já que Foucault nunca deu uma resposta definitiva sobre o assunto, nem em seus textos, livros ou cursos, nem em entrevistas. Muitos autores discutem a esse respeito, dentre eles o afamado psicanalista Joel Birman, em seu livro Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise (2000).

Segundo Birman, existem três pontos pelos quais é possível sustentar a afirmação de que a psicanálise é um dispositivo da biopolítica: em primeiro lugar, seria a pretensão desta em ser uma ciência sexual; o segundo refere-se à hipótese repressiva do sexo; e o terceiro, à/ semelhança da psicanálise com a confissão católica.

Birman afirma que Foucault inscreve a psicanálise nos dispositivos do biopoder em História/ da/ sexualidade: a vontade de saber e fundamenta tal afirmação dizendo que a/ psicanálise tinha a pretensão de ser uma ciência sexual e não uma arte erótica (Birman, 2000, p. 66). No/ próprio texto, antes desta afirmação, com relação a Foucault, Birman diz que a/ psicanálise é/ "uma das disciplinas cruciais para os dispositivos do biopoder" (ibid, p. 65).

Esse autor considera ainda que Foucault, ao questionar a pertinência de uma/ hipótese que afirma a repressão do sexo (hipótese repressiva), encontra essa hipótese na/ psicanálise, já que "o desejo se ordenaria sempre pelo imperativo da lei" (ibid., p. 67). Em/ outras palavras, seria uma ilusão acreditar que "a psicanálise teria tido a virtude de resgatar o/ desejo aprisionado e de lhe dar positividade na constituição do sujeito" (ibid., p. 67), pois o/ que houve de fato, no século XIX, não foi uma repressão do sexo, mas, nas palavras de Birman, "uma tagarelice": ao ordenar o desejo pelo imperativo da lei, ao contrário, a psicanálise estava afirmando a hipótese repressiva.

Outro ponto importante da análise que Birman faz de Foucault é o que se refere à/ semelhança do dispositivo da confissão católica com a prática psicanalítica: tais práticas vinculariam culpa e penitência, ocupando posições estratégicas no dispositivo da sexualidade (p./ 68).

Mezan (1985, p. 94-125) já alertou sobre o caráter paradoxal das idéias de/ Foucault, que se utiliza de um jogo de linguagem de ir e vir, comparando-o a Sherlock Holmes, que convida o leitor a correr atrás de pistas. Quando Foucault afirma algo, mais adiante afirma uma outra possibilidade sobre a mesma questão, às vezes contrariando o que já havia dito. Assim, ele deve ser interpretado não apenas por suas afirmações - das quais tiraríamos enunciados do tipo "é A e não é B" -, mas também deve ser lido pelo movimento de sua análise - que nos remete a enunciados do tipo "é A, e além disso B".

A seguir, analisaremos os três pontos mencionados que sustentam a idéia defendida por Birman - de que a psicanálise é um instrumento da biopolítica -, levando em consideração alguns aspectos que merecem ser lembrados na leitura do livro História da sexualidade: a/ vontade de saber, de Foucault, no que tange à sua crítica à psicanálise. Recorreremos também aos cursos que ministrou no Collège de France e a alguns de seus textos avulsos.

 

1 - Os pontos da afirmação de Birman

1.1 - A Scientia Sexualis

Foucault apresenta dois aspectos com relação ao discurso sobre sexo: em primeiro lugar, deve-se admitir que este se multiplicou em vez de ter rareado; além disso, houve a/ nomeação e a descrição das sexualidades desviantes, através de discursos que pregavam proibições.

De tanto se falar em sexo e das mais diversas maneiras, poder-se-ia desconfiar que se pretendeu mascará-lo e que todo discurso produzido até Freud tentava ocultar o que realmente se tinha a dizer a seu respeito: todos os procedimentos, as prudências, os rituais e/ os/ locais para falar sobre sexo objetivavam desviar da verdade que poderia ser revelada. Assim, utilizava-se de uma certa neutralidade, obtida através de um discurso científico - que, na impossibilidade de tratar da verdade do sexo, ocupava-se de suas dissociações, perversões, extravagâncias etc.

Esse discurso científico atrelava-se a imperativos morais que sustentavam as/ normas médicas. Estas, por sua vez, no intuito de dizer a verdade, prescreviam cuidados, condenavam hábitos e localizavam discrepâncias, alertando para perigos em toda parte, com/ o/ objetivo de "assegurar o vigor físico e a pureza moral do corpo social" (Foucault,/ 2001,/ p./ 54).

Ao longo do século XIX, o sexo foi tratado por dois campos distintos do saber: "a/ fisiologia da reprodução e a medicina da sexualidade" (ibid., p. 56): o primeiro segue uma normatividade científica, enquanto que o segundo tem sua racionalidade confusa, por seguir regras de origens diversas. Tem-se, assim, um desnivelamento entre eles: se um contempla uma vontade de saber própria do discurso científico, o outro opõe-se a um discurso racional sobre o/ sexo humano e impede a produção da verdade em seu interior, caracterizando uma vontade de/ não saber.

Assim, o discurso sobre sexo no século XIX foi marcado por uma recusa de se ver e ouvir que, na realidade, revela aquilo que se tenta esconder. Com pessoas específicas, capazes de revelar a verdade, definiram-se exames e modos de observação como formas de dizê-la. Em/ vez de dificultar o acesso à verdade, essa especificação apresentava uma incitação pública que respondia a uma vontade de verdade marcada pela hierarquia médica que criava uma "pirâmide/ de observação e de prontuários" (ibid., p. 56).

Construiu-se em torno do sexo um aparato para revelar a verdade e, no último momento, ocultá-la novamente " seguindo a mesma lógica de Charcot, que promovia uma crise histérica em uma paciente e, quando a sua manifestação atingia a plenitude, ele a tirava das vistas do público: o sexo tornou-se objeto de um jogo, e revelar a sua verdade constituiu-se como uma "coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida" (ibid., p. 56).

