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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.8 no.2 Fortaleza June 2008

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O teatro da individuação: forças e simulacros

 

The theater of individuation: empowerments and simulacres

 

 

Vilene MoehleckeI; Tania Mara Galli FonsecaII

IProfessora do curso de Psicologia da UNIVATES. Psicóloga do CAPS Capilé SL/RS. Membro do Grupo de Estudos Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. End.: Rua Osvaldo Aranha, 110-B. São Leopoldo, RS. CEP: 93010-040. E-mail: pirueta7@yahoo.com
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Doutorado em Informática na Educação da UFRGS. Coordenadora do Grupo de Estudos Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar, da UFRGS. End.: Rua Campos Salles, 262. Porto Alegre, RS. CEP: 90480-030. E-mail: tfonseca@via-rs.net

 

 


RESUMO

Nesse trabalho, pretendemos realizar uma discussão sobre o sujeito e suas articulações com os processos estéticos e com as possibilidades de simulação. Assim, pensamos sobre as possibilidades de agenciamento do corpo, seus movimentos e forças envolvidas. Entendemos o teatro da individuação como uma resolução relativa do ser, que pode buscar a ativação da sua vontade de potência, seu outramento. Na vida, o ser experimenta compor novas personagens ao longo de suas histórias e, assim como no teatro, o vivo pode realizar muitos ensaios, na tentativa de romper os limites do corpo e agenciar outras maneiras de existir. Além disso, estudamos as virtualidades do tempo e do corpo ao pensarmos as coexistências entre o atual e o virtual. Já o princípio ético do eterno retorno de Nietzsche nos faz refletir sobre a potência de retorno da diferença e da superação de si, ou seja, o sujeito pode viver, como se cada instante retornasse indefinidamente e pode experimentar a força do esquecimento, como um desprendimento de antigas resoluções. Ele é capaz de estabelecer novas conexões com elementos heterogêneos, presentes no espetáculo, ou no mundo. Desse modo, rompemos com as lógicas dualistas do corpo e procuramos mapear alguns de seus movimentos de ruptura, para a composição de personagens e simulacros, seja na arte, no teatro ou na vida. Afirmamos a potência do simulacro, como uma produção de desvios e novas forças, que podem gerar a expansão da vida.

Palavras-chave: teatro da individuação, vontade de potência, eterno retorno, corpo, simulacro.


ABSTRACT

In this work, we intend to make a discussion about the citizen and its joints with the aesthetic processes and the possibilities of simulation. Thus, we think about the possibilities of agency of the body, its movements and involved forces. We understand the theater of the individuation as a relative resolution of the being, that may search the activation of his will of power, his transformation. In the life, the being tries to compose new personages throughout its histories and, as well as in the theater, the living creature can carry through many tries, in the attempt to break the limits of the body and to create other ways to exist. Moreover, we study the potentialities of the time and the body, when thinking the coexistences between current and the virtual one. Besides, the ethical principle of the perpetual return of Nietzsche in makes them to reflect on the power of return of the difference and the overcoming of itself, that is, the citizen may live, as if each instant returned indefinitely and can try the force of the forgiveness, as an unfastening of old resolutions. He is capable to establish new connections with heterogeneous elements, that exist in the spectacle, or in the world. In such way, we break with the dualistic logics of the body and we try to map some of its movements of rupture, for the composition of personages and simulacres, either in the art, the theater or the life. We affirm the power of simulacre, as a shunting line production and new forces, that may create the expansion of the life.

Keywords: theather of individuation, will of power, perpetual return, body, simulacre.


 

 

1. Encontros com o mundo: personagens e virtualidades

Quando o corpo descobre a irreverência de tentar se inventar de múltiplos modos, ele pode encontrar a potência do limite. Assim, pouco a pouco, o sujeito tem a chance de transitar no limiar, entre aquilo que é e o que pode se tornar. Na estética, e também na vida, podemos nos tornar inventores de si, no momento em que nos conectamos com faces variadas daquilo que nos afeta. E, nesse sentido, experimentamos as tramas do desconhecido e nos alimentados com o próprio arrebatamento.

Assim, temos o intuito de problematizar alguns movimentos da arte e também do sujeito frente à vida. Isso pode nos levar a tecer articulações ou diferenças entre ambos. Nesse aspecto, o ator de teatro, ao construir uma personagem, experimenta vários possíveis em seu corpo. São outros modos de ser, de gesticular, de agir, de falar e de compor diálogos. Com isso, outros corpos e ritmos se criam e se desdobram, já que ele compõe múltiplas expressividades. A composição de uma personagem envolve a construção de um mundo, cheio de mistérios e conquistas. Ela pode apostar numa versatilidade de novas práticas, a fim de instaurar os recursos importantes para sua nova criação.

Ora, podemos pensar que o teatro se institui enquanto arte de rompimento ao corpo identitário, pois ele demanda uma invenção de novos estados em cada história e requer novos jeitos para as linguagens inventadas. Há toda uma preparação e um investimento, para que a atualidade do ator seja diluída e, em lugar dela, nasça um novo ser. A própria noção de indivíduo pode, portanto, ser questionada. O ator é capaz de se desgarrar de sua identidade e mergulhar num caos absoluto de novos possíveis. O corpo em cena se arrisca em novas vibrações e aposta em sua multiplicidade como instrumento para sua arte. Dessa maneira, o corpo que faz teatro pertence ao mundo e pode seguir suas surpresas e inquietações. Por meio de tal aventura, temos a chance de questionar se, na vida, também é possível a produção de alteridades, que ultrapassariam os sentidos anteriores. E, quando isso acontece, que sujeito se produz nesse desprendimento?

Conforme Simondon (2003), podemos conhecer o indivíduo pela individuação, e não a individuação a partir do indivíduo. Isso implica conceber o movimento da individuação como um processo de intensa transfiguração e reconfiguração do ser. Nesse caso, o sujeito é apreendido como uma realidade relativa, como uma fase do ser, que pode se individuar a qualquer momento. Nesse caso, o ser fasado é o ser em cujo seio se efetuou uma individuação, ou seja, isso provoca um ser que devém e se desdobra em novos contornos. Com isso, pensamos o devir como uma resolução do ser, como uma nova dimensão possível, ou como uma capacidade do ser em se transformar. Para Deleuze e Guattari (1997), o devir não implica imitar, nem evoluir ou regredir, mas requer uma involução, isto é, uma dissolução da forma atual. Assim, nos interessamos mais pelo movimento do que pela forma final. O processo de individuação é mais complexo do que o sujeito já individuado.

Podemos refletir que, na vida, o ser experimenta compor novas personagens ao longo de suas histórias. E, assim como no teatro, o vivo pode realizar muitos ensaios, na tentativa de romper os limites do corpo e agenciar outras maneiras de existir. Aos poucos, é possível compor um novo enredo, conforme os limites e as possibilidades de superação. Nesse sentido, a personagem formada é apenas uma conseqüência, um produto final de toda a experimentação. E isso pode ser alterado a qualquer momento. O espetáculo é apenas o resultado de um longo trabalho de ensaios, criação de personagens e estudos do elenco e da direção. A forma final é somente o efeito, já que os gestos testados, as poses experimentadas, ou as falas pensadas fizeram parte de um movimento intenso de fabulação. Ou, ainda, o indivíduo é somente o resultado, o contorno provisório, tal qual uma fase de todo um movimento de individuação da vida e de suas aventuras. Portanto, podemos conceber o mundo enquanto processo, e não somente como uma forma acabada. Uma personagem criada, ou um ser individuado, não traz a garantia de permanência, porém implica a potência da instabilidade, numa composição de forças diversas em movimento de expansão. O corpo em cena, ou o ser na vida, pode se deliciar com seus desdobramentos e deslizes, quando ele vive a potência da experimentação. Ao se inventar de novos jeitos, o sujeito compõe novas resoluções de si e pode sentir, na pele, a vida no seu movimento de expansão.

