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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.4 Fortaleza dez. 2008

 

AUTORES DO BRASIL
COMUNICAÇÕES

 

O inconsciente é psicossomático

 

The inconscient is psychosomatic

 

 

Edilene Freire de Queiroz

Psicanalista. Mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-Doutora pelo Laboratoire de Psychopathologie Clinique (Université Aix-Marseille 1). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora PQ-II do CNPq. End.: Praça de Casa Forte, 354, apt. 1402, Casa Forte. Recife, PE. CEP: 52061-420. E-mail: edilenequeiroz@uol.com.br, equeiroz@unicap.br

 

 


RESUMO

A onda de culto ao corpo que tem caracterizado a cultura contemporânea se radicaliza, no mundo científico, no culto ao cérebro que, de um órgão do corpo, responsável pelo sistema nervoso, passou a ser visto pela neurociência como "sujeito" das ações humanas. Pretende-se, com isso, que a Biologia seja uma ciência do homem total, fusionando neurologia, psiquiatria e antropologia, colocando o cérebro como o fundamento do espírito, ator social. O impacto de tal discurso nos fez refletir em torno da questão da subjetividade e corpo. A nossa aproximação ao tema representa uma primeira tentativa de estabelecer uma posição crítica à posição reducionista daqueles que tentam compreender as ações humanas pelo prisma biologizante. Na virada do século apagou-se a linha divisória do corpo e da mente que dominou o pensamento do homem do século XIX, influenciado pelo cartesianismo. O século XX se caracterizou pelo avanço, sem precedentes, no conhecimento e apropriação do corpo e suas funções pela medicina. Também foi neste mesmo século que a Psicanálise decifrou um corpo afetado pelo inconsciente. A questão da imagem corporal também foi posta como questão na organização subjetiva do homem. Esse domínio e apropriação do corpo, ligado ao inconsciente e amarrado ao sujeito o inseriu numa ordem cultural livre de repressões sociais. Faremos algumas considerações, com base em alguns trabalhos recentes, de pesquisadores psicanalíticos que vêm estudando a corporeidade nos sintomas psíquicos e o trânsito das pulsões nas duas direções: do corpo ao psíquico e do psíquico ao corpo. Tomaremos; em especial, as reflexões de Monah Winograd (2003) e de Paul-Laurent Assoun (2004). A primeira por fazer uma retrospectiva da relação corpo e psiquismo na obra de Freud e a segunda por trabalhar com a perspectiva de o inconsciente ser psicossomático.

Palavras-chave: corpo, sujeito cerebral, fenômenos psicossomáticos, fantasia, psicanálise.


ABSTRACT

The increasing cult to the body nowadays has characterized the contemporary culture in the scientific world. The cult on the brain of an organ of the body is responsible for the nervous system, as well as it has been seen by neuroscience as "the subject"of human beings actions. One intends about that Biology is a science of the whole man, that is made up by condensation of neurology, psychiatry and anthropology, placing the brain as the basis of the spirit - a social actor. The impact of this kind of speech in science's world takes people along to think the question of subjectivity and body. Our approach on the subject performs a first attempt to set up a critical position against those ones who intend to reduce the understanding of human actions through biology prism. At the beginning of the new century, the dividing line between the body and the mind, specially in XIX century over the influence of cartesianisme. The XX century is characterized by the advance, like no other, in the knowledge and appropriation of the body and its functions for medical science. It was also in the same century that the Psychoanalysis pussled a body affected by the unconsciousness. The question of the body image also was indicate as man's subjective question organization. The appropriation power of the body linked to the unconsciousness and tied to a subject has inserted it a cultural order free form social repressions. We'll make some remarks based on recent works psychoanalytic researchers that have been studying the bodlyness influence in the psychicsymptoms and the transit of the instincts (trieb) in two ways: the body to the psychic and the psychic to the body. We'll take overall Monah Winograd (2003) and Paul-Laurent Assoun's opinions (2004). The first one made a retrospect of the relation body and psychic in Freud's workmanship, and the second one for working with the perspective of unconsciousness to be psychosomatic.

Keywords: body, brain subject, psychosomatic phenomenal, fantasy, psychoanalysis.