Nesse jogo de verdade e falsidade, o importante não era considerar o limiar de uma nova racionalidade sobre o sexo, trazida pelas investigações de Freud, mas a "formação/ progressiva" (ibid., p. 56) desse mesmo jogo, do qual ainda hoje não nos libertamos.

No esforço de atingir a verdade do sexo, segundo Foucault, a história apresentou dois procedimentos, a ars erotica e a scientia sexualis: o primeiro desenvolveu-se majoritariamente nas sociedades orientais, nas quais a verdade é extraída diretamente da experiência do prazer - não se funda numa lei ou normalidade, mas nos resultados que o prazer traz ao corpo e à alma; com o intuito de ampliar os efeitos do prazer, o saber sobre o sexo é/ detido por um mestre como um segredo, a ser revelado aos seus discípulos, que devem ser iniciados numa prática e segui-la com afinco para, assim, conhecerem seus benefícios. Já a civilização ocidental moderna, à primeira vista, não possui ars erotica, mas uma scientia sexualis, baseada na confissão, entendida esta como forma de poder-saber para dizer a verdade do sexo.

Foucault nos faz notar que há uma disparidade entre a ars erotica e a scientia sexualis, não só nos modos de obter a verdade, mas também nas questões geográficas e/ históricas. Poder-se-ia perguntar se realmente não há relação entre uma e outra, se de fato não há uma ars erotica no Ocidente moderno. Segundo Foucault, a ars erotica não esteve completamente ausente na produção de uma ciência do sexual: "existiu, na confissão cristã, e/ sobretudo na direção espiritual e no exame de consciência, na procura da união espiritual e do amor de Deus, toda uma série de procedimentos que se aparentam com uma arte erótica" (ibid.,/ p. 69).

Pelas orientações de um mestre, o catolicismo da Contra-Reforma estimulou ou atentou para as manifestações transcendentais no corpo do fiel. Os fenômenos de possessão e êxtase são efeitos "incontroláveis que extravasaram essa técnica erótica imanente à sutil ciência da carne" (ibid. p. 69). Da mesma forma, a scientia sexualis e algumas de suas dimensões na produção da verdade talvez tenham alimentado uma maior busca pelos prazeres individuais, ou, pelo menos, inventado um novo prazer: o de saber investigar, buscar, cercar, observar a verdade, "prazer específico do discurso verdadeiro sobre o prazer" (ibid., p. 70). Neste ponto, "na multiplicação e intensificação dos prazeres ligadas à produção da verdade sobre o sexo" (ibid., p. 70), temos uma dimensão da scientia sexualis que funciona como uma ars erotica.

Sem dúvida, todos os produtos criados a partir de uma scientia sexualis trazem algum prazer em seu uso: podemos citar como exemplos a leitura de livros; a prática do exame (tanto examinar, quanto ser examinado); a realização das narrativas de si; o descobrimento e o/ contato com as próprias fantasias secretas (contá-las a quem sabe ouvi-las, interpretá-las e/ revelar sua verdade); no Ocidente, temos "um prazer na análise" (ibid., p. 70) - tudo isso são fragmentos de uma arte erótica numa ciência do sexo.

1.2 - A hipótese repressiva

Para Foucault, tanto a concepção de um poder que reprime o sexo, quanto aquela que insere a lei como constitutiva do desejo fundam-se em um modelo jurídico pouco criativo, que coloca limites, enuncia a lei e exige a obediência. Com isso, ele está dizendo que ambas continuam a funcionar através de um modelo jurídico de poder, apesar de os psicanalistas fundarem seu conceito de repressão não como proibição, mas na articulação entre desejo e/ poder - a lei como constituinte do desejo.

Assim sendo, os psicanalistas1, ao negarem a repressão do sexo, estão se referindo a um conceito baseado na interdição e na proibição: o que eles propõem, na verdade, é uma nova forma de entender o conceito de repressão, mantendo o caráter jurídico de poder.

Entender o poder por meio de um caráter jurídico significa dizer que o seu exercício baseia-se na forma do direito, no qual estão em jogo os problemas "do direito e da violência, da lei e da ilegalidade, da vontade e da liberdade e, sobretudo, do Estado e da soberania" (Foucault, 2001, p. 86).

No entanto, esse poder funciona através de novos procedimentos: "não pelo direito, mas pela técnica; não pela lei, mas pela normalização; não pelo castigo, mas pelo controle; e/ que se exercem em níveis e formas que extravasam do Estado e de seus aparelhos" (ibid.,/ p./ 86).

Para Foucault, as análises contemporâneas fixam-se na representação jurídica das relações entre poder e sexo ao se perguntarem pelo lugar do desejo, da lei e do poder e de suas possíveis coincidências. Nelas, o desejo é concebido relativamente a um poder que enuncia a lei e, de acordo com elas, seria necessário "construir uma analítica do poder que não tome mais o/ direito como modelo e código" (ibid., p. 87).

A crítica que Foucault tece aos psicanalistas nesse ponto refere-se a uma analítica do poder fixada no modelo jurídico, que se pergunta ainda sobre o lugar da lei e do desejo. Não/ basta negar a repressão do sexo como fizeram antes: o ponto que Foucault considera em sua análise é "pensar o sexo sem a lei e o poder sem o rei" (ibid., p. 87), para, a partir daí, entender que não houve uma repressão, mas uma incitação que levou à formação de um saber sobre sexo, em termos de poder.

Foucault não entende poder como instituição, nem como modo de sujeição. Em/ outras palavras: deve-se ter claro que ele não concebe o poder como um sistema de dominação insidiosa a ser exercido por um indivíduo ou um grupo e sim como uma correlação de forças que, de forma dinâmica, modifica-se, transforma-se e constrói ou desfaz cadeias ou sistemas.

1.3 - A confissão

A produção de verdade apresenta diferenças marcantes se compararmos as culturas dos dois hemisférios: no Oriente, a verdade é obtida pela transmissão didática de um mestre a/ um discípulo; no Ocidente, por sua vez, a confissão é um instrumento privilegiado, de forma que a verdade não é revelada hierarquicamente de cima para baixo, mas, ao contrário, de baixo para cima - do confessor ao ouvinte.