Para Simondon (2003), na individuação ocorre uma supersaturação inicial do ser homogêneo e sem devir que, então, se organiza e propõe uma resolução de sua problemática. A involução, ou seja, a dissolução da forma pode levar à resolução de outra. Desse modo, um ator vive os seus dramas, as suas supersaturações. Ele é capaz de incitar novas resoluções, compor outras individuações, com o intuito de experimentar outros modos em seu corpo. Podemos nos questionar, porém, de que maneira ele incita seus processos. Para o mesmo autor, o ser supõe uma realidade pré-individual, rica em diversos potenciais, e dotada de uma virtualidade de forças e novos possíveis. Quando o ser se individua, ele não esgota de uma única vez os potenciais da realidade pré-individual, já que, a cada nova individuação, novas forças são agenciadas e outras composições são tecidas. Viver implica, pois, a chance de acessar, a todo o instante, um reservatório de novos possíveis. Uma nova personagem demanda outro investimento do corpo, no sentido de buscar novas potências do mundo, para compor suas práticas. O ator busca novos contatos com o pré-individual, quando ele deseja convocar novas forças. E, também, na vida, muitas vezes, podemos nos tornar artistas, com o intuito de agenciarmos tais possibilidades. Não estamos fechados em nós, pois temos o desejo de, a cada nova tentativa, acessar um plano impessoal, com novas potencialidades. E, nesse sentido, a fragilidade do sujeito pode revelar a força de suas sutilezas.

Segundo Gil (1996), o artista trabalha com pequenas percepções. Estas estão no domínio das impressões sutis, isto é, das sensações ínfimas ou quase imperceptíveis. Dessa maneira, a comunicação artística pode ser um fenômeno não-consciente, de osmose, ou seja, ela se caracteriza por ser um processo de limiar. Isso implica uma fronteira tênue que separa e sobrepõe consciência e inconsciência. Portanto, na criação e na atuação de uma personagem, ela tenta se comunicar de múltiplos modos com o outro, por meio da consciência e da linguagem, ou através de processos microscópicos, que permitem a conexão com a diferença que provém do mundo. Então, em que consiste a percepção da obra de arte? Pode ser um tipo de experiência que provoca a dissolução da percepção? Além disso, a experimentação estética é capaz de provocar desvios e desdobrar significantes? Ainda, o artista pode inventar novos significados e deixar isso a critério do público?

O corpo que atua, portanto, não fica restrito à imitação de gestos e falas de outrem, ou a um simples representar de uma história, uma vez que ele vai buscar o processo de devir. Ele pode ir além do plano das macro-percepções e se deixar levar pelas forças do inconsciente. E, ao experimentar-se em novas práticas, o ator produz desvios e rupturas de modos anteriores e provoca outras resoluções, o que requer um agenciamento de simulacros na cena. Com esse processo, outros limiares são criados no teatro: entre personagens, entre público e atores, entre enredo e atores, entre consciência e inconsciência. Assim, no alargamento de seus movimentos, as sensações ínfimas podem invadir o ator e transformar a cena num rizoma de outras possibilidades. Além disso, a emergência do simulacro provoca o rompimento das fronteiras com a consciência, o que pode ampliar o potencial de criação do corpo.

Dessa maneira, pode ocorrer uma individuação perpétua que é a própria vida, conforme o movimento do devir e dos riscos experimentados. O vivo conserva uma atividade permanente, pois ele não é só resultado de individuação, mas teatro de individuação. Nesse sentido, ele pode colaborar, ou não, para o surgimento de certas personagens, isto é, para o agenciamento de outros modos de ser. Ele tem a potência de esburacar o próprio contorno, na tentativa de criar novas visibilidades e outros sentidos para aquilo que o instiga. O vivo pode, também, experimentar movimentos e ensaiar resoluções, na tentativa de abrir o corpo a novas virtualidades, provenientes do pré-individual. Isso implica dizer que não há passividade por parte do vivo, no processo de individuação, uma vez que pode haver muito trabalho, luta e criação, para que o ser se individue em novas personagens, o que vai garantir a trama do teatro da existência. Então, a resolução vai depender da composição de gestos diversos do corpo, que busca acessar o pré-individual de múltiplos modos. A expressão, então, não provém de dentro, mas ela é agenciada, por meio de acessos ao Fora, ao plano de instabilidades e de novas conexões. Nesses gestos diversos, o corpo simula novas personagens, ou provoca outras linguagens para aquilo que é da ordem do intensivo. Com o intuito de romper com antigos modelos, o sujeito pode construir um leque de outras inscrições e outros desvios.

Ora, esse processo requer o simulacro elevado à sua mais alta potência, como se a ruptura trouxesse, em si, a chance de variação daquilo que excede. Ele pode ser assumido como tal, não reduzido a uma mera trapaça, mas individuado enquanto ruptura e diferenciação. Com ele, não podemos ficar limitados a qualquer final estabilizador. O seu desfecho recoloca o turbilhão em movimento, multiplica a vertigem das versões, exalta as dobras que não cessam de novamente se flexionar. A atual configuração pode, então, projetar-se em abismo, além de produzir reviravoltas que inviabilizam qualquer chão. Nesse sentido, o teatro da individuação requer, do corpo, uma abertura aos seus simulacros possíveis, ainda que isso traga uma complexa instabilidade. O teatro do existir requer, portanto, ensaios e experimentações variadas, e o ator pode se surpreender a cada ato de entrega.

Desse modo, no âmbito do pré-individual, os problemas vitais não são fechados em si mesmos, pois eles podem ser saturados por uma seqüência indefinida de individuações sucessivas que introduzem mais realidade pré-individual. Nas cenas de sua existência, o sujeito pode engendrar novas ações e posturas para as suas personagens. Ele não se limita, pois, a um só, ou a apenas uma peça, uma vez que as histórias vão se compondo e, muitas vezes, se sobrepondo umas as outras. Desse modo, o teatro de individuação demanda muitos movimentos de instabilidade e variação. O palco traz a possibilidade de tecer novos enredos. O vivo, nesse caso, torna-se agente de seu processo, pois seu devir se configura numa individuação permanente, ou seja, são várias individuações que compõem a trama de seus percursos.

No momento em que a atualidade do corpo já não é mais suficiente, o vivo pode agenciar a virtualidade presente na realidade pré-individual. Ele vai buscar novas forças e outros possíveis nessa riqueza de potencialidades, que o tornam, então, agente do teatro da individuação. Percebemos, pois, que atualidade e virtualidade estão em conexão: "Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais" (Alliez, E. 1996, p. 49). Somos levados a experimentar uma convivência caótica entre o que somos e o que podemos nos tornar. Nessa névoa, há uma coexistência de fluxos heterogêneos, contrastantes ou diversos, que são capazes de acionar novas resoluções no corpo, outrora impensáveis. O corpo atual está rodeado por uma névoa virtual, que o leva a novas composições. Há nele bases biológicas e virtuais, que co-habitam o ser e produzem multiplicidades. E, com isso, o movimento do mundo se produz, onde o atual se impregna de círculos de virtualidades e se transforma a partir de seus contatos e encontros.