 

 

O inconsciente é psicossomático1

As revoluções científicas mostram a capacidade de o homem superar dificuldades, avançar no conhecimento do universo, tornando-o criatura, imagem e semelhança de Deus. Mas, algumas descobertas abalaram o narcisismo do homem. Primeiro, o homem deixou de ser o centro do universo ao constatar que o sol não girava em torno da Terra; depois, ele deixou de ser senhor consciente dos seus atos, pois a descoberta do inconsciente mostrou que um outro Eu, inconsciente, determina e governa as ações humanas. Agora, a neurociência ameaça provocar um novo abalo, ao trabalhar com o pressuposto de um sujeito cerebral, responsável por todas as ações humanas. O homem corre o risco de perder, então, a capacidade de responder pela sua própria subjetividade.

Assim, a onda de culto ao corpo que tem caracterizado a cultura contemporânea se radicaliza, no mundo científico, no culto ao cérebro que, de um órgão do corpo, responsável pelo sistema nervoso, passou a ser visto pela neurociência como "sujeito" das ações humanas. Isso significa uma transformação antropológica e sociocultural. Comenta Ehrenberg (2004), citando Kandel, que o espírito será para a Biologia do século XXI o que o gene foi para a Biologia do século XX. Pretende-se, com isso, que a Biologia seja uma ciência do homem total, fusionando neurologia, psiquiatria e antropologia, colocando o cérebro como o fundamento do espírito, ator social.

O impacto de tal discurso nos fez refletir em torno da questão da subjetividade e do corpo. A nossa aproximação ao tema representa uma primeira tentativa de estabelecer uma posição crítica à posição reducionista daqueles que tentam compreender as ações humanas pelo prisma biologizante. Sabemos que, na virada do século, apagou-se a linha divisória do corpo e da mente que dominou o pensamento do homem do século XIX, influenciado pelo cartesianismo. O século XX se caracterizou pelo avanço, sem precedentes, no conhecimento e apropriação do corpo e suas funções pela medicina. Também foi neste mesmo século que a Psicanálise decifrou um corpo afetado pelo inconsciente. A questão da imagem corporal também foi posta como questão na organização subjetiva do homem, esse domínio e apropriação do corpo, ligado ao inconsciente e amarrado ao sujeito, o inseriu numa ordem cultural livre de repressões sociais. Como diz Corbin, Courtine e Vigarello (2008, p.9) "o corpo nos pertence" e podemos fazer dele instrumento de mostração e de lutas das minorias contra o discurso do poder. A utopia da saúde estimulou o desenvolvimento da medicina preventiva que, por sua vez, criou dispositivos cada vez mais sofisticados para exploração dos órgãos, dos genes, com o apoio das tecnologias de imagens. Se, como disse Kendel, citado anteriormente, o espírito será para a Biologia do século XXI o que o gene foi para a Biologia do século XX, é porque a ciência também quer dar "visibilidade" ao inconsciente, ligando-o e reduzindo-o definitivamente ao corpo. Não se trata de buscar só um corpo sarado, mas também uma mente isenta de sofrimento. Os afetos e as emoções precisam ser amainados. Segundo Ehrenberg (2004, p. 130) "o social, o cerebral e o mental serão fundidos nessa nova ciência reinante".

O elo psiquismo e corpo não foi desprezado por Freud, que tratou de teorizar sobre o trânsito entre eles e mostrar que o inconsciente fala através das somatizações. Mas a idéia de o cérebro responder, cada vez mais pela subjetividade humana, de o cérebro ser o fundamento do espírito e ator social, assusta aqueles formados na tradição das ciências humanas, acostumados a valorizar o homem como ser de linguagem que se constitui na relação social.

Se os neurologistas são acusados de fetichizarem o cérebro, também eles acusam os cientistas sociais de verem o Ser e o Si mesmo como entidades mágicas. Atitudes preconceituosas não cabem nas ciências, posições éticas sim. Nesse sentido, nos propomos a discutir o elo corpo e psiquismo pelo viés do que vem sendo produzido pela Psicanálise.

Faremos algumas considerações, com base em alguns trabalhos recentes, de pesquisadores psicanalíticos que vêm estudando a corporeidade nos sintomas psíquicos e o trânsito das pulsões nas duas direções: do corpo ao psíquico e do psíquico ao corpo. Tomaremos; em especial, as reflexões de Monah Winograd (2003) e de Paul-Laurent Assoun (2004). A primeira por fazer uma retrospectiva da relação corpo e psiquismo na obra de Freud e a segunda por trabalhar com a perspectiva de o inconsciente ser psicossomático.