Outra diferença é o fato de que, no Ocidente, o ouvinte é o detentor do poder, e/ o/ discurso confessado surte efeito não em quem o escuta, mas em quem o pronuncia: enunciar/ a confissão traz modificações intrínsecas naquele que a enuncia " "inocenta-o, resgata o, purifica o, livra o de suas faltas, libera o, promete lhe a salvação" (ibid., p. 61).

Desde a Idade Média, a confissão vem ganhando importância ao longo do tempo como instrumento de produção da verdade nas sociedades ocidentais: deixou de ser um procedimento unicamente religioso e penetrou em outras instâncias, como a justiça criminal. Desenvolveram-se métodos de interrogação e inquérito, colocando a confissão como um ponto central "na ordem dos poderes civis e religiosos" (ibid., p. 58), de modo que ela difundiu-se largamente "na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, nas esferas mais cotidianas e nos ritos mais solenes" (ibid., p. 59).

Tudo se tornou material de confissão, os mínimos atos, os pecados, os pensamentos/ e desejos: "confessam-se passados e sonhos, confessa-se a infância" (ibid., p. 59). A confissão acontece nos mais diferentes lugares, através dos mais diversos meios e para os/ mais diferentes ouvintes " e, na inexistência de quem possa ouvir, produzem-se livros.

Tornou-se mesmo uma obrigação: incorporada de tal forma nas relações sociais, passou a ser reconhecida sempre como necessária à revelação da verdade por seu intermédio, de/ modo a impedir a percepção de que isso é resultado de um poder que nos coage.

Nesse contexto, o sexo torna-se o principal tema das confissões, pois acredita-se que é o que temos de mais oculto. Como vimos, essa colocação do sexo em discurso e a/ disseminação de suas disfunções são características de um mesmo dispositivo que obriga à/ confissão, a fim de obter-se uma "enunciação verídica da singularidade sexual" (ibid., p. 61). No Ocidente, através da confissão, a verdade ligou-se ao sexo na forma de uma "expressão obrigatória e exaustiva de um segredo individual" (ibid., p. 61).

A confissão apresenta basicamente duas características fundamentais: é um ritual de discurso no qual o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; e esse ritual se desenvolve através de uma relação de poder, pois para que haja a confissão é necessário alguém que a solicite e a ouça. As duas estão igualmente presentes na psicanálise - no divã, o sujeito, que associa livremente, fala de si e pronuncia sua fala a um analista que o ouve e interpreta.

Nascida como ritual cristão, mesmo com as transformações que sofre no decorrer da história, a confissão não deixa de ser um instrumento produtor de um discurso verdadeiro sobre sexo. Ao ser absorvida pela pedagogia no século XVIII e pela medicina no século XIX, perdeu sua característica de ritual e passou a ser utilizada nas mais diversas relações, por exemplo, entre "crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras, delinqüentes e/ peritos" (ibid., p. 62). Nesse processo, o conteúdo confessado também sofreu alteração. Não se trata mais somente de revelar o ato sexual, mas de reconstituí-lo em pensamentos, imagens, desejos: temos uma sociedade que se pôs a ouvir a "confidência dos prazeres individuais" (ibid.,/ p. 63).

Como resultado disso, foram produzidos registros sobre os prazeres, classificando os, catalogando-os e descrevendo as estranhezas e deficiências de cada um deles. A confissão passa a sustentar um discurso de verdade que não mais se articula apenas nos moldes da Igreja, seguindo a lógica do pecado, ganhando um novo aspecto " ela passa a ser feita por aquele que fala do corpo e da vida. Ou seja: com o objetivo de satisfazer a vontade de verdade relativa ao sexo, o Ocidente moderno fez com que os rituais de confissão funcionassem de acordo com um modelo de regularidade científica.

Foucault discrimina cinco maneiras como isso aconteceu (ibid., pp. 64-66):

1. "Através de uma codificação clínica do 'fazer falar'" " ou seja, através do exame e da narração de si, pela decifração de sintomas e sinais e também pelo "interrogatório cerrado, a hipnose com a evocação das lembranças, as associações livres" (ibid., p. 64) " procedimentos capazes de inserir a confissão num modelo científico aceitável; nessa citação de Foucault, pode se perceber uma sutil referência à psicanálise: a hipnose seria a sua "pré-história" e/ método fundante de sua substituta, a associação livre, que serve de base para Freud construir seu conhecimento clínico.

2. "Através do postulado de uma causalidade geral e difusa" - baseia-se na idéia de que a distorção da conduta sexual pode causar conseqüências em toda existência, isto é, o sexo seria a causa de todas as doenças e distúrbios; assim, com a confissão total, meticulosa e/ constante dos desejos sexuais seria possível identificar e desmanchar a rede de causalidade dos sintomas.

3. "Através do princípio de uma latência intrínseca à sexualidade" - dada a/ natureza obscura do sexo, sua verdade tende normalmente a escapar, a se ocultar, e precisa ser arrancada; essa característica "permite articular a coerção de uma confissão difícil a uma prática científica" (ibid., p. 65).

4. "Através do método da interpretação" - o que é dito ou sugerido durante uma confissão necessita de uma decifração por parte de quem a ouve, pois a verdade não se mostra pronta e evidente - temos aí uma função hermenêutica; a revelação da verdade é uma tarefa a/ ser realizada em conjunto entre aquele que fala e aquele que ouve: é assim que "o sexo confessado se constitui (...) em matéria a ser interpretada" (Fonseca, 1995, p. 91); segundo Chaves, "a interpretação é a modalidade científica da confissão, uma maquinaria de poder, um/ mecanismo de subjetivação e uma das formas mais insidiosas de manutenção do poder" (Chaves, 1988,/ p. 121).