Assim, podemos refletir nas relações entre imagem e objeto. Nas imagens virtuais, sua velocidade ou brevidade as mantém sob um princípio de inconsciência ou indeterminação. Trata-se, então, de relacionar a virtualidade com as pequenas percepções, com os limiares que incitam as zonas fronteiriças entre o modo atual e seus desdobramentos inusitados. Ao redor do objeto atual, existem os círculos de imagens virtuais. Em volta de uma determinada expressividade, existe uma trama de novos enlaces possíveis. Dessa maneira, objeto e imagem são ambos aqui virtuais e constituem o plano de imanência de dissolução do objeto atual. As fronteiras entre um e outro são rompidas, o que traz, ao corpo do ator, novas possibilidades de invenção. Portanto, a coexistência entre atual e virtual demanda o encontro das variações de força, que levam o ser ao movimento de novas individuações. A imagem passa a conviver com o seu simulacro, ou seja, a atualidade co-existe com seus desvios e rupturas. O corpo pode, a todo o instante, encontrar brechas, que o incitam a vivenciar desmanches e novas configurações. Nesse caso, a emergência do simulacro, enquanto agenciador de caos e abismos, tem a chance de aproximar o ser de suas virtualidades. "O plano de imanência compreende a um só tempo o virtual e sua atualização... sem que possa haver aí limite assimilável entre os dois" (Alliez, E.1996, p. 51). Pensamos, então, na imanência entre imagem e simulacro, entre atual e virtual, ou na inseparabilidade entre corpo e seus desvios, entre a cena e seus novos enredos. Salientamos a diluição dos limites entre o sujeito e suas novas resoluções.

Ora, não seria esse o movimento do ser que se lança ao mundo e experimenta o gozo de novas individuações? Desse modo, a peça de teatro, ou a cena da vida, pode nos ensinar a decompor as atualidades, na tentativa de configurar outros enredos ao sujeito e ao mundo. O corpo em cena nos convida a desmanchar as fronteiras entre o atual e seus simulacros, o que pode provocar instabilidades e acionar novas forças. Uma personagem atua e vibra com o efêmero presente em seu transbordamento. Ela se torna risco e variação, pois se permite dançar com suas complexidades e desenvolturas. Assim, o vivo pode investir na potência do desvio, enquanto movimento de criação e contraste.

 

2. Desdobramentos do tempo: a eternidade do instante

Uma vez que procuramos pensar o processo, e não somente o efeito, talvez seja interessante compor um plano conceitual para esse movimento de lapidação do ser. Assim, questionamo-nos como se dá o tempo da subjetivação, quais são os seus desdobres e limites? Ainda, perguntamo-nos até que ponto o corpo em cena pode suportar os encontros entre atual e virtual, a fim de instaurar o tempo de abertura e da simulação? Pensamos em suas relações possíveis: "A distinção entre o virtual e o atual corresponde à cisão mais fundamental do Tempo, quando ele avança diferenciando-se segundo duas grandes vias: faz passar o presente e conservar o passado" (Alliez, E., 1996, p. 54). O tempo da subjetivação e de seus processos pode revelar, pois, as complexidades do ser. Nesse sentido, o presente passa e se esgota, pois ele define o atual. Já o virtual aparece a seu lado, como um tempo menor, quase imperceptível, tal qual uma pequena percepção que atua com a quase ausência. E, embora invisíveis, as virtualidades rondam o corpo atual, na tentativa de mexer em suas configurações. Isso pode produzir um tempo de coexistências e complexidades, o que incita o sujeito a movimentar o seu existir. Por isso, a virtualidade é efêmera e, ao mesmo tempo, o passado se conserva nela.

Assim, os dois aspectos do tempo, a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva, podem coexistir e se tornar indiscerníveis. O ser convive com suas atualidades e desmanches, ou com os deslocamentos das névoas virtuais, ao se abrir ao tempo da cisão e do esgotamento do presente. O corpo em cena pode se entregar ao tempo da individuação e do instante e sentir os seus prazeres e agonias. Viver consiste em experimentar movimentos de conservação e de desmanche, simultâneos ou entrelaçados. Isso implica num desdobramento de forças diversas, presentes ou passadas, que atravessam o ser e o transformam de várias maneiras.

Ora, em que consiste tal processo? Nesse aspecto, retomamos Machado (1997), quando o autor argumenta sobre o eterno retorno nietzschiano. Ele nega que o tempo tenha um instante inicial ou final e que existe um estado de ser antes ou depois do devir. Isso implica em questionar a própria noção de linearidade do tempo, e também a noção de identidade. O instante atual, então, pode ser aquele que passa, ou seja, o tempo não tem início nem fim, pois ele se compõe como puro devir. Do mesmo modo, o sujeito está sofrendo, constantemente, um processo de individuação. Ora, o tempo, nesse caso, é infinito e as forças são finitas, já que seu curso não pode ser uma variação contínua de estados novos; por isso, ele se torna um eterno retorno do mesmo. Diante dessa realidade, o homem sem Deus pode sufocar-se ou alegrar-se. O eterno retorno pode provocar o niilismo passivo (nada vale a pena, nada de vontade) ou um niilismo ativo e extremo, quando a vontade atinge o máximo de potência, ao afirmar a vontade de nada como uma ponte para o retorno da diferença. O sujeito pode se acomodar, perante a visão de que ele sempre retornaria, do mesmo jeito.

Por outro lado, é possível sentir a inesgotabilidade de sentidos, quando aquilo que volta tem a chance de se reconfigurar a cada instante e permitir novas expressividades. Dessa maneira, o eterno retorno pode se tornar o pensamento mais pesado, mas também pode ser afirmado, desejado, onde a vida se transforma e cria levezas. No teatro, podemos pensar na eternidade do instante que, a cada vez que retorna, pode ser invadido com novas virtualidades e potencialidades. Na vida, salientamos o movimento de retorno do mundo, que pode trazer, consigo, a potência de uma nova individuação. E, a cada vez que retornamos com nosso estado atual, trazemos, também, as potências das virtualidades que nos cercam e nos provocam diferenciações.

Assim, pensamos o aspecto ético do eterno retorno, isto é, viva como se cada instante de sua existência fosse retornar eternamente. Isso implica uma ética nietzschiana, da singularidade e da superação do niilismo. Querer o vivido no instante em que é experimentado pode afirmar o acaso como uma forma de intensificar a vontade, e levar o corpo a seu máximo de potência e de auto-superação. Isso requer a aposta no presente e nas coexistências do tempo, provenientes desse encontro, isto é, entre o atual e o virtual. Nesse sentido, querer a vida em toda a sua intensidade e plenitude incita o teatro da individuação e convida o ser a arriscar novos enredos para a sua trajetória. A personagem investe, portanto, num ato de afirmação da vontade que se liberta do niilismo, na medida em que ela é capaz de desejar a vida como ela é, com suas descobertas e limites, além de suportar as suas variações. O movimento de simulação vai ao encontro de tal ética, uma vez que pode provocar a resignação frente ao que traz limitações e, paradoxalmente, lançar o corpo a um ultrapassamento de si.