Segundo Winograd (2003), assistimos, na última década, à explosão discursiva da Biologia sob duas perspectivas: ou ela opera uma redução sumária do indivíduo (modos de pensar e agir) à sua configuração biológica, cujo propósito é associar as variações psíquicas às variações neurobiológicas e às configurações genéticas; ou apresenta como "descoberta grandiosa" a verificação da relação entre corpo e psiquismo. A primeira, causa surpresa pela redução; já a segunda, pelo fato de ser apresentada como uma descoberta recente, quando para a psicanálise é uma preocupação antiga que remonta aos primeiros estudos sobre a psicogênse da histeria.

Monah Winograd (2003), no artigo intitulado A problemática corpo-alma na obra de Freud, apresenta alguns pontos importantes que abordaremos a seguir.

Em 1888, Freud publica, num dicionário de medicina, um artigo chamado "Cérebro". Este texto salta aos olhos como especialmente revelador. É um dos artigos mais longos do dicionário e pretende ser uma introdução sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro humano. A parte do artigo mais interessante é a segunda. Nela, Freud parte de uma definição geral do cérebro como o órgão no qual as excitações sensórias centrípetas são convertidas em impulsos centrífugos de movimentos. Esta função do cérebro recebe o estatuto de causalidade mecânica, cujo modelo é o arco-reflexo.

Contudo, a atividade cerebral não se reduz a esta função. Freud escreve: "(...) simultaneamente ao estado de excitação, definível mecanicamente, de elementos cerebrais determinados, podem ter lugar estados de consciência determinados (...)" (Freud, 1888a, pág. 62). [A tradução do inglês para o português é minha]. Entre os estados de excitação cerebral e os estados de consciência, Freud concebe uma relação de conexão ou de ligação que pode ser formulada da seguinte maneira: as mudanças materiais de estado (excitação de elementos cerebrais) estão em conexão com as mudanças de estados de consciência. Esta conexão constitui uma primeira determinação do psíquico, ela faz do cérebro "o órgão da atividade mental (Seelenthätigkeit)". O termo "mental" tendo, aqui, o mesmo sentido que o termo "psíquico". O que nos diz Freud desta atividade mental?

a) A conexão que a constitui não tem origem numa causalidade mecânica: a aparição de um estado de consciência implica necessariamente a excitação de elementos corticais, mas a recíproca não é verdadeira, pois um mesmo estado de excitação cortical pode, de acordo com cada momento, estar ou não em conexão com um estado de consciência.

b) A conexão, quando tem lugar, se traduz em termos de franqueamento ou não-franqueamento do limiar da consciência. Deste ponto de vista, a aparição de um estado de consciência tem por modelo o ato voluntário, mas os estados de consciência podem tomar outras formas: sensações, percepções de objeto, representações etc.

c) Os estados de consciência somente são acessíveis à introspecção. Que tenham ou não lugar não afeta em nada a forma do comportamento observável (Winograd, 2003, p. 2).

A autora conclui que a ausência de causalidade mecânica entre estado de excitação cortical e estado de consciência induz à idéia de uma distinção de níveis entre os dois e, quando a conexão se efetua entre esses dois níveis, o estado de excitação cortical constitui uma condição necessária, mas não suficiente, do estado de consciência. Os processos fisiológicos no sistema nervoso não se interrompem ao se iniciarem os processos psíquicos, ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue e pode corresponder a mais de um elo associativo. Nos fenômenos hipnóticos, por exemplo, implicam-se, simultaneamente, variações psíquicas e fisiológicas.

Nesse paralelismo psico-físico, com base no trabalho citado, Freud introduz o afeto como correlato da soma de excitação e como elemento que conecta o psíquico ao corporal. A relação entre excitação (processo fisiológico) e representação (processo psíquico) não é causal, mas de concomitância. Mais adiante (1895/1980a), estudando a neurose de angústia, Freud verifica que para que uma excitação endógena se faça notar, psiquicamente, é preciso atingir certo limiar. A impossibilidade de transpor esse limiar acarretaria, então, a descarga motora através de taquicardias, hiper-ventilação, tremores etc, manifestações fisiológicas próprias dos estados de angústia.