5. "Através da medicalização dos efeitos da confissão" - esse procedimento justifica a obtenção da confissão por seu caráter terapêutico: o sexo não é mais só causa do pecado e objeto da culpa, mas é também causa das patologias; a confissão, portanto, torna-se necessária para as intervenções médicas e indispensável para a cura. "A verdade cura quando dita a tempo, quando dita a quem é devido e por quem é, ao mesmo tempo, seu detentor e/ responsável" (Foucault, 2001, p. 66).

Desse modo, percebe-se que, em um sentido inverso ao Oriente e sua ars erotica, o/ Ocidente desenvolveu uma scientia sexualis a fim de produzir um discurso verdadeiro sobre sexo. A confissão foi determinada como o meio para obtê-lo e, a partir do século XIX, sai do domínio da Igreja Católica, no qual constituiu-se no século XVI, para penetrar e/ instrumentalizar um discurso científico. Nasce, assim, um dispositivo que insere a confissão nos métodos de escuta clínica pelo qual a sexualidade pôde aparecer "enquanto verdade do sexo e dos seus prazeres" (id., p. 67).

Mezan afirma que, na realidade, há uma diferença conceitual entre o que Foucault e a psicanálise entendem por sexualidade. Em primeiro lugar, porque a psicanálise não propõe uma sexoterapia verbal calcada na confissão, mas sim uma análise do inconsciente e da transferência. A diferença fundamental, porém, é que para Foucault a sexualidade articula-se com o corpo, enquanto que para a psicanálise não. Ainda, a psicanálise "tematiza uma psico sexualidade, e para isto trabalha com a noção de inconsciente" (Mezan, 1985, p. 118).

 

2 - Perspectivas da relação entre psicanálise e biopolítica

Retomando a questão que norteia este artigo, devemos perguntar em quais aspectos a psicanálise está a serviço da biopolítica e em quais não.

Seria conveniente, ainda que de forma sucinta2, recorrer a algumas idéias presentes em História da sexualidade v.1 - A vontade de saber e a alguns textos que foram produzidos no período em que Foucault esteve no Collège de France - período esse que corresponde aos quase dez anos que se interpõem entre a publicação do primeiro e do segundo volume da/ História da Sexualidade.

Na passagem do século XVIII para o XIX, Foucault localiza uma separação na/ medicina, uma que se volta ao sexo e outra ao corpo, que representam duas grandes inovações: o aparecimento de uma permitiu a criação de um domínio médico-psicológico das perversões - que nada mais é do que uma certa "ortopedia" (Mezan, 1985, p. 111) do sexo; ao/ mesmo tempo, no campo da hereditariedade, nasce a "posição de 'responsabilidade biológica' com relação à espécie" (Foucault, 2001, p. 112), ou seja, um problema de eugenia, que se articula na teoria da degenerescência - se a origem de uma perversão fosse investigada, ela seria localizada em alguma doença hereditária de algum antepassado do/ perverso.

Foucault (2003, p. 220) afirma que a degenerescência foi definida por Morel antes do evolucionismo. Chama-se de degenerado uma criança sobre a qual pesam, a título de estigmas ou de marcas, os restos da loucura de seus pais ou de seus ascendentes. Esta tendência se relaciona com qualquer efeito da anomalia produzida sobre as crianças por seus pais. A/ degenerescência é a predisposição à anomalia que, na criança, irá tornar possível a loucura do adulto, é a marca da loucura dos seus ascendentes, em forma de anomalia.

Formou-se um sistema "perversão-hereditariedade-degenerescência" que pautou as/ práticas da "psiquiatria, mais a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias de controle social, a vigilância das crianças perigosas, ou em perigo" (id., 2001, p. 112), criando uma prática social coerente com o racismo.

O advento da psicanálise rompe com a lógica da degenerescência e recupera o/ projeto de uma medicina dos instintos sexuais distante das teorias da hereditariedade e que liberta a medicina dos racismos e eugenismos. Foucault afirma que do final do século XIX até a/ década de 1940, a psicanálise, dentre as tecnologias do sexo, foi a única medicalização do sexo que se opôs "aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência" (ibid., p 113).

Segundo Foucault (2003, p. 221), o campo da psicanálise emerge diante de duas noções: a degenerescência e o instinto, ou seja, o destino familiar do instinto3. Para ele, a/ psicanálise começa a falar, trabalhando com estas duas noções e fazendo-as funcionar em conjunto. Propõe, ainda, que se pergunte sobre qual o sistema de trocas que se produz entre ascendentes e descendentes, crianças e pais, o que coloca em xeque a questão do instinto.

Para esse autor (ibid., p. 221), o princípio da generalização da noção de doença mental na psiquiatria fundamenta-se a partir da criança que o adulto foi. Para a psicanálise, esse princípio não se encontra no uso generalizado da noção de doença mental, mas no fracionamento prático do campo das anomalias. É precisamente nessa generalização, a partir da criança e da anomalia e não do adulto e da doença, que se forma o objeto da psicanálise.

Desde o século XVIII, a burguesia identifica o sexo com o seu próprio corpo, especificando-o e formando "um corpo 'de classe' com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça" (id., 2001, p. 117). A nobreza identificou-se com e lutou pela marca do sangue. Identificado com o corpo pela burguesia, o sexo teve o mesmo valor.

Os cuidados com o corpo, com a saúde, com a higiene e a preocupação em expandir o corpo em suas forças é que diferenciam a burguesia das tradicionais relações consangüíneas da nobreza. O cuidado com o sexo não era uma questão de mistura de castas, mas uma preocupação em produzir um corpo mais saudável, mais vigoroso; a preocupação era a/ produção de uma melhor força-trabalho. Esse cuidado de busca por um corpo perfeito tem valor político, econômico e histórico, e representa o presente e o futuro da própria burguesia.

A burguesia tinha como objetivo melhorar as descendências humanas, o que lhes daria motivo para justificar, através do corpo, um certo racismo. Era uma tentativa de garantir a/ sua força. Com essa apropriação do corpo e do sexo pela burguesia, ocorreu a generalização do/ dispositivo da sexualidade, que colocou o sexo e a sexualidade na lógica da lei.