O sujeito pode investir nos movimentos de alteridade, ao enfrentar a vontade de nada, ou o nada de vontade, e apostar na capacidade de atualização de novos possíveis. Tal processo evoca o além-do-homem e não remete ao futuro, mas ao instante, ao afirmar o ser do devir e da individuação. Desse modo, querer o retorno da vontade afirmativa pressupõe desejá-la integralmente, a cada momento, por toda a eternidade, com todas as suas dores e alegrias. Isso não implica numa exigência de um gozo contínuo, uma vez que a ética do eterno retorno supõe a afirmação da vida trágica, em seu sofrimento, sua desenvoltura e sua solidariedade para aquilo que difere. E, portanto, o que pode retornar é o trabalho de superação, ou a aposta num desprendimento e numa valorização da expansão da vida.

Nesse aspecto, falamos de uma estética de si, presente na arte, ou na vida, no momento em que o mundo é pensado como um teatro de experimentação e recomeço. O vivo, enquanto parte do processo, pode se deixar contaminar com o tempo de coexistência entre o eterno e o instante, ao sentir os abalos causados por movimentos de rupturas e pequenas subversões. Ele vive, pois, a vertigem daquilo que pode abalar a sua ilusão de estabilidade e permanência. Uma nova personagem se desenha, ou uma antiga figura se desfaz, no momento em que o instante a joga para um turbilhão de instabilidades e sensações novas, condizentes com seu desejo de transfiguração. Sua expressão requer a força do recomeço e da construção de novos sentidos. Enquanto um tempo de versatilidade e abertura, velocidade e lentidão, o corpo em cena se agita e reivindica a interpretação de seus simulacros, a fim de mexer nas formas atuais e buscar a magia e o mistério de um espetáculo por vir. Para tanto, podemos sentir a vitalidade do mundo, quando investimos em novos usos de si, ou temos a chance de aspirar a uma quase escassez de limites, ao saborearmos o eterno retorno das forças do virtual. E, com isso, temos a possibilidade de esquecer aquilo que nos aprisiona ou nos prende a formas definidas.

Segundo Klossowski (2000), o esquecimento pode ser pensado como condição indispensável, para que o eterno retorno se revele e se transforme. Ele evoca o eterno devir e a absorção de todas as intensidades no ser. Nesse ponto, o princípio ético age como se tivesse que reviver inúmeras vezes, pois pode demandar o esquecimento do instante. Com isso, a vontade supõe um novo sujeito, além da transformação do seu desejo. Passamos a desconsiderar o eu atual, para querermos a sua diversidade. O ser espera a instauração de uma nova personagem, com uma abertura para as virtualidades de sua história. Assim, nesse instante, deixo de ser eu mesmo e me torno suscetível a inúmeros outros eus. O vivo fica, então, fora da memória dele mesmo, visto que os instantes voltam e trazem, consigo, as forças do esquecimento. Isso requer um movimento da memória, que atinge dimensões fora dos seus próprios limites, isto é, o além-do-homem. A fragilidade do instante revela a sua força, uma vez que é possível esquecer a atual composição, para que as forças virtuais penetrem no corpo e o convoquem a experimentar aquilo que está prestes a ganhar um novo sentido.

Quando o corpo se entrega ao movimento circular de se livrar de si, ele passa a dar mais visibilidade aos seus simulacros. O ator, em cena, esquece a sua atualidade e investe na circularidade do instante, que o faz retornar de múltiplos jeitos. A atuação do corpo requer, pois, uma repetição, uma certa imitação de si e que traz, ao mesmo tempo, o processo de involução e de devir, eis um paradoxo da diferença. Ao apostar no esquecimento, a personagem é capaz de construir desvios e simulacros, além de procurar novos contatos com o mundo. Mais do que reviver a mesma história, o ator da vida pode investir na própria abertura, para sentir o gozo da experimentação e da complexificação do seu processo. A imagem do círculo nos mostra que não há começo nem fim, mas que o sujeito pode entrar em qualquer ponto, ou pode se deixar afetar em qualquer instante da sua existência. Assim, ao invés de eterno, o retorno requer a potência do rizoma, em que os pontos de um sistema podem se articular e fazer crescer o meio.

Sem origens ou inícios, falamos de um tempo enquanto rizoma. Segundo Deleuze e Guattari (1995), esse termo é deslocado da botânica, para pensar um tempo complexo e contrapô-lo ao tempo da arborescência. A imagem da árvore serve para pensarmos a sucessão, a hierarquia, os sistemas organizados com centro definido. O tempo como rizoma, entretanto, não se remete ao uno, nem dele deriva, uma vez que retrata um tempo em sua multiplicidade. Não há um início nem um fim, mas um entre, que se faz numa rede complexa e sem centro. Podemos saltar de um ponto a outro muito distante, sem mediações, intempestivamente. O tempo também pode se torcer em movimentos e dobras, passar e não passar, ao potencializar sua diferença. Dessa maneira, o rizoma é composto por sistemas não hierárquicos e insignificantes, feito de direções movediças.

Desse modo, a circulação do instante nos remete a um tempo rizomático, já que não há começo nem fim, não existe uma única lógica possível, e as intensidades crescem por diversos lados. O instante se redobra e se recompõe, ao trazer as forças provenientes do caos, e ao despojar os significados estruturados de suas certezas e configurações. Isso supõe uma ética: viva como se as alternativas pudessem ser construídas por múltiplos caminhos e várias formas de resoluções.

Para Deleuze e Guattari (1998), a obra de Kafka também pode ser vista como um rizoma, pois nela há múltiplas entradas, onde nenhuma tem prioridade sobre a outra. O seu princípio favorece a experimentação, tal qual um modelo que vai se refazendo, por meio de simulacros e desvios. Cada novo caminho que se abre sugere uma nova configuração, visto que os simulacros garantem o movimento de simulação e descoberta. Assim, se as cópias sugerem uma analogia ao modelo, ou uma única entrada, o simulacro implica uma multiplicidade de entradas e saídas. Ele exige a capacidade de virtualização do referente, para além da imagem anterior. O princípio das múltiplas entradas impede a introdução do inimigo, o significante, e diminui as tentativas de interpretar uma obra, que pode se oferecer, então, à experimentação. Isso significa dizer que a obra não tem um único significado, mas ela existe enquanto potência de diferenciação e pode possibilitar um leque de múltiplas expressões e vivências.

Assim, se mantivermos uma lógica dicotômica, podemos conceber, na obra de Kafka, as separações marcadas entre o significante e a forma. Por outro lado, para Deleuze e Guattari (1998), o que interessa é uma pura matéria sonora intensa, em relação com a sua própria abolição, como um som musical desterritorializado, ou um grito que escapa à significação. Assim, podemos vislumbrar um caráter rizomático em sua obra, quando ele propõe uma ruptura desprendida da cadeia significante. As intensidades podem se desprender dos sentidos e saltar de um ponto a outro, gerando novas aberturas para a escrita. Desse modo, o simulacro de Kafka abala a tradição do pensamento dualista e outros possíveis são restituídos. Além disso, na simulação, o sentido se abisma e se revela como invenção humana, dotada de instabilidades e de novos agenciamentos.

Conforme Klossowski (2000), a significação não se desprende totalmente dos abismos movediços que ela esconde. Existe um caos, gerador de sentido, que pode atuar, na tentativa de misturar os significantes atuais e promover novas fissuras no corpo e na linguagem. Assim, quanto mais próximos ao caos, mais simulacros podem emergir e fazer tremer as bases antigas. O corpo em atuação, ou o ser no mundo, pode se aventurar em novas instabilidades, ao apostar num movimento caótico de abertura de sentidos ou, inclusive, da busca de um não-sentido, de algo para além da linguagem e da explicação, tal qual uma intensidade sem começo nem fim. Desse modo, podemos visualizar o eterno retorno, como a volta do devir, como uma necessidade vivida e revivida, que desafia o querer e a criação de sentido. O ator nem sempre interpreta sentidos, mas os cria, em função daquilo que ele passa a exprimir, por meio de sua experiência estética.