Evidente que a neurologia da época de Freud não é mesma da atual. A Biologia molecular e a Neuro-imagem têm se encarregado de mapear o corpo humano. Pretende-se, com a convergência desses dois domínios, compreender as causas das doenças mentais e encontrar, segundo Andreasen (apud Ehrenberg, 2004, p.135), uma "penicilina da doença mental". Isso implica em não mais distinguir as doenças decorrentes de lesões e as doenças causadas por disfunções, acabando com a fronteira que separa a neurologia da psicopatologia, as doenças físicas das mentais. A tendência é de se encontrar um ponto entre o cérebro e o espírito, entre os mecanismos moleculares e os estados mentais.

Ora, é recorrente na obra de Freud a idéia de que não há psiquismo sem corpo e que, para se compreender um, é preciso entender o outro. O conceito de pulsão criado por ele, e muitas vezes confundido com instinto, tem como finalidade dar conta dessa zona fronteiriça entre corpo e psiquismo, ao guardar uma dupla conotação: é somática, pois opera como uma força "biológica", derivando das excitações corporais endógenas e é, simultaneamente, psíquica, pois se manifesta para o indivíduo como a representação desta força. A noção de que a pulsão sexual se apóia na necessidade de autoconservação corrobora esse ponto de vista segundo o qual o indivíduo deve ser concebido biopsiquicamente e, igualmente a noção de EU. Este é concebido como:

[...] a projeção mental da superfície corporal. Não somente o Eu é uma entidade de superfície (psíquica), já que se constitui como mediação entre o psiquismo e a exterioridade, mas, por definição, ele deriva das sensações corporais, principalmente das que têm lugar na superfície corporal. A segunda idéia também opera com a noção de membrana, desta vez, articulada ao Isso. Assim como o Eu, também podemos pensar no Isso como uma membrana ou uma interface entre o psiquismo e o corpo. O próprio Freud sugeriu isso quando, em 1933, definiu o Isso como um "caos", um "caldeirão cheio de excitação fervilhante" pelo contato direto com o corpo (Freud, 1933) (Winograd, 2003, p. 1).

Essa unidade psico-física é rompida no final do século XIX e início do século XX, fundando duas clínicas: uma sustentada no homem cerebral da neurologia e outra no homem ser de linguagem da psicopatologia. Observa Ehrenberg (2004) que na primeira, a doença do sistema nervoso transcende o paciente e, na segunda, o sintoma é singular e próprio do doente. Nesta última, o foco é no doente e naquela o foco é na doença. Tais posturas geraram disciplinas distintas que mantiveram, ao longo desse século, uma tensão permanente.

No final do século XX a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso estavam completamente dominados pela neurociência. A questão hoje é descobrir quais os mecanismos que governam a linguagem, o raciocínio, a memória e como planificar as ações e reações humanas. Por que nosso coração acelera quando estamos diante de um perigo? Como os nossos neurotransmissores são acionados pelo olhar ou a palavra do outro? Por que reagimos de diferentes modos diante do outro? Enfim, como se articula a performance psicológica com a fisiológica?

Do mesmo modo, a psicanálise decifrou a doença mental pela metapsicologia, reconheceu a unidade psico-física, mas falta decifrar o momento corporal do sintoma.

As neurociências, agora plural, pretendem fundir as disciplinas, antes dispersas, numa ciência do homem sustentada em duas proposições básicas:

a) as doenças neurológicas e as doenças mentais são susceptíveis de serem abordadas como uma espécie única de doença;

b) o perímetro de ação dessas doenças se estendem às emoções, aos comportamentos sociais e aos sentimentos morais.

Essa nova perspectiva de ciência, que considera, no processo de individuação do homem operado na relação com o social, o sofrimento psíquico e a saúde mental, pressupõe várias portas de entrada ao discutir tais questões. Escolhemos, para esse debate, a entrada feita por Assoun, psicanalista francês que manteve, durante o ano letivo de 2005, um seminário sobre Anthropologie Psychanalytique et Pratique Clinique du Corps. Ele trabalha com a hipótese do "inconsciente psicossomático", que conota um sentido diferente do atribuído pela Psicossomática.

O fenômeno somático desafia, de certo modo, o saber médico (sustentado na mecânica corporal) e o psicológico (sustentado nas motivações e desejos). A psicossomática nasceu dessa inquietude e representou uma tentativa de conciliar a psicanálise com a medicina. Em vez disso, restabeleceu uma problemática pré-freudiana: a dualidade da psique e do soma. Entretanto, a nominação da psicossomática moderna tem a pretensão de suprir uma carência da teoria psicanalítica, ou seja, pensar um destino da somatização mais além da conversão histérica.