A psicanálise, que implica lei e desejo, torna-se uma técnica para eliminar os/ efeitos patogênicos trazidos pelo rigor das repressões e vincula-se inteiramente ao dispositivo da sexualidade.

A lei do incesto é um exemplo de uma interdição da sexualidade que vale para para todo indivíduo, toda a sociedade. Na prática, a psicanálise tenta eliminar "os efeitos de recalque que a interdição pode induzir" (ibid., pp. 121-2), permitindo que o desejo incestuoso seja articulado em discurso, eliminando o recalque que o rigor da repressão traz e propiciando a cura dos problemas que as interdições provocam.

Portanto, a psicanálise desempenha importantes e diversos papéis no dispositivo da sexualidade, como afirma Foucault:

(...) é mecanismo de fixação da sexualidade sobre o sistema de aliança; coloca-se em posição adversa em relação à teoria da degenerescência; funciona como elemento diferenciador na tecnologia geral do sexo. Em torno dela, a grande exigência da confissão que se formara há tanto tempo, assume um novo sentido, o de uma injunção para eliminar o recalque (ibid., p. 123).

 

3 - Sexualidade e política

Esta análise agora seguirá entendendo a sexualidade como um modelo estratégico que se deve tratar em um campo político. Assim sendo, seria possível questionar sobre quais estratégias políticas o saber psicanalítico produz no seu discurso sobre a sexualidade, ou seja, entender a psicanálise dentro do contexto do dispositivo da sexualidade e como elemento articulador deste dispositivo com o dispositivo da aliança.

Outra questão seria compreender como esse saber ganha valor político na/ sociedade burguesa, como a psicanálise passa a ser entendida como técnica para eliminar os/ efeitos de uma suposta repressão. Em suma, as questões agora devem seguir dentro do contexto da biopolítica.

A partir deste momento, pretende-se pautar a leitura feita neste contexto e propor uma questão que permita entender a sexualidade como incitada em discursos que envolvam estratégias políticas e que têm a psicanálise como um possível elemento articulador.

Faz-se necessário apresentar o panorama que envolve o conceito de biopolítica para que seja formulada uma problemática coerente com a análise apresentada até agora. A/ constituição do corpo social é perpassada por múltiplas relações de poder, que têm seu funcionamento associado à produção e à circulação do discurso entendido como verdadeiro. Desta forma, para que haja exercício de poder, é necessária uma economia de discursos verdadeiros. Assim, o exercício de poder dá-se mediante a produção da verdade. No corpo social deve-se dizer, confessar e encontrar a verdade. O poder é questionar, o que registrar, "institucionalizar a busca da verdade" (Foucault, 1999, p. 29). Tem-se então que produzir a/ verdade e se submeter a ela, no sentido de que a verdade é a norma.

Tendo a verdade como norma, o que deve ser analisado são os procedimentos de sujeição postos em prática por ciências como o direito ou a psicanálise, ou seja, ciências que fazem circular uma economia de discursos verdadeiros vinculados à produção de normalidade. Trata-se, portanto, de entender o poder em suas extremidades, isto é, onde ele se torna capilar:

Tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em conseqüências, mais além dessas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentos. (ibid., p. 32).

Desta forma, um dos primeiros efeitos do poder é identificar e constituir corpos, gestos, discursos e desejos como indivíduos. Portanto o indivíduo é efeito e intermeio de poder, que se distribui através dos corpos.

A análise que Foucault faz do poder não visa verificar como, a partir da ascensão burguesa, o louco passou a ser internado por não ser producente dentro da máquina capitalista, muito menos tal análise pretende justificar a instituição burguesa de uma repressão da sexualidade infantil por esta desviar a força de trabalho para o sexo.

Para Foucault, a análise que deve ser feita é a verificação de como, historicamente, os mecanismos de controle puderam produzir uma repressão da sexualidade infantil ou uma exclusão do louco, como, num nível celular, a exclusão ou a repressão, "seus instrumentos, sua lógica, corresponderam a um certo número de necessidades; mostrar quais foram os seus agentes" (ibid., p. 38) e verificar como esses mecanismos de poder começam a se tornar economicamente lucrativos e politicamente úteis. O ponto central de análise é comprovar como e por que os mecanismos de exclusão, a aparelhagem de vigilância, a medicalização da/ sexualidade, da loucura e da delinqüência, ou seja, a micromecânica do poder passou a/ interessar à burguesia a partir de um certo momento.

Na realidade, a burguesia não se interessa nem pelo louco nem pela sexualidade das crianças, mas pelo poder e pelos sistemas de poder que incidem e controlam os loucos e/ a/ sexualidade infantil. Esse exercício de poder é realizado pela formação, organização e/ circulação de aparelhos de saber.

Foucault chama a atenção para a desqualificação da morte, ocasionada pelo desuso dos rituais que resultam da biopolítica. Agamben (2002) também refere-se a este aspecto moderno dizendo que a morte do indivíduo moderno, na lógica da biopolítica, tem o mesmo valor da/ morte do homo sacer, figura do direito romano cuja morte não era ritualizada ou reclamada pelo direito público, ou seja, nenhum.

Duas concepções distintas marcaram o desenvolvimento da biopolítica no século XVIII, dividindo-o em duas metades: primeiramente, havia um foco no corpo - entendido como uma máquina -, que deveria ser adestrado através das disciplinas, que potencializariam e/ otimizariam as suas capacidades; já nas décadas seguintes, investiu-se no corpo-espécie, isto/ é, o corpo como lugar do desenvolvimento dos processos biológicos e dinâmicos dos seres vivos "/ "a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a/ longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar" (ibid., p. 131) -, o que gerou uma intervenção que visava regular e controlar a população. Tem-se, portanto, as disciplinas do/ corpo e as regulações da população como dois pólos de desenvolvimento da biopolítica.

Agamben acredita que o conceito de sexualidade nasce dentro de uma biopolítica, e/ mesmo que se construa um novo significado para esse conceito, oposto ao vigente, essa oposição nascerá atrelada aos alicerces da biopolítica (ibid., p. 193).