Além disso, suportar o caos pode conter o princípio da crueldade. Conforme Lins (2001), Nietzsche e Artaud discorrem sobre essa questão. A época moderna traz a crueldade como uma temática. Enquanto uma negação da origem, ela busca o movimento circular do devir, um tempo de complexidade e diferenciação. Nesse caso, podemos salientar a importância da memória e do esquecimento, como garantias de um presente, como pura diferença. Nietzsche, por sua vez, sugere a introdução, na linguagem, de vozes de fora, de estrangeiros ou vizinhos. Artaud engendra uma paralinguagem, como algo a corroer a própria linguagem, tal qual uma gagueira, uma cacofonia. A escrita pode ser vista como tortura e agonia de estilo, crueldade e rapto. Por outro lado, a crueldade também requer charme, movimento, doçura e delicadeza. Ser cruel implica conviver com os heterogêneos e com a acessibilidade ao que pode nos causar estranhamento. Portanto, a questão da crueldade pode revelar suas levezas e, concomitantemente, sua potência de diluição.

Um tempo da crueldade no teatro, ou na vida, implica vivê-la intensamente e dramaticamente, com toda a sua graça e leveza, e também com seus abismos e vazios. Trata-se de transitar nos limites dos sentidos possíveis e de suas perplexidades e quedas. Ora, na personagem que se desvela, podemos vislumbrar a crueldade de seus simulacros, ao abdicarem das origens e modelos e buscarem novas formas e ações ao corpo. Sem respostas prontas, nem caminhos pré-definidos, o corpo em cena tem a possibilidade de gerenciar os próprios mistérios, provenientes do seu movimento de individuação. E, entre a eternidade do instante, ele pode sentir a tragicidade das cenas que o convocam a viver cada gesto, como se ele retornasse eternamente, ainda que de múltiplos modos. No momento em que vive o esburacamento de si, a personagem atua e simula a sua nova composição. Seu tempo se desdobra, concomitantemente, entre o que passou e aquilo que ela pode se tornar.

 

3. O corpo em cena: o teatro da subjetividade

Em meio a novos enredos, podemos problematizar o corpo, nesse movimento de subjetivação, composição de simulacros e agenciamento de forças diversas. Conforme Machado (1999), o corpo, para Nietzsche, é considerado como um conjunto de instintos em relação, enquanto um fenômeno mais surpreendente do que a consciência. Através das pequenas percepções, ele pode captar as mais ínfimas vibrações e fazer, dessa sensibilidade, sua potência de metamorfose. Assim, o sujeito se compõe e se inventa, a cada novo encontro com um plano intensivo. Ramacciotti (2001) discorre sobre a concepção de corpo para Nietzsche. Para ele, o mundo pode ser visto como vir-a-ser, ou como uma pluralidade de corpos possíveis. Nesse sentido, o autor rompe com as visões binárias do ser e do mundo, uma vez que rejeita o dualismo psicofísico e concebe o corpo como uma grande razão. Ele desconstrói, portanto, a idéia de uma consciência puramente psicológica e entende o corpo em seu caráter complexo e intensivo. Por meio do conceito de além-do-homem, como aquele que é capaz de expandir os próprios limites, podemos experimentar um novo modo de conhecimento, que supera a lógica dual.

Desse modo, não vemos o corpo como unidade ou identidade, mas como uma multiplicidade de seres orgânicos e de impulsos, ou uma pluralidade de vontades de potência. Além disso, tais seres vivenciam uma luta interna, na busca de mais potência e de diferenciação. Ora, isso requer a visão do corpo enquanto tensão constante de forças, ou diversidade de atualizações. E o fenômeno vital pode ser mais complexo e rico em um organismo quanto maior for o conflito interno e o seu dinamismo de forças. Com isso, o corpo como grande razão abre a possibilidade para o experimentalismo de si e, conseqüentemente, para a emergência de novos simulacros. Disso provém o desejo de abrir o corpo às potências, entregar o vivo às forças que provém do pré-individual e deixar as virtualidades agirem. Abrir o corpo ao simulacro permite, pois, a atualização daquilo que estava na marginalidade.

Segundo Nunes (2003), na modernidade, a invenção do corpo é produzida conforme os interesses do capital. Isso implica um corpo como uma máquina física, observável e mensurável, separado de seu dono. Assim, ao invés de sermos o corpo, nos tornamos donos dele. O homem passa, então, a ter que dominá-lo, por meio de uma racionalidade e de uma intencionalidade. A autora lembra Antonin Artaud, que coloca em questão essas inquietações quando expõe visceralmente a angústia desta desapropriação do corpo e do exílio do espírito. Ele clama, pois, pela não separação entre o corpo e o espírito, na tentativa de romper com a lógica dualista entre corpo e alma. O ator francês antecipa os reformadores do século XX e consegue ir além da corrente lógico-discursiva e dos moldes da representação, ele busca reintegrar interior e exterior, físico e espiritual, além de usar o próprio corpo, para superar os conceitos dualistas. O ator é seu corpo, e não alguém que mora dentro dele, ele é um ente-em-vida, em constante estado de instabilidade e auto-organização, segundo uma complexa rede de conexões distribuídas no organismo como um todo.

Dessa maneira, construímos a ação no teatro. Ela não é mera imitação, mas depende da presença do corpo e, mais do que isso, de suas transformações e desvios. A construção de uma personagem implica ações e caminhos, por meio de simulacros emergidos e desdobramentos buscados. Assim, o ator constrói uma presença cênica, ligada à comunicação corporal imediata, tal qual uma pequena percepção que capta novos sentidos. A exposição do ator em cena revela a emergência de alterações de estados do seu corpo, ou seja, uma composição de simulacros. Isso provoca o movimento que convida o corpo a soltar suas amarras e a desbloquear tensões. Embora a ação envolva uma intenção do ator, também há um aspecto não voluntário no corpo e suas gradações podem ser sutis. Há, pois, uma fragilidade da intenção, o que revela, paradoxalmente, a sua força. A um determinado ponto, não sabemos se nos movemos ou se o movimento nos move, pois a intenção que originou a ação pode ter se perdido, ou se modificado, e isso vai trazer os desvios, os simulacros e toda a riqueza da ação e do movimento. Elas implicam soluções não definitivas do corpo, visto que revelam a convivência de forças e componentes opostos. Trata-se de um jogo de tensões e oposições, em permanente desequilíbrio, tal qual um processo de individuação, que produz novas resoluções. Dessa forma, a noção de sujeito também se altera. Rompemos com o ser unitário, e falamos em redes emergentes, ou modos biológicos constantemente reconstruídos. O eu existe a cada momento, a cada ação cênica, onde se estabelecem conexões entre o atual e o virtual. O corpo do ator se coloca em ação no mundo, numa busca incessante por plasticidade. Do mesmo modo, o ser em vida busca a sua presença cênica, ao ocupar o espaço de múltiplos modos e permitir que a fragilidade da intenção o redirecione a outros possíveis.