Considerando isso, a proposta de Assoun (2004) é fazer um retorno a Freud, não para discutir a questão do desejo da histérica, nem para verificar o estatuto histérico do sintoma somático, mas para compreender de que maneira Freud se confrontou com a revelação do estatuto inconsciente do corpo ao encontrar-se com o sintoma histérico-somático.

O ato inconsciente exerce, sobre os processos somáticos, uma ação plástica intensa que o ato consciente nunca alcança. O desafio é saber como isso se dá. A plasticidade é uma maneira de dar forma e, nos processos somáticos, coincide o ato inconsciente e a ação plástica corporal com efeito físico. A clínica psicanalítica hoje exige que o psicanalista esteja apto a identificar o momento corporal do sintoma. O corpo denuncia o desarranjo simbólico que não foi possível ser trabalhado pelo psiquismo, restando-lhe como alternativa o acontecimento físico do sintoma.

Lacan (1985c) já observava que a lesão psicossomática não obedece, somente, às leis da linguagem próprias do inconsciente, também não responde a uma estrutura metafórica. Trata-se de um modo binário de funcionamento, no qual o terceiro elemento, necessário a qualquer formação simbólica, não entra. A lesão psicossomática guarda o sentido etimológico de "trauma", ou seja, o sentido de "ferida" que supõe a existência de um corpo físico. Pode-se dizer que a noção de "trauma", em psicanálise, é da mesma natureza da noção de "sublime", que indica um estado volátil, etéreo, no qual o corpo fica intacto. Freud (1923/1980b) cunhou o conceito de "sublime", "sublimação" inspirado na noção de "sublime" da química, que significa o trânsito da fase sólida para vapor, portanto, "sublime" significa "volatizado". No caso do trauma também pode ocorrer igual trânsito: o estado de volatização do trauma pode ser comparado ao estado difuso da angústia, no qual, segundo Freud (1895/1980a) a energia está livremente flutuante. Entretanto, nos fenômenos psicossomáticos o epicentro do trauma é uma espécie de implosão no bruto, na matéria e não psíquico, em outras palavras, no real sem a ação do simbólico. O elemento traumático incide sobre o estado físico da matéria, fazendo uma ferida no corpo. O trauma deixa de ser "volatizado" no aparelho psíquico e toda a excitação escoa para o corpo.

A concepção lacaniana de real, simbólico e imaginário tem ajudado a relativizar tais concepções, pois tem demonstrado que o real somático está no coração de toda a experiência psicanalítica do inconsciente e, por conseguinte, não é prerrogativa dos sintomas classificados como psicossomáticos (Lacan, 1985c). Para ele as reações psicossomáticas estão ao nível do real e tudo aquilo que é rejeitado do simbólico volta no real do corpo sob a forma de uma lesão de órgão (Lacan, 1954-1955/1985a). As lesões psicossomáticas são traços inscritos no corpo, semelhante aos hieróglifos, que precisam ser decifrados, pois constituem uma escrita pré-significante e pré-representacional (Lacan, 1955-1956/1985b). Daí, o padecimento psicossomático surgir, quando o indivíduo se vê impossibilitado de representar e simbolizar o sofrimento psíquico. Algo no aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira que o inconsciente. A verdadeira satisfação está na ordem do real e o imaginário e o simbólico estão construídos para conter o real.

Portanto, não se trata de psicologizar o acontecimento somático ou físico e sim de problematizar a noção de psicogênese, de por à prova o corpo pela metapsicologia. Enfim, de construir uma metapsicologia do corpo.

O termo psicossomático é enganoso porque supõe um prolongamento do acontecimento psíquico no somático quando na realidade o acontecimento psicossomático é o modo de dar testemunho físico do des-simbólico, ou do não simbólico. Ao surgir uma falha no simbólico produz-se um acontecimento de corpo que representa a incidência física do inconsciente, a manifestação somática do sintoma e a manifestação pulsional no corpo. Esse é justamente o sentido da afirmativa: o inconsciente é psicossomático.