Nesse sentido, Foucault demonstra que o século XIX incitou o discurso sobre sexo através de um mascaramento, de uma proibição: era biopoliticamente correto falar de sexo em determinados lugares e contextos, por determinadas pessoas e de uma determinada forma. A partir disto pode-se posicionar Freud e a psicanálise dentro dos padrões biopolíticos. Freud está falando de sexo de uma forma e de um lugar autorizados. Até mesmo a perplexidade acerca de seu discurso é/ esperada. Ela garante o mascaramento de um discurso incitado politicamente, discurso desviante.

O desenvolvimento da biopolítica, que se refere diretamente à vida, aumenta a/ importância da norma, pois ao distribuir a população em torno dela, o trabalho de qualificação, mensuração, avaliação e hierarquização é facilitado.

Essa organização do sistema político em torno da norma faz com que a lei passe a/ funcionar como a própria norma, aproximando-a cada vez mais de aparelhos reguladores como as instituições médicas e administrativas. As leis escritas acabam sendo meios de tornar aceitável um poder normalizador. É nesse contexto que o sexo se torna um elemento importante no âmbito da biopolítica, pois articula-se entre dois eixos de uma tecnologia da vida: as/ disciplinas do corpo e a regulação das populações. O sexo é o meio pelo qual o investimento político pode acessar tanto a vida do corpo quanto a vida da espécie.

Por isso, para Foucault, o sexo e a sexualidade serão as formas mais importantes dos agenciamentos que constituem a tecnologia do poder porque, encontram-se inseridos os dois conjuntos de mecanismos neste dispositivo: o disciplinador e o regulador. De um lado, por ser um comportamento corporal, a sexualidade passa por um "controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente" (Foucault, 1999, p. 300). Por outro, por ser um processo biológico com efeitos procriadores, ela coloca uma questão diferente da incisão sobre o corpo do indivíduo, penetrando na constituição da população. "A sexualidade está exatamente na/ encruzilhada do corpo e da população" (ibid., p. 300).

A partir do século XIX institui-se uma idéia médica sobre a sexualidade, afirmando que, quando esta é irregular e indisciplinada, ocorrem duas ordens de efeito: uma recai sobre o/ corpo indisciplinado, que é "imediatamente punido por todas as doenças sexuais que o/ indivíduo atrai para si" (ibid., p. 301); e a outra recai sobre as populações, pois acredita-se que há uma hereditariedade dessa devassidão sexual, que será passada de geração a geração. Essas duas ordens de efeito constituem "a teoria da degenerescência" (ibid., p. 300). A medicina configura-se, assim, como um saber-poder que incide concomitantemente sobre o corpo e/ a/ população, sobre o organismo e os processos biológicos, tendo efeitos ao mesmo tempo reguladores e disciplinadores. É justamente por esta causa que nasce uma medicina da/ sexualidade no século XIX.

Para Foucault (2003, p. 88), através da psicanálise é possível analisar todas as/ instituições disciplinares, já que a psicologia, entendida como instituição, é responsável pelo controle dos dispositivos disciplinares. É a psicologia que devolve a soberania à família, como/ instância de verdade, a partir da qual pode-se descrever e definir todos os processos, positivos e/ negativos, que se passam nos dispositivos disciplinares. Ainda de acordo com o/ filósofo francês, a psicanálise é o mais familiar dentre todos os discursos psicológicos, e é isso que a faz funcionar como um discurso da verdade a partir do século XX.4

Agamben afirma que uma das características da biopolítica é definir continuamente um dentro e um fora. Na questão do racismo, esse tema é recorrente, existindo as raças que estão dentro e as que estão fora do sistema político. Na lógica biopolítica, "os organismos pertencem ao poder público: nacionaliza-se o corpo" (Agamben, 2002, p. 172).

Em um movimento contrário ao do racismo, Foucault afirma que a psicanálise desconfia dos mecanismos de poder que objetivam controlar e gerir o cotidiano da sexualidade, dando a ela a lei como princípio: "a lei da aliança, da consangüinidade interdita, do/ Pai Soberano, em suma, para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder" (Foucault, 2001, p. 141). Para ele, essa desconfiança é vista como uma honra política para a psicanálise.

Rajchman afirma que, para Foucault, a grandeza política de Freud foi ter rejeitado a idéia de degenerescência sexual, idéia essa que propõe uma continuidade de perturbações sexuais, que passa de geração a geração e é a causa de comportamentos sexuais inadequados. Freud usou a concepção de uma lei do desejo para opor-se a essa idéia, remetendo-se a antigas idéias de lei e soberania. "Em oposição à categoria de norma da sociedade, Freud reintroduziu uma teoria da Lei da Civilização e de seu mal-estar" (1993, p. 125).

 

4 - Reconsiderações: o discurso sobre sexo na psicanálise

Pelo percurso seguido até aqui, nota-se que por três séculos o homem valorizou a colocação do sexo em discurso e criou meios para tornar isso possível - dentre eles, a psicanálise.

Segundo a análise de Foucault, a confissão é o modo de se colocar a sexualidade em discurso para que o sintoma, que sempre é de origem sexual, seja expresso. Tudo torna-se matéria de confissão - "confessam-se passados e sonhos, confessa-se a infância" (2001, p. 58). O sexo, ou melhor, a sua confissão é o meio de revelar a verdade do sujeito.

Como conseqüência, o setting analítico é um lugar autorizado onde se fala livremente da sexualidade, e o analista é, do mesmo modo, autorizado a ouvir e interpretar essa confissão. No entanto, a colocação do sexo em discurso, que a psicanálise possibilita, não é suficiente para se afirmar que essa prática promove uma regulação da população e uma normalização do corpo sexual. A normalização pode ser entendida como a criação de um padrão de valores que funciona dentro de um regime do positivo ou do negativo, do tudo ou nada, obrigando o indivíduo a escolher sua posição. A normalização ordena e organiza as atividades humanas.