Assim, há uma imprevisibilidade que depende de inúmeros fatores, que não permitem ao ator controlar o processo, tampouco repeti-lo da mesma forma. Os estados do corpo contribuem para a singularidade de cada cena teatral. O corpo em cena, no teatro, e também na vida, pode, não raras vezes, buscar esses processos. Segundo Gil (1996), a obra de arte supõe uma construção ativa de vários fatores, tais como: do sujeito criador, do espectador, da osmose entre ambos, da própria lógica das formas. Aqui, relações de forças muito complexas podem ser configuradas, em prol das práticas estéticas do corpo. Isso pressupõe uma relação não-consciente, na medida em que pode se constituir, precisamente, como um reservatório inesgotável de forças e contornos. Ora, isso requer os processos de virtualização do corpo e de suas invenções, tal qual um devir e novos simulacros que emergem. Ocorre, portanto, uma mistura de formas e forças, e delas podem surgir variações de ritmos e de tonalidades no corpo.

Deleuze e Guattari (1997) discorrem sobre os encontros entre o molar e o molecular, para pensar o que acontece ao corpo que devém. Nesse sentido, enquanto o molar significa forma, visibilidade do contorno, a certeza da ação; o molecular se refere às ínfimas coisas, ao detalhe que provoca ruptura, ao gesto que incita o desvio, à possibilidade de causar vibrações, através de uma prática sutil. Então, o corpo pede passagem para além do seu contorno atual e pode se relançar aos devires e se desprender dos seus modelos molares, à medida que conquista uma dimensão molecular. Esta quebra a lógica molar, já que rompe com os padrões estabelecidos e aposta na força e no movimento das moléculas, para produzir o desmanche de sua configuração atual e o acontecer das micro-transformações, que se produzem a partir da sutileza das pequenas coisas, do quase imperceptível.

Desse modo, o devir opera no sentido de provocar uma ruptura dos padrões molares, para a composição de novas texturas existenciais, numa dimensão molecular, visto que ocorre um desmanche dos estados de dominação e uma composição de novas configurações do corpo. Embora o molar e o molecular sejam, num certo sentido, opostos, eles, na realidade, estão num estado de relação, de contato constante. Uma dimensão molecular sempre pode escapar à entidade molar, assim como uma forma molecular pode se transformar num modelo, quando se torna algo da ordem molar.

Dessa forma, percebemos que ambos os processos colocam-se num movimento contínuo de encontros e desencontros entre o perceptível e o imperceptível, onde a invisibilidade pode ganhar maior consistência, ou aquilo que era visível pode atingir certas obscuridades e, assim, se transformar. Nesse particular, entendemos que o corpo pode oscilar entre o molar e o molecular, dentre certezas e mistérios, além de buscar atingir uma dimensão molecular de velocidade e lentidão. Assim, ele tece novas tramas, ao abrir-se aos seus devires, ou seja, o devir é sempre da ordem do molecular, da ruptura e da quebra de certezas. Se o molar implica a reafirmação da importância da técnica, a força do modelo a ser seguido, o molecular requer um fomento ao simulacro e aposta na força do desmanche e da reinvenção de novos possíveis.

O corpo em cena pode se acoplar a uma heterogeneidade de elementos, presentes no espetáculo, que despertam sua potência de conexão com a vida. Pelbart (2003) salienta o corpo do informe, isto é, ele fala sobre uma forma de vida sem forma e também sem sede de verdade. O corpo em cena atua e brinca com suas formas e diluições, já que ele experimenta a flexibilidade de seus contornos. Portanto, reencontrar as forças do corpo, para além das formas cristalizadas, requer a busca de seu caráter informe, sem pretensão de uma estabilidade. E, nesse sentido, a fragilidade do corpo, até mesmo próximo do inumano, revela posturas que tangenciam a morte e, ao mesmo tempo, podem encarnar uma estranha obstinação, uma resistência que o aproxima de outras virtualidades. Essa imperfeição, esse inacabamento, deixa a vida numa condição embrionária, onde a forma ainda não se definiu. E, no teatro, esse vácuo pode abrir espaços para novas conquistas, outras imperfeições, que trazem a possibilidade de uma nova atuação da forma. Assim, a fragilidade revela a sua força, diferentemente da existência de um corpo excessivamente musculoso e blindado, que se fecha aos acasos do mundo.

Ora, se o corpo é capaz de se abrir às forças, ele pode fazer ecoar novas fragilidades e ações. Nesse caso, o vivo experimenta a sua vontade de potência. Segundo Machado (1997), a vontade de potência nietzschiana implica em auto-superação, num esforço sempre por mais potência e desdobramento. E isso se refere à própria vida, e não unicamente aos homens. Então, a vida se projeta para além de si mesma, num contínuo movimento de individuação. O autor faz uma crítica radical da vontade de verdade dos filósofos metafísicos, uma vez que tais valores não são eternos, são apenas exercícios da vontade de potência. Esta requer uma desenvoltura da forma atual, na busca por novos simulacros do corpo.

Por esses motivos, entendemos que a Estética pode ter um papel peculiar nessas práticas. Nietzsche (apud Deleuze, 1976) argumenta que a arte repousa sob dois princípios: primeiro, ela não acalma, não cura, ao contrário, ela é estimulante da vontade de potência. Isso requer uma estética da criação, já que abre possibilidades para além do eu individual. O segundo princípio da arte consiste em sua efetuação com o mais alto poder do falso, ao fazer da vontade de enganar um ideal superior, assim, a atividade da vida requer um poder do falso. Dissimular, deslumbrar ou seduzir, isso requer multiplicidade. Para ser efetuado, esse poder pode ser desdobrado, repetido e levado à mais alta potência. A vontade do artista busca a invenção de mentiras que elevam o poder do falso. A aparência, no teatro, implica a realidade repetida e desdobrada. Isso requer uma entrega às mentiras, aos devires, ao intempestivo de cada cena, aos simulacros agenciados. Trata-se, pois, de ativar a vontade de potência no corpo que mente - seu outramento. O corpo da arte procura a força da aparência, ao lançar-se nos riscos da experimentação e compor novas cenas e expressões.

 

4. Por uma estética do si

Podemos traçar uma problematização sobre as diferenças entre a lógica do conhecimento sobre si e do cuidado de si. Se a primeira traz a noção de conhecer para conservar, a segunda já nos lança o desafio de transformar para conhecer. Segundo Danelon (2001), na era moderna existe uma influência da lógica platônica, qual seja: conhece-te a ti mesmo. Isso implica fazer o bem, ser justo, além de seguir as regras e valores da sociedade. O valor torna-se um a priori, que regula as ações e as formas de relação entre os homens. Por outro lado, a civilização grega tem o princípio ético do cuidado de si. Trata-se, pois, do respeito a si, aos desejos, ao bem-estar e ao corpo. Para Nietzsche, isso supõe a ética do homem nobre, já que requer uma afirmação do desejo e da vontade de potência, como uma contínua elevação do ser. Nesse sentido, a subjetivação implica tornar-se e produzir-se, e não simplesmente conhecer a si mesmo. O homem é visto como processo de auto-superação e de composição de simulacros. Ao entrar em cena, ele não busca o conhecimento de sua atualidade, mas requer o envolvimento com aquilo que pode se tornar. Cuidar da personagem envolve um movimento ético e estético de envolvimento e entrega, para que os limites sejam quebrados e o corpo seja relançado, em contato com novos fluxos.

