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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.3 Fortaleza set. 2008

 

RESENHAS DE LIVROS

 

"Estado de excepción"

 

 

Henrique Figueiredo Carneiro

Psicanalista. Professor Titular e Coordenador do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza. End.: R. Aloysio Soriano Aderaldo, 150, apt. 202. Fortaleza, CE. CEP: 60191-260. E-mail: henrique@unifor.br

 

 

 

(Giorgio Agamben)
Adriana Hidalgo Editora, 2004, 176 págs.

Falar sobre Giorgio Agamben tornou-se uma referência obrigatória para qualquer pesquisador cujo tema de investigação cruze o umbral do homem natural e entre na esfera do subjetivo instaurado pela lei.

Sujeito, lei e política, são, por excelência, espaços de subjetivação, que trazem indispensáveis ferramentas para pesquisas realizadas no campo das Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e áreas por onde o autor transita com bastante propriedade. É dessa conjunção, formada por três mourões indissociáveis e tremendamente variáveis, que o sofrimento psíquico encontra respaldo para o desenvolvimento de uma produção de mal-estar na atualidade.

Agamben, que desde 1986 tem assento no Collège Internacional de Philosophie de Paris, já é bastante conhecido por suas obras, com destaque para O homem sem conteúdo (1970), Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (1977), A linguagem e a morte (1982), Homo sacer (1995), O que resta de Auschwitz (1998), por analisar as imbricações do emaranhado mapa que guia a estas questões subjetivas.

Começamos com Homo sacer, lançada em 1995, por tratar-se de uma obra maior. Projetada para quatro tomos, teve sua aparição com O poder soberano e a vida nua (Vol I). Continuou em 1998 com O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha (Vol III). Estado de exceção (Vol II), lançada em 2003, configura o início do segundo tomo, que aguarda seu complemento, para que, juntamente com o quarto, feche o projeto feito inicialmente pelo autor.

Em que ponto baseamos a construção desta resenha sobre o Estado de exceção? Exatamente na seção em que a obra mais nos interessa, em função da contribuição que jorra sobre as pesquisas que realizamos sobre a violência, a culpa e o ato, em nome de suas causas e efeitos subjetivos. As implicações subjetivas, que tanto falamos hoje em dia, determinadas pela ausência de referências que sustentem o sujeito em um laço social, são apresentadas na obra nada menos como um estado de exceção.

Mas o que excede? Aquilo que para nós psicanalistas aparece como um gozo que, de tanto fazer excesso, acaba por tomar o sujeito por uma exceção para o estado subjetivo que cada um opera desde uma política dos laços sociais.

Para Agamben reside em um ponto fundamental toda a questão do iustitium, termo romano que se utiliza para apresentar o seu Estado de exceção. Iustitium - interrupção, suspensão do direito é tomado na obra, entre outros aspectos, como uma contingência à Festa, luto e anomia, que figura no livro no quinto capítulo. Nele, ficam deflagrados os espaços de morte, angústia e a falta de representação do trauma do sujeito, através de uma pesquisa arqueológica sobre os discursos instituídos em torno da passagem do termo - iustitium - de uma posição de estado de exceção para uma acepção de luto, com o advento da morte do imperador romano.

O imperador, o soberano, porta a anomia. E essa é uma descoberta de grande relevância. Entretanto, uma anomia que marca diferença. Uma referência de exceção, tal e como trabalhamos em psicanálise com as formas de sexuação, em que para funcionar um limite é necessário que exista um Todo, a quem o sujeito faz referência como exceção e daí deduz sua constituição. Tanto é assim que, quando vamos buscar na história a importância da morte do imperador-deus, na antiguidade romana, a morte dele havia de ser religada, pois o corte que imprimia o desamparo ao cidadão era de grande monta, no sentido dos efeitos causados sobre o desatamento subjetivo. Não há como não se instituir um luto público em função da passagem do imperador-deus para um estado em que transubstancia o corpo humano em corpo divino.

Nesta perspectiva, Agamben destaca que o soberano é uma lei vivente. E assim se monta a referência à lei genuinamente no espaço da anomia, dado que nos faz pensar muito, sobre a desamarração que detectamos hoje na lei instituída, em função do que se reconfigura um estado de exceção nos moldes do soberano, sobretudo, porque há uma falha na representação do nome-do-pai ou de quem o sustente, nos discursos vigentes.

Com a suspensão da lei, firmada por quem faz uma exceção, as relações seguem em direção ao excesso, tal como se configuram as grandes festas anômicas, como os carnavais. O que chama atenção é que a suspensão de limites durante festas populares ocorrem com a aprovação da lei. Em outras palavras, a anomia carnavalesca não é sem objeto. Ela recebe uma autorização da lei instituída. Há uma autorização para o excesso. Significa dizer que, nesta situação, todas as metamorfoses estão sob a vigília da lei. Uma espécie de anomia relativa à lei. O que é bastante preocupante, ao tempo que significativo como uma contribuição aos desenlaces sociais hoje, é o que Agamben mostra no sexto capítulo Auctoritas e Potestas.