Essa normalização é definida por dois sistemas de regras que regem o sexo " "a lei da aliança e a ordem dos desejos" (ibid., p 40) " que fazem nascer duas qualidades de infrações: uma referente às leis do casamento e outra referente à regularidade de um funcionamento natural.

Segundo Foucault, a normalização possibilitou que se localizassem e se descrevessem as sexualidades periféricas, tornando-as objeto da medicina e questão da lei e da moral. Para isso, era necessária a criação de instituições de vigilância e correção, formando uma ortopedia social. "A polícia para vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção" (Foucault, 2002, p. 86).

Em um curso de 1975, publicado sob o título de "Os Anormais", também está presente uma questão que representa a psicanálise como normalização. Foucault menciona a/ importância do conceito de instinto na psiquiatria, pois em torno dele formar-se-ão questões relativas às patologias, à normalidade, à economia das patologias - questões sobre uma certa ortopedia dos instintos. Para Foucault, "o instinto será (...) o grande vetor do problema da anomalia" (2002b, p. 165).

Emolduradas pelo problema do instinto, duas grandes tecnologias irão desenvolver se. De um lado, a teoria eugênica com seus problemas de hereditariedade, "da/ purificação da raça e da correção do sistema instintivo dos homens por uma depuração da raça" (ibid., p. 167). De outro, a "tecnologia da correção e da normalização da economia dos instintos" (ibid., p. 167) - que seria a psicanálise.

Ainda, Foucault acredita que a emergência do problema dos instintos propiciou a/ criação de todo um vocabulário referente a eles - conceitos, explicações, perguntas e respostas ", que foram assimilados não só pela psiquiatria e medicina, mas também por parte do sistema jurídico, na tentativa de identificar e corrigir os indivíduos cujos instintos seriam patológicos ou agressivos à sociedade.

Este ponto é importante justamente porque relaciona a psicanálise ao sistema jurídico de correção. Quando alguém comete um crime, pergunta-se sobre o instinto que o levou a cometê-lo e, principalmente, se há condição ou não de corrigir e recuperar o criminoso. Aqui existe uma divergência entre Foucault e Rajchman, pois este não entende que haja nessa prática uma intenção normalizante ou corretiva.

De acordo com Foucault, as pessoas vão aos consultórios psicanalíticos revelar sua sexualidade e enunciar questões sobre ela porque há um apelo incessante nos meios de comunicação para que o indivíduo realize uma "revelação institucional e custosa de sua sexualidade ao psiquiatra, ao psicanalista e ao sexólogo" (Foucault, 2002b, p 215). Considerações como esta também colocam a psicanálise entre as diversas formas científica e/ economicamente codificadas de revelação da sexualidade existentes atualmente.

Para Foucault, a psicanálise é um instrumento para produzir e ritualizar um/ discurso sobre o sexo e a sexualidade. A psicanálise ativa o mecanismo da enunciação, o qual diz que sobre a sexualidade deve-se "(...) enunciar tudo, mas só deve enunciar em certas condições, no âmbito de certo ritual e a certa pessoa bem determinada" (ibid., p. 257). A/ psicanálise é aqui entendida como um mecanismo de regulação dos discursos, o que a liga a um poder de incitação discursiva.

Outro ponto que conecta a psicanálise ao poder remete-nos ao que Foucault chama de teoria do incesto. Anteriormente considerada como crime, essa teoria passa a ser aceita a/ partir da psicanálise, que defende que a origem do sujeito está na articulação do desejo infantil dirigido aos seus pais.

Se há na psicanálise a normalização do corpo sexual - veja-se o seu vínculo com o/ dispositivo da aliança - e a regulação da população - mediante a inversão da lei do incesto -, podemos inseri-la nos padrões da biopolítica.

Se considerada a crítica de Rajchman, o caráter biopolítico da psicanálise se/ enfraquece, restando a ela unicamente a regulação dos discursos sexuais. Porém, não se pode deixar de notar a honra política conferida por Foucault à psicanálise, quando afirma que ela, num movimento contrário ao do racismo, desconfia dos mecanismos de poder que objetivam controlar e gerir o cotidiano da sexualidade, dando a ela a lei como princípio.

A psicanálise rejeita a idéia de uma degenerescência sexual e, ao se opor a essa idéia pela constituição de uma lei do desejo, recupera o projeto de uma medicina dos instintos sexuais. Essa honra política não é pouca, pois o racismo e o eugenismo que sustentaram e ainda sustentam as biopolíticas totalitárias baseiam-se em uma teoria da degenerescência e da hereditariedade. A psicanálise opõe-se a qualquer teoria racista e impede que se forme qualquer ideal racista baseado em sua sustentação teórica. Negando a teoria da degenerescência, a/ psicanálise afastar-se-ia de ser um instrumento biopolítico, assumindo uma posição de/ contestação do biopoder.

Finalmente, é importante considerar a relação da psicanálise com a psiquiatria pois, para Foucault (2003, p 137), a psicanálise representa o primeiro grande recuo da psiquiatria, no/ momento em que a questão da verdade do que se dizia sobre os sintomas ou o jogo de verdade e/ mentira nos sintomas é imposto à força ao poder psiquiátrico. Porém, esta primeira despsiquiatrização não foi mérito de Freud, uma vez que uma trupe de simuladores formada por histéricos fez, no primeiro momento, o poder psiquiátrico titubear sobre a questão da/ verdade. Segundo Foucault, são eles que pregaram uma peça, através de suas mentiras, no/ poder psiquiátrico que, por ser agente da realidade, pretendia ser detentor da verdade e/ se/ recusava a/ aceitar verdade na loucura, no interior da prática e da cura psiquiátrica.

Foucault (2003, p. 349) acredita que a psicanálise pode ser historicamente decifrada como uma forma de despsiquiatrização por estar fora do espaço asilar e apagar os/ efeitos paradoxais do poder psiquiátrico. Por outro lado, reconstitui o poder médico, produzindo verdade em um espaço instalado para isso, adequado ao poder médico, questões colocadas pela noção de transferência como processo essencial para a cura. O pagamento, contrapartida monetária da transferência, é uma maneira de garantir a realidade, uma maneira de/ impedir que a produção de verdade não venha a ser contra-poder que armadilhe, anule e/ derrube o poder médico.