Do mesmo modo, Foucault (1999) salienta que as práticas de si tinham uma importância maior nas civilizações gregas e romanas. Trata-se de um exercício sobre si mesmo, em que tentamos nos transformar e ativar outros modos de ser. Depois, as práticas foram, de certa forma, bloqueadas por instituições religiosas, pedagógicas e médico/psquiátricas. Para o autor, o cuidado de si requer uma boa administração do poder presente nas relações, de forma a evitar ou romper com a dominação. Assim, as forças circulam mais livremente e os corpos tornam-se agentes de seus encontros e misturas. A liberdade, nesse sentido, é a condição ontológica da ética, mas esta pode ser a forma reflexiva que adota a liberdade. A estética de si implica o cuidado de si, no sentido do vivo exercitar sua força de acionamento a novos estados e variações. Ele pode, a qualquer momento, desmanchar as verdades sobre si e potencializar a força de vibração, que o conduza a novas manifestações de sua estética. Então, se a verdade requer a manutenção do mesmo, e também a valorização das cópias, o cuidado de si incita a valorização dos desvios e da potência do simulacro, como um movimento ético e estético da liberdade.

Na modernidade, esse processo pode ser confundido ou capturado, em favor de um utilitarismo e individualismo. Nesse particular, o corpo se torna livre, para atender os ditames do capital. O cuidado de si, entretanto, pode ser visto como um exercício ético de auto-conhecimento e, também, auto-superação e transformação. Esse processo pode provocar a emergência de simulacros no corpo, ao tentar a experimentação da liberdade e da fabulação, além de buscar uma estética da existência. A ética como uma prática reflexiva da liberdade exige o trabalho de si sobre si, a abertura a novas potências e o desprendimento de antigas significações e verdades. No teatro, o corpo aprende a ser livre, não para se conhecer, mas para exercitar a sua superação. Ele não quer dar sentidos ao que já está ali, mas deseja o tensionamento de suas atitudes, na tentativa de construir novos enlaces para suas historicidades. Isso pode garantir a acessibilidade ao reservatório de novas forças virtuais. Além disso, o cuidado de si é, ao mesmo tempo, o cuidado dos outros, com o intuito de suportarmos as diferenças e os desvios que nascem desse encontro. O corpo, atuante em cena, pode buscar a ética do cuidado de si, como uma entrega aos simulacros gerados pelos encontros com o mundo. Viver o cuidado requer o risco de superar antigas verdades e instaurar a potência da construção de novos desvios.

Dessa maneira, a estética do si pode estar relacionada com o poder do falso. Foucault (1999) se questiona sobre a relação entre sujeito e verdade. Ele se pergunta como o sujeito entra em certos jogos de verdade e determinadas práticas de poder? Nesse aspecto, a ética, vista como uma estética do si, tem a chance de incitar o sujeito a agenciar simulacros, no sentido de promover desvios em jogos de verdades, abrir fissuras em alguns discursos, fazer brotar novos usos de si, abertos a novas forças. O corpo ético não é aquele que conhece a si, mas o que busca relativizar valores e verdades e esburacar as certezas. E a arte também pode buscar esse movimento de libertação. O teatro é capaz de mexer com verdades do corpo e da sociedade, ao questionar padrões e preconceitos. Quanto mais aberto o jogo de verdades se constituir, mais atrativo e fascinante ele pode se tornar.

Para Nietzsche (1987), o homem, em certo momento, cria contrastes entre a mentira e a verdade. Esta última deve corresponder à descoberta de uma designação válida das coisas. Desse modo, aqui, a linguagem adquire papel primordial. Segundo o autor, adquirimos um impulso à verdade, como se ela garantisse uma essência sobre o mundo, ou um valor sobre o que seria o correto e o verídico. No entanto, não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que não correspondem às entidades de origem. A verdade não passa, pois, de figuras de linguagem e representações temporárias. Isso revela a fragilidade das certezas. Além disso, nos faz pensar sobre a coexistência possível entre o modelo e os simulacros, uma vez que podemos desmanchar as fronteiras entre ambos. Assim, entre a verdade e a mentira, podemos compor conexões, fissuras e brechas de sentido, e a arte pode se tornar um dispositivo para pensarmos na quebra de fronteiras entre o atual e o virtual, entre o certo e o errado, ou entre a cópia e o simulacro. No meio, no rompimento dos limites, talvez seja possível acionar outras relações entre o falso e o verdadeiro, na tentativa de criarmos novas possibilidades para nossas vivências. Isso pode nos fazer escorregar de antigas certezas e nos deslocar para outros entrelaçamentos entre o passado e o porvir.

Conforme Deleuze (1976), Nietzsche procura o que a verdade significa como conceito, quais forças e que vontades qualificadas ela pressupõe. Ele a critica como um ideal e propõe a busca do não-verdadeiro, ou da incerteza, e até mesmo da ignorância. O homem verdadeiro almeja a verdade e não se engana. E isso supõe um mundo verídico, em oposição a um mundo falso. Assim, quando o sujeito quer o verdadeiro, ele espera depreciar o poder do simulacro, do erro e da aparência. A arte, por outro lado, pode efetuar o mais alto poder do falso. Por meio da experiência estética, é possível romper com o ideal de verdade e compor um repertório flexível e singular, cheio de novas significações e de intensidades. Segundo Nietzsche (1987), a aparência não é simplesmente o contrário de alguma essência, mas o próprio eficiente e vivente, isto é, uma multiplicidade de expressões e afetos em movimento, que extrapolam as lógicas atuais e questionam a noção de identidade. Então, o corpo pode atuar em sua diversidade e se transformar numa matéria viva de possibilidades outras, para além das formas atuais. Ora, ao zombar de si, o corpo busca o seu princípio ético, sua potência de aventura e assombro aos mistérios do mundo, isto é, ele aciona a sua capacidade de simulação.

A estética do si do artista pode ser praticada, no sentido de trabalhar pela potência da aparência e da duplicação de formas e estilos, o que vai garantir os movimentos estéticos das personagens e das cenas. Dessa maneira, a irreverência dos contornos revela sua dramaticidade, ao provocarmos uma reviravolta em nossa condição de artista, seja no palco, ou fora dele. Na vida, o corpo, enquanto um modo de subjetivação, também pode investir em seus disfarces, como ensaiadores de novos possíveis. Portanto, pensamos a individuação como uma experimentação estética, ou como um exercício de obra de arte. Esta nos ensina a valorizar as pequenas travessuras, os gestos mínimos, como possíveis propulsores de novos sentidos e de novas relações com aquilo que nos desperta para o mundo.

Em Nietzsche (GM/GM I § 6), necessitamos de uma crítica dos valores morais, quando o próprio valor desses valores pode ser posto em questão. Para Machado (1999), o projeto de transvaloração de todos os valores consiste numa crítica da idéia de verdade considerada como um valor superior, como um ideal. A ciência cria uma dicotomia de valores que situa a verdade como valor supremo e desclassifica a aparência. Na arte, a experiência da verdade se faz ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira e uma aparência. "A verdade não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social" (Machado, R. 1999, p. 38). Então, mais do que correspondência entre real e representação fiel, a verdade não passa de uma interpretação possível para os múltiplos acontecimentos presentes no mundo. Por isso, é possível diluir a dicotomia ente a cópia e o simulacro, já que o ideal de verdade não passa de uma simulação, dentre outras. Nietzsche também se opõe ao platonismo, que é a doutrina de dois mundos, como se o sensível e mutante fosse o mundo da aparência e o supra-sensível e imutável, o mundo verdadeiro. Ele propõe tanto inverter quanto superar essa oposição de valores, além de se insurgir contra a dicotomia de dois mundos e a oposição metafísica entre a verdade e a aparência.