O fantasma, o espectral que povoa o imaginário, pode se materializar. Porém, existe, para Assoun (2004), vários modos de manifestação do real no corpo, pois o corporal possui três registros semânticos: o orgânico, o somático e o físico2. Em aparência, o corpo real é o corpo orgânico ou organismo que remete ao somático e ao físico. O modelo de sintoma corporal é a afecção orgânica e esta seria a "verdadeira enfermidade" porque é percebível pela ausculta, pela tomografia e por demais exames médicos. O saber médico é feito do conhecimento da complexidade das engrenagens dos órgãos. Só que o corpo também vive uma vida que parece desafiar, em parte, a vida orgânica, pois manifesta dores intempestivas sem causa aparente, inabordável pelo saber das engrenagens dos órgãos. Segundo Assoun (2004), o órgão joga um duplo jogo: somático/psíquico, físico/moral e orgânico/funcional.

Freud (1940/1980c) tenta dar conta do elo perdido entre o psíquico e o somático com a noção de inconsciente, reservatório das pulsões3, que está em contato direto com o corpo. A questão é de saber quais os efeitos do inconsciente sobre essas duas bordas: o somático e o psíquico. Isso significa reexaminar a metapsicologia, antes preocupada com os processos de representação, para rediscutir e identificar os canais que ligam os fenômenos psíquicos ao corpo e vice-versa. Requer, então, duas posturas: saber do inconsciente pelo corpo - o que parece ser a proposta da neurociência - e saber do corpo pela metapsicologia - como vem trabalhando Assoun (2004).

Nesse sentido significa pensar o destino da somatização para além da conversão histérica, dos fenômenos classificáveis como psicossomáticos. Para Assoun (2004) existe uma posição do corpo recuperada pela noção de real inconsciente que é irredutível à captação no orgânico ou à redução psicossomática. O que se revela no sintoma somático é o momento físico do processo inconsciente e não da incidência dos processos inconscientes sobre o corpo. Há um impacto físico do real inconsciente. Em todo sintoma psiconeurótico um núcleo físico equivalente ao que acontece com a pérola que abriga no seu núcleo o grão de areia. Recomenda o autor ser preciso saber reconhecer não só a neurose sob o disfarce orgânico, também as vicissitudes orgânicas da existência neurótica. Ele sustenta a hipótese de que o sintoma somático não é distinto do sintoma psíquico. Os sintomas somáticos e psíquicos de uma determinada enfermidade não são de natureza distinta e sim dois lados de uma mesma moeda. A água constituída de duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio (H2O) mantém sua fórmula, mesmo quando se altera seu estado, que pode ser sólido, líquido ou gasoso.

O sujeito doente padece ao ser afetado por um agente, qualquer que seja sua natureza. No seu drama atuam três instâncias: os fantasmas psíquicos que se apoderam desse meio de expressão, o sintoma do corpo orgânico ou o órgão lesado que se torna propício a acionar os fantasmas e o trabalho do sintoma que engendra o drama. Essa compreensão hipotética do que se passa com as patologias demanda uma pergunta: qual o elo e o canal que viabiliza esse trânsito? A psicanálise indica o inconsciente como elo, que as neurociências querem tornar visível, objetivável e mostrável.

Concluindo, podemos indagar: se o psiquismo é a borda entre o interior e o exterior e o EU se faz nesse entre, experimentar as sensações e relações dentro do corpo seria estar informado sobre o fora, seria conectar o corpo com o mundo? Nesse sentido as sensações e as relações intra-corporais podem ser concebidas como maneiras de apalpar o mundo e todas as enfermidades só poderiam ser compreendidas na conexão do corporal com o psíquico e com o social.

 

Referências

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Recebido em 10 de agosto de 2008
Aceito em 07 de dezembro de 2008
Revisado em 19 de dezembro de 2008

 

 

Notas

1. Edição revisada e ampliada do trabalho apresentado no I Simpósio Internacional de Psicologia promovido pela Escola Pernambucana de Saúde FBV-IMIP, em Recife, em 07 de agosto de 2006 e na II Jornada do Laboratório de Psicopatologia Fundamental EPSI - Espaço Psicanalítico de João Pessoa, em 02 de dezembro de 2006.
2. Segundo Assoun (2004), o somático está em oposição ao psíquico: representa tanto o corpo vivo como morto. O orgânico conota a noção de corpo como máquina e dispositivo instrumentado. O físico indica a natureza ou maneira de ser, seria o natural da individualidade.
3. O percurso da Trieb como um circuito de circulação pulsional brota no somático como energia-estímulo nervoso e atinge o sistema nervoso central na forma de sensações e imagens (idéias) para, então, ser descarregado através de certas ações mentais ou motoras (Hanns, 1996, p.49).

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