A psicanálise é, para Foucault, uma forma de despsiquiatrização que conserva o/ poder, pois tenta adequar a produção de verdade ao poder médico. No entanto, ente autor francês também afirma, "la psychanalyse a joué um rôle libérateur et, dans certains pays encore (je pense au Brésil), la psychanalyse jouait um rôle politique positif de dênonciation de/ la complicité entre les pasychiatres et le pouvoir"5 (id., 2001b, p. 1626).

 

5 - Equilibrando perspectivas

Foucault é um autor repleto de paradoxos, o que dificulta sobremaneira a/ identificação e a definição categórica de qualquer um de seus objetos: se afirmássemos que a/ psicanálise é um instrumento do biopoder, teríamos uma lista de argumentos contrários; da/ mesma forma, negar pura e simplesmente essa afirmação seria um equívoco.

Assim, não se pode afirmar categoricamente, como faz Birman, que a psicanálise é um dispositivo da biopolítica, mas, de maneira mais cuidadosa, deve-se perguntar em quais aspectos a/ psicanálise é ou não um instrumento de biopoder, sendo que cada um desses aspectos merece um estudo aprofundado futuramente, recorrendo-se ao texto psicanalítico e buscando entender em que se baseiam a defesa dos psicanalistas e a crítica de Foucault.

Aqui estão elencados alguns dos aspectos que fazem da psicanálise um instrumento do biopoder e outros que não.

De início, pode-se tomar um tom bastante à psicanálise, que se refere à relação deste saber com a degenerescência. Foucault afirma que a psicanálise nega a degenerescência, e por isso difere da psiquiatria e da medicina do século XIX. Essa característica tem grande importância política, pois, ao negar a degenerescência, a psicanálise afasta-se de qualquer teoria racista, impossibilitando que, através dela, afirme-se qualquer forma de controle racial, ou que se use o seu saber para tentar purificar um determinado modo de vida, ou para explicar a valoração ou a desvaloração de um determinado tipo de vida. Por estes aspectos, a psicanálise afasta-se de ser um instrumento da biopolítica, sendo até mesmo um meio de contestação, já que a biopolítica visa controlar e classificar as populações.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que a psicanálise distancia-se da psiquiatria e da medicina por negar a degenerescência, ela não deixa de exercer um certo poder médico, o que a torna um elemento no dispositivo disciplinar. Ao devolver o indivíduo ao seio familiar, por meio da análise e da estabilização do triângulo familiar (pai-mãe-filho), permite que o dispositivo familiar seja acionado, tornando o indivíduo um objeto dócil e útil. Não é a psicanálise que produz docilidade e a utilidade do indivíduo, mas a família para a qual o indivíduo retornou por intermédio da análise. A psicanálise permite que a família aplique o dispositivo disciplinar, já que a análise devolve o indivíduo ao núcleo familiar.

Não se pode deixar de dizer que este é um tema controverso na obra de Foucault, encontrando a oposição de autores como Rajchman (1993) e Mezan (1985). Para Foucault, a psicanálise acentua a questão familiar, em que está localizado o núcleo dos sofrimentos psíquicos e de seus desejos. O sujeito sofre por não conhecer os seus desejos, e a psicanálise reativa o triângulo familiar e deixa que este exerça seu papel disciplinador para resolver o conflito entre desejo e realidade, e com isso aplacar o sofrimento.

Em contrapartida, Rajchman (1993) e Mezan (1985) dizem que a psicanálise não é um aconselhamento sobre o que é ou não bom ser, muito menos uma teoria de princípios e condutas sexuais ou uma confissão ininterrupta da sexualidade, mas sim a tematização de uma psicosexualidade inconsciente.

Também é importante destacar que, para Foucault, o discurso psicanalítico, tal como o discurso médico-psiquiátrico, tem sido incitado politicamente no panorama biopolítico.

Esta série de indiferenças entre a psicanálise, a medicina e a psiquiatria, afirmam a psicanálise como um instrumento do biopoder, um meio para o exercício de uma biopolítica que incide sobre a vida dos indivíduos e das populações. Porém, Foucault afirma, por exemplo, que a psicanálise no Brasil assumiu um caráter de luta política, pois, ao impedir a repetição da ligação da cura ao poder " realizada pelo biopoder " e denunciar a cumplicidade entre os psiquiatras e o poder, assume um papel libertador.

Verifica-se que, de acordo com Foucault, não se pode afirmar a existência de uma psicanálise essencial, universal e única, mas sim de psicanálises, no plural, que em diversos aspectos, em variadas formas de seu exercício e em determinadas culturas e países ora cumpre um papel biopolítico ora libertador, denunciador, contestador e até opositor da biopolítica.

 

Referências

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Rajchman, J. (1993). Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Recebido em 3 de agosto de 2007
Aceito em 14 de novembro de 2007
Revisado em 2 de janeiro de 2008

 

 

Notas

1. Foucault não afirma com qual escola da psicanálise ele está dialogando aqui, mas parece ser com a Escola Francesa, devido ao modo como ele entende o desejo e a repressão.
2. As análises aqui apresentadas podem e devem ser retomadas e pormenorizadas em cada ponto.
3. "Le champ de la psychanalyse, c'est-à-dire la destinée famliale de l'instinct" (Foucault, 2003, p 220).
4. "Il n'est pas étonnantque le discours de la famille, le plus "discours de famille" de tous les discours psycholoques, c'est-à-dire la psychanalyse, puísse, à partir du milieu du XX siècle, foctionner comme étant le discours de vérité à partir duquel on peaut faire l'analyse de toutes les instituitions disciplinaires" (Foucault, 2003, p 88).
5. "A psicanálise desempenha um papel libertador. E em certos países ainda (eu penso no Brasil), a/ psicanálise desempenha um papel político positivo de denúncia da cumplicidade entre os psiquiatras e/ o/ poder" (Foucault, 1979, p. 150).

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