A arte não revela uma verdade única, pois ela traz a variabilidade dos sentidos, e também o rompimento da representação, na busca de uma experiência intensiva e bela. O artista pode transitar entre os próprios limites e a suportabilidade de acessar aquilo que o expande para direções variadas. A sua verdade consiste em aceitar a imprevisibilidade das coisas e comportar, em si, a força do desvio, como multiplicador de expressão e acoplamento à vida. Não se trata, então, de mudar uma verdade, mas de aceitar que o falso nos eleva enquanto sujeitos da alteridade e da transvaloração. Ao invés de reafirmar a dicotomia entre a verdade e a mentira, propomos o desmanche de tais fronteiras e a aposta num sujeito que se inventa, a partir de novos encontros e maquinações. A força de suas imagens traz, também, a possibilidade do acoplamento entre o real, o virtual e suas novas expressividades.

Segundo Deleuze (1974), Platão valoriza as cópias e desvaloriza os simulacros. As primeiras são como ícones e asseguram a tentativa de analogia e semelhança ao modelo, ou seja, apostam na manutenção da verdade. Já os simulacros implicam simulação, contágio, além de construírem-se a partir de desvios e de dessemelhança. Platão busca assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, que pretendem firmar-se a partir de uma agressão, a qual começa por uma insinuação e provoca um desequilíbrio. Assim, se as cópias são consideradas uma imagem dotada de semelhança ao modelo, os simulacros se fazem a partir da diferença, de algo sujeito a distorções. Isso garante a potência do falso, do simulacro e sua capacidade de invenção e de afetamento pelo mundo. Esse afrouxamento dos modelos permite a produção do devir e da diferença, pois nos desprende de antigos valores e ideais. Assim, há um devir-louco e ilimitado no simulacro, capaz de esquivar até mesmo o igual. Ele requer um caos informal, uma potência de afirmação de séries heterogêneas, que colocam o próprio mundo como fantasma. O simulacro não significa uma cópia degradada, mas traduz a potência do corpo, ao negar tanto o original ou a cópia, o modelo ou a reprodução. Por isso, o mesmo e o semelhante apresentam, enquanto essência, unicamente a possibilidade de serem simulados, inventados a cada movimento. Cabe lembrar que o falso não se opõe a um modelo do verdadeiro, tampouco o simulacro se constitui enquanto tomada da ilusão, mas simplesmente pensamos o poder do corpo como movimento de maquinação e de constituição de novos territórios.

Por isso, a estética de si requer a ética do simulacro, no momento em que o corpo pode atuar enquanto crítica das verdades e, simultaneamente, produto de devires e invenções. Além disso, segundo Lins (2001), Nietzsche e Artaud também pensam numa ética da crueldade, a qual demanda uma experiência cruel dos limites, ou um processo contínuo de desconstrução. Enquanto pensamento movediço e nômade, ou experimentação de muitos desertos, essa ética delineia cartografias desejantes e surtos da pele, como os gritos molhados contra o organismo (Artaud) e contra o corpo da razão (Nietzsche). A crueldade é produtora da dor que supõe do criador uma determinação implacável necessária à criação. Isso traz a força própria do artista, assim, a arte também contém um componente de crueldade. A desconstrução, na crueldade, procura o desmanche do teatro do eu e sua ilusória profundidade, isto é, desterritorializa o teatro do corpo como unidade fictícia. Ela ultrapassa a intenção moral. Trata-se de uma crueldade não perversa, inocente, visto que ela é involuntária e da ordem da vida, da vontade de potência. A ética da crueldade nietzschiana implica ver o mundo como vontade de potência, então, toda força, a cada instante, vai até o final, até as suas últimas conseqüências, o que revela o tempo do devir. Para Lins (2004), o sistema de crueldade implica uma relação-outra com as coisas e com os signos. Se o juízo impõe uma busca de interpretação, a crueldade propõe uma experimentação e um desmanche.

Nesse ponto, a ética, aqui problematizada, está vinculada a uma dimensão criativa e desprendida de roteiros pré-estabelecidos. Gil (1996) salienta que as representações e as imagens, quando são separadas dos seus correspondentes verbais, contêm uma carga inconsciente de sentido. O autor tematiza sobre a imagem-nua, como uma imagem despojada da sua significação verbal. Assim, na arte, e também na vida, podemos estar mergulhados num universo rico em imagens-nuas, uma vez que somos capazes de nos desprender das significações mais corriqueiras e abrirmos nosso corpo ao vazio de sentido. O corpo em cena, através de suas atuações, pode compor mistérios e entrar nesse universo rico de imagens sem significação definida. As imagens-nuas trazem pensamentos voadores, já que estão associadas a forças e permitem a falta de sentido. Elas constituem a percepção do corpo do outro e transportam significações mudas e informações muito mais ricas do que as mensagens verbais. Dessa forma, são produtoras de pequenas percepções. Ora, encontramos ressonâncias entre a imagem-nua, as pequenas percepções e o simulacro. Ambos rompem com o plano representacional e propõem modos intensivos de ver e viver o mundo. A imagem-nua pode estar associada à linguagem verbal, mas pode também evocar um aspecto não-verbal, como efetivamente detentor de sentido não exprimível. Assim, por exemplo, o corpo pode expressar, na arte, para além do dizível, ao evocar simulacros e propor brechas no pensar. Podemos experimentar, no teatro, movimentos intensivos e moleculares, que questionam lógicas molares e nos colocam numa nova posição, para além do conhecido e do mensurável. Viver a arte do encontro requer, pois, uma tentativa de contaminação com o inusitado presente em cada gesto, que nos toma e nos transporta para um plano de rompimento da linguagem mais corriqueira e usual.

A partir dessa idéia, no teatro, podemos presenciar a encenação ou a representação de uma história, que traz um enredo definido e personagens com características marcadas. Ao mesmo tempo, porém, as cenas podem estar, constantemente, propondo movimentos de abertura às imagens-nuas e aos simulacros. Isso pode levar o espectador a experimentar outros sentidos e a percorrer limiares entre os mistérios advindos das personagens e das tramas. Assim, o enredo pode provocar, no ator ou no público, novas possibilidades de significação, que se desprendem das anteriores. Ou a peça pode trazer novos afetos e vínculos para quem a assiste e se delicia com seus dramas e suas belezas. Além disso, o corpo do ator, no teatro, pode transitar entre a consciência e o inconsciente, o que o leva a percepções ínfimas e apelos tênues nos gestos de seu personagem, que passa, então, a arriscar novos possíveis.

Desse modo, na arte, e na vida, podemos deixar invadir novas imagens, que trazem vazios ou outras significações e que nos convidam a conviver com os mistérios do mundo. O corpo em cena deseja buscar o princípio ético da estética do si e do eterno retorno, na tentativa de mexer com suas verdades e burlar os antigos vícios de sentido. Quando vivencia o tempo da diversidade, o sujeito pode compor um teatro de individuação e simulacro, ao ensaiar novas estratégias e resoluções para os seus dramas e fazer, de cada instante, a eternidade da diferença e do devir. Isso pode nos fazer repensar as nossas concepções de sujeito e de seus modos de relação com o outro.

 

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Recebido em 20 de agosto de 2007
Aceito em 25 de março de 2008
Revisado em 20 de junho de 2008

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