Importante porque entra em cena uma discussão mais profunda sobre a figura da autoridade, sua constituição e desvanecimento. Autoridade, termo que reclama a presença de um autor, não pode ser confundido - na sua essência - com ditadura. Enquanto autoria, é um conceito impessoal que joga um papel subjetivo importante na estruturação de uma autorização paterna a um ato filial. A ditadura entra exatamente pela via excessiva do personalismo. É, sem sombra de dúvidas, uma linha tênue que separa este espaço de direito e que traz consequências gigantescas para a esfera subjetiva.

Esta questão é tomada por Agamben anteriormente, no capítulo específico em que trata o Iustitium - terceiro capítulo. Explica que o Iustitium, como suspensão da ordem jurídica, não suporta, na Constituição romana, uma interpretação que se confunda com a ditadura. E isso abre uma perspectiva instigante para se pensar a nova forma de totalitarismo na modernidade. Um totalitarismo não ditatorial. O que subsiste aqui é a interrupção do direito. O que podemos chamar de um totalitarismo promovido por uma interferência subjetiva na formação de laços deflagrados em função do anômico.

Nesse sentido, o que se efetiva durante este estado de interrupção do direito fica questionado enquanto sua validade. Enfim, como sustentar um mandato sem o aparato jurídico suspenso pela exceção? É oque se questiona Agamben, para em seguida responder, após algumas análises sobre a presença/ausência da lei, que quem atua durante a suspensão da lei, não executa nem transdgride, senão que inexecuta o direito (pg. 99).

E isso é a anomia, isto é, atos tomados como mero fatos, cuja natureza foge ao âmbito do direito. As consequências dos atos executados durante um estado de anomia é que carecem de sentido quando se tenta associá-los ao direito. Agamben aclara mais ainda que, nestas circunstâncias, não se confunde estado de necessidade ao estado de direito. A necessidade se dá em uma situação esvaziada de direito. Portanto, a anomia é uma espécie de não-lugar. Como tal, uma afirmativa pela negativa que conhecemos como o verdadeiro status do objeto na deflagração da angústia, conforme nos fala Lacan no Seminário da Angústia, quando trata que este afeto não é desprovido de objeto. E isso é importante para a psicanálise, pois nesse sentido o objeto da angústia é anômico, no sentido mais estrito que o termo suporta.

Para o desenvolvimento de uma lógica da violência enquanto ato, vamos encontrar elementos de suma importância no capítulo quarto, quando Agamben estabelece um diálogo entre a leitura de Walter Benjamin sobre a violência e o debate realizado sobre ela com Carl Schmitt em função do estado exceção.

Parte do termo alemão Gewalt, que admite o duplo sentido entre as palavras violência e poder, para chegar à questão central: haveria uma violência pura, anômica ou a violência poderia ser situada dentro de um contexto jurídico? É esta questão que se coloca entre Benjamin e Schmitt. A tese de Schmitt é de que não haveria uma ação no estado de exceção que não tivesse situada pela exclusão dentro do estado de direito. Portanto, não se sustentaria a tese de Benjamin com respeito a uma violência pura. A discussão evolui e Schmitt trabalha com a teoria da soberania, como um lugar de decisão extrema e, sobretudo, para indicar que não há violência pura. Esta tese, Benjamin responde com a questão da soberania barroca, em que o estado de exceção se instala para fazer frente ao termo decisão. O soberano exclui ao invés de decidir.

No final, com a instalação da ditadura nazista, Schmitt é levado a reconhecer a primazia da exceção. Com isso fica afetada a decisão e se instala uma confusão entre regra e exceção. Por fim, triunfa a tese de um estado de exceção, uma anomia em que a força de lei abandona toda relação com o direito. Fica a referência, enfim, de uma violência anômica e por fora da lei, isto é, sustentada por um estado de exceção. É aqui onde repousa a noção de violência pura, não como uma referência ingênua de uma violência pela violência, senão que, neste ponto, se insere a importância da linguagem. Violência pura é aquela que se dá por fora da linguagem, por fora da lei, como marca diferencial do humano. É quando a violência fica tomada, não pelos fins que a justificam, e sim como um meio sem fim. Um a exceção que só pode ser tomada pelo esvaziamento do sentido.

É assim que se pode compreender a violência, a partir do que está desenvolvido no capítulo segundo, quando Agamben define o Estado de Exceção como um espaço anômico em que se põe jogo uma força-de-lei sem lei (p. 81). É quando sobrepõe sobre a palavra lei um X, propondo uma grafia do tipo força-de-lei. Neste capítulo, vai tomar a idéia de que o Estado de exceção é uma travessia do homem pelo umbral de uma indeterminação formada entre lógica e práxis, dando passagem também a uma pura violência, sem logos e sem um referente que sustente esta ação.

Este é o Estado de Exceção como paradigma de governo que está proposto na introdução da obra e desenvolvido através dos aspectos que demarcamos como importantes para pensar o lugar da violência e os laços sociais na contemporaneidade.

Uma obra indispensável.

 

 

Recebido em 9 de julho de 2008
Aceito em 29 de agosto de 2008
Revisado em 9 de setembro de 2